sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Opções da diplomacia brasileira num mundo em desordem - Paulo Roberto de Almeida (Revista Será?)

Opções da diplomacia brasileira num mundo em desordem

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Publicado na revista digital Será?, ano xiv, n. 681, 24/10/2025, link: https://revistasera.info/2025/10/opcoes-da-diplomacia-brasileira-num-mundo-em-desordem/

            A questão completa deveria ser esta: quais são as possibilidades e limites da diplomacia brasileira no atual estado turbulento do mundo? À diferença dos dirigentes políticos que comandam o Estado, a diplomacia é uma instituição permanente, mas ela é uma simples ferramenta do Estado, na verdade, do governo de plantão, pois é este que dá instruções e fornece instrumentos de ação aos diplomatas que vão atuar no cenário mundial em função dos interesses nacionais desse Estado, ou num entendimento mais restrito, segundo a vontade do governo que comanda temporariamente ao Estado.
            O Brasil possui, dentre as suas instituições de Estado, uma diplomacia que já existe desde pouco mais de 200 anos, encarregada de operar a política externa definida pelos dirigentes do Estado, eleitos democraticamente ou instalados no comando do Estado em alguma dinâmica política qualquer: independência, constituinte, golpe de Estado, revolução, qualquer outra forma de inauguração de um novo regime político. O Brasil já passou por tudo isso e exibe, desde a redemocratização de 1985, um regime republicano de média qualidade institucional, pois que submetido ocasionalmente a tentativas de rupturas: são quatro décadas passavelmente democráticas, mas já com dois impeachments e várias mudanças nas leis eleitorais, desde 1997 com a possibilidade de reeleição, inexistente na origem.
        Ela possui grande credibilidade internacional, pela qualidade de seus quadros, assim como pelos padrões exibidos de trabalho, baseados em sólidos fundamentos doutrinários, dotado de valores e princípios que estão contidos em acordos e tratados internacionais, assim como em nossa própria Constituição, nas cláusulas de relações internacionais do seu Artigo 4o. Entre estes princípios estão a independência nacional, igualdade soberana dos Estados, a não interferência nos assuntos internos de outros Estados, a proibição das guerras de agressão ou de conquista, a solução pacífica dos conflitos, a prevalência dos direitos humanos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, e a cooperação entre os povos para o desenvolvimento pacífico da humanidade.
        Mas, no tratamento e encaminhamento dos temas da agenda internacional que são colocados em debate nos organismos intergovernamentais ou introduzidos pelos próprios países, por meios institucionais ou em oposição a determinados princípios do Direito Internacional, a diplomacia profissional do Brasil deve, obviamente, cumprir instruções que lhes são determinados pelos governantes eleitos democraticamente, supondo-se que essas determinações também representem certo consenso nacional, expressem os interesses nacionais do país e contem com respaldo suficiente no Congresso Nacional, o órgão do Estado que fiscaliza as ações do Executivo, que comanda as ações da diplomacia.
        As opções da diplomacia brasileira, portanto, não são apenas as que lhe são ditadas institucionalmente, mas também as do próprio Estado brasileiro, ou pelo menos as possibilidades e limites que figuram no programa, ou na vontade política, do governo que se assume temporariamente o comando do Estado. A diplomacia brasileira não é totalmente livre, nem para testar seus limites e possibilidades, nem para determinar, segundo seus próprios princípios e valores, segundo sua experiência ou vontade própria, a condução da política externa a ser tomada num tema preciso da agenda internacional.
        Vamos partir de um exemplo simplório, no caso alianças internacionais ou coalizão com outros Estados em caso de guerras entre eles, geralmente grandes potências. A situação se colocou concretamente ao Brasil no final dos anos 1930, uma década marcada pela emergência e afirmação de potências militaristas e expansionistas, geralmente de cunho totalitário (fascistas, mas incluindo também o comunismo bolchevique), que deslancharam guerras de agressão nos dois extremos da Eurásia: o Japão imperial contra a República da China, em 1931 na Manchúria e em 1937 contra o resto do país, e a Alemanha nazista contra Estados centro-orientais europeus, anexações da Áustria em 1938, a Boêmia no mesmo ano, depois o resto da Tchecoslováquia no ano seguinte, seguidas, a partir de uma coalizão com a União Soviética, de uma guerra de agressão e a anexação contra a Polônia, para, no seguimento, se lançar contra as democracias da Europa ocidental.
        O Brasil ao lado dos Estados Unidos, se declararam neutros, ao início, mas foram depois envolvidos no grande jogo estratégico da coalizão das potências agressoras. Nessa hora, a diplomacia brasileira poderia recomendar a manutenção da neutralidade, assim como o fez a Argentina, já dominada pelos militares do GOU, o Grupo de Oficiais Unidos, que não rompeu com as potências belicistas praticamente até o final da guerra. No Brasil, a condução do chanceler Oswaldo Aranha resultou na aliança com as Nações Aliadas do Ocidente, em primeiro lugar os Estados Unidos, a despeito de evidente simpatia de muitos próceres do Estado Novo, ele mesmo de natureza semifascista, pelas potências fascistas, aparentemente vencedoras ao início do conflito global. A política externa e a diplomacia se conjugaram na tarefa de consumar as alianças necessárias na defesa concreta dos interesses nacionais, já sob ameaça de afundamentos adicionais de navios nacionais nas águas do Atlântico Sul, o que levou forças militares do Brasil até os campos de batalha da Europa.
        Depois de oitenta anos sem novos conflitos globais, apenas proxy wars, guerras civis ou interestatais entre Estados menores, mas também muita violência patrocinada pelas mesmas grandes potências que patrocinaram dominações imperialistas no passado remoto e durante a primeira Guerra Fria – Suez, Vietnã, Oriente Médio, Afeganistão, Iraque e outras aventuras imperiais –, o mundo voltou a exibir sinais de “anos 1930” no grande jogo da geopolítica, no contexto de uma segunda Guerra Fria que já deixou para trás suas características econômico-tecnológicas do início dos anos 2000 para adquirir uma preocupante configuração geopolítica na faixa das disputas hegemônicas. Como antes, a violação dos princípios mais elementares do Direito Internacional se dá num contexto de corrida armamentista e de disputas por influência e dominação, em territórios novamente contestados ou historicamente reivindicados como fazendo parte de dominações imperiais do passado, o que ameaça fraturar de modo perceptível as relações internacionais da atualidade.
        O mundo se encontra novamente sob pressão, de um lado pelos efeitos diretos e indiretos de uma guerra de agressão no centro do continente euroasiático, que já é o mais importante conflito interestatal na região, desde o final da Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, pela turbulência causada no sistema multilateral de comércio, por uma “guerra de agressão tarifária” deslanchada unilateralmente, e ao arrepio dos princípios mais elementares derivados dos acordos realizados em Bretton Woods, nas áreas financeira e monetária, e nas negociações multilaterais de comércio de Genebra e Havana, em 1947-48, consagrando a aplicação incondicional e ilimitada da cláusula de nação mais favorecida, agora ignorada e praticamente destruída pelo dirigente do império ainda hegemônico, mas já em declínio, o que causou enorme instabilidade nas relações econômicas em nível global.
        Pois bem, quais são as possibilidades e limites da diplomacia brasileira nesse mundo que se ressente das pressões das grandes potências em ação para contemplar seus interesses propriamente imperiais, ignorando as regras e acordos intergovernamentais em vigor sob a égide da ONU e suas agências especializadas? Em princípio, a diplomacia deveria continuar pautando seu trabalho ancorada nos grandes eixos que a distinguiram desde o Império na conduta a ser adotada num mundo marcado por capacidades assimétricas derivadas dos potenciais próprios aos principais atores das relações internacionais: grandes e médias potências, dotadas de ativos diferenciados em função de suas respectivas inserções nos grandes fluxos econômicos, financeiros e militares em curso no cenário mundial.
        O Brasil possui um complexo de dotações físicas, de natureza econômica e comercial, que o colocam entre as dez maiores potências econômicas do mundo, mas também um ator respeitado no âmbito do G20, inclusive pela qualidade de sua diplomacia corporativa. O que ele ainda não possui são atributos militares e financeiros capazes de o colocarem na posição conhecida como de rule maker nos grandes jogos do poder mundial. Cabe, portanto, à sua diplomacia mantê-lo na posição que tem sido a sua numa trajetória bem-sucedida desde a conformação do moderno sistema multilateral: manter sua plena autonomia decisória nos grandes temas da política mundial, propugnar pela solução pacífica dos conflitos entre os Estados, sempre com base em seus princípios doutrinários e valores históricos, em total consonância com as regras mais elementares do Direito Internacional.
        Sobretudo, não caberia à diplomacia propor qualquer tomada de posição nas disputas e fricções imperiais entre as grandes potências, tendo em vista implicações geopolíticas que vão muito além dos interesses nacionais em termos de desenvolvimento econômico e social e cooperação tecnológica com todos os parceiros mais avançados nos setores de ponta da indústria mundial. Isso, a diplomacia profissional do Brasil saberia fazer com a desenvoltura que tem sido a sua num itinerário histórico marcado por grande coerência e credibilidade externa, pela solidez de seus fundamentos conceituais e estrita adesão aos grandes princípios do Direito Internacional. Mas não é certo que a política externa governamental siga posturas e recomendações vindas da ferramenta operacional das relações exteriores do Brasil.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5097, 22 outubro 2025, 4 p.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.