segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A crise financeira e a crise do marxismo: qual a mais grave? - Paulo Roberto de Almeida

Em 2008 fui solicitado por um reporter de jornal a comentar sobre o eventual ressurgimento de Marx em face da crise financeira então em curso. Aproveitei minhas respostas a suas perguntas para compor o trabalho que segue abaixo. Acredito que ele ainda tem validade, daí colocar neste blog, a despeito de o texto original estar disponível no meu site pessoal (link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1945MarxCrise.pdf).
Paulo Roberto de Almeida 
Hartford, 2/02/2014

As crises do capitalismo e a crise do marxismo: qual a mais grave?

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de novembro de 2008

 “Quando ouço falar em crise do capitalismo, saco logo o meu Marx...”
A explosão da crise financeira mundial, iniciada no coração do capitalismo, agora disseminando-se rapidamente na periferia, trouxe pelo menos um benefício aos críticos do sistema: ela os fez acreditar no “ressurgimento” de Marx. Alguns ingênuos até chegam a acreditar no fim do capitalismo, pelo menos em sua modalidade “laissez faire”, mas isso depende do grau de adesão ou de fidelidade à doutrina. Os mais “true believers” emergem de seu anterior estado catatônico com um sorriso nos lábios e um ar de: “Eu não disse?”. Os mais realistas apenas se contentam em sacar o seu Marx na estante para ir buscar alguma frase do genial pensador que os contente na feliz certeza de que tudo estava previsto em algum texto de 150 anos atrás.
O certo mesmo é que a nova agitação febril em torno das idéias do filósofo de Trier e suas “previsões” quanto à natureza inevitável das crises sob o capitalismo deve animar alguns negócios com títulos que andavam desprezados nas bolsas de ações. A crer em certas matérias de imprensa, vem ocorrendo um surto de vendas de algumas obras do mestre, entre elas esse monumento gótico que se chama Das Kapital. As entrevistas se multiplicam com personagens quase caricatas – como Hobsbawm e seu marxismo esclerosado – que confirmam a intuição fenomenal do exilado de Londres em apontar as contradições inelutáveis do “modo de produção burguês”. Até mesmo a circunspecta revista francesa de crítica literária Le Magazine Littéraire convidou os suspeitos habituais da marxolatria gálica para editar um número especial que pretende explicar “les raisons d’une renaissance” (n. 479, outubro de 2008), mas o resultado é tão risível (para não dizer patético) que nem vale o trabalho da tradução.
Fui envolvido involuntariamente nesse retorno às fontes, como agora passo a relatar. Tendo escrito uma resenha irônico-depreciativa sobre uma compilação de medíocres textos de cultores dessa igreja, e sido posteriormente atacado por todos eles com furibundas invectivas dirigidas à minha pessoa, sem que eles sequer tivessem conseguido dizer qualquer coisa inteligente sobre o livro em questão – informo aos interessados que resumi o “debate” cômico neste ensaio: “Manifesto Comunista, ou quase...:  dedicado a “marquissistas” à beira de um ataque de nervos (a propósito de uma simples resenha)”, in Espaço Acadêmico (nr. 85, junho de 2008; link: http://www.espacoacademico.com.br/085/85pra.htm); Via Política (08.06.2008; link: http://www.viapolitica.com.br/artigo_view.php?id_artigo=68) – fui agora questionado por um repórter que, ao preparar uma matéria sobre a eclosão da crise, indagou-me se esta não me tinha feito, de algum modo, rever minhas posições sobre a “total contornabilidade” de Marx. Respondi-lhe que de modo algum.

A alquimia marxiana e o ouro dos tolos
Pretender ver em Marx um “intérprete” das crises financeiras e dos ciclos econômicos do capitalismo contemporâneo seria o equivalente de colocar um alquimista para trabalhar com a química moderna, ou fazer apelo aos médicos do século XVIII, com suas ventosas e aparelhos para “limpar o sangue” dos doentes, para tratar enfermos da atualidade. Marx permanece um autor e um filósofo do século XIX, que refletiu sobre o capitalismo do início da Revolução industrial com base em leituras de autores clássicos (entre eles Adam Smith e David Ricardo, um pouco do John Stuart Mill) e em informações disponíveis naquela conjuntura, de capitalismo industrial ainda incipiente e de práticas bancárias e financeiras típicas de um sistema ainda em seu nascedouro, extremamente limitadas em comparação com os padrões do início deste século XXI.
Esse fascínio com Marx, como profeta da derrocada do capitalismo, diz mais, aliás, sobre o estado psicológico “carente” dos proponentes desse tipo de argumento do que sobre a situação real do capitalismo contemporâneo: pessoas que assim argumentam precisam confirmar seus preconceitos – obviamente negativos – contra o capitalismo, e Marx ainda é o mais conhecido dos seus detratores. Os últimos crentes da doutrina marxiana – mas muitos deles sao meros “marquissistas” – pretendem encontrar em Marx explicações para a crise. E quais seriam estas explicações?
As crises do capitalismo de que Marx tratou, ou que ele julgou tratar, eram, tipicamente, crises de “superprodução”, ou que ele considerava como tal, ou seja, acumulação de produtos de um lado, em quantidades sempre crescentes, em face da miséria também crescente da massa trabalhadora, que não teria condições de absorver essa produção ampliada, deslanchando, assim, uma crise de superprodução. Ou seja, segundo Marx, o próprio sistema capitalista produziria, de forma recorrente, essas crises de superprodução – demanda insuficiente – que serviriam para eliminar os excessos (tanto de produtos como de meios de produção), até encontrar uma nova situação de equilíbrio, mais adiante, com recomposição dos estoques. Esse tipo de análise é muito precária, para não dizer extremamente primitiva para pretender explicar as crises periódicas – mas a prazos irregulares – do capitalismo, que por ser um sistema extremamente dinâmico é, também, inerentemente instável, gerando de maneira absolutamente natural desequilíbrios e excessos que são corrigidos pelos mercados (com alguma intervenção dos governos, de maior ou menor intensidade segundo as orientações políticas das forças que ocupam o poder momentaneamente).
Marx também tratou da moeda e do dinheiro, mas suas análises, típicas de um cidadão educado na escola do lastro-ouro, seriam risíveis se colocadas na perspectiva das atuais crises financeiras e bancárias. Desse ponto de vista, ele continua (aliás, permanece desde o próprio século XIX) totalmente contornável para tratar das crises atuais. Alguns desses “marquissistas” redivivos chegam até a desencavar o volume III do Capital para dele extrair o conceito de “capital fictício”, que seria aquele derivado da “financeirização” – outro conceito cultuado nesses meios – do capital acumulado no setor real e transformado em títulos de crédito e ações que já não guardariam mais correspondência com a economia física.
Os críticos do “capital fictício” – que voltaram a vender esse conceito gótico como se fosse um verdadeiro “ouro dos tolos” – parecem não se dar conta de que a valorização dos títulos no mercado segue apenas a velha lei da oferta e da procura e que o reencontro com a realidade dos números da economia real se dá cada vez que um novo comprador entra no mercado para adquirir um ativo supervalorizado: como ele supostamente não é um emissor primário de dinheiro, o mais provável é que retire dinheiro de sua poupança privada – ou “acumulação primitiva”, se os marquissistas preferirem – para tornar-se o feliz proprietário de um ativo hipervalorizado. O choque se dará na próxima queda brusca dos títulos, cortando a fumaça da valorização, mas limpando, ao mesmo tempo, uma parte da riqueza real de alguém.
Mas isso acontece todos os dias: marquissistas de academia, por exemplo, continuam a comprar as ações Marx, por um preço superior ao seu valor real. Eles já não compram ações Lênin, Stalin, Mao ou Pol-pot: elas foram hiperdesvalorizadas pelo desprezo votado a elas pela maior parte dos “gramscianos” que freqüentam nossas academias. Espera-se apenas que eles estejam bem servidos com o seu Marx...

Inexplicável: marquissistas são antiglobalizadores, contra Marx...
A maior parte dos marquissistas bate cartão de ponto nos ruidosos encontros dos antiglobalizadores. (Parênteses: eu sei que eles preferem chamar a si mesmos de “altermundialistas”, mas como até agora não souberam dizer de que seria feito esse outro mundo possível, prefiro designá-los pelo que eles são, efetivamente.). Isso é tanto mais surpreendente que Marx era um globalizador por excelência. O Manifesto Comunista (1848) constitui um hino em louvor ao papel modernizador da burguesia e do capitalismo na abertura de novos campos e territórios à exploração do capital e na derrubada de sistemas econômicos esclerosados ou defasados, como eram não apenas os da periferia colonizada, mas também os de muitos países europeus em sua época. Marx apoiaria totalmente o mundo da globalização capitalista contemporânea, que ele consideraria necessária para acelerar o caminho em direção ao socialismo (de forma totalmente equivocada, portanto). Se ele tivesse de escolher, estaria sentado com os capitalistas de Davos, não com os românticos do Foro Social Mundial, que ele consideraria como irremediáveis socialistas utópicos e sonhadores incuráveis.
A comunidade surrealista que é hoje colocada no campo da anti-globalização é, na verdade, um conjunto heteróclito de viúvas do marxismo e do socialismo, de órfãos da globalização, de acadêmicos absolutamente perdidos em face do renovado vigor revelado pelo capitalismo, enfim, uma assemblagem de pessoas incapazes de sequer compreender o funcionamento dos mercados financeiros, e do mundo da produção de modo geral, quanto mais de interpretar esse mundo de forma adequada ou correta. Esses pretensos acadêmicos “marxistas”, que eu chamaria mais apropriadamente de “marquissistas de opereta”, não têm a mais leve idéia de como funcionam os circuitos financeiros, mas se permitem emitir opiniões e julgamentos sobre a “morte do capitalismo” como se estivesse preparando o seu enterro.
Daí essa agitação e essa alegria incontida, cada vez que o sistema produz uma dessas crises recorrentes: eles “precisam” desses cenários para confortá-los em suas opiniões equivocadas de que o capitalismo marcha a caminho de sua auto-destruição. Eles ficam radiantes cada vez que um banco quebra ou uma empresa é fechada; para eles, é como se estivesse chegando o dia do julgamento final. Nisso eles têm companhia: o próprio Marx acreditava que o sistema capitalista produziria, um dia, uma crise geral de tais proporções que representaria sua derrocada final, no que ele se enganou redondamente (mas isso todo mundo já sabe). Sistemas dinâmicos produzem crises; sistemas estáticos, sem riscos, como o socialismo, produzem estagnação e esclerose. Não é preciso dizer o que ocorreu ao longo do tempo...

Reescrevendo Lênin: a globalização seria a última etapa do capitalismo?
O conceito de “última etapa” só existe para quem é milenarista, salvacionista, quem espera a vinda do redentor ou o dia do juízo final. Não existe isso em história, social ou natural. O sistema está sempre caminhando em direção a novas formas e modalidades, incorporando novos elementos estruturais ou conjunturais, tirando lições de experiências passadas – mas para isso é preciso ser minimamente inteligente, não exibir preconceitos, como certos “marquissistas” brasileiros – ou seja, em contínua adaptação e evolução sistêmica (o que não quer dizer para formas moralmente mais elevadas ou socialmente mais justas, mas estas são outras questões).
Marx acreditava, de fato, que o capitalismo seria superado por um “modo de produção superior”, que para ele era o socialismo. Isso é pura poesia, ou alienação marxista, no sentido de acreditar que a história é predeterminada ou tem leis de ferro que a levam numa direção previamente definida (claro: por algum cérebro genial que alguns acreditam fosse o de Marx). Não é preciso dizer que ele foi inteiramente desmentido pelos laboratórios da história.
Lênin também acreditava, como outros marxistas de sua época, que o capitalismo, em sua fase monopolista, chegaria necessariamente à fase imperialista, para ele a etapa superior – e supostamente final – do capitalismo. Outro poeta sonhador. Lênin era talvez um gênio em política, mas uma nulidade em economia.
A globalização transcende o capitalismo, o feudalismo ou até o pretenso socialismo que existiu durante algumas décadas em alguns países. Trata-se de um processo impessoal, indeterminado, incontrolável, de integração dos mercados e de internacionalização da produção. Ela existe desde os tempos dos fenícios e dos romanos, foi parcialmente interrompida com as invasões bárbaras e a fragmentação dos reinos e impérios existentes durante a Idade Média, foi retomada com Colombo e Vasco da Gama, impulsionada por conquistadores, piratas, missionários, capitalistas e legionários, parcialmente interrompida por setenta anos de experimento socialista (totalmente fracassado, não é preciso insistir e tripudiar com os órfãos) e retomado a partir da implosão final do socialismo na União Soviética e do início das reformas na China (ainda formalmente socialista, na verdade autocrática-capitalista).
A perspectiva marxista da globalização era inteiramente dominada pela visão do capitalismo como modo de produção dominador, o que está longe de ser verdade, pois se trata, apenas, de uma das muitas formas da economia de mercado. Os marxistas não conseguem ver que a globalização transcende o capitalismo e a própria economia de mercado, embora se desenvolva basicamente através da integração dos mercados. Por exemplo, blogueiros na internet, atualmente, são parte integrante da globalização, sem necessariamente vincular-se a um mercado determinado.

A crise financeira seria a “ressurreição” de Marx e a superação do capitalismo?
Assim como não se pode antever a superação do capitalismo, difícil prever qualquer “ressurreição” de Marx, pelo menos não para os que lidam com o capital e os mercados financeiros. Ele certamente nunca morreu e está mais vivo do que nunca em certos meios acadêmicos, mas o problema é que, justamente, esses meios ignoram por completo como funcionam os meios financeiros, e ficam dando lições sobre o “capital fictício” como se este fosse um um funcionário do Banco Central.
O que existe é uma necessidade psicológica de certos acadêmicos frustrados com o fim do socialismo de desenterrar um cadáver sempre recuperado em momentos de incertezas quanto aos destinos do capitalismo e de colocá-lo a serviço de suas causas sempre derrotadas. Como eles não têm a mínima capacidade de pensar com suas próprias cabeças, vão buscar duas ou três frases impactantes do filósofo barbudo para rechear algum artiguinho cheio de bobagens sobre os sobressaltos de Wall Street. Eles se escondem atrás de Marx para não revelar que não compreendem patavina do que está ocorrendo com os mercados.
Pode-se considerar que são simples saudosos de explicações simplistas sobre o funcionamento dos mercados financeiros e do capitalismo, ou então que são pessoas completamente esquizofrênicas, que não conseguem encontrar explicações mais plausíveis para as turbulências atuais dos mercados financeiros e que se refugiam, então, em mitos e crendices gerados pela sua própria incapacidade de compreender a realidade. Tenho plena consciência que as obras de Marx estão vendendo muito bem atualmente, o que me suscita um único comentário, ou talvez dois: (a) é ótimo para editores e livreiros que isso esteja ocorrendo, pois eles vão poder fazer uma “mais-valia” extra com a crendice de pessoas ingênuas ou mal-informadas; (b) fica pior, em contrapartida, para os crentes e desavisados, que vão comprar um produto que teria, supostamente, a “explicação mágica” das turbulências atuais do capitalismo e que, obviamente, não vai servir para nada.
A estes, eu faria apenas uma recomendação, aliás já feita para nossos “marquissistas de opereta”: melhor usar o dinheiro para comprar uma boa pizza e assim movimentar negócios capitalistas no seu bairro...

Um comentário:

  1. Caro Paulo,

    O senhor ainda não cansou de escrever sobre socialismo, marxismo e todo esse blabla repetitivo?

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