Um texto de apoio à palestra referida abaixo:
4939. “A política externa brasileira em face das ameaças ao multilateralismo e ao equilíbrio diplomático: itinerário desde o início do século XX”, Brasília, 26 maio 2025, 4 p. Exercício exploratório e análise crítica sobre os vieses introduzidos na política externa e na diplomacia do Brasil pelas correntes opostas do bolsonarismo e do lulopetismo.
A Política Externa como Território de Conflito Político-Ideológico no Brasil Contemporâneo
ESRI - Relações Internacionais
3,02 mil inscritos
27/05/2025, 19h30hs
Texto de apoio a palestra, para leitura por parte da audiência:
A política externa brasileira em face das ameaças ao multilateralismo e ao equilíbrio diplomático: itinerário desde o início do século XX
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Exercício exploratório e análise crítica sobre os vieses introduzidos na política externa e na diplomacia do Brasil pelas correntes opostas do bolsonarismo e do lulopetismo.
Também disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/129573018/4939_A_politica_externa_brasileira_em_face_das_ameacas_ao_multilateralismo_e_ao_equilibrio_diplomatico_2025_ ).
O ambiente internacional atual está visivelmente caracterizado por grande instabilidade política, devido a uma série de fatores, entre eles, o mais importante, um desentendimento entre as grandes potências com respeito às normas que devem reger as relações internacionais. Essas normas são, usualmente, de dois tipos: uma ordem mundial regida por regras escritas, tratados e acordos internacionais aos quais os países se submetem mais ou menos voluntariamente, e que se destinam a regular as relações de paz e cooperação entre os Estados membros da comunidade internacional, assim como as divergências entre eles, visando evitar as grandes conflagrações mundiais ocorridas no decorrer da primeira metade do século XX; ou uma “ordem” imposta e mantida pela força, na qual os mais poderosos ditam as regras que devem pautar suas esferas de influência e de dominação, como a que justamente prevaleceu naquele período, a despeito de uma entidade internacional, a Liga das Nações, que deveria, supostamente garantir a paz e promover a cooperação entre os Estados, mas que, lamentavelmente não foi capaz de evitar, sequer sancionar, os episódios de intimidação bélica e de ataques militares contra países menos poderosos.
A ordem criada ao final da Segunda Guerra Mundial, discutida primeiramente em Dumbarton Oaks, depois em Ialta e em São Francisco, estabeleceu o marco fundamental de relações pacíficas entre os Estados membros, tendo o seu eixo central baseado na igualdade soberana das nações, a proibição das guerras de conquista e a determinação de mecanismos de restabelecimento da paz em caso de conflito, nomeadamente através do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Este é institucionalmente mandatado para ordenar missões de imposição ou de manutenção da paz, a cargo de seus membros – cinco permanentes, os vencedores da guerra contra as potências agressoras expansionistas, e dez membros rotativos, eleitos a cada dois anos – com a particularidade de que os cinco membros permanentes possuem o direito de veto sobre qualquer decisão do Conselho.
Impasses foram contínuos durante o decorrer dos últimos 80 anos, sem qualquer nova guerra global, mas com muitas guerras entre Estados ou dentro dos Estados, sendo que a paz relativa nesse período foi mais assegurada pelo “equilíbrio do terror” entre as grandes potências nucleares – os cinco permanentes e meia dúzia de outros não oficialmente reconhecidos – do que pela força “moral” das Nações Unidas, frequentemente ignorada por vários dos Estados membros, grandes ou pequenas potências. O sistema multilateral para garantir a paz e a segurança internacionais, criado na Liga das Nações em 1920 e reforçado nas Nações Unidas em 1945, não foi capaz de conter o unilateralismo arrogante de algumas das grandes potências, assim como as iniciativas bélicas de outros atores dotados de certa capacidade bélica. É o que ocorre atualmente, com o acirramento de posturas adversas entre as três grandes potências nuclearmente armadas do atual cenário geopolítico mundial: a Rússia, a China e os Estados Unidos, estes ainda considerados o Hegemon mundial, os dois primeiros temporariamente unidos numa “aliança sem limites” – como ambos a chamaram – contra a terceira grande potência, dominante ao longo dos últimos 80 anos.
Qualquer que seja o desenvolvimento futuro dessas oposições reconhecidamente existentes no atual cenário geopolítico mundial – nova Guerra Fria, como aquela que vigorou entre 1947 e 1991, continuidade das proxy wars, ou enfrentamentos localizados, apoiados ou opostos pelas grandes potências, até uma possível, mas improvável, nova guerra global, envolvendo todos os atores relevantes acima citados –, o que se tem de claramente preocupante é a desagregação, ainda que parcial, do multilateralismo, tal como conhecido nas últimas décadas. A fragmentação da ordem global, relativamente predominante depois da implosão do socialismo entre 1989 e 1991, com uma grande onda globalista que parecia se expandir ao conjunto do mundo nos anos 1990, teve início com os ataques terroristas de 2001, tomou algum impulso político depois da crise financeira de 2008, centrada nos países avançados, e se acelerou ainda mais com a crise dos refugiados e dos exilados econômicos, abalando a capacidade de acolhimento dos países receptores, as mesmas democracias de mercado avançadas. Uma nova direita e partidos situados no extremo espectro conservador de países avançados acolheram teorias conspiratórias de franjas lunáticas extremas para reforçar o antiglobalismo dos nacionalistas introvertidos, ademais dos elementos autocráticos pertinentes a esse espectro político.
O fulcro atual da instabilidade no sistema de segurança internacional foi constituído, em primeiro lugar, pela invasão ilegal do Iraque pelos Estados Unidos – agravando a instabilidade já existente no Oriente Médio –, seguida pelas ações igualmente unilaterais da Rússia contra seus vizinhos, sucessivamente a Georgia, a Moldova e a Ucrânia, colocando face a face, quase como nos anos 1930, potências expansionistas e os defensores da “ordem global multilateral”, que é caracteristicamente ocidental (ou seja, os Estados Unidos e seus aliados da OTAN, da UE e alguns outros “globalistas”). Em outros termos, o desafio ao multilateralismo contemporâneo é estimulado pelas próprias grandes potências que relutam em aderir por completo às normas mais elementares do Direito Internacional, assim como não hesitam em violar abertamente a própria Carta da ONU.
Este é, portanto, o primeiro problema enfrentado atualmente pela política externa brasileira, ou seja, a de um país historicamente vinculado aos valores e princípios do multilateralismo – desde Rio Branco, Rui Barbosa, Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas e outros – e que vinha exercendo a sua contribuição ao multilateralismo global por uma vertente regional do multilateralismo, ao desenvolver mecanismos de consulta e coordenação entre os países latino-americanos e de integração econômica e comercial no Cone Sul do continente, notadamente por meio do Mercosul. A própria fragmentação que existe atualmente no sistema internacional se vê reproduzida igualmente no âmbito regional, onde as possibilidades de aprofundar os mecanismos de coordenação e de integração se encontram, agora, claramente fragilizados.
O segundo problema mencionado no título, o do equilíbrio diplomático, é propriamente interno, pois não tem a ver com a fratura na política internacional, e sim com a fratura na própria política brasileira, que passou a ser disputada desde o início do século pelos lados opostos do espectro político, com o isolamento relativo das velhas forças centristas, progressistas ou conservadoras, mas que mantiveram o domínio das instituições de Estado desde praticamente o Império e durante a maior parte da República. Esse desafio foi representado, numa primeira oportunidade, pela diplomacia conduzida no governo bolsonarista e, agora, pela diplomacia do terceiro governo lulopetista, novamente no poder. Elas representam uma ruptura com a tradicional autonomia de ação e a absoluta imparcialidade da política externa do Brasil em face de conflitos interimperiais, ao aderirem, a primeira, não apenas aos Estados Unidos, mas de maneira extremamente servil ao presidente Trump, durante seu primeiro mandato, finalizado no início do 2021; a segunda às propostas de uma “nova ordem global multipolar” proclamada de maneira vaga pelas duas autocracias que contestam a validade da ordem global em vigor nos últimos 80 anos.
Decorrem daí redefinições conceituais da política externa brasileira, assim como alterações nos modos de agir da diplomacia brasileira no plano operacional, ao terem, ambas, passado ao controle de personalidades situadas nas antípodas do espectro político, as duas caracterizadas por um aguçado personalismo populista na condução da política interna e, também, na política externa. O controle sobre a política externa e a diplomacia do Brasil por personalidades dominantes, apoiados por movimentos e tendências ideologicamente bem marcadas, representa, assim, um desafio especialmente inquietante no caso do Brasil, como potência média sempre dotado de uma diplomacia ecumênica, voltada essencialmente para o desenvolvimento econômico e social do país, num momento em que a própria política internacional passa por abalos graves no plano do sistema multilateral, com a quase total paralisia da OMC e a alarmante falta de compromisso das grandes potências com a manutenção da paz e da segurança internacionais.
Pode-se, com efeito, considerar que as diplomacias bolsonarista e a lulopetista – a primeira já passada, mas ainda latente como fenômeno político persistente, a segunda ainda em curso em sua terceira etapa – apresentam deformações similares, embora não exatamente semelhantes, mas igualmente prejudiciais, embora desproporcionalmente, à diplomacia e a política externa brasileiras no curso das últimas duas décadas, com alguma interrupção momentânea entre ambas (impeachment de 2016 e governo centrista de 2016 a 2018). As duas diplomacias, com características diferentes, aparentemente opostas, mas com efeitos igualmente deletérios, têm atuado no sentido de deformar a política externa nacional e a sua diplomacia operacional por meio de graves desvios conceituais e defeitos práticos no que se refere a uma correta e adequada defesa teórica e prática das mais caras tradições brasileiras em matéria de relações internacionais, que sempre esteve orientada a uma defesa exclusiva dos interesses nacionais, sem quaisquer preferências ideológicas por algum dos grandes atores da política internacional.
É esse equilíbrio de posições e a manutenção de uma plena autonomia decisória nos confrontos existentes no atual cenário geopolítico que têm sido colocados em questão com as opções preferenciais que os dois paradigmas politicamente opostos estão demonstrando em suas formulações e orientações de postura externa do Brasil. A relevância existencial desse quadro polarizado na esfera das relações internacionais do Brasil requer uma análise crítica mais detalhada para revelar a acuidade dos desafios colocados nesse contexto para a política externa e para a diplomacia da nação.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4939, 26 maio 2025, 4 p.
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