Valor Econômico, 31/01/2014
Venezuela, o mais recente laboratório do socialismo ortodoxo no mundo, sofre hoje fortes transformações econômicas e sociais, radicalizadas em nome da "revolução chavista", que neste domingo completa 15 anos em meio a uma severa escassez de dólares. A distorcida economia é o território sobre o qual o governo civil-militar de Nicolás Maduro, herdeiro do "líder supremo" Hugo Chávez, desdobra suas forças para consolidar um processo que exibe alguns resultados sociais e muitos danos colaterais, como a elevada criminalidade, a escassez de bens básicos e a queda da produção local.
O objetivo oficial é tornar irreversível o sistema socialista em implantação, soterrar o capitalismo, fortalecer o Estado, unir as Forças Armadas e organizações populares e projetar o país como potência regional. Tudo está no marco do "Plan de la Patria", testamento do presidente Hugo Chávez, decretado por Maduro como manual obrigatório para os próximos anos.
A radicalização ocorre em um contexto de mais inflação, empresas com baixo uso de capacidade e reduzida produção da PDVSA, a deficitária petroleira estatal que sustenta os programas sociais do governo com petrodólares nunca suficientes.
Depois de ganhar a eleição de 1998, na esteira de uma onda de descontentamento popular contra os partidos tradicionais, Chávez assumiu a Presidência em fevereiro de 1999. De imediato, instaurou um processo para modificar a Constituição e iniciou profundas mudanças políticas e sociais na estrutura do Estado venezuelano, até a declaração de um regime socialista, em 2004. "É possível definir a situação atual de muitas maneiras, mas, em última instância, é uma crise de caixa, de dólares em espécie", disse ao Valor um economista, especialista em petróleo, que preferiu não ser identificado.
Depois de vários anos de gastos públicos sem controle, no ano passado o governo se financiou deixando de pagar em moeda estrangeira empresas privadas, companhias aéreas, importadores e contratistas da PDVSA. Segundo o informe financeiro da empresa, sua dívida com fornecedores privados era de US$ 16,7 bilhões no fim de 2012. Agora, diversos credores estão cobrando suas faturas. Só por importações já ingressadas no país, autorizadas, mas não reconhecidas, o governo deixou de entregar a empresas locais cerca de US$ 9,5 bilhões, calcula Jorge Roig, presidente da associação privada Fedecámaras, a Fiesp da Venezuela. São dívidas com atrasos de até 300 dias. Há o risco de que fornecedores fechem linhas de crédito e que a falta de produtos se agrave, disse também Roig.
Somados os compromissos não honrados com companhias aéreas e os valores devidos por expropriações e repatriação de capitais, a dívida com o setor privado é de cerca de US$ 50 bilhões, segundo Roig. O governo propôs pagar com combustível e títulos da dívida pública os US$ 3,6 bilhões que deve às empresas aéreas, mas a proposta não é atrativa, explicou uma fonte.
O país que se orgulha de possuir as maiores reservas de petróleo do mundo, suficientes para 800 anos de exportações ao ritmo atual, tem entradas decrescentes de divisas. "Estamos exportando menos petróleo, inclusive para os Estados Unidos, nosso mercado mais rentável", observa o especialista em questões do petróleo.
Dados da Agência Internacional de Energia (AIE) e do Departamento de Energia dos Estados Unidos indicam que a produção real da PDVSA é de 2,4 milhões de barris por dia, bem abaixo dos 3,6 milhões de barris de 1996. O mercado local consome 800 mil barris, o que deixa apenas 1,6 milhões de barris para exportações, incluindo 800 mil aos Estados Unidos, que pagam em moeda forte. O restante das vendas vai para China, Índia e parceiros do Caribe, com descontos, ou para pagar créditos.
O ingresso real das exportações de petróleo e derivados previsto para este ano é de cerca de US$ 40 bilhões. Desse montante, é preciso descontar pagamentos de dívida financeira da PDVSA no exterior e importações de 200 mil barris por dia em naftas e gasolinas compradas a US$ 120 o barril, para serem vendidas no país pelo ridículo preço de US$ 2,1 o barril. "Isso deixa uma cifra de US$ 25 bilhões de exportações de petróleo e derivados, uma fração do que eram há 5 ou 15 anos, para pagar as importações e os juros da dívida externa", explicou o economista.
Em uma economia importadora, isso se reflete nas filas diárias de clientes nas portas dos supermercados de todo o país. As pessoas buscam principalmente farinha de milho e de trigo, óleo, frango, margarina, leite, açúcar, papel higiênico, guardanapos. Esses produtos, de preços e nível de produção controlados pelo Estado há uma década, desaparecem das prateleiras com espantosa velocidade e vão parar no mercado negro, em que o preço se multiplica em favelas, ruas comerciais e países vizinhos.
O próprio presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, afirmou recentemente que 30% dos alimentos importados "são contrabandeados para a Colômbia". De acordo com o Banco Central, em dezembro a escassez foi a mais alta em seis anos e, em média, chegou a 22% em produtos básicos (de cada 100 produtos procurados, o consumidor não encontra 22). Mas também faltam baterias e peças de reposição para carros e máquinas, papel para imprimir jornais, matérias-primas, alguns remédios, equipamentos de laboratórios médicos, eletrônicos e de computação, fraldas e detergentes.
Paradoxalmente, nas lojas há variedades de uísque escocês e champanhes. É fácil encontrar azeite de oliva, biscoitos e macarrão italiano, queijos uruguaios, carnes e cosméticos do Brasil, vinhos do Chile, Argentina e do Mediterrâneo, e - quando aparecem - leite de Portugal e Equador e papel higiênico dos Estados Unidos.
Quando se espalha a notícia da chegada dos produtos controlados às lojas, aparecem longas filas. Alguns esperam horas para comprar por um preço cinco vezes menor ao oferecido pelos vendedores ambulantes ou pequenas lojas. Os mercados são interditados pela polícia ou militares, até acabar a mercadoria regulada.
Em uma das filas, diante de um supermercado no bairro caraquenho de Chacao, um jovem pedreiro, que se identifica apenas pelo prenome Carlos, diz que a economia vale a pena. Ele costuma se dirigir, todo dia, a uma grande construção, nas proximidades, em busca de emprego como carpinteiro, e aproveita para entrar na fila pela comida. "O emprego está difícil e a construção paga muito bem. Aí tem gente que leva um ano inteiro esperando ser chamado para trabalhar", diz. Os números oficiais, no entanto, são de um desemprego de apenas 5,6% em dezembro.
"Outro dia, eu, minha mulher e meus dois filhos passamos cerca de sete horas diante da [loja] Makro para poder comprar oito quilos de leite", comenta Carlos, enquanto espera pelo óleo e pela farinha, usada para preparar arepas, o alimento básico dos venezuelanos.
O governo atribui a escassez à "estocagem doméstica" e economistas culpam a baixa produção interna, enquanto muitas donas de casa só querem garantir os produtos básicos para seus filhos, já que não sabem quando será a próxima vez que vão encontrá-los.
Outro trabalhador faz contas: com o que gastou em quatro quilos de farinha e dois litros de óleo de milho controlados, só teria conseguido comprar um quilo de farinha com os vendedores ambulantes. "As pessoas vão se cansar, isto vai se transformar em uma bomba- relógio", resmungava, depois de conseguir cota de alimentos controlados.
Sua observação coincide com a de um analista político da Universidade Central da Venezuela, Luis Salamanca, especialista em temas sociais. "Uma bomba-relógio sociopolítica está sendo alimentada com esse pesadelo que é a Venezuela de hoje em dia. Todas as classes sociais vivem reféns de uma comoção descontrolada, gerada pela irresponsabilidade de um governo que há 15 anos atua supostamente em nome do povo" afirma.
"A megacrise atual colocou em evidência o altíssimo nível de dependência que temos da renda do petróleo. A sociedade está dominada por uma criminalidade desatada e pela incerteza de uma economia que está caindo aos pedaços", diz.
O ataque à criminalidade é a mais recente oferta de Maduro, que se viu estimulado pelo assassinato, no princípio de janeiro, da atriz Mónica Spear, miss Venezuela de 1994, assassinada, com seu marido, por assaltantes numa rodovia. Com mais de 24 mil assassinatos por ano, o país está entre os mais perigosos do mundo em tempos de paz, segundo o Fórum Penal Venezuelano e o Observatório da Violência. O governo nega esses dados.
Até os opositores reconhecem a capacidade do chavismo para capitalizar desvantagens e "dar a volta por cima", mobilizando seus seguidores. Desta vez, Maduro tirou a bola da oposição no meio do campo da luta contra a "insegurança" e anunciou que lançará um "plano nacional de pacificação" no dia 8.
Dias atrás, Maduro convocou encontros "de convivência familiar" em praças e avenidas do país, com festas e brincadeiras para crianças, em mais um dia que serviu como outra homenagem a Chávez e ao socialismo. "Basta de violência, fruto dos antivalores acumulados. Basta de uma sociedade capitalista de consumo. Façamos a paz!", proclamou.
"A imprensa burguesa faz festa com os crimes, ao anunciá-los no necrotério, nos noticiários, nas primeiras páginas e nas novelas. Há todo um modelo anticultural no aspecto da violência que vivemos hoje e que foi imposto nos últimos 40 anos", afirmou o presidente. O ministro do interior, general Miguel Rodríguez Torres, disse ao Valor que as convocações para a paz são um primeiro passo antes do plano de pacificação. "Se todo o povo se une, em quatro ou cinco anos a Venezuela pode ser um território de paz."
Os críticos observam que não haverá progresso enquanto as prisões estiverem sob o poder dos próprios criminosos e não do Estado, em um negócio milionário que abarca militares e policiais corruptos. Rodríguez Torres afirma que o governo "está trabalhando para recuperar o controle das prisões" e espera acrescentar "quatro ou cinco" neste ano. "Já há 17 sob regime rígido do Estado. Isso é um avanço, ainda que faltem outras 16. "Cada prisão é um comando de operações de crimes, de extorsões e sequestros", admite. O ministro também informa que estão fazendo ensaios para bloquear as comunicações nas prisões. "Não podemos continuar permitindo que, usando a tecnologia celular, coordenem operações de quadrilhas organizadas por eles."
AP / APEm ato antiviolência, mulher exibe foto de Mónica Spear, miss Venezuela de 1994, com o marido, assassinados no início do mês: país está entre os mais perigosos do mundo em tempos de paz, segundo ONGs
Entre caminhões de som que emitiam discursos e músicas, castelos infláveis e militares em roupa esportiva, caminhavam as aposentadas Alba Carmona e Josefa León. São voluntárias do Movimento pela Paz e pela Vida, convocado por Maduro. "Temos criminalidade em todos os lugares do mundo e aqui sempre foi assim, tem sido assim toda a vida", diz Alba, antes de admitir que o governo deve "ter mão dura e colocar as coisas nos eixos".
"Há muita gente que paga para sair da prisão. O dinheiro compra tudo. Há impunidade, não vamos tapar o sol com a peneira", disse, ao ratificar sua fidelidade chavista "até que o mar se seque". Ela reconhece que as filas e a escassez, junto com a criminalidade, estão entre os principais problemas "do processo". Nega, porém, que exista possibilidade de uma explosão social. "Quando eu era criança, usávamos papel de jornal", diz. "Isso não cai. A cada dia isso tem mais vida, mais força, mais vigor, mais gente."
Pouco adiante, Melissa Ramírez, de 17 anos, se diverte com amigos. "A violência é algo que deveria parar. A adolescência está perdendo muito, há muitas mortes", disse.
O Estado assistencialista alimenta enormes expectativas em uma população socialmente dividida e muito politizada. Alguns chavistas críticos temem que as conquistas destes 15 anos estejam em risco, como a redução da pobreza, que, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), caiu para 23,9%, e a indigência a 9,7%, em 2013, o melhor resultado na América Latina.
O salário mínimo, considerado pelo governo "entre os mais altos do mundo", equivale a US$ 520 por mês, com a cotação oficial, mas a US$ 297 com a nova cotação de 11 bolívares. Se esse valor é calculado no câmbio paralelo, compram-se apenas US$ 52.
Esse mesmo salário também é pago a 2,75 milhões de pensionistas e aposentados, dos setores público e privado, que se comparam a apenas 380 mil beneficiários que em 1998 recebiam somente 60% do mínimo. "Aumentar o número de pensionistas permitiu avançar na erradicação da pobreza", disse o deputado da situação Oswaldo Vera ao jornal oficial "Correo del Orinoco".
Para financiar milionárias campanhas eleitorais - em que o chavismo mobiliza seus fiéis seguidores usando bens do Estado e distribuindo presentes - e sustentar o investimento social, o governo imprime dinheiro sem lastro, o que elevou a moeda em circulação em 70% somente no último ano.
Enquanto isso, as reservas internacionais do Banco Central estavam em US$ 20,5 bilhões em janeiro, a menor cifra nos últimos dez anos. A avalanche de liquidez e a limitação de dólares oficiais ajudaram a elevar o dólar no mercado negro a até mais de dez vezes a taxa oficial de 6,30 bolívares.
Do controle de câmbio surgiu um negócio da China para pessoas que viajavam para o exterior e aproveitavam a cota pessoal de até US$ 3 mil anuais permitida pelo governo para compras com cartões de crédito. A quantia era sacada em dinheiro vivo e, quando essas pessoas voltavam ao país, vendiam os dólares no mercado negro. A viagem saia de graça, além de possibilitar enormes lucros.
Na semana passada, o governo respondeu com um novo decreto, estabelecendo um sistema cambial diferenciado que levou o câmbio para viagens internacionais a uma taxa de 11 bolívares por dólar, o que frustrou milhares de viajantes. As remessas familiares, importações não básicas e pagamentos a empresas de seguros no exterior também passaram à nova taxa. A taxa de 6,30 bolívares por dólar fica para importações essenciais, que, segundo o governo, cobrirão 80% das necessidades do país, incluindo bens de produção.
Rafael Ramírez, vice-presidente da Área Econômica, ministro de Energia e presidente da PDVSA, diz que essas são decisões necessárias para equilibrar a administração de divisas e enfrentar "a guerra econômica" com foco na nova ordem que se aspira construir no país "em sua transição ao socialismo".
O deputado da situação Jesús Faria afirma que "estão garantidos maior fluxo de moeda estrangeira, maior rigor na destinação e a revalorização do bolívar", porque até agora "a taxa de câmbio de referência" na economia é a do mercado negro, que traz muitos malefícios ao país", segundo a agência de notícias AVN.
Meridith Kohut/Bloomberg / Meridith Kohut/BloombergRodríguez Torres: convocações para a paz
A distorção é tão grande, que um carro de luxo custa tanto quanto uma casa em uma pequena cidade, a carne brasileira é mais barata que a nacional e um tanque de gasolina de 40 litros custa US$ 0,50 no câmbio oficial ou US$ 0,05 no paralelo. O dólar paralelo marca os preços relativos em toda a economia. Por isso, para alguns analistas, a nova taxa, de 11 bolívares por dólar, continua sendo "uma boa compra", considerando-se a inflação do país e a de seus principais parceiros no exterior.
Com as passagens áreas já vendidas para todo o ano de 2014, no caso de muitos destinos, os preços se multiplicaram por até 12 e mudam a cada dia, informou o portal Trabber.com.ve. "A crise das companhias aéreas na Venezuela está tendo um impacto muito forte. A instabilidade cambial, os cancelamentos de voos e a não venda de passagens está gerando uma inflação descomunal nas passagens", lê-se naquele portal, enquanto nas redes sociais chovem testemunhos de passageiros à deriva no exterior, ou aqueles que não podem sair do país por falta de dinheiro ou de passagens.
Publicar essas taxas não oficiais tem sido considerado até agora uma espécie de delito desestabilizador, potencialmente punido com prisão. Mas até no aeroporto e em locais públicos do centro de Caracas, na frente de agentes do Estado, pregoeiros compram e vendem moedas estrangeiras. Tornou-se comum a negociação de dólares e euros via transferências bancárias, a taxas determinadas por portais da internet proibidos pelo governo.
Enquanto isso, o governo prepara uma reforma na "lei de ilícitos cambiais", que ressuscitará um mercado alternativo com bônus de dívida pública em moedas estrangeiras, com o estabelecimento de uma terceira taxa de câmbio. Mas economistas duvidam que o câmbio negro caia enquanto o Estado for o principal ofertante. A inflação ajuda a sobrevalorizar a moeda e nutre a demanda por divisas. Também pressiona o déficit fiscal, calculado em 16% do PIB pelo Barclays Bank.
"Um preço artificialmente baixo do dólar oficial e a enorme quantidade de bolívares no sistema faz com que a demanda seja infinita. É uma centrífuga. Deter isso é o pior pesadelo da política macroeconômica", diz o economista Orlando Ochoa.
Os críticos dizem que modelos como esse são insustentáveis e provocam mais desvalorizações e inflação, a menos que se fortaleçam as finanças públicas com medidas impopulares, como o aumento da gasolina, cujos preços estão congelados há quase 18 anos. A dívida pública "já ronda os US$ 175 bilhões (quase 60% do PIB). Nos 11 meses de Maduro no governo, essa é a terceira desvalorização que o bolívar sofre: de 4,30 a 6 bolívares por dólar, e agora a 11 bolívares por dólar. A Venezuela compra tudo no exterior. Por isso, o preço das coisas se multiplica por três", afirmou o deputado Julio Borges, da oposição, em entrevista coletiva.
O Banco Central é mais otimista e afirma que a inflação perdeu velocidade, passando de 5,1% em outubro para 4,8% em novembro e 2,2% em dezembro. Atribui a alta de 56,2% anual (o dobro de 2012) aos ataques especulativos, "que atentam contra a estabilidade nacional", e ao uso indevido das divisas oficiais.
A doença e a morte de Chávez foram aproveitadas pela oposição e por alguns empresários "para intensificar artificialmente a deterioração das variáveis econômicas. Foram conjugadas tensão política e desestabilização econômica em prejuízo do povo", afirmou o Banco Central em comunicado recente.
Mas, segundo analistas, na realidade, a "hiperliderança de Chávez" desencadeou a atual crise. Em meio à doença do "chefe supremo", as campanhas eleitorais, a acirrada eleição que levou Maduro ao poder em abril de 2013 e o gasto público desmesurado, seus ministros pararam ou atrasaram decisões cruciais para a economia e a entrega de moedas estrangeiras ficou paralisada. Isso trancou o sistema industrial e comercial e gerou mais escassez, disparou a inflação e o dólar paralelo, ao qual muitas empresas importadoras passaram a recorrer.
Outros especialistas projetam mais inflação e escassez e um clima ainda pior para os negócios privados. Com a desvalorização, foi promulgada uma nova "lei de preços e custos justos", que limita os lucros anualmente a 30% em toda a economia e aplicará duras penas aos "especuladores".
Com essa lei, "todos os bens e serviços necessários ao desenvolvimento de atividades de produção, fabricação, importação, estocagem, transporte, distribuição e comercialização de bens e prestação de serviços são declarados de utilidade pública e interesse social", observa Angel Alayón, diretor do portal Prodavinci. "Como consequência, todos os ativos na Venezuela estão em uma condição de pré-expropriação (ou pré-confisco)."
AP / APFuneral de Chávez: todos "vivem reféns de uma comoção descontrolada, gerada pela irresponsabilidade de um governo que há 15 anos atua supostamente em nome do povo", diz analista político
O clima de negócios na Venezuela já estava entre os piores do mundo antes do acirramento dos controles, em novembro e dezembro de 2013, quando Maduro enviou seus ministros, acompanhados de militares e policiais armados, para ocupar comércios e fábricas com a ordem de baixar os preços de todos os produtos. Com o início do ano, grandes lojas continuam com as vitrines vazias em shoppings e muitas fábricas ainda não começaram a trabalhar.
O índice anual Doing Business, da Corporação Financeira Internacional, classifica a Venezuela em 181.o lugar entre 189 países com as piores condições de investimentos no mundo, seguida por um grupo de oito conflituosos países africanos, como Sudão do Sul, Líbia e Chade. O país de Chávez ocupa o 182º lugar em proteção aos investidores e o 187º em carga de impostos.
Segundo o Banco Mundial, a economia crescerá menos que no resto da América Latina, com 0,5% do PIB, em 2014, enquanto o Fundo Monetário Internacional projeta um preço do petróleo estagnado em US$ 103 para 2014, e em US$ 98 para 2015, contra US$ 104 em 2013. Vêm do petróleo US$ 96 de cada US$ 100 que entram no país.
Este é um ano de trégua eleitoral na Venezuela, antes que o Congresso seja renovado, em 2015, em uma eleição política e estrategicamente mais importante que as próprias presidenciais do ano passado. Em um país sem divisão real de poderes, Maduro governa via decreto e o Tribunal Supremo de Justiça acaba de abrir o ano judicial com o grito de guerra oficial: "Chávez vive, a luta continua". Organismos como o Tribunal de Contas, o Conselho Nacional Eleitoral e a Promotoria estão submetidos ao presidencialismo do Executivo.
Nesse cenário, o risco de perder a hegemonia no Poder Legislativo - que deve ratificar indicações dos demais poderes - poderia significar para o chavismo comprometer "a irreversibilidade" da chamada revolução bolivariana.
Por isso, neste ano, a economia e a segurança pública são as principais arenas de batalha entre o governo e opositores. A margem de manobra eleitoral permitiria ao governo, por exemplo, atrever-se a aumentar o preço da gasolina, cujo subsídio, já antes das duas últimas desvalorizações, fazia o Estado perder US$ 9,8 bilhões por ano, ou mais de 3% do PIB, segundo os economistas Douglas Barrios e José Ramón Morales, da Universidade de Harvard.
"Estimativas atualizadas mais rigorosas posicionam o subsídio aos combustíveis para transporte em torno de US$ 15 bilhões anuais. E vai a US$ 30 bilhões, caso os combustíveis sejam para geração termoelétrica", diz Morales. Em 2012, "o subsídio equivalia a nove vezes o que se destina à segurança pública em um país com a duvidosa honra de ter uma das mais violentas cidades no mundo", apontam suas pesquisas.
Defensores dos direitos humanos, como o advogado Rafael Narvaez, calculam que apenas 2% dos 150 mil homicídios cometidos na Venezuela entre 1999 e 2012 foram resolvidos. A impunidade, à qual se atribui na Venezuela o auge da delinquência e da corrupção com o dinheiro público, vem à mente quando o governo responde com chamados de paz a uma guerra de baixa intensidade.
"A impunidade tem pernas curtas, acaba", diz, sentado em uma cadeira de rodas, Tomas Sifontes, de 41 anos, durante a cerimônia pela paz no fim de semana. Sua história é a de muitos outros do grupo de pessoas com necessidades especiais que o acompanham: são vítimas da violência, baleados em algum obscuro episódio. Sifontes trabalhava como segurança particular de vendedores ambulantes e lojistas em Petare, conjunto de favelas em Caracas, que, com 500 mil habitantes, deixa pálida a carioca Rocinha.
Em uma madrugada de 2007, um grupo disparou contra ele pelas costas, o que o lesionou na medula espinal. Eram inimigos de Sifontes, que os havia impedido de realizar um roubo em uma das lojas. No mesmo dia, um de seus funcionários foi assassinado. Do grupo de agressores, nenhum está vivo. "Foram sendo mortos", conta em uma ilustração da espiral de violência no país de quase 30 milhões de habitantes.
"Uma das piores decisões que fiz na vida foi comprar uma arma de fogo", disse, depois de relatar sua vida de cadeirante, suas terapias em Cuba e o trabalho social que desenvolve em um grupo de deficientes, apoiados pelo governo chavista.
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Venezuela, o mais recente laboratório do socialismo ortodoxo no mundo, sofre hoje fortes transformações econômicas e sociais, radicalizadas em nome da "revolução chavista", que neste domingo completa 15 anos em meio a uma severa escassez de dólares. A distorcida economia é o território sobre o qual o governo civil-militar de Nicolás Maduro, herdeiro do "líder supremo" Hugo Chávez, desdobra suas forças para consolidar um processo que exibe alguns resultados sociais e muitos danos colaterais, como a elevada criminalidade, a escassez de bens básicos e a queda da produção local.
O objetivo oficial é tornar irreversível o sistema socialista em implantação, soterrar o capitalismo, fortalecer o Estado, unir as Forças Armadas e organizações populares e projetar o país como potência regional. Tudo está no marco do "Plan de la Patria", testamento do presidente Hugo Chávez, decretado por Maduro como manual obrigatório para os próximos anos.
A radicalização ocorre em um contexto de mais inflação, empresas com baixo uso de capacidade e reduzida produção da PDVSA, a deficitária petroleira estatal que sustenta os programas sociais do governo com petrodólares nunca suficientes.
Depois de ganhar a eleição de 1998, na esteira de uma onda de descontentamento popular contra os partidos tradicionais, Chávez assumiu a Presidência em fevereiro de 1999. De imediato, instaurou um processo para modificar a Constituição e iniciou profundas mudanças políticas e sociais na estrutura do Estado venezuelano, até a declaração de um regime socialista, em 2004. "É possível definir a situação atual de muitas maneiras, mas, em última instância, é uma crise de caixa, de dólares em espécie", disse ao Valor um economista, especialista em petróleo, que preferiu não ser identificado.
Depois de vários anos de gastos públicos sem controle, no ano passado o governo se financiou deixando de pagar em moeda estrangeira empresas privadas, companhias aéreas, importadores e contratistas da PDVSA. Segundo o informe financeiro da empresa, sua dívida com fornecedores privados era de US$ 16,7 bilhões no fim de 2012. Agora, diversos credores estão cobrando suas faturas. Só por importações já ingressadas no país, autorizadas, mas não reconhecidas, o governo deixou de entregar a empresas locais cerca de US$ 9,5 bilhões, calcula Jorge Roig, presidente da associação privada Fedecámaras, a Fiesp da Venezuela. São dívidas com atrasos de até 300 dias. Há o risco de que fornecedores fechem linhas de crédito e que a falta de produtos se agrave, disse também Roig.
Somados os compromissos não honrados com companhias aéreas e os valores devidos por expropriações e repatriação de capitais, a dívida com o setor privado é de cerca de US$ 50 bilhões, segundo Roig. O governo propôs pagar com combustível e títulos da dívida pública os US$ 3,6 bilhões que deve às empresas aéreas, mas a proposta não é atrativa, explicou uma fonte.
O país que se orgulha de possuir as maiores reservas de petróleo do mundo, suficientes para 800 anos de exportações ao ritmo atual, tem entradas decrescentes de divisas. "Estamos exportando menos petróleo, inclusive para os Estados Unidos, nosso mercado mais rentável", observa o especialista em questões do petróleo.
Dados da Agência Internacional de Energia (AIE) e do Departamento de Energia dos Estados Unidos indicam que a produção real da PDVSA é de 2,4 milhões de barris por dia, bem abaixo dos 3,6 milhões de barris de 1996. O mercado local consome 800 mil barris, o que deixa apenas 1,6 milhões de barris para exportações, incluindo 800 mil aos Estados Unidos, que pagam em moeda forte. O restante das vendas vai para China, Índia e parceiros do Caribe, com descontos, ou para pagar créditos.
O ingresso real das exportações de petróleo e derivados previsto para este ano é de cerca de US$ 40 bilhões. Desse montante, é preciso descontar pagamentos de dívida financeira da PDVSA no exterior e importações de 200 mil barris por dia em naftas e gasolinas compradas a US$ 120 o barril, para serem vendidas no país pelo ridículo preço de US$ 2,1 o barril. "Isso deixa uma cifra de US$ 25 bilhões de exportações de petróleo e derivados, uma fração do que eram há 5 ou 15 anos, para pagar as importações e os juros da dívida externa", explicou o economista.
Em uma economia importadora, isso se reflete nas filas diárias de clientes nas portas dos supermercados de todo o país. As pessoas buscam principalmente farinha de milho e de trigo, óleo, frango, margarina, leite, açúcar, papel higiênico, guardanapos. Esses produtos, de preços e nível de produção controlados pelo Estado há uma década, desaparecem das prateleiras com espantosa velocidade e vão parar no mercado negro, em que o preço se multiplica em favelas, ruas comerciais e países vizinhos.
O próprio presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, afirmou recentemente que 30% dos alimentos importados "são contrabandeados para a Colômbia". De acordo com o Banco Central, em dezembro a escassez foi a mais alta em seis anos e, em média, chegou a 22% em produtos básicos (de cada 100 produtos procurados, o consumidor não encontra 22). Mas também faltam baterias e peças de reposição para carros e máquinas, papel para imprimir jornais, matérias-primas, alguns remédios, equipamentos de laboratórios médicos, eletrônicos e de computação, fraldas e detergentes.
Paradoxalmente, nas lojas há variedades de uísque escocês e champanhes. É fácil encontrar azeite de oliva, biscoitos e macarrão italiano, queijos uruguaios, carnes e cosméticos do Brasil, vinhos do Chile, Argentina e do Mediterrâneo, e - quando aparecem - leite de Portugal e Equador e papel higiênico dos Estados Unidos.
Quando se espalha a notícia da chegada dos produtos controlados às lojas, aparecem longas filas. Alguns esperam horas para comprar por um preço cinco vezes menor ao oferecido pelos vendedores ambulantes ou pequenas lojas. Os mercados são interditados pela polícia ou militares, até acabar a mercadoria regulada.
Em uma das filas, diante de um supermercado no bairro caraquenho de Chacao, um jovem pedreiro, que se identifica apenas pelo prenome Carlos, diz que a economia vale a pena. Ele costuma se dirigir, todo dia, a uma grande construção, nas proximidades, em busca de emprego como carpinteiro, e aproveita para entrar na fila pela comida. "O emprego está difícil e a construção paga muito bem. Aí tem gente que leva um ano inteiro esperando ser chamado para trabalhar", diz. Os números oficiais, no entanto, são de um desemprego de apenas 5,6% em dezembro.
"Outro dia, eu, minha mulher e meus dois filhos passamos cerca de sete horas diante da [loja] Makro para poder comprar oito quilos de leite", comenta Carlos, enquanto espera pelo óleo e pela farinha, usada para preparar arepas, o alimento básico dos venezuelanos.
O governo atribui a escassez à "estocagem doméstica" e economistas culpam a baixa produção interna, enquanto muitas donas de casa só querem garantir os produtos básicos para seus filhos, já que não sabem quando será a próxima vez que vão encontrá-los.
Outro trabalhador faz contas: com o que gastou em quatro quilos de farinha e dois litros de óleo de milho controlados, só teria conseguido comprar um quilo de farinha com os vendedores ambulantes. "As pessoas vão se cansar, isto vai se transformar em uma bomba- relógio", resmungava, depois de conseguir cota de alimentos controlados.
Sua observação coincide com a de um analista político da Universidade Central da Venezuela, Luis Salamanca, especialista em temas sociais. "Uma bomba-relógio sociopolítica está sendo alimentada com esse pesadelo que é a Venezuela de hoje em dia. Todas as classes sociais vivem reféns de uma comoção descontrolada, gerada pela irresponsabilidade de um governo que há 15 anos atua supostamente em nome do povo" afirma.
"A megacrise atual colocou em evidência o altíssimo nível de dependência que temos da renda do petróleo. A sociedade está dominada por uma criminalidade desatada e pela incerteza de uma economia que está caindo aos pedaços", diz.
O ataque à criminalidade é a mais recente oferta de Maduro, que se viu estimulado pelo assassinato, no princípio de janeiro, da atriz Mónica Spear, miss Venezuela de 1994, assassinada, com seu marido, por assaltantes numa rodovia. Com mais de 24 mil assassinatos por ano, o país está entre os mais perigosos do mundo em tempos de paz, segundo o Fórum Penal Venezuelano e o Observatório da Violência. O governo nega esses dados.
Até os opositores reconhecem a capacidade do chavismo para capitalizar desvantagens e "dar a volta por cima", mobilizando seus seguidores. Desta vez, Maduro tirou a bola da oposição no meio do campo da luta contra a "insegurança" e anunciou que lançará um "plano nacional de pacificação" no dia 8.
Dias atrás, Maduro convocou encontros "de convivência familiar" em praças e avenidas do país, com festas e brincadeiras para crianças, em mais um dia que serviu como outra homenagem a Chávez e ao socialismo. "Basta de violência, fruto dos antivalores acumulados. Basta de uma sociedade capitalista de consumo. Façamos a paz!", proclamou.
"A imprensa burguesa faz festa com os crimes, ao anunciá-los no necrotério, nos noticiários, nas primeiras páginas e nas novelas. Há todo um modelo anticultural no aspecto da violência que vivemos hoje e que foi imposto nos últimos 40 anos", afirmou o presidente. O ministro do interior, general Miguel Rodríguez Torres, disse ao Valor que as convocações para a paz são um primeiro passo antes do plano de pacificação. "Se todo o povo se une, em quatro ou cinco anos a Venezuela pode ser um território de paz."
Os críticos observam que não haverá progresso enquanto as prisões estiverem sob o poder dos próprios criminosos e não do Estado, em um negócio milionário que abarca militares e policiais corruptos. Rodríguez Torres afirma que o governo "está trabalhando para recuperar o controle das prisões" e espera acrescentar "quatro ou cinco" neste ano. "Já há 17 sob regime rígido do Estado. Isso é um avanço, ainda que faltem outras 16. "Cada prisão é um comando de operações de crimes, de extorsões e sequestros", admite. O ministro também informa que estão fazendo ensaios para bloquear as comunicações nas prisões. "Não podemos continuar permitindo que, usando a tecnologia celular, coordenem operações de quadrilhas organizadas por eles."
AP / APEm ato antiviolência, mulher exibe foto de Mónica Spear, miss Venezuela de 1994, com o marido, assassinados no início do mês: país está entre os mais perigosos do mundo em tempos de paz, segundo ONGs
Entre caminhões de som que emitiam discursos e músicas, castelos infláveis e militares em roupa esportiva, caminhavam as aposentadas Alba Carmona e Josefa León. São voluntárias do Movimento pela Paz e pela Vida, convocado por Maduro. "Temos criminalidade em todos os lugares do mundo e aqui sempre foi assim, tem sido assim toda a vida", diz Alba, antes de admitir que o governo deve "ter mão dura e colocar as coisas nos eixos".
"Há muita gente que paga para sair da prisão. O dinheiro compra tudo. Há impunidade, não vamos tapar o sol com a peneira", disse, ao ratificar sua fidelidade chavista "até que o mar se seque". Ela reconhece que as filas e a escassez, junto com a criminalidade, estão entre os principais problemas "do processo". Nega, porém, que exista possibilidade de uma explosão social. "Quando eu era criança, usávamos papel de jornal", diz. "Isso não cai. A cada dia isso tem mais vida, mais força, mais vigor, mais gente."
Pouco adiante, Melissa Ramírez, de 17 anos, se diverte com amigos. "A violência é algo que deveria parar. A adolescência está perdendo muito, há muitas mortes", disse.
O Estado assistencialista alimenta enormes expectativas em uma população socialmente dividida e muito politizada. Alguns chavistas críticos temem que as conquistas destes 15 anos estejam em risco, como a redução da pobreza, que, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), caiu para 23,9%, e a indigência a 9,7%, em 2013, o melhor resultado na América Latina.
O salário mínimo, considerado pelo governo "entre os mais altos do mundo", equivale a US$ 520 por mês, com a cotação oficial, mas a US$ 297 com a nova cotação de 11 bolívares. Se esse valor é calculado no câmbio paralelo, compram-se apenas US$ 52.
Esse mesmo salário também é pago a 2,75 milhões de pensionistas e aposentados, dos setores público e privado, que se comparam a apenas 380 mil beneficiários que em 1998 recebiam somente 60% do mínimo. "Aumentar o número de pensionistas permitiu avançar na erradicação da pobreza", disse o deputado da situação Oswaldo Vera ao jornal oficial "Correo del Orinoco".
Para financiar milionárias campanhas eleitorais - em que o chavismo mobiliza seus fiéis seguidores usando bens do Estado e distribuindo presentes - e sustentar o investimento social, o governo imprime dinheiro sem lastro, o que elevou a moeda em circulação em 70% somente no último ano.
Enquanto isso, as reservas internacionais do Banco Central estavam em US$ 20,5 bilhões em janeiro, a menor cifra nos últimos dez anos. A avalanche de liquidez e a limitação de dólares oficiais ajudaram a elevar o dólar no mercado negro a até mais de dez vezes a taxa oficial de 6,30 bolívares.
Do controle de câmbio surgiu um negócio da China para pessoas que viajavam para o exterior e aproveitavam a cota pessoal de até US$ 3 mil anuais permitida pelo governo para compras com cartões de crédito. A quantia era sacada em dinheiro vivo e, quando essas pessoas voltavam ao país, vendiam os dólares no mercado negro. A viagem saia de graça, além de possibilitar enormes lucros.
Na semana passada, o governo respondeu com um novo decreto, estabelecendo um sistema cambial diferenciado que levou o câmbio para viagens internacionais a uma taxa de 11 bolívares por dólar, o que frustrou milhares de viajantes. As remessas familiares, importações não básicas e pagamentos a empresas de seguros no exterior também passaram à nova taxa. A taxa de 6,30 bolívares por dólar fica para importações essenciais, que, segundo o governo, cobrirão 80% das necessidades do país, incluindo bens de produção.
Rafael Ramírez, vice-presidente da Área Econômica, ministro de Energia e presidente da PDVSA, diz que essas são decisões necessárias para equilibrar a administração de divisas e enfrentar "a guerra econômica" com foco na nova ordem que se aspira construir no país "em sua transição ao socialismo".
O deputado da situação Jesús Faria afirma que "estão garantidos maior fluxo de moeda estrangeira, maior rigor na destinação e a revalorização do bolívar", porque até agora "a taxa de câmbio de referência" na economia é a do mercado negro, que traz muitos malefícios ao país", segundo a agência de notícias AVN.
Meridith Kohut/Bloomberg / Meridith Kohut/BloombergRodríguez Torres: convocações para a paz
A distorção é tão grande, que um carro de luxo custa tanto quanto uma casa em uma pequena cidade, a carne brasileira é mais barata que a nacional e um tanque de gasolina de 40 litros custa US$ 0,50 no câmbio oficial ou US$ 0,05 no paralelo. O dólar paralelo marca os preços relativos em toda a economia. Por isso, para alguns analistas, a nova taxa, de 11 bolívares por dólar, continua sendo "uma boa compra", considerando-se a inflação do país e a de seus principais parceiros no exterior.
Com as passagens áreas já vendidas para todo o ano de 2014, no caso de muitos destinos, os preços se multiplicaram por até 12 e mudam a cada dia, informou o portal Trabber.com.ve. "A crise das companhias aéreas na Venezuela está tendo um impacto muito forte. A instabilidade cambial, os cancelamentos de voos e a não venda de passagens está gerando uma inflação descomunal nas passagens", lê-se naquele portal, enquanto nas redes sociais chovem testemunhos de passageiros à deriva no exterior, ou aqueles que não podem sair do país por falta de dinheiro ou de passagens.
Publicar essas taxas não oficiais tem sido considerado até agora uma espécie de delito desestabilizador, potencialmente punido com prisão. Mas até no aeroporto e em locais públicos do centro de Caracas, na frente de agentes do Estado, pregoeiros compram e vendem moedas estrangeiras. Tornou-se comum a negociação de dólares e euros via transferências bancárias, a taxas determinadas por portais da internet proibidos pelo governo.
Enquanto isso, o governo prepara uma reforma na "lei de ilícitos cambiais", que ressuscitará um mercado alternativo com bônus de dívida pública em moedas estrangeiras, com o estabelecimento de uma terceira taxa de câmbio. Mas economistas duvidam que o câmbio negro caia enquanto o Estado for o principal ofertante. A inflação ajuda a sobrevalorizar a moeda e nutre a demanda por divisas. Também pressiona o déficit fiscal, calculado em 16% do PIB pelo Barclays Bank.
"Um preço artificialmente baixo do dólar oficial e a enorme quantidade de bolívares no sistema faz com que a demanda seja infinita. É uma centrífuga. Deter isso é o pior pesadelo da política macroeconômica", diz o economista Orlando Ochoa.
Os críticos dizem que modelos como esse são insustentáveis e provocam mais desvalorizações e inflação, a menos que se fortaleçam as finanças públicas com medidas impopulares, como o aumento da gasolina, cujos preços estão congelados há quase 18 anos. A dívida pública "já ronda os US$ 175 bilhões (quase 60% do PIB). Nos 11 meses de Maduro no governo, essa é a terceira desvalorização que o bolívar sofre: de 4,30 a 6 bolívares por dólar, e agora a 11 bolívares por dólar. A Venezuela compra tudo no exterior. Por isso, o preço das coisas se multiplica por três", afirmou o deputado Julio Borges, da oposição, em entrevista coletiva.
O Banco Central é mais otimista e afirma que a inflação perdeu velocidade, passando de 5,1% em outubro para 4,8% em novembro e 2,2% em dezembro. Atribui a alta de 56,2% anual (o dobro de 2012) aos ataques especulativos, "que atentam contra a estabilidade nacional", e ao uso indevido das divisas oficiais.
A doença e a morte de Chávez foram aproveitadas pela oposição e por alguns empresários "para intensificar artificialmente a deterioração das variáveis econômicas. Foram conjugadas tensão política e desestabilização econômica em prejuízo do povo", afirmou o Banco Central em comunicado recente.
Mas, segundo analistas, na realidade, a "hiperliderança de Chávez" desencadeou a atual crise. Em meio à doença do "chefe supremo", as campanhas eleitorais, a acirrada eleição que levou Maduro ao poder em abril de 2013 e o gasto público desmesurado, seus ministros pararam ou atrasaram decisões cruciais para a economia e a entrega de moedas estrangeiras ficou paralisada. Isso trancou o sistema industrial e comercial e gerou mais escassez, disparou a inflação e o dólar paralelo, ao qual muitas empresas importadoras passaram a recorrer.
Outros especialistas projetam mais inflação e escassez e um clima ainda pior para os negócios privados. Com a desvalorização, foi promulgada uma nova "lei de preços e custos justos", que limita os lucros anualmente a 30% em toda a economia e aplicará duras penas aos "especuladores".
Com essa lei, "todos os bens e serviços necessários ao desenvolvimento de atividades de produção, fabricação, importação, estocagem, transporte, distribuição e comercialização de bens e prestação de serviços são declarados de utilidade pública e interesse social", observa Angel Alayón, diretor do portal Prodavinci. "Como consequência, todos os ativos na Venezuela estão em uma condição de pré-expropriação (ou pré-confisco)."
AP / APFuneral de Chávez: todos "vivem reféns de uma comoção descontrolada, gerada pela irresponsabilidade de um governo que há 15 anos atua supostamente em nome do povo", diz analista político
O clima de negócios na Venezuela já estava entre os piores do mundo antes do acirramento dos controles, em novembro e dezembro de 2013, quando Maduro enviou seus ministros, acompanhados de militares e policiais armados, para ocupar comércios e fábricas com a ordem de baixar os preços de todos os produtos. Com o início do ano, grandes lojas continuam com as vitrines vazias em shoppings e muitas fábricas ainda não começaram a trabalhar.
O índice anual Doing Business, da Corporação Financeira Internacional, classifica a Venezuela em 181.o lugar entre 189 países com as piores condições de investimentos no mundo, seguida por um grupo de oito conflituosos países africanos, como Sudão do Sul, Líbia e Chade. O país de Chávez ocupa o 182º lugar em proteção aos investidores e o 187º em carga de impostos.
Segundo o Banco Mundial, a economia crescerá menos que no resto da América Latina, com 0,5% do PIB, em 2014, enquanto o Fundo Monetário Internacional projeta um preço do petróleo estagnado em US$ 103 para 2014, e em US$ 98 para 2015, contra US$ 104 em 2013. Vêm do petróleo US$ 96 de cada US$ 100 que entram no país.
Este é um ano de trégua eleitoral na Venezuela, antes que o Congresso seja renovado, em 2015, em uma eleição política e estrategicamente mais importante que as próprias presidenciais do ano passado. Em um país sem divisão real de poderes, Maduro governa via decreto e o Tribunal Supremo de Justiça acaba de abrir o ano judicial com o grito de guerra oficial: "Chávez vive, a luta continua". Organismos como o Tribunal de Contas, o Conselho Nacional Eleitoral e a Promotoria estão submetidos ao presidencialismo do Executivo.
Nesse cenário, o risco de perder a hegemonia no Poder Legislativo - que deve ratificar indicações dos demais poderes - poderia significar para o chavismo comprometer "a irreversibilidade" da chamada revolução bolivariana.
Por isso, neste ano, a economia e a segurança pública são as principais arenas de batalha entre o governo e opositores. A margem de manobra eleitoral permitiria ao governo, por exemplo, atrever-se a aumentar o preço da gasolina, cujo subsídio, já antes das duas últimas desvalorizações, fazia o Estado perder US$ 9,8 bilhões por ano, ou mais de 3% do PIB, segundo os economistas Douglas Barrios e José Ramón Morales, da Universidade de Harvard.
"Estimativas atualizadas mais rigorosas posicionam o subsídio aos combustíveis para transporte em torno de US$ 15 bilhões anuais. E vai a US$ 30 bilhões, caso os combustíveis sejam para geração termoelétrica", diz Morales. Em 2012, "o subsídio equivalia a nove vezes o que se destina à segurança pública em um país com a duvidosa honra de ter uma das mais violentas cidades no mundo", apontam suas pesquisas.
Defensores dos direitos humanos, como o advogado Rafael Narvaez, calculam que apenas 2% dos 150 mil homicídios cometidos na Venezuela entre 1999 e 2012 foram resolvidos. A impunidade, à qual se atribui na Venezuela o auge da delinquência e da corrupção com o dinheiro público, vem à mente quando o governo responde com chamados de paz a uma guerra de baixa intensidade.
"A impunidade tem pernas curtas, acaba", diz, sentado em uma cadeira de rodas, Tomas Sifontes, de 41 anos, durante a cerimônia pela paz no fim de semana. Sua história é a de muitos outros do grupo de pessoas com necessidades especiais que o acompanham: são vítimas da violência, baleados em algum obscuro episódio. Sifontes trabalhava como segurança particular de vendedores ambulantes e lojistas em Petare, conjunto de favelas em Caracas, que, com 500 mil habitantes, deixa pálida a carioca Rocinha.
Em uma madrugada de 2007, um grupo disparou contra ele pelas costas, o que o lesionou na medula espinal. Eram inimigos de Sifontes, que os havia impedido de realizar um roubo em uma das lojas. No mesmo dia, um de seus funcionários foi assassinado. Do grupo de agressores, nenhum está vivo. "Foram sendo mortos", conta em uma ilustração da espiral de violência no país de quase 30 milhões de habitantes.
"Uma das piores decisões que fiz na vida foi comprar uma arma de fogo", disse, depois de relatar sua vida de cadeirante, suas terapias em Cuba e o trabalho social que desenvolve em um grupo de deficientes, apoiados pelo governo chavista.
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