Em 2008 fui solicitado por um reporter de jornal a comentar sobre o eventual ressurgimento de Marx em face da crise financeira então em curso. Aproveitei minhas respostas a suas perguntas para compor o trabalho que segue abaixo. Acredito que ele ainda tem validade, daí colocar neste blog, a despeito de o texto original estar disponível no meu site pessoal (link: www.pralmeida.org/05DocsPRA/1945MarxCrise.pdf).
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 2/02/2014
As crises do capitalismo e a
crise do marxismo: qual a mais grave?
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de novembro de 2008
“Quando
ouço falar em crise do capitalismo, saco logo o meu Marx...”
A explosão da crise financeira mundial, iniciada no coração do capitalismo, agora
disseminando-se rapidamente na periferia, trouxe pelo menos um benefício aos
críticos do sistema: ela os fez acreditar no “ressurgimento” de Marx. Alguns ingênuos até chegam a acreditar no
fim do capitalismo, pelo menos em sua modalidade “laissez faire”, mas isso
depende do grau de adesão ou de fidelidade à doutrina. Os mais “true believers”
emergem de seu anterior estado catatônico com um sorriso nos lábios e um ar de:
“Eu não disse?”. Os mais realistas apenas
se contentam em sacar o seu Marx na estante para ir buscar alguma frase do
genial pensador que os contente na feliz certeza de que tudo estava previsto em
algum texto de 150 anos atrás.
O certo mesmo é que a nova agitação febril em
torno das idéias do filósofo de Trier e suas “previsões” quanto à natureza
inevitável das crises sob o capitalismo deve animar alguns negócios com títulos
que andavam desprezados nas bolsas de ações. A crer em certas matérias de
imprensa, vem ocorrendo um surto de vendas de algumas obras do mestre, entre
elas esse monumento gótico que se chama Das
Kapital. As entrevistas se multiplicam com personagens quase caricatas –
como Hobsbawm e seu marxismo esclerosado – que confirmam a intuição fenomenal do
exilado de Londres em apontar as contradições inelutáveis do “modo de produção
burguês”. Até mesmo a circunspecta revista francesa de crítica literária Le Magazine Littéraire convidou os
suspeitos habituais da marxolatria gálica para editar um número especial que
pretende explicar “les raisons d’une renaissance” (n. 479, outubro de 2008),
mas o resultado é tão risível (para não dizer patético) que nem vale o trabalho
da tradução.
Fui envolvido involuntariamente nesse retorno
às fontes, como agora passo a relatar. Tendo escrito uma resenha
irônico-depreciativa sobre uma compilação de medíocres textos de cultores dessa
igreja, e sido posteriormente atacado por todos eles com furibundas invectivas
dirigidas à minha pessoa, sem que eles sequer tivessem conseguido dizer
qualquer coisa inteligente sobre o livro em questão – informo aos interessados
que resumi o “debate” cômico neste ensaio: “Manifesto Comunista, ou quase...:
dedicado a “marquissistas” à beira de um ataque de nervos (a propósito
de uma simples resenha)”, in Espaço
Acadêmico (nr. 85, junho de 2008; link: http://www.espacoacademico.com.br/085/85pra.htm); Via Política
(08.06.2008; link: http://www.viapolitica.com.br/artigo_view.php?id_artigo=68) – fui agora questionado por um repórter que,
ao preparar uma matéria sobre a
eclosão da crise, indagou-me se esta não me tinha feito, de algum modo, rever
minhas posições sobre a “total contornabilidade” de Marx. Respondi-lhe
que de modo algum.
A alquimia marxiana e o ouro dos tolos
Pretender ver em Marx um “intérprete” das
crises financeiras e dos ciclos econômicos do capitalismo contemporâneo seria o
equivalente de colocar um alquimista para trabalhar com a química moderna, ou
fazer apelo aos médicos do século XVIII, com suas ventosas e aparelhos para
“limpar o sangue” dos doentes, para tratar enfermos da atualidade. Marx
permanece um autor e um filósofo do século XIX, que refletiu sobre o
capitalismo do início da Revolução industrial com base em leituras de autores
clássicos (entre eles Adam Smith e David Ricardo, um pouco do John Stuart Mill)
e em informações disponíveis naquela conjuntura, de capitalismo industrial
ainda incipiente e de práticas bancárias e financeiras típicas de um sistema
ainda em seu nascedouro, extremamente limitadas em comparação com os padrões do
início deste século XXI.
Esse fascínio com Marx, como profeta da
derrocada do capitalismo, diz mais, aliás, sobre o estado psicológico “carente”
dos proponentes desse tipo de argumento do que sobre a situação real do
capitalismo contemporâneo: pessoas que assim argumentam precisam confirmar seus
preconceitos – obviamente negativos – contra o capitalismo, e Marx ainda é o
mais conhecido dos seus detratores. Os últimos crentes da doutrina marxiana –
mas muitos deles sao meros “marquissistas” – pretendem encontrar em Marx
explicações para a crise. E quais seriam estas explicações?
As crises do capitalismo de que Marx tratou, ou
que ele julgou tratar, eram, tipicamente, crises de “superprodução”, ou que ele
considerava como tal, ou seja, acumulação de produtos de um lado, em
quantidades sempre crescentes, em face da miséria também crescente da massa
trabalhadora, que não teria condições de absorver essa produção ampliada, deslanchando,
assim, uma crise de superprodução. Ou seja, segundo Marx, o próprio sistema
capitalista produziria, de forma recorrente, essas crises de superprodução –
demanda insuficiente – que serviriam para eliminar os excessos (tanto de
produtos como de meios de produção), até encontrar uma nova situação de
equilíbrio, mais adiante, com recomposição dos estoques. Esse tipo de análise é
muito precária, para não dizer extremamente primitiva para pretender explicar
as crises periódicas – mas a prazos irregulares – do capitalismo, que por ser
um sistema extremamente dinâmico é, também, inerentemente instável, gerando de
maneira absolutamente natural desequilíbrios e excessos que são corrigidos
pelos mercados (com alguma intervenção dos governos, de maior ou menor
intensidade segundo as orientações políticas das forças que ocupam o poder
momentaneamente).
Marx também tratou da moeda e do dinheiro, mas
suas análises, típicas de um cidadão educado na escola do lastro-ouro, seriam
risíveis se colocadas na perspectiva das atuais crises financeiras e bancárias.
Desse ponto de vista, ele continua (aliás, permanece desde o próprio século
XIX) totalmente contornável para tratar das crises atuais. Alguns desses
“marquissistas” redivivos chegam até a desencavar o volume III do Capital para dele extrair o conceito de
“capital fictício”, que seria aquele derivado da “financeirização” – outro
conceito cultuado nesses meios – do capital acumulado no setor real e
transformado em títulos de crédito e ações que já não guardariam mais correspondência
com a economia física.
Os críticos do “capital fictício” – que
voltaram a vender esse conceito gótico como se fosse um verdadeiro “ouro dos
tolos” – parecem não se dar conta de que a valorização dos títulos no mercado
segue apenas a velha lei da oferta e da procura e que o reencontro com a
realidade dos números da economia real se dá cada vez que um novo comprador
entra no mercado para adquirir um ativo supervalorizado: como ele supostamente
não é um emissor primário de dinheiro, o mais provável é que retire dinheiro de
sua poupança privada – ou “acumulação primitiva”, se os marquissistas
preferirem – para tornar-se o feliz proprietário de um ativo hipervalorizado. O
choque se dará na próxima queda brusca dos títulos, cortando a fumaça da
valorização, mas limpando, ao mesmo tempo, uma parte da riqueza real de alguém.
Mas isso acontece todos os dias: marquissistas
de academia, por exemplo, continuam a comprar as ações Marx, por um preço
superior ao seu valor real. Eles já não compram ações Lênin, Stalin, Mao ou
Pol-pot: elas foram hiperdesvalorizadas pelo desprezo votado a elas pela maior
parte dos “gramscianos” que freqüentam nossas academias. Espera-se apenas que
eles estejam bem servidos com o seu Marx...
Inexplicável: marquissistas são
antiglobalizadores, contra Marx...
A maior parte dos marquissistas bate cartão de
ponto nos ruidosos encontros dos antiglobalizadores. (Parênteses: eu sei que
eles preferem chamar a si mesmos de “altermundialistas”, mas como até agora não
souberam dizer de que seria feito esse outro mundo possível, prefiro
designá-los pelo que eles são, efetivamente.). Isso é tanto mais surpreendente
que Marx era um globalizador por excelência. O Manifesto Comunista (1848) constitui um hino em louvor ao papel
modernizador da burguesia e do capitalismo na abertura de novos campos e
territórios à exploração do capital e na derrubada de sistemas econômicos
esclerosados ou defasados, como eram não apenas os da periferia colonizada, mas
também os de muitos países europeus em sua época. Marx apoiaria totalmente o
mundo da globalização capitalista contemporânea, que ele consideraria
necessária para acelerar o caminho em direção ao socialismo (de forma
totalmente equivocada, portanto). Se ele tivesse de escolher, estaria sentado
com os capitalistas de Davos, não com os românticos do Foro Social Mundial, que
ele consideraria como irremediáveis socialistas utópicos e sonhadores
incuráveis.
A comunidade surrealista que é hoje colocada no
campo da anti-globalização é, na verdade, um conjunto heteróclito de viúvas do marxismo
e do socialismo, de órfãos da globalização, de acadêmicos absolutamente
perdidos em face do renovado vigor revelado pelo capitalismo, enfim, uma assemblagem
de pessoas incapazes de sequer compreender o funcionamento dos mercados
financeiros, e do mundo da produção de modo geral, quanto mais de interpretar
esse mundo de forma adequada ou correta. Esses pretensos acadêmicos
“marxistas”, que eu chamaria mais apropriadamente de “marquissistas de opereta”,
não têm a mais leve idéia de como funcionam os circuitos financeiros, mas se
permitem emitir opiniões e julgamentos sobre a “morte do capitalismo” como se
estivesse preparando o seu enterro.
Daí essa agitação e essa alegria incontida,
cada vez que o sistema produz uma dessas crises recorrentes: eles “precisam”
desses cenários para confortá-los em suas opiniões equivocadas de que o
capitalismo marcha a caminho de sua auto-destruição. Eles ficam radiantes cada
vez que um banco quebra ou uma empresa é fechada; para eles, é como se
estivesse chegando o dia do julgamento final. Nisso eles têm companhia: o
próprio Marx acreditava que o sistema capitalista produziria, um dia, uma crise
geral de tais proporções que representaria sua derrocada final, no que ele se
enganou redondamente (mas isso todo mundo já sabe). Sistemas dinâmicos produzem
crises; sistemas estáticos, sem riscos, como o socialismo, produzem estagnação
e esclerose. Não é preciso dizer o que ocorreu ao longo do tempo...
Reescrevendo Lênin: a globalização seria a
última etapa do capitalismo?
O conceito de “última etapa” só existe para
quem é milenarista, salvacionista, quem espera a vinda do redentor ou o dia do
juízo final. Não existe isso em história, social ou natural. O sistema está
sempre caminhando em direção a novas formas e modalidades, incorporando novos
elementos estruturais ou conjunturais, tirando lições de experiências passadas
– mas para isso é preciso ser minimamente inteligente, não exibir preconceitos,
como certos “marquissistas” brasileiros – ou seja, em contínua adaptação e evolução
sistêmica (o que não quer dizer para formas moralmente mais elevadas ou
socialmente mais justas, mas estas são outras questões).
Marx acreditava, de fato, que o capitalismo
seria superado por um “modo de produção superior”, que para ele era o socialismo.
Isso é pura poesia, ou alienação marxista, no sentido de acreditar que a
história é predeterminada ou tem leis de ferro que a levam numa direção
previamente definida (claro: por algum cérebro genial que alguns acreditam
fosse o de Marx). Não é preciso dizer que ele foi inteiramente desmentido pelos
laboratórios da história.
Lênin também acreditava, como outros marxistas
de sua época, que o capitalismo, em sua fase monopolista, chegaria necessariamente
à fase imperialista, para ele a etapa superior – e supostamente final – do
capitalismo. Outro poeta sonhador. Lênin era talvez um gênio em política, mas
uma nulidade em economia.
A globalização transcende o capitalismo, o
feudalismo ou até o pretenso socialismo que existiu durante algumas décadas em
alguns países. Trata-se de um processo impessoal, indeterminado, incontrolável,
de integração dos mercados e de internacionalização da produção. Ela existe
desde os tempos dos fenícios e dos romanos, foi parcialmente interrompida com
as invasões bárbaras e a fragmentação dos reinos e impérios existentes durante
a Idade Média, foi retomada com Colombo e Vasco da Gama, impulsionada por
conquistadores, piratas, missionários, capitalistas e legionários, parcialmente
interrompida por setenta anos de experimento socialista (totalmente fracassado,
não é preciso insistir e tripudiar com os órfãos) e retomado a partir da
implosão final do socialismo na União Soviética e do início das reformas na
China (ainda formalmente socialista, na verdade autocrática-capitalista).
A perspectiva marxista da globalização era
inteiramente dominada pela visão do capitalismo como modo de produção
dominador, o que está longe de ser verdade, pois se trata, apenas, de uma das
muitas formas da economia de mercado. Os marxistas não conseguem ver que a
globalização transcende o capitalismo e a própria economia de mercado, embora
se desenvolva basicamente através da integração dos mercados. Por exemplo,
blogueiros na internet, atualmente, são parte integrante da globalização, sem
necessariamente vincular-se a um mercado determinado.
A crise financeira seria a “ressurreição” de
Marx e a superação do capitalismo?
Assim como não se pode antever a superação do
capitalismo, difícil prever qualquer “ressurreição” de Marx, pelo menos não
para os que lidam com o capital e os mercados financeiros. Ele certamente nunca
morreu e está mais vivo do que nunca em certos meios acadêmicos, mas o problema
é que, justamente, esses meios ignoram por completo como funcionam os meios
financeiros, e ficam dando lições sobre o “capital fictício” como se este fosse
um um funcionário do Banco Central.
O que existe é uma necessidade psicológica de
certos acadêmicos frustrados com o fim do socialismo de desenterrar um cadáver
sempre recuperado em momentos de incertezas quanto aos destinos do capitalismo
e de colocá-lo a serviço de suas causas sempre derrotadas. Como eles não têm a
mínima capacidade de pensar com suas próprias cabeças, vão buscar duas ou três
frases impactantes do filósofo barbudo para rechear algum artiguinho cheio de
bobagens sobre os sobressaltos de Wall Street. Eles se escondem atrás de Marx
para não revelar que não compreendem patavina do que está ocorrendo com os
mercados.
Pode-se considerar que são simples saudosos de
explicações simplistas sobre o funcionamento dos mercados financeiros e do
capitalismo, ou então que são pessoas completamente esquizofrênicas, que não
conseguem encontrar explicações mais plausíveis para as turbulências atuais dos
mercados financeiros e que se refugiam, então, em mitos e crendices gerados
pela sua própria incapacidade de compreender a realidade. Tenho plena
consciência que as obras de Marx estão vendendo muito bem atualmente, o que me
suscita um único comentário, ou talvez dois: (a) é ótimo para editores e
livreiros que isso esteja ocorrendo, pois eles vão poder fazer uma “mais-valia”
extra com a crendice de pessoas ingênuas ou mal-informadas; (b) fica pior, em
contrapartida, para os crentes e desavisados, que vão comprar um produto que
teria, supostamente, a “explicação mágica” das turbulências atuais do capitalismo
e que, obviamente, não vai servir para nada.
A estes, eu faria apenas uma recomendação,
aliás já feita para nossos “marquissistas de opereta”: melhor usar o dinheiro
para comprar uma boa pizza e assim movimentar negócios capitalistas no seu
bairro...
Um comentário:
Caro Paulo,
O senhor ainda não cansou de escrever sobre socialismo, marxismo e todo esse blabla repetitivo?
Postar um comentário