O cientista político e especialista em gestão pública diz que o Brasil precisa de um líder capaz de fazer as reformas institucionais sem as quais estamos condenados à mediocridade
O Brasil precisa de uma nova safra de estadistas dispostos a arriscar o seu capital político em defesa de reformas capazes de retirar o país da atual trajetória decepcionante. A análise é do cientista político Luiz Felipe D’Ávila, presidente do Centro de Liderança Pública, entidade dedicada à preparação de administradores empenhados em aprimorar a eficácia na gestão da máquina governamental. “Se o país continuar no piloto automático, como estamos há mais de uma década, caminharemos para uma mediocridade terrível”, adverte.
Em seu mais recente livro, “Caráter e Liderança”, lançado no fim do ano passado, D’Ávila, de 50 anos, trata do papel essencial exercido pelos estadistas nos avanços institucionais. Inspirado no critério do cientista político americano Joseph Nye, para o qual os objetivos, os meios e as consequências das ações dos governantes devem ser avaliados do ponto de vista ético e da eficácia de suas políticas, D’Ávila escolheu os nove maiores estadistas brasileiros: José Bonifácio de Andrada e Silva, pela defesa da Independência; Joaquim Nabuco, a maior voz contra a escravidão; dom Pedro II, pela promoção das liberdades; Prudente de Morais, Campos Salles e Rodrigues Alves, os três primeiros presidentes civis, pela consolidação da República; Oswaldo Aranha, defensor da democracia nos anos da ditadura Vargas; Ulysses Guimarães, líder das Diretas Já; e Fernando Henrique Cardoso, pela estabilização da economia.
Veja: Como o senhor chegou aos nomes dos maiores estadistas da história brasileira?
Luiz Felipe D’Ávila: Os estadistas entendem quais são as travas ao desenvolvimento e ao fortalecimento das instituições democráticas. Apenas instituições sólidas asseguram a tríade da prosperidade: a confiança no país; a previsibilidade política e econômica; e a continuidade das boas ações públicas. A ascensão da burguesia, nas sociedades modernas, delimitou o fim da arbitrariedade dos monarcas e ensejou a transferência de poder para as demais instituições. Quanto mais sólidas as instituições, maiores a confiança e a previsibilidade. Aumenta o número de empreendedores dispostos a assumir riscos e a fazer investimentos. Na minha avaliação, esses nove estadistas foram essenciais para o fortalecimento das instituições democráticas, promovendo a superação de valores retrógrados.
Veja: Alguns analistas acham que basta a alternância de poder para depurar o sistema e promover as reformas necessárias. Nesse cenário os estadistas seriam desnecessários. O senhor concorda?
Luiz Felipe D’Ávila: As grandes reformas estruturais da história contemporânea sempre foram lideradas por estadistas. A liderança faz falta hoje ao mundo, e não apenas ao Brasil, diante da crescente complexidade dos problemas. Como disse o ex-primeiro-ministro de Luxemburgo Jean-Claude Juncker: “Todos sabemos como superar a crise europeia; apenas não sabemos como fazer isso e ganhar a próxima eleição”. Esse parece ser, tristemente, o espírito do tempo atual na política. As pessoas esclarecidas sabem o que deve ser feito, mas ninguém parece disposto a comprar a briga política. Daí a necessidade do verdadeiro estadista. No Brasil, precisamos hoje de um novo Joaquim Nabuco para promover a urgente revolução na educação — ou na saúde, ou na segurança.
Veja: Esses temas são sempre apontados como prioridade pelos políticos brasileiros. O que tem sido feito não basta?
Luiz Felipe D’Ávila: Os avanços graduais, lentos, dos últimos anos, não respondem plenamente às necessidades do país, diante do atraso de décadas e décadas. A importância da educação, lamentavelmente, parece ainda não ter sido devidamente compreendida. Não precisamos mais de mudanças graduais, mas de uma verdadeira revolução. Estamos sempre atrasados. O Brasil gasta 6% do PIB com educação, um porcentual superior ao do Japão e semelhante ao da Suíça. Mas o gasto efetivo por aluno no Brasil fica em 3.000 dólares, enquanto no Japão ele é de 10.000 dólares e na Suíça, de 15.000 dólares. O dinheiro brasileiro se perde na máquina e não chega ao aluno. O enorme custo do governo, sustentado por uma carga de impostos elevadíssima, e os recursos que não chegam aos que mais precisam — eis aí a grande reforma a ser feita no país.
Veja: Como escapar da “maldição de Juncker” quando fala em fazer o que é preciso e não perder votos?
Luiz Felipe D’Ávila: As pessoas, de fato, temem reformas. Para elas, reforma significa perder algo — e ninguém quer perder nada. Ninguém aceita perder privilégios, benefícios, subsídios. É preciso criar uma narrativa e mostrar os ganhos futuros para a maior parte da população. No Brasil falta uma narrativa que convença as pessoas a se envolver com as mudanças necessárias. As pessoas só estarão dispostas a fazer certo sacrifício se for criada essa narrativa. Daí a necessidade de um estadista. Existem os líderes que usam o poder apenas para fortalecer o mando pessoal, e existem aqueles que buscam reformar e fortalecer as instituições. Vivemos, hoje, de reformas feitas no passado. As instituições, porém, não suportam desaforos por muitas décadas. Precisamos de uma nova safra de estadistas virtuosos para dar sequência às reformas. Estamos há mais de uma década sem nenhuma grande reforma institucional no país. Estamos consumindo um capital importante que vai faltar. Fica evidente o descrédito das instituições, algo muito ruim, porque corrói os valores da democracia.
Veja: Qual o cenário para o país, caso não haja uma mudança de rota?
Luiz Felipe D’Ávila: Se o Brasil continuar no piloto automático, como estamos há mais de uma década, caminharemos para uma mediocridade terrível. Deixaremos para os nossos filhos um país com a educação falida. A evasão escolar entre os jovens de 15 a 17 anos é de 16%. Serão jovens sem condições de trabalhar nas profissões do futuro — e portanto veremos a desigualdade aumentar. Teremos uma previdência quebrada, com uma demografia negativa a partir de 2030. Vamos deixar para os nossos filhos um país sem as condições de sustentar os benefícios atuais e sem o preparo para a nova economia.
Veja: Qual é essa nova narrativa a ser apresentada aos eleitores?
Luiz Felipe D’Ávila: Haveria três objetivos centrais, na minha avaliação. Em primeiro lugar, estabelecer como meta dobrar a renda per capita em vinte anos. Se dobrássemos a renda em vinte anos, e depois a dobrássemos novamente no período seguinte, nossos filhos atingiriam uma renda quatro vezes maior que a atual, e os nossos netos teriam uma renda equivalente a dez vezes a nossa. O crescimento, quando mantido ao longo do tempo, tem efeito exponencial. É factual. Isso significa manter um crescimento médio de 4,5% ao ano. Uma vez estabelecido esse objetivo, é preciso saber quais as reformas e também os sacrifícios a ser feitos para chegarmos lá. O segundo objetivo seria colocar o país entre os dez primeiros no exame Pisa, de avaliação internacional de ensino. O terceiro objetivo seria atrair 4 trilhões de dólares em investimentos na infraestrutura. Só assim, alinhando essas três metas, o Brasil conseguirá escapar da barreira que o condena a ser, atualmente, um país de renda média.
Veja: Os objetivos da presidente Dilma Rousseff, no início de seu mandato, não eram muito diferentes desses. O que deu errado?
Luiz Felipe D’Ávila: A presidente acreditou que atingiria essas metas sem fazer nenhuma reforma. Houve uma melhora recentemente, com o governo sendo mais pragmático nas privatizações, mas ainda é pouco. Não adianta ir a Davos e dizer que o Brasil está aberto a investimentos. Os investidores estrangeiros sabem avaliar as perspectivas reais para a economia. E muito ruim quando o Brasil apresenta um resultado desastroso, como foi o caso nas notas do exame Pisa divulgadas recentemente, e o governo tenta enxergar melhoras que, na verdade, foram insignificantes. Trata-se de um caso de ausência de liderança, porque vai no sentido contrário ao de criar o necessário senso de urgência. A perda de credibilidade é rápida e a reconquista é lenta. Dilma agora luta para recuperar a confiança. Conseguirá isso apenas com ações concretas, não com discursos. Quando não existe uma visão maior, clara, voltamos para a política miúda da barganha de cargos e verbas.
Veja: Poderá haver uma mudança significativa a favor das reformas, caso algum dos candidatos de oposição saia vitorioso?
Luiz Felipe D’Ávila: Não consigo antever, hoje, uma grande mudança política mesmo com a vitória da oposição. Eduardo Campos e Aécio Neves passaram pelo governo estadual, deverão ser mais pragmáticos, e, por isso, deverão dar mais eficiência à administração da máquina pública. Mas não os vejo comprometidos com as reformas mais profundas. Falta a eles convicção. Parecem incapazes de mobilizar a opinião pública para defender a aprovação das reformas. Acredito que o Brasil terá uma mudança geracional importante a partir das eleições de 2018.
Veja:Por quê?
Luiz Felipe D’Ávila: Existe uma geração de políticos que descobriu que boa gestão dá voto. Um bom ex-prefeito será um deputado mais consciente. Serão políticos mais dispostos a correr riscos. Alguns governadores e prefeitos têm se mostrado mais pragmáticos para resolver problemas, deixando questões ideológicas e partidárias de lado. Minas Gerais, por exemplo, conseguiu avanços na educação depois de implementar critérios baseados na meritocracia, superando a resistência da máquina pública. A prefeitura do Rio de Janeiro seguiu no mesmo caminho. O prefeito precisou enfrentar a greve dos professores contrários à reforma com base no mérito. Canoas, no Rio Grande do Sul, praticamente acabou com as filas de atendimento médico. Graças a um sistema informatizado, foram marcadas 600 mil consultas por telefone. Existem bons exemplos que podem e devem ser replicados. Votuporanga, no interior paulista, é outro caso de sucesso na melhoria da educação — e por pouco não foi punida por isso.
Veja: O que ocorreu?
Luiz Felipe D’Ávila: O Ministério da Educação ameaçou cortar os recursos para o financiamento do programa por causa do bom desempenho da rede municipal no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). A prefeitura ficou desesperada. Chegou-se até a pensar em importar maus alunos de municípios vizinhos para baixar a média e assim preservar os recursos. Mas acabou havendo um acordo com outros municípios da região, e a verba do programa foi mantida.
Veja: Getúlio Vargas costuma encabeçar todas as listas feitas sobre os maiores brasileiros do século XX. Muitos o apontam como o maior estadista da história do país. Por que ele não mereceu um lugar na sua lista de grandes estadistas?
Luiz Felipe D’Ávila: Não adianta apenas os objetivos serem louváveis. Getúlio fez as reformas trabalhistas, ampliou os direitos sociais, incentivou a industrialização. Mas não podemos perder de vista como isso foi feito. Não podemos esquecer também as conseqüências. Getúlio conduziu a revolução de 30 com a bandeira de fortalecer as instituições brasileiras. Mas fez o contrário. Usou o poder para enfraquecer as instituições democráticas e implementar a ditadura do Estado Novo. Getúlio fez tudo a seu alcance para enfraquecer a democracia. Ele rejeitava a alternância de poder.
Veja: Lula não se mostrou um verdadeiro estadista, ao manter a política econômica de FHC e recusar um terceiro mandato?
Luiz Felipe D’Ávila: Sem dúvida, Lula teve seu momento de estadista com a divulgação da Carta ao Povo Brasileiro, na campanha eleitoral de 2002. Nela, ele se compromete a manter a política econômica de Fernando Henrique e respeitar os contratos. Ao assumir a presidência, porém, a busca incessante — e quase narcisística — pela popularidade o fez deixar de lado as reformas. Então, na minha avaliação, ele não pode ser considerado um grande estadista. Se os políticos pensarem sempre na próxima eleição, se tiverem o receio de correr riscos em benefício da próxima geração, nunca vão fazer ou liderar as reformas estruturais. Foi o que aconteceu com Lula. Ele tinha capital político para fazê-las, mas foi avaro e optou por investir apenas na própria popularidade.
Fonte: Veja (Edição de 5 de fevereiro de 2014)
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