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domingo, 18 de agosto de 2024

A raposa, o porco-espinho e Delfim Netto - Adolpho Bergamini (Veja)

 A raposa, o porco-espinho e Delfim Netto

Delfim Netto foi capaz de uma proeza ímpar, combinar dois perfis distintos em uma só personalidade, era ao mesmo tempo raposa e porco-espinho

 

Por Adolpho Bergamini

 

Conta a história que Isaiah Berlin, professor de Oxford, ficou intrigado ao deparar com um verso do poeta grego antigo Arquíloco de Paros, que dizia apenas “a raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe uma só, mas muito importante”. Não havia mais nada escrito. Ou Arquíloco parou aí, ou o resto de seu texto se perdeu. Mas Berlin mergulhou no tema e o abordou no livro Estudos sobre a Humanidade. Lá explica que porcos-espinhos relacionam tudo a um ponto de vista central, enquanto as raposas perseguem muitos objetivos, algumas vezes desconexos a princípio, mas sempre ligados a uma finalidade maior.

A teoria foi testada por Philip Tetlock, que reuniu pessoas “normais”, sem qualificações técnicas ou profissionais específicas ou pré-determinadas, para saber se haveria algum grupo ou população capaz de antever o que está por trás das incertezas do futuro. Suas conclusões estão em A arte e a ciência de antecipar o futuro e, segundo ele, o “perfil raposa” de pessoas teve mais acertos e algumas razões foram determinantes para isso. Em geral, elas se cercaram do maior número possível de informações e de variadas naturezas. Esse grupo tinha natural propensão a críticas, aceitando-as relativamente bem, e a princípio desconfiava dos temas colocados em debate. Já o “perfil porco-espinho” era formado por indivíduos capazes de formular complexas deduções, muito certos de suas conclusões e menos amigáveis a críticas. Demonstravam impaciência àqueles que não compreendiam suas razões e eram escravos de seus pressupostos.

Mas Antônio Delfim Netto, o influente economista, professor e político morto recentemente, foi capaz de uma proeza ímpar, a de ser raposa e porco-espinho. Como toda personalidade de projeção, angariou um sem número de admiradores e críticos. Há quem o ame, seja por ter sido o superministro do tempo da ditadura militar, mentor do chamado milagre brasileiro, ou por ter aconselhado informalmente os presidentes Temer e Bolsonaro, enquanto outros o odeiam justamente por essas razões. Há quem o respeite por ter sido próximo dos governos Lula e Dilma, mas também existem os desgostosos que viram com maus olhos essa aproximação. Não trarei reflexões de viés ideológico, apenas comentários aos seus pensamentos a respeito da tributação e do gasto público.

Em uma entrevista concedida ao site Consultor Jurídico em maio de 2008, Delfim Netto resumiu o seu pensamento a respeito do sistema tributário nacional. Disse que nossa Constituição Federal é o resultado do sonho de pessoas que não sabem aritmética, que estabeleceram demasiados direitos sem explicar de onde viriam as receitas para bancá-los. Disse, há mais de 15 anos, que não existe sistema tributário perfeito, sim o sistema conveniente, mas o nosso é inconveniente por ser complexo e regressivo. Foi enfático ao afirmar que não haverá redução de carga tributária enquanto não houver redução das despesas do governo, que gasta muito e mal, e que devolve serviços de má qualidade.

Em julho de 2020 foi a vez da VEJA trazer falas de Delfim Netto. Deixou claro que as pressões que estavam sendo feitas sobre o teto de gastos, aprovado no governo Temer, eram graves e ameaçavam a estabilidade. Também criticou o fato de a reforma tributária vir antes da reforma administrativa. Nas entrelinhas de sua fala reside uma obviedade ululante: os gastos públicos não podem ser ilimitados, não podem ser maiores do que as receitas e, por isso, devem ser debatidos antes de suas fontes de financiamentos – os impostos.

O tom foi o mesmo na entrevista concedida à revista Conjuntura Econômica, publicada pela FGV/Ibre em novembro de 2020. Lá já havia cravado que os Projetos de Emendas Constitucionais n. 45 e 110, hoje aprovados na forma da Emenda Constitucional n. 132, tinham problemas, principalmente pela falta de uma estrutura coerente, que pudesse lançar olhos aos tributos sobre consumo, renda e patrimônio, e construir um sistema tributário coeso. Tratar apenas dos encargos sobre consumo é, como ele disse, construir “telhado sem saber qual vai ser o andaime para suportar esse telhado”. Voltou a criticar os gastos públicos, muito maiores do que o país pode suportar.

O pensamento de Delfim Netto abordou agruras que nunca deixaram de existir e sempre tiraram o sono dos mais diversos governos, ditatoriais ou democráticos, de direita ou de esquerda. Muito por isso, vem influenciando o país desde a década de 1960. Mas hoje é mais atual do que nunca, porque os tributos pagos e suportados pelos contribuintes em 2024 ainda servem ao financiamento de uma máquina pública ineficiente, que continua gastando muito e alocando mal seus recursos, tal como 60 anos atrás.

O estudo Carga tributária e ineficiência no setor público, publicado em 2022 na revista Economia Aplicada, conduzido por economistas da USP, indicou que a máquina pública brasileira é ineficiente e simulou cenários de redução da carga tributária e dos níveis de ineficiência, isoladas e conjuntamente, para determinar o quanto haveria de ganho em bem-estar em cada cenário. Tiraram algumas conclusões, mas duas chamam mais a atenção. Primeiro, que a implementação isolada de medidas para redução de ineficiência do gasto público, por si só, sem aumento de tributos, já implicaria ganhos expressivos ao bem-estar geral. Segundo, que a redução da carga tributária só se sustenta mediante a redução da ineficiência.

Mais do que uma avaliação de economistas, é a sensação geral da população, que está insatisfeita em relação aos tributos que paga e os serviços que recebe. De acordo com o Retratos da Sociedade Brasileira, pesquisa divulgada pela Confederação Nacional das Indústrias em julho deste ano, para 77% dos entrevistados o peso fiscal atual já é alto demais e não pode ser aumentado; para 76%, os gastos do governo deveriam entregar serviços públicos melhores. Os campeões de desaprovação são os serviços de saúde, educação e estradas e rodovias, rejeitados por 78%, 77% e 76% dos entrevistados, respectivamente.

Mas as políticas públicas vão em sentido contrário. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, demonstra uma energia sem limites para implementar medidas que visam a supressão de benefícios tributários, restrição ao uso de créditos fiscais e outras ações para aumentar a arrecadação. Não é diferente quando a projeção está no médio e longo prazo, porque o governo movimenta recursos e influência para aprovar uma reforma tributária que, sem dúvida alguma, irá aumentar muito os tributos cobrados no país, tornar o sistema tributário ainda mais regressivo e, possivelmente, alimentar a escalada dos preços de bens e serviços. O resultado pode ser a diminuição do poder aquisitivo da população e o arrefecimento da economia nacional.

Temos, portanto, um cenário de aumento de tributos que vem na esteira da explosão das contas públicas. Ou seja, tudo o que criticava Delfim Netto. 

As figuras da raposa e do porco-espinho cabem em muitas situações. Por exemplo, o rei Xerxes, da Pérsia, queria vingar a humilhação que seu pai, o rei Dário, experimentou na mão dos gregos. O objetivo de sua vida era invadir a Grécia e, quiçá, a Europa. Mas, antes da empreitada consultou Artabano, seu conselheiro, que de imediato o alertou sobre os riscos da campanha militar. Os inimigos não seriam apenas os gregos, mas também o clima severo naquela época do ano, os milhares de soldados de seu exército, que deveriam ser alimentados durante a longa marcha, além de outros fatores, como a falta de portos para atracar os barcos em caso de tormentas inesperadas. Xerxes não deu ouvidos e foi adiante, Artabano voltou para administrar o reino. Xerxes era porco-espinho, que sabia uma coisa muito bem – guerrear – mas esse conhecimento não foi suficiente para salvar seus homens da fome, resgatar suas embarcações ou ajudá-lo em sua fuga desesperada à Pérsia. Artabano era raposa, sabia muitas coisas, ouvia conselhos de seus pares e tinha a capacidade de fazer ponderações a respeito das coisas a sua volta. Não tinha a audácia de um grande guerreiro para liderar exércitos e conquistar novos territórios, mas conseguiu manter de pé um reino que estava sem o seu rei.

Delfim Netto era a soma de Xerxes e Artabano. Foi um homem culto, exímio observador dos fatos ao seu redor, economista requisitado por todos e cujos conhecimentos foram divididos com governantes das mais variadas estirpes. Conhecia bem a psiquê humana, sabia se relacionar e, ele mesmo brincava, foi “exilado” em Paris regado a champanhe e caviar. Mas também era impetuoso, de opiniões fortes, e se lançava em disputas sem temer adversários.

Muitos lamentam o seu falecimento, outros não. Mas o que fica é que um homem memorável descansou, talvez o último que se importasse tanto com a redução dos gastos públicos e dos tributos que penalizam os brasileiros. Se não houver um candidato para ocupar seu lugar, torçamos para que a engenharia genética nos dê um novo híbrido de raposa e porco-espinho.

Plano Real, 30 anos: entrevista com Pedro Malan - Nara Boechat (Veja)

 Como Pedro Malan vê o Plano Real trinta anos depois da sua criação

Economista lançou recentemente ‘30 anos do Real: crônicas no calor do momento’

 

Por Nara Boechat

Revista Veja, 18/08/2024

 

No fim do primeiro mandato do presidente Lula, em 2004, Pedro Malan fez uma crônica avaliando o aniversário de dez anos do Plano Real e a conquista da estabilidade da moeda ao longo dos governos, “independentemente de sua ideologia ou coloração político-partidária”. Esta história é uma das reunidas no livro 30 anos do Real: Crônicas no Calor do Momento (ed. Intrínseca) escrito em parceria com Gustavo Franco e Edmar Bacha. Em conversa com a coluna GENTE, o economista, que foi ministro da Fazenda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e presidente do Banco Central na implementação do Real, avalia as mudanças nos últimos 30 anos, analisa o impacto da inflação na sociedade e opina sobre o atual momento da economia brasileira.

 

CONSEQUÊNCIAS DO REAL. “O Plano Real foi um divisor de águas, se estabeleceu num curto período de tempo. Foram 500 dias desde que Fernando Henrique (Cardoso) assumiu como quarto ministro da Fazenda do governo Itamar Franco até o lançamento do Real. E nesses 500 dias, o Brasil mudou, a inflação foi derrotada. A derrota da hiperinflação não significa que não exista inúmeros outros problemas, existia à época e continuam existindo hoje. O problema é que agora, ao longo dos últimos 30 anos, é possível tentar enfrentar esses problemas sem uma inflação alta, crônica e crescente, que foi a insensatez que tivemos durante décadas”.


EXIGÊNCIA DA SOCIEDADE. “O Brasil foi o recordista mundial de inflação entre o início dos anos 1960 e o início dos anos 90. Éramos vistos como uma coisa peculiar pelo mundo, mas voltamos a ser considerados um país mais normal, que vive com inflação civilizada. Teve muito trabalho ali para sanear o sistema financeiro, lidar com questões de bancos comerciais, fazer a renegociação de dívida de estados e municípios, a lei de responsabilidade fiscal. A tarefa é preservar a inflação sob o controle, que passou a ser exigência da sociedade”.


NEVOEIRO DA HIPERINFLAÇÃO.  “Costumo dizer que nenhum governante hoje no Brasil pode se permitir ser percebido tendo uma atitude excessivamente complacente em relação à inflação ou achando que a inflação não tem importância, porque ela come o salário do trabalhador. Ela come o valor dessas transferências de renda que são tão importantes. O significado do Real foi esse. O país pôde vislumbrar melhor os seus inúmeros desafios e oportunidades do que antes, quando ainda vivia sob o espesso nevoeiro da hiperinflação. A tarefa continua”.


DÓLAR ACIMA DE 5 REAIS. “Já chegou a cinco e oitenta e seis, baixou agora. Ah, mas temos o sistema de um regime de taxa de câmbio flutuante. Então flutua ao sabor de eventos internacionais e percepções domésticas. O Brasil é uma economia integrada no mundo nessa dimensão financeira. Essas situações são algumas vezes excessivas, parcialmente corrigíveis, mas expressam coisas que estão acontecendo no Brasil e nas interações do Brasil com o mundo”.


INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL. “Sempre usei a expressão ‘autonomia operacional do Banco Central’. Temos um regime que é definido politicamente, o regime de meta de inflação. É o governo que decide isso, não é o Banco Central. E o Banco Central tem autonomia operacional para dado regime, operacionalizar a política monetária. Não é o Banco Central que estabelece a meta de inflação, é o governo legitimamente eleito, é um comitê de três pessoas, duas são indicadas pelo presidente da república. Por isso prefiro o termo ‘autonomia’ do que independência. É autonomia operacional para implementar uma política definida pelo governo”.


sábado, 17 de agosto de 2024

O país rendido - Fernando Schüler (Veja)

O país rendido

Fernando Schüler, Veja (17/08/2024)

"O ministro cismou com isso aí”, diz um juiz, em Brasília. “Isso aí” é  um cidadão brasileiro. Crítico duro do “sistema”, do próprio ministro, na balbúrdia digital. Como o ministro está “sem sessão”, continua o  auxiliar, ele está com tempo para ficar “procurando”. O grand finale vem do próprio ministro: “Peça para o Eduardo analisar as mensagens (do tal “cidadão crítico”) para vermos se dá para bloquear e prever multa”. Para resumir: primeiro  escolhe o alvo político. Depois vai pesquisando na internet para  produzir o “laudo”. Isto é, a justificativa de que a autoridade precisa  para fazer o que quer fazer. Isto é, censurar, bloquear e tudo que  sabemos. Em outro momento, o foco é uma revista. “Vamos levantar todas  essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes”, diz a autoridade.  O juiz responde que havia encontrado apenas matérias jornalísticas e  pergunta o que deveria colocar lá. “Use sua criatividade”, responde o  chefe, seguido de algumas risadas.

As mensagens reveladas por  Glenn Greenwald e Fabio Serapião, na série de reportagens publicadas  esta semana, são um striptease das instituições brasileiras. É evidente  que há muito o que vir à tona, há o necessário contraditório e há a  investigação minuciosa disso, que deve ser feita. Mas o que já veio à  tona é para lá de preocupante. Imaginem uma autoridade de Estado, em  Brasília, literalmente pedindo para “disfarçar” o nome de um tribunal, e  do próprio ministro, em documentos oficiais. Para não ficar “chato”, ou  muito “descarado”. A autoridade pedindo para “ajustar” um documento  oficial (haveria outro nome para isso?), dizendo: “Onde se lê o nome de  um tribunal (que realmente fez o pedido), ponha o nome de outro  tribunal”. Pois é. Não há muito o que dizer sobre tudo isso. Os fatos  falam tão alto que qualquer comentário soa um pouco irrelevante. O modus operandi é claro. Define-se o foco político e logo se demanda da assessoria que  se produzam as “provas”. Como definiu um jurista bem-humorado, “atira a  flecha e depois pinta o alvo”. Punições ad hoc, sem devido  processo, sem provocação, sem contraditório. E, nesse caso, feitas por  um tribunal eleitoral fora do período eleitoral. É isso. Nós nos  transformamos na única democracia do planeta onde os direitos  individuais mais elementares de um cidadão flutuam à mercê da  subjetividade de uma autoridade de Estado. Autoridade que fica “braba”.  Que “cisma” com este ou aquele. E a partir daí “é uma tragédia”, como  escutamos em um dos áudios.

Tragédia, sim. Mas para quem vai em  cana sem nem saber por quê. Quem é banido das redes “de ofício”. Quem  tem as contas bloqueadas por um papo furado no WhatsApp. Quem morre num  presídio de Brasília, sem eira nem beira, porque ninguém despachou o  processo. Uma tragédia, de fato. E quem sabe merecida. Minha intuição é  que nos transformamos exatamente no país que desejamos ser.

Boa  parte do Brasil deseja que as coisas sejam assim. Deseja que tenhamos  uma “democracia de tutela”. Com a condição de que o grande xerife mande  fazer laudo só para o “outro lado”. Enquanto for assim, tudo estará bem  para boa parte da imprensa, da academia, das “instituições” e do mundo  político. O amor à “abstração da regra”, vamos convir, nunca foi  especialidade brasileira. Não passa de autoilusão imaginar que nosso  vezo patrimonialista só funciona nas relações entre o Estado e o mundo  dos interesses materiais. Ele está lá, inteirinho, no modo como lidamos  com o universo dos direitos. No servilismo do auxiliar da autoridade que  pergunta: “O que eu devo escrever nesse dossiê?”. Na autoridade que  diz: “Muda aí o nome do tribunal”. Que alerta que o “doutor” está com  pressa, quer a “prova” logo, porque quer fazer o que já decidiu fazer.  Tudo sob uma certa ficção em torno da legalidade autorreferente,  ajustada aos imperativos do “contexto”.

Ainda na outra semana tivemos notícia da soltura do Filipe Martins.  A prisão cujas razões formalmente apresentadas nunca existiram. Do  sujeito que de fato nunca tentou fugir, nunca saiu do país, e que mesmo  assim ficou lá, em uma prisão no Paraná, durante seis meses. Alguém  preocupado? Alguém vai responder por isso? Ou há muito já entendemos o  jogo? Cá entre nós, é o mesmo caso daquela “senhora que pintou uma  estátua com batom”, na ótima definição do ex-ministro Nelson Jobim esta  semana. A Débora Santos, que de fato pintou uma frase irônica naquela  estátua da Justiça, na frente do STF, e está em cana há catorze meses, com os dois filhos pequenos por aí, à espera de um dia terem a mãe de volta, em casa.

Jobim  é um raro exemplo de intelectual brasileiro que distingue o mundo da  política, com suas paixões, e o mundo dos direitos, pautado pela lei e  sua impessoalidade. A distinção republicana, por excelência. Esta semana  ele definiu o 8 de Janeiro de maneira precisa: não uma “tentativa de  golpe”, mas a “catarse pela frustração com a não obtenção de uma  intervenção militar”. No transe brasileiro, nada disso importa. Há uma  narrativa política, há alguém que detém o poder e há suporte na  sociedade. A partir daí, ajusta-se o universo dos direitos. Um pouco  como se aprende nas revelações da semana. Ajustam-se os laudos, os  documentos, as razões para justificar um delito. E sua própria  tipificação. Tudo se move, no calor da política. E a “abstração da  regra” soa não muito mais do que o resmungo de quem perdeu. Simplesmente  perdeu. Quando observo essas coisas, me vem à lembrança a antiga  provocação de Roberto Schwarz sobre as “ideias fora do lugar”, em nossa  tradição. Sua referência é tão distante quanto o século XIX.  A “disparidade entre a sociedade escravocrata e as ideias do liberalismo  europeu”. Mas me soa tremendamente atual. A estranheza de uma elite que  enche a boca para falar em democracia, mas aplaude o “deixa que eu dou  um jeito” para arrumar provas e fazer o que a Autoridade deseja fazer.  Que fala em “garantismo”, mas com a boca torta pelo uso do cachimbo. Em  um mundo em que a retórica e sua negação, no universo da democracia  liberal, convivem sem problema.

Talvez por isso minha referência sempre será Eleanor Norton, a  advogada negra que em um dia qualquer de 1969, diante da Suprema Corte  americana, defendeu os direitos de Clarence Brandenburg, um abjeto líder  da KKK. E o fez por entender algo bastante simples: que os direitos  dele eram ao mesmo tempo os nossos direitos. Ela o fez em nome de um  princípio. Em nome da Constituição. Algo que a “obrigava por vezes a  defender pessoas que não me defenderiam”. Essa história sempre me tocou.  E digo que sobre isso não alimento lá grandes expectativas no Brasil de  hoje. Vejo que já fomos contaminados pelo vírus do ódio e da paixão  política, em um país no qual nunca prosperou, de fato, uma tradição  liberal-democrática. E por isso a relativização do direito. O truque.  O ministro nervoso, o e-mail inventado, o laudo feito sob medida.  O abuso, enfim. Tudo que faz tanta gente boa sinceramente desejar ir  embora, simplesmente. Largar de mão esta república que parece não ter  mais jeito.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper.

domingo, 28 de julho de 2024

A Sátira dos Contribuintes - Fernando Schüler (Veja)

A Sátira dos Contribuintes

Fernando Schüler

Veja, 27/07/2024

"O Ministro Haddad reagiu bem à enxurrada de memes sobre o “taxad” e os aumentos de impostos. Ficou em silêncio e tocou seu trabalho. Com humor não tem jeito. É assim que tem que fazer. E arrisco: é assim que o poder deve funcionar. O completo ridículo ficou por conta de uma parte da mídia mais governista do que o próprio governo. O “tinha que proibir”, a conversa sobre “é coisa de profissionais”, e frases do tipo. Por um momento até me peguei pensando: como é que iriam proibir memes na internet? Podia entrar no PL das Fake News. Quem sabe equiparar memes a fake news ou “ameaças à democracia”. Ou algo nessa linha. Não ia dar certo. Iria logo aparecer alguém com aquela perguntinha chata: mas só os memes contra o governo? Esquece. Zero chance de isso funcionar.

De minha parte, achei interessante a onda dos memes. Não tem nem de longe a qualidade das caricaturas e ilustrações que um Angelo Agostini fazia satirizando nosso bom imperador, mas de alguma forma funciona. Quem não entender esse traço anárquico e algo grosseiro das redes não entendeu nada sobre a democracia atual. Dito isso, impressionam as reações. De um comentarista, escutei que tudo não passava de um “ataque da direita”. De outro, que se tratava de uma “ação preventiva de grupos privilegiados (da Faria Lima, claro) com medo da reforma do imposto de renda”. Tentei imaginar a turma bacana da Faria Lima dizendo “vai ter reforma do IR ano que vem, vamos fazer uns memes para ir já esculhambando tudo”. Ótima explicação. A crítica mais brilhante que li dizia que a sátira “traduzia a cultura neoliberal” de que é “ruim pagar impostos”.

Achei aquilo curioso. O Brasil é um país de cultura patrimonialista. Há mais gente contra (45%) do que a favor (38%) a processos de privatizações por aqui. Partidos pró-livre mercado nunca fizeram muito sucesso eleitoral, e nada indica que tenhamos algo como uma “cultura neoliberal”. O melhor é cair na real: não há nada de muito profissional na sátira à mania arrecadatória do governo, e muito menos nenhum tipo de conspiração. Houve um “flash mob digital”. Uma onda provocada pelo fato simples de que o governo, desde que tomou posse, não parou de inventar maneiras de aumentar a arrecadação. Ponto. A lista é grande e conhecida. Taxação dos combustíveis, nova regra de tributação dos incentivos do ICMS, mudança da regra do Carf, taxação das apostas esportivas, dos fundos exclusivos, compras internacionais e parcelamentos dos créditos tributários, entre muitas invencionices. Em algum momento, houve um esgotamento dessa estratégia. O ponto de virada foi a derrota da tentativa de reoneração da folha de pagamentos das empresas e a devolução de uma MP restringindo as compensações de créditos de PIS e Cofins. Muitas dessas medidas são justificáveis. Outras, nem tanto. No conjunto da obra, o que surge é a imagem de um país burocrático e sem originalidade.

Dias atrás li um artigo de uma especialista tributária dizendo que ninguém gostava de pagar imposto. Discordo. O que ninguém gosta é de bancar o trouxa. Isso acontece em três situações: quando o imposto é alto, quando ele paga e os outros não (ou pagam muito menos) e quando o dinheiro que ele paga tem pouco retorno. O Brasil é uma mistura dessas três coisas. A começar pelo tamanho da carga tributária, 33%, a maior do continente. Só isso já seria motivo para coisas bem menos engraçadas do que memes. Mas não fica por isso. Poderíamos ter uma carga alta com um ótimo retorno. Não é o caso. Pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação mostrou que temos a pior entrega em termos de desenvolvimento humano entre trinta das economias que mais tributam, no plano global. Nossa taxa de investimento é pífia e nossa educação pública pontua nas últimas posições do Pisa, a cada três anos. O problema se complica quando aproximamos a lente e observamos para onde vai o dinheiro público. Por que cargas-d’água um país endividado e deficitário, como o Brasil, tem o Legislativo mais caro do planeta, com um custo de 528 vezes a renda média da população? E por que somos o país que mais aporta dinheiro do contribuinte para financiar partidos políticos e candidatos? Sejamos honestos: dinheiro não é o nosso problema. O CLP fez uma pesquisa mostrando que há mais de 20 000 funcionários ganhando acima do teto, no país. Perto de 93% de nossos magistrados estão nessa situação. É evidente que não é fácil lidar com isso. Em uma ida ao Congresso, a ministra Simone Tebet disse que é “mais fácil aumentar a arrecadação do que cortar gastos”. É um belo resumo do nosso problema. Apenas com um detalhe: nossos dirigentes são pagos para fazer o que é difícil, não o que é fácil. Há uma PEC no Congresso, a chamada “PEC dos penduricalhos”, cujo foco é exatamente cortar privilégios e fazer valer o teto dos servidores. Por que isso não anda? Por que é difícil? Fácil é passar a conta para quem tem menos poder de lobby em Brasília?

Reformas são difíceis em razão de um dilema há muito conhecido na política. Ele foi formulado por Maquiavel, em O Príncipe. Sua lógica é bastante clara: reformas são difíceis porque todos os que perdem, com a nova ordem, se tornarão inimigos duros do reformador. E todos os que ganham, em regra de maneira difusa e ao longo do tempo, darão a ele quando muito um apoio bastante moderado. Não sei se Tebet leu Maquiavel, mas foi isso que ela acabou dizendo. A lógica de Maquiavel permanece intacta. Uma reforma administrativa que cortasse privilégios, como licenças-prêmio, auxílios-moradia para quem não precisa, férias de dois meses, 25 assessores por deputado, jatinhos para ir e vir nos fins de semana e colocasse para funcionar a avaliação dos servidores, como manda a Constituição, cumpriria todos os requisitos de Maquiavel: ela seria ótima para o país. Ótima para o cidadão que paga impostos. Mas seria péssima para quem dispõe de todas essas vantagens. Se o governo colocasse algo assim para votar, no Congresso, quem lotaria as galerias e capricharia no lobby: o cidadão, que vai pagar menos e ter um serviço melhor? Ou a corporação, que terá de se enquadrar no teto e perder seus penduricalhos?

É por essas coisas que sempre escrevo da minha admiração por quem empreendeu reformas realmente importantes na história brasileira recente. Quem desenhou a reforma do Estado, nos anos 90, quem fez a reforma trabalhista, em 2017, a reforma da Previdência, em 2019, e emplacou a autonomia do Banco Central, três anos atrás. Essas pessoas mostraram que o Brasil não é apenas um país condenado a fazer apenas o que é fácil. E no fundo é sobre isso o recado dos memes. E é por isso que eles não devem ser proibidos. Eles são apenas parte do jogo da democracia. Não acho que o governo mudará seu rumo por causa disso. Mas muita gente, inclusive do próprio governo, talvez se dê conta de que não mudar pode sair bastante caro, logo ali à frente."

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper.


segunda-feira, 6 de maio de 2024

Convicções e democracia - Fernando Schuler (Veja)

 Fernando Schüler é leitura obrigatória aos domingos. 

Convicções e democracia

Fernando Schuler

Veja, 5/05/2024

Causou certo furor a notícia de que o governador Tarcísio de Freitas teria feito elogios ao ministro Alexandre de Moraes. Não faço ideia se a notícia era verdadeira e não entro no mérito das declarações. Do meu modesto ponto de vista, podem-se preservar boas relações institucionais, em uma democracia, ainda que se possam criticar — mesmo duramente — as ações de uma autoridade. Se isto não for possível, não vivemos mais propriamente em uma democracia liberal. Seria este o nosso problema? O ponto que me parece interessante foi a discussão que se seguiu. Em especial, a ideia de que se estaria gerando uma “direita moderada” no país. E que isto seria positivo. Um artigo bastante provocativo dizia que o Brasil precisava de um “bolsonarismo moderado”. A turma da lacração aproveitou para faturar alguns likes, mas o artigo tocava em um bom ponto: o país precisa parar com essa ideia de “erradicar” o outro lado e aceitar a ideia de que esquerda e direita devem conviver com alguma civilidade. E que isto deve incluir indistintamente quem apoiou Lula ou Bolsonaro, nos últimos anos.


Desde a redemocratização, o Brasil sempre teve uma disputa entre posições mais “à direita” e mais “à esquerda”. Sempre teve duas “turmas”, em termos de visão econômica e sobre o papel do Estado. Elas são identificáveis nas grandes decisões e nas votações do Congresso nos últimos trinta e tantos anos. Nas privatizações do início dos anos 90, envolvendo a CSN, a Embraer, a Vale do Rio do Doce, o setor de telefonia, as duas turmas já estavam lá. Cada uma com seu léxico próprio. Um lado chamando de “modernização”; outro, de “desmonte” do Estado. Foi assim com a reforma do Estado. Quando se votou a Emenda 19 à Constituição, introduzindo a avaliação de desempenho dos servidores (nunca posta em prática), um lado ficou a favor, outro, contra. A mesmíssima coisa aconteceu com o Plano Real, a criação das organizações sociais, as agências reguladoras, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Em cada uma dessas decisões, estavam lá as duas turmas.


No ciclo de reformas que se abre com o impeachment, em 2016, a história se repete. Teto de gastos, lei das estatais, reforma trabalhista. Lula associando a reforma a um “tratamento do tempo da escravidão” para os trabalhadores, e a outra turma, que seria a mesma base dos governos Temer e Bolsonaro, mais quase todo o PSDB, falando em “desburocratizar” as relações de trabalho. Com Bolsonaro, o roteiro segue intacto. Reforma da previdência, marco do saneamento, privatização da Eletrobras, lei da liberdade econômica, autonomia do Banco Central. Talvez apenas no biênio 2003-2004 tenhamos cruzado alguma fronteira, quando se aprovaram coisas como aquela minirreforma da previdência e a criação das PPPs, com o apoio da então oposição. Mas foi uma exceção. Quando Palloci caiu, o trem voltou para os trilhos.


O que explica a existência dessas duas agendas? Arrisco uma resposta rápida: convicção. É óbvio que o contexto importa, que em um momento temos uma pandemia, em outro, um impeachment, e, ainda em outro, aquelas “denúncias” contra o presidente, no governo Temer. Há muita coisa, inclusive a sorte e o azar. Mas no fim do dia a constante é a convicção. Se quem lidera o país acha realmente que ter uma regra dura como a lei das estatais, tentando proteger nossas empresas do clientelismo político, é ou não importante; se quem lidera acha que é estratégico ter um BC independente, ou que é positivo abrir o mercado de saneamento para o setor privado. Por muito tempo, e com alguma razão, fomos adquirindo uma visão cínica da política — a ideia de que tudo se moveria a partir do pequeno jogo de poder. Coisas como a distribuição de emendas, os penduricalhos para a alta burocracia, o populismo de perdoar dívidas e conceder incentivos aqui e ali — tudo isso é parte da espuma, do feijão com arroz da política. Mas é só observar a trajetória das grandes reformas, daquilo que realmente fez a diferença, em nossa história recente, para perceber que era a convicção de quem tinha o comando do jogo que fez, ao cabo, toda a diferença.


Tempos atrás, alguém me disse que uma “esquerda moderna poderia ter apoiado toda esta série de reformas”, ao longo do tempo. De fato. Se tivéssemos um Tony Blair no Brasil, ou um Roger Douglas, o líder trabalhista que revolucionou a Nova Zelândia nos anos 80, liderando nossa esquerda, isso poderia ter acontecido. Mas a verdade é que não temos. Nem mesmo um Pepe Mujica, com coragem para denunciar uma ditadura que por aqui apoiamos, conseguimos produzir. Talvez Fernando Henrique tenha sido nosso mestre reformador. Aquele que vem da tradição da esquerda e entende, em um certo momento, que o mundo mudou e que é preciso modernizar o Estado, privatizar empresas, levar a sério a responsabilidade fiscal. É interessante comparar precisamente a linha de continuidade de seu programa de reformas com o que foi feito no Brasil recente. Ou alguém acha que existe alguma contradição entre o programa de reformas dos anos 90 e o que fizemos agora sobre o saneamento ou a independência do BC?

Convicção também vale para a democracia. Pela primeira vez, desde a transição dos anos 80, temos um problema em larga escala com as “regras do jogo”. Não precisamos de nenhuma investigação do Congresso americano para saber o que está acontecendo no nosso próprio quintal. Dias atrás observei um jornalista de “direita” sendo processado pela máquina jurídica do Poder Executivo, por ter “passado do limite” em suas críticas ao presidente. Como o “limite” era decidido pelo próprio poder político, me perguntei o que aconteceria se isto se tornasse uma regra. O que aconteceria se um eventual governo de “direita” resolvesse igualmente processar todos os jornalistas de “esquerda” que passassem do limite, também definido pelo próprio governo. Rapidamente, nos consagraríamos como a pátria do lawfare. Da intimidação jurídica típica de países autoritários.

Tudo isto já foi longe demais. Uma democracia liberal, para funcionar, exige que os direitos sejam iguais para todos. Pessoas que obstruem rodovias ou invadem prédios públicos devem ser julgadas, na forma da lei, tanto quanto autoridades que abusam do poder, punindo pessoas, praticando censura prévia, atropelando o devido processo, à revelia das leis e da Constituição. Esta é a condição mais elementar para que o debate franco e aberto, e por vezes duro e “fora do tom”, possa florescer em nossa democracia. O que precisamos, no fundo, é zerar o problema com as regras do jogo. É de normalidade institucional, para que o debate econômico e social volte ao centro do jogo. Algo que demanda convicção. A convicção da democracia liberal. Se é disso que se trata quando se faz um apelo à moderação, estou de pleno acordo. Se, no entanto, isto significa a transigência com a infração sistemática de direitos, penso que ingressamos em um caminho que ninguém deveria trilhar.


sábado, 13 de abril de 2024

A marcha da insensatez (o embate STF-X) - Fernando Schüler (Veja)

A marcha da insensatez

Vivemos em um país onde os cidadãos não podem defender uma mudança nas leis? Defender, por exemplo, algo similar à Primeira Emenda americana?

Por Fernando Schüler

 VEJA, 13 abril 2024

 

“Para que tanta censura?”, começou perguntando Elon Musk. Depois o caldo entornou. A bronca de Musk vem na sequência da revelação dos Twitter Files, pelo jornalista Michael Shellenberger, e das denúncias que todos de algum jeito conhecemos. O Estado brasileiro querendo dados de usuários, para saber quem divulga esta ou aquela hashtag, censura a parlamentares, desmonetização e apagamento de contas, e por aí vai. Os temas envolvidos são políticos, os personagens são políticos, e não há muita novidade aí. A área jurídica da rede disse que “não havia indício de ilegalidade” naquelas opiniões. Mas obviamente o conceito do que é legal ou ilegal se tornou bastante flexível, ao menos por aqui, nos últimos tempos. O direito “líquido”, me disse um colega, bem-humorado, por estes dias. E quem sabe nesse ponto resida boa parte do problema.

SENSATEZ - Oliver Wendell Holmes, da Suprema Corte: “Livre mercado de ideias”SENSATEZ - Oliver Wendell Holmes, da Suprema Corte: “Livre mercado de ideias” (Bettmann/Getty Images)

 

O imbróglio, nesta confusão toda, não é Musk. Ronaldo Lemos matou a charada ao dizer que não cabia ao Estado brasileiro fazer todo esse alarde com as declarações de Musk. Bastaria agir na forma da lei, caso a empresa de fato cometer uma ilegalidade. O problema é que as perguntas, alertas e denúncias de Musk incomodam. Ele faz o papel daquele vizinho que, em um dia qualquer, diz que “está acontecendo alguma coisa estranha naquela casa”. Sejamos claros: o que ele diz sobre censura prévia e controle de opinião, no país, basicamente já sabemos. E fomos empurrando com a barriga. A diferença é que agora a coisa toda foi jogada em um imenso ventilador. Xingar o Musk, chamar de “menino mimado”, “drogado”, “extremista de direita” e os impropérios de sempre, pode ser um bom divertimento, mas não passa muito de um truque. As perguntas que realmente importam dizem respeito a nós mesmos e à nossa democracia. E nós sabemos quais são: há ou não censura prévia no Brasil? Há devido processo? Acesso de advogados aos autos? E o que vamos fazer com os famosos inquéritos, que já vão para mais de cinco anos? Há uma fila de perguntas, e nada disso tem a ver com Elon Musk, nem será resolvido por ele.

O que me fascina, nessa confusão toda, é o choque entre duas histórias e duas culturas jurídicas. De um brilhante jurista, escutei que “Musk faz isso porque sabe que está protegido pela Primeira Emenda”. Bingo. É porque está sob a guarda das instituições da mais antiga democracia do planeta que Musk pode dizer o que pensa e dormir tranquilo. Ele sabe que fala ancorado em uma tradição que vem de Madison e Jefferson, do Bill of Rights de 1791, atualizada por gerações de juízes da Suprema Corte americana. Do lado de cá, nós também temos a nossa tradição. Nossas sete constituições, nossas duas longas ditaduras, no século XX. E aquela frase de Sérgio Buarque sobre nosso estranhamento com a ideologia “impessoal” do liberalismo, que “jamais se naturalizou entre nós”.

Choque de culturas significa o seguinte: não há “delito de opinião”, na tradição americana. Diferentemente do que acontece por aqui. Vimos isso ainda agora, quando a Justiça americana negou a extradição do blogueiro Allan dos Santos. Depois de assistir a vídeos do sujeito, levados pela turma do lado de cá, o funcionário americano (imagino que um tanto entediado), foi claro: “São apenas palavras”. E encerrou a questão. É o mesmo caso do youtuber Monark. Em uma conversa meio sem nexo, na internet, ele resolveu “achar” que qualquer agremiação política, mesmo um partido nazista, deveria ter direito à expressão. Foi o que bastou. Banimento, processo, pedido de multa milionário. Do seu jeito tosco, ele defendeu o mesmíssimo princípio consagrado no direito americano. O direito afirmado em decisões históricas, como a tomada pela Suprema Corte em 1978, autorizando uma passeata nazista em Skokie, comunidade judaica, perto de Chicago. O que o youtuber sugeriu, na prática, foi uma mudança na lei brasileira. Da qual discordo, o que é irrelevante. A pergunta é: vivemos em um país onde os cidadãos não podem defender uma mudança nas leis? Defender, por exemplo, algo similar à Primeira Emenda americana? É este o país em que nos transformamos?

É exatamente aqui que entra um novo personagem: Oliver Wendell Holmes. Veterano da Guerra Civil Americana e depois juiz da Suprema Corte, foi ele quem formulou o famoso critério do “risco claro e imediato” para definir os limites da liberdade de expressão. O caso tratava de um líder socialista da Filadélfia, Charles Schenck, que havia soltado panfletos contra o recrutamento obrigatório na Primeira Grande Guerra. O critério de Holmes era claro: o direito à expressão não deveria depender de interpretações abertas sobre os riscos de uma opinião. O critério deveria ser objetivo: o risco imediato da violência. Meses depois, Holmes julgaria um caso envolvendo ativistas comunistas, em Nova York, contrários à interferência americana na Revolução Russa. Um deles era Jacob Abrams, judeu e militante de esquerda. Holmes agiu com base naquele princípio. E o fez na forma de um voto dissidente. Absolveu Abrams e seus colegas, e colocou seu próprio nome na tradição dos direitos e da democracia liberal.

Holmes argumentou que, se há algo que podemos aprender com a tradição moderna, é que não há forma mais segura de nos aproximarmos da verdade do que o “livre mercado de ideias”. E que esta era, em última instância, a “teoria da nossa Constituição”. É um “experimento”, ele diz, “como toda a vida é um experimento”. Sempre me surpreendo com essas palavras. Da ideia da Constituição como um “experimento”. Holmes havia lido muito Adam Smith, e de alguma forma transfere para o mundo das ideias e do próprio direito o princípio que Smith tão bem compreendeu para a economia. A lógica simples de que respeitar a regra do jogo, mantendo-se sempre aberta a praça do mercado à livre competição de ideias, é uma ótima maneira de viver. Onde todos ganham, ainda que isso nos custe o preço de muitas péssimas ideias, no curto prazo. O custo, por exemplo, de ideias “perigosas” como aquelas que Abrams e seus amigos espalhavam em uma noite qualquer de Nova York.

Por vezes as pessoas me sugerem que não há muito sentido em falar da tradição americana. Que somos brasileiros e que por aqui temos outra visão sobre a liberdade de expressão. Discordo. Não me consta que teríamos sido feitos para o cangote. E, tanto lá como aqui, as leis vedam a censura prévia e não reconhecem o delito de opinião. Também nós temos uma teoria de nossa Constituição, filha dos anos 80 e de seu desejo de garantir a liberdade e limitar o poder. De consagrar uma sociedade aberta, não a democracia de tutela em que vamos nos convertendo. A estranha democracia feita de agentes de Estado bisbilhotando conversas no rádio, vídeos no YouTube, contas no Twitter e bate-papos no WhatsApp. Se esse será nosso destino ou se andamos apenas num desvio de curso é a pergunta a que devemos responder. Talvez nos falte um Holmes ou um Madison, lá atrás. Ou, quem sabe, uma grande tradição liberal. Não sei. O fato é que nossa marcha da insensatez já foi longe demais. São sobre isso, no fundo, os alertas que nos são dados, por estes dias, aos quais deveríamos prestar atenção.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper


terça-feira, 23 de janeiro de 2024

A irracionalidade da luta contra as desigualdades - Fernando Schüler (Veja)

 Soma variável

Fernando Schüler

Veja (20/01/2024)


“Ninguém deveria ter 1 bilhão de reais!”, leio de um ativista. Achei curioso. De onde vem uma ideia dessas? Conheço uma empreendedora que abriu uma empresa, investiu, muita gente apostou, conquistou uma clientela enorme, e em poucos anos suas ações valiam mais de 1 bilhão. O que ela deveria fazer? Vender tudo que passasse da quota de 1 bilhão? Se ela ficasse com o dinheiro, não ia adiantar. Ela poderia doar. O valor das ações passou de 1 bilhão, ela vende e doa o dinheiro. Ou alguém do governo vai lá e confisca. A pergunta previsível, neste caso, seria “mas então por que eu iria continuar trabalhando, correndo risco?”. Por esporte? E se as ações caírem, depois do confisco? Deixa pra lá…

Em um desses “relatórios” sobre a desigualdade, li coisas interessantes. Uma era a “denúncia” de que a riqueza dos cinco mais ricos do mundo “dobrou desde 2020”. Malandragem estatística escolher exatamente o ano de queda abrupta dos mercados, com a pandemia. Mas ok. Um desses ricos malvados é o Jeff Bezos. O self-made man que trocou um bom emprego para abrir a Amazon. Sou um de seus clientes. Não pela cor dos seus olhos, que aliás desconheço. Compro lá porque a Amazon me vende livros a bom preço e entrega rapidinho. Porque a empresa do Bezos torna minha vida mais fácil. Aumenta minha “produtividade”, se alguém quiser um termo mais elegante. Os investidores sabem disso. E é por isso que o “patrimônio” do Bezos dobrou, desde a baixa de 2020. Assim como ele melhora a minha vida, ele faz isso com milhões de pessoas, do sacrossanto ponto de vista de cada um.

Não há nenhum jogo de soma zero funcionando aí. A soma é variável: ele ganha porque seus clientes e investidores também ganham. Valendo o mesmo para as incontáveis ONGs que a MacKenzie Scott, ex-­esposa de Bezos, ajuda, distribuindo incríveis doações. E é precisamente isso que parece não entrar na cabeça de nossos ativistas.

Me lembro quando li O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty. Em um certo momento, ele diz que “as desigualdades, a partir de um certo ponto, ameaçam os valores básicos da democracia”. Fiquei curioso para saber qual seria exatamente aquele “ponto”. Seria quando o 1% abocanhasse 25% da riqueza? (De “quem”, exatamente?) Ou quem sabe 20%? Ou 30%? À época, adquiri o hábito de perguntar às pessoas qual era a distribuição da riqueza favorita de cada um. Até colecionava os números, que iam da “igualdade total”, ao “padrão nenhum”. Depois desisti. Agora voltei a ler coisas assim. De um economista, li que era um “absurdo” que nosso top 5% “concentrasse” um terço da renda. Inútil perguntar qual seria sua distribuição “não absurda”. Sugestão mais objetiva tive do Joseph Stiglitz, cuja distribuição favorita seria “os 10% mais ricos não podem ter mais do que os 40% mais pobres”. Só Deus sabe qual a “ciência” usada aí. Nossos ativistas embarcaram: “Ganhou o Nobel, sabe das coisas”, devem ter pensado. Me fez lembrar da turma correndo atrás do Forrest Gump. Mas isso é outra história.

Em qualquer matéria sobre “desigualdade”, o que oferece consistência ética ao problema é o fato da pobreza. Ninguém perde uma hora de sono preocupado com a diferença entre o que chamamos de “classe média alta”, que na verdade são os 5 ou 7% de maior renda, e os mais ricos. O que efetivamente nos toca é o fato de que 90% da população disponha de uma renda mensal inferior a 3 208 reais (dados do IBGE). A pobreza, no Brasil, é um oceano. E é nisso que deveríamos focar. Na pobreza que atinge 49% das crianças de 0 a 14 anos, danificando suas chances de vida. Tudo isso é sabido. Mas mobiliza muito pouco o ativismo ideológico e a política profissional. Por que isso? Por que achamos tão mais excitante falar mal do valor das ações do Jeff Bezos do que focar em como melhorar a vida real dos mais pobres? A maior razão, intuo, é política. A retórica em torno da desigualdade é uma pauta de “combate”. É discurso “contra” essa gente da lista da Forbes. O foco na pobreza supõe um discurso “a favor”. É chato, exige buscar eficiência em políticas públicas, demanda soluções de mercado, com resultados de longo prazo. E dá menos ibope. Bom mesmo é “denunciar as desigualdades”, jogar isso na cara daqueles bilionários, em Davos, entre um e outro jantar bacana.

Indermit Gill, do Banco Mundial, tem uma sugestão simples, se queremos mudar o disco: aprender com as economias mais bem-sucedidas na redução da pobreza. Países asiáticos, como a Coreia do Sul, Singapura, Tailândia, Malásia, China, Indonésia e Vietnã. Todos contam a mesma história: sucesso capitalista e forte investimento em educação. Rigorosamente nada a ver com “combater os bilionários”. Ao contrário. A pobreza foi de 28% para 8,5%, no plano global, desde 2000, enquanto o número de bilionários saltou de 400 para 2 600. O país que mais ganhou bilionários foi exatamente aquele que mais reduziu a pobreza: a China. Logo atrás, a Índia. E isso não acontece porque “bilionários reduzem a pobreza”. Acontece porque a redução da pobreza e o aumento da riqueza são duas faces da mesma moeda: o crescimento econômico combinado a instituições “inclusivas”. Abertura de mercado, aumento da produtividade, capacitação de pessoas, ética pública, racionalidade no gasto governamental, bom ambiente de negócios. Caminho perfeitamente inverso ao da Venezuela, que conseguiu levar a pobreza a 90% da população e expulsar os poucos bilionários que havia por lá.

Há 35 anos, o prestigiado IMD, International Institute for Management Development, avalia o grau de competitividade, ou “ambiente de negócios”, em escala global. Ano passado, em um ranking de 64 países, o Brasil ficou na 60ª posição. Só à frente de países como a Venezuela e a Argentina (antes do Milei). Detalhe: em “eficiência governamental”, ficamos na 62ª posição. Se alguém estiver mesmo interessado em reduzir a pobreza, é nisso que deveria prestar atenção. Qual educação estamos oferecendo, nas últimas posições no Pisa? Que vias de inclusão ao mercado abrimos aos dependentes do Bolsa Família? Qual a qualidade do gasto público? O que significa 4,5% do PIB em incentivos fiscais, sem avaliar seriamente a relação custo-benefício? E os 5 bilhões de reais no “fundão eleitoral”? A Justiça e o Legislativo entre os mais caros do mundo, enquanto os espertos pedem mais carga tributária? E o que se passa quando abrimos mão de reformas cruciais? Não precisamos ir longe, aqui. Mario Covas nos falou sobre um “choque de capitalismo”, na campanha de 1989, mas nunca conseguimos produzir um consenso em torno disso, no Brasil. E talvez seja este, ano após ano, nosso desafio.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

A tragédia do ensino fundamental no Brasil - Cristovam Buarque (Veja)

PRIMEIRO, O ALICERCE

Cristovam Buarque

Veja, 5/08/2023

A EDUCAÇÃO DE BASE deve oferecer o conhecimento do mapa necessário para cada pessoa caminhar na busca da felicidade individual e participar da construção do país. Sem isso, asfixiamos a juventude no analfabetismo e sufocamos a universidade por falta de alunos bem preparados. Mas a política educacional nas últimas décadas se caracterizou por uma espécie de neoliberalismo social orientado para atender à demanda de alguns por diploma universitário, ignorando a necessidade de educação de base para todos. Entre 1995 e 2020, multiplicamos por 5 o número de alunos no ensino superior, e apenas por 2 o número de concluintes do ensino médio, sem melhorar a qualidade do que eles aprendiam.

Com a promessa de oferecer o teto, o Brasil abandonou a construção do alicerce e degradou o edifício da educação. Tratada como um bem de consumo, não como ferramenta para cada pessoa orientar-se na vida e construir o país. Com o slogan “Universidade para todos” passamos a ilusão de que o futuro da pessoa e do país depende do diploma universitário, mesmo sem conhecimento, nem emprego nem renda. Apesar do positivo salto no número de universitários, há vinte anos o Brasil tem o mesmo número de 10 milhões de adultos analfabetos; apenas 50% de nossos jovens concluem o ensino médio, no máximo metade desses com a qualificação que se espera para enfrentar as dificuldades da vida social. Estima-se que menos de 10% dos que ingressam na universidade são proficientes em português e matemática, raros em inglês. O resultado é um imenso exército com dezenas de milhões de jovens analfabetos para a contemporaneidade e sem preparo para um curso superior. Por isso, em 2011, a evasão nas universidades foi de 2,5 milhões de alunos, 36,6% do total de matriculados no ensino superior; dos que conseguiram concluir, grande parte se graduou em cursos sem qualidade, nem chance de empregabilidade e renda.

Essa visão chega a tal ponto que no Brasil os três anos posteriores ao ensino fundamental não se chamam “conclusivo da educação de base”, mas “médio”, visto como degrau para o superior. Não é boa estratégia, mas tem sido promovida para seduzir eleitores que preferem a ilusão de comemorar o ingresso no ensino superior, mesmo em um curso sem perspectiva, do que comemorar a conclusão da educação de base, em um curso que prepare para o futuro.

A educação brasileira, inclusive nas universidades, estaria melhor se tivéssemos dado mais atenção à educação de base, oferecendo ensino fundamental sólido e a etapa conclusiva de qualidade. Todos alfabetizados para a contemporaneidade: sabendo falar e escrever bem o idioma português; ser fluente em pelo menos um idioma estrangeiro; conhecer os fundamentos da matemática, ciências, geografia, história, artes; debater com competência os temas de filosofia, política, antropologia e sociologia relacionados aos principais temas do mundo moderno; saber usar as ferramentas digitais; dispor de pelo menos um ofício que permita emprego e renda. Prontos para a vida e o país, de modo a seguirem estudando em curso superior, conforme a vocação e os conhecimentos adquiridos. Mas isso exige colocar a solidez do alicerce na frente da ilusão do teto, o que é uma boa estratégia para o futuro do país, mas não para a próxima eleição.


sábado, 5 de agosto de 2023

Justiça pode estar matando a democracia em nome da defesa da democracia - Fernando Schüler (Veja)

 Anatomia de um instante

Fernando Schüler, Revista Veja (05/08/2023)

Ninguém está acima dos direitos inscritos na Constituição

Sempre gostei das histórias malditas, dos personagens improváveis, que por alguma razão se perdem por aí. Um desses personagens é um comediante chamado Bismark Fugazza, e sua história nos dá um flash do transe brasileiro atual. Fugazza e um colega haviam denunciado o ministro Alexandre de Moraes à Corte Interamericana de Direitos Humanos, por violar os “direitos de liberdade de expressão” no país, com “várias prisões” e “multas desproporcionais” sem o devido processo legal. Foi preso no Paraguai, com direito a uma operação internacional e a fechar por alguns minutos a Ponte da Amizade, e passou três meses em cana. O motivo é o de sempre, as “ameaças à democracia” e coisas afins. Na cobertura do caso, quase nenhuma, o carimbo “influenciador bolsonarista” parece resumir a questão. O relatório da Polícia Federal sobre o seu caso foi taxativo: “Não foi possível evidenciar, de maneira minimamente razoável, que Fugazza tenha promovido atos atentatórios às instituições democráticas no 8 de Janeiro”.

Casos como este se tornaram a mais perfeita banalidade por aqui. Um dos mais curiosos foi o do youtuber Monark, banido das redes sociais por espalhar “desinformação” sobre o processo eleitoral. “A gente vê o TSE censurando gente”, disse ele, “e impedindo a transparência das urnas? Você fica desconfiado. Que maracutaia está acontecendo nas urnas ali?”. Foi banido, e logicamente é inútil perguntar se há alguma lei no país tipificando um crime de “desconfiança”. Monark simplesmente deu sua opinião, na forma de uma pergunta perdida em meio a uma conversa fiada, ademais perfeitamente irrelevante, com a qual cada um pode ou não concordar.

Não faço ideia se alguém seriamente acredita que reprimir essas pessoas atende a algum imperativo de “defesa da democracia”. Desconfio que não. As eleições já vão longe, há um certo cansaço disso tudo, e de certa forma o ministro Barroso matou a charada naquele discurso sem muitos rodeios, no Congresso da UNE. “Derrotamos o bolsonarismo.” Ponto. Difícil ir mais longe nesta análise. A esta altura do jogo, não acho que valha muito a pena fazer longas considerações sobre o sentido do estado de direito, sobre o quanto é absurdo e inaceitável que a Justiça tome partido, que direitos individuais sejam tão escrachadamente violados, que a censura prévia seja banalizada, e tudo o que todos estão cansados de saber. Ainda por estes dias lia um belo texto referindo-se à visão do grande Isaiah Berlin sobre o sentido da liberdade, no mundo político. A ideia de que “só ela era capaz de respeitar nossas almas divididas e o conflito sem fim entre nossos objetivos e valores”. Berlin fala do aprendizado moderno que vem de Montaigne, de John Locke, e cuja síntese é: não concordamos com as ideias uns dos outros, nossos deuses se opõem e nossos valores são frequentemente incompatíveis entre si. E, apesar disso, precisamos viver juntos. O que só é possível se a regra do jogo for dada pela liberdade, pelo respeito à regra imparcial, pelo mais amplo direito à expressão. Do contrário, resta a violência. Resta ficar prendendo comediantes e palpiteiros por aí, como em uma máquina que subitamente ganha vida própria.

Diante do estado de coisas a que chegamos, há diferentes atitudes. A primeira é dos entusiastas. A turma que saliva por entre os caninos a cada inimigo banido, preso, seja o que for. Dias atrás li um desses. “Não é hora de recuar”, berrava, abusando dos pontos de exclamação. É difícil saber o tamanho exato dessa turma, mas ela parece majoritária, nos meios de opinião. Para essas pessoas, coisas como “estado de direito” ou “tipificação legal” não passam de conversa pra boi dormir, como escutei de um ativista, em um dia nervoso. Desde que o mundo é mundo, a paixão militante soube justificar qualquer coisa. Não conheço um só episódio, na história, em que se praticou a censura em nome da censura. Os motivos sempre foram os melhores. A nação, a liberdade, a própria democracia. Não há propriamente originalidade no caso brasileiro.

A segunda atitude é a do medo. Quando um deputado é banido das redes, por uma decisão de ofício, qual o efeito que isso produz em seus pares? Quando os constituintes criaram o estatuto da imunidade parlamentar, era exatamente para que um deputado pudesse falar sem medo. Vale o mesmo para o jornalismo, e para qualquer cidadão, que ganhou o poder de palpitar em uma rede social. Nos tornamos a democracia do chilling effect, o “efeito inibidor”. O jurista ilustre para quem você liga lhe dá uma visão bastante crítica sobre todos esses temas, mas ao final diz, algo constrangido, “só não me cite, por favor”.

Ainda outra atitude, cada vez mais comum: a indiferença. A agressão a direitos, em um primeiro momento, causa indignação. Sua repetição, porém, nem tanto. Torna-se status quo, e vamos nos ajustando. Isso é comum em longas ditaduras. Alguém por acaso dá bola para presos políticos cubanos? Acompanho seu drama, em sites precários, aos quais ninguém mais presta muita atenção. Em democracias que deslizam para o iliberalismo, isto não é muito diferente. Baniram o Guilherme Fiuza? Aquele que escreveu Meu Nome Não É Johnny? E daí? Pois é. Isto tem lá sua racionalidade. Bancar o herói, numa época difícil, pode ser uma atitude de risco. Melhor ficar escondido, por aí, nos grupos de WhatsApp, mudando de assunto, apostando em alguma forma de autoengano.

Há ainda uma última atitude, dada pela insistência calma em certos princípios. Não é preciso ser nenhum herói para fazer isso. Basta fica de pé. Resistir ao frenesi militante e suas bizarrices, e a toda forma de abuso de poder. Sobre isso há uma lição magistral de Javier Cercas, em seu Anatomia de um Instante, que durante bom tempo foi meu livro de cabeceira. O livro é uma crônica da política espanhola dos anos 1980, época de transição, depois da ditadura franquista. Em um dado momento, há uma tentativa de golpe. Seu líder é o coronel Antonio Tejero, um tipo que parece saído de uma novela de Vargas Llosa. Ele invade o parlamento e mantém sua pantomima por uma madrugada inteira, até se entregar, no dia seguinte. Cercas escreve seu livro a partir de uma fotografia feita no exato instante em que Tejero invade o parlamento e abre fogo contra os deputados. A imensa maioria se esconde embaixo das cadeiras. Permanecem imóveis apenas três parlamentares, entre eles Adolfo Suárez, sentado, calmo e impassível, na primeira fila. “Não achei que ficaria bem para um líder de governo atirar-se para baixo de uma cadeira”, ele diria, depois, recusando-se a atribuir a si qualquer traço de heroísmo.

É uma boa metáfora para o Brasil de hoje. Tanto lá, como aqui, não precisamos de heroísmo algum, apenas de pessoas que se disponham a ficar no mesmo lugar. Permanecer impassíveis, em meio ao transe coletivo, nos lembrando que a lei deve ser preservada, que a opinião, detestável que seja, deve ser livre, que ninguém está acima dos direitos inscritos na Constituição, que o juiz não pode entrar em campo para derrotar este ou aquele lado do jogo. Coisas elementares que definem uma boa democracia, e das quais definitivamente não deveríamos abrir mão.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

República dos compadres - Fernando Schüler (Veja)

PAÍS DOS COMPADRES

Por Fernando Schüler, na Veja nº 2852, de 2 de agosto de 2023

DIAS ATRÁS lia o artigo de um jornalista cuja síntese era a seguinte: é preciso haver mais impostos. O texto era meio obsessivo. Em coisa de duas páginas, o sujeito repetia umas seis vezes que “é preciso aumentar impostos”. O curioso foi ler, na mesma semana, uma pesquisa feita pelo UOL mostrando que metade dos juízes brasileiros, isto é, mais de 12 000 magistrados, recebe mais do que os 41 600 reais, que é o vencimento dos ministros do Supremo e teto do funcionalismo. Ou ao menos deveria ser. Achei engraçado. Duas matérias que dão a síntese da falência brasileira. De um lado, o Estado esbanjador, forrado de privilégios, com a maior carga tributária da América Latina, 4,5% do PIB em benefícios fiscais; de outro, nossa intelligentsia clamando por mais impostos. De outro jornalista li que sacar mais do “topo da pirâmide” faria melhorar nossa “distribuição de renda”. Ele parece achar que drenar mais dinheiro dos contribuintes para a máquina estatal produzirá justiça. Que o país tenha o judiciário mais caro, que sejamos o país que mais distribui dinheiro para políticos, com 34 bilhões de reais em emendas parlamentares alocados à moda “dinheiro pelo ventilador”. Ou que nossos parlamentares custem 528 vezes a renda média do brasileiro comum, tudo parece perfeitamente irrelevante. Precisamos adicionar mais 1% ou 2% a nossa carga tributária que já vai a 34% do PIB. Reformar o Estado? Cortar privilégios, aprovar coisas como a “PEC dos Penduricalhos”, que obriga a respeitar o teto constitucional? Besteira. Talvez tenhamos cansado. Trocamos a lógica de fazer perguntas difíceis sobre a racionalidade do gasto público pela lógica fácil do Estado caça-níqueis.

Por que cargas d’água o governo e o Congresso resolveram colocar na conta do contribuinte perto de 4 bilhões de reais, até 2026, em incentivos fiscais para o setor aéreo? Me lembrei disso quando paguei quase 3 000 reais para ir e voltar de Porto Alegre, enquanto lia, no aeroporto, que aquela generosidade toda deve aumentar em 40 ou 50 milhões de reais ao mês o lucro das maiores empresas aéreas. Achei legal, sempre tento celebrar o sucesso alheio. Só me ficou uma pergunta: qual a lógica? O governo já tinha dado meio bilhão de reais à indústria automotiva, vinculado a um descontinho para nossa alegre classe média comprar seu carro zero. Nesse caso, nada. Posso estar enganado, e até sugiro que os leitores deem uma passada no balcão da sua companhia, perguntando se há algum cupom ou promoção, por conta da medida aprovada no Congresso. Pensei em fazer isso, naquele dia, mas achei que o funcionário iria me achar com cara de maluco. E com razão. Vale o mesmo para o mundo do funcionalismo público.

“Vai ter uma nova leva de concursos”, diz a ministra da Gestão, Esther Dweck. “Mais umas 8000a10000 vagas”, afirma ela, que já mandou abrir8 146 vagas neste ano.

“Os ministérios estão vazios”, reclamou Lula, segundo a ministra, lamentando que “alguns deles sequer tem um secretário-executivo adjunto”. Não deixa de ser curioso. O Tesouro atualiza o déficit para 145 bilhões de reais, neste ano, e o governo, nos seis primeiros meses, autoriza mais concursos do que nos cinco anos anteriores. Tudo em um país que já gasta 13,2% do PIB em funcionalismo, acima de países como a Alemanha, e seu welfare state. E que na verdade entrega muito pouco, ocupando a vergonhosa 122ª posição no “índice de efetividade governamental”, do Banco Mundial, atrás de países como Peru e Senegal. Algum sinal de regulamentação da avaliação de desempenho dos servidores, determinada pela Constituição? Zero. Sinal da reforma administrativa, que Arthur Lira diz estar “pronta para votar”? A agenda de reformas foi substituída pela agenda de crescimento da máquina pública, aumento de impostos e concessão de benefícios setoriais. Algo que leva ao “cansaço das velhas fórmulas”, na expressão que escutei. Raspando um pouco a camada de tinta da exasperação política de todos os dias, é este o sentido da época em que vivemos: na epiderme, a “vitória da democracia”; um pouco abaixo, o velho e bom populismo a fogo brando.

Sobre nossa dificuldade com o “espírito de reforma”, me vem à mente as palavras duras de Maquiavel, em O Príncipe. “Nada mais difícil”, ele diz, “do que a instituição de uma nova ordem”. Pois quem o tenta irá receber “a inimizade de todos os beneficiados pela velha ordem, e será defendido apenas timidamente pelos que ganham com a nova ordem”. A sentença sempre me soou como um presságio da condição brasileira. Ainda me lembro de FHC saindo de seu governo politicamente derrotado, e amaldiçoado nos livros didáticos, após a ousadia de um ciclo positivo de reformas, nos anos 1990. No caso brasileiro, Marcos Mendes fez um esforço para entender o porquê de nossa dificuldade com as reformas. Elas seriam mais complicadas em países grandes, menos interessados na abertura externa, com elites numerosas orbitando em torno do Estado, em uma economia fechada como a nossa. Tudo isso em um quadro de dispersão partidária, que dificulta consensos, e numa sociedade marcada pela baixa confiança interpessoal. De minha parte, gosto de pensar no crescimento da máquina estatal e seus privilégios como um processo de retroalimentação. A lógica foi amplamente desenvolvida por Buchanan e os teóricos da Teoria da Escolha Pública, e funciona mais ou menos assim: em algum momento dos anos 1950, alguém tem a ideia de criar a Zona Franca de Manaus. Junto com ela, forma-se imediatamente uma coalizão de grupos de interesse. Empresas com benefícios fiscais, fornecedores, sindicatos e políticos eleitos para sua defesa. Resultado? A Zona Franca imune à reforma tributária e prorrogada até 2073. O Brasil está forrado desses exemplos. De uma estatal ineficiente como a Ceitec, resgatada às vésperas da privatização, até as férias de sessenta dias de nossos magistrados. Uma vez criado o benefício, ele será defendido bravamente pelos que dele se beneficiam. E por aí viramos o país dos compadres. E quando alguém disser que aumentar ainda mais os impostos “reduzirá a desigualdade” ou promoverá a “justiça”, lembre dos exemplos mencionados aqui, que são apenas a ponta de um imenso iceberg.

“É possível mudar este quadro?”, me perguntam. “É claro”, respondo. Em última instância, são “escolhas da sociedade”, como diz meu amigo Samuel Pessoa. No dia a dia da política, são escolhas de quem comanda o jogo, em Brasília. Dos “donos do poder”, na expressão de Raymundo Faoro. Na hora de votar outra exceção, na reforma tributária, ou enfiar numa gaveta a reforma administrativa, quem manda não são os contribuintes ou usuários do SUS, mas as corporações de dentro e fora da máquina estatal. Mas, em última instância, a chancela é da sociedade. Dos cidadãos, nas redes, do mundo da opinião, da sociedade civil e dos eleitores, a cada quatro anos. E por aí estamos dançando. Por quanto tempo? Não faço a menor ideia.


sexta-feira, 12 de maio de 2023

Entre conselhos e controvérsias, Celso Amorim dá as cartas no Itamaraty - Ricardo Ferraz (Veja)

 Entre conselhos e controvérsias, Celso Amorim dá as cartas no Itamaraty


Assessor especial e amigo de Lula é ideólogo da diplomacia 'ativa e altiva'. A polícia externa, no entanto, vem ostentando mais pisadas na bola do que gols

Por Ricardo Ferraz 
Veja, 12 Maio 2023

Depois de encarar uma viagem de avião a Varsóvia, deslocar-se de lá para a fronteira da Ucrânia e percorrer de trem 700 quilômetros até Kiev — idêntico trajeto trilhado, sob segurança máxima, pelo americano Joe Biden e pelo francês Emmanuel Macron, entre outros —, o diplomata Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República, foi conduzido, na quarta-feira 10, direto da estação para um encontro com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, em lugar não revelado. Na bagagem, levava um plano de ação sabidamente incômodo para o anfitrião: decretação de cessar-fogo, seguida de abertura de negociações, de efeito imediato, com as tropas de Vladimir Putin ainda ocupando um naco do território ucraniano. A efetividade da proposta, que vem sendo repetida há meses pelo presidente Lula, é duvidosa, mas a reunião em Kiev deixa claros dois pontos vitais da política externa brasileira: o Brasil quer conquistar o protagonismo perdido no cenário internacional e Amorim é o idealizador deste e de outros movimentos d finidores no Itamaraty, e com pleno aval do presidente.

O encontro não resultou em avanços concretos nem se esperava que o fizesse. “Eu enfatizei que o único plano capaz de deter a agressão russa na Ucrânia é a Fórmula Ucraniana para a Paz”, postou nas redes o presidente Zelensky. “O diálogo foi positivo, de criação de confiança, visando explicar nossos objetivos para a paz”, declarou Amorim. Ou seja: continua tudo como está.

No papel de comandante de fato dos assuntos externos, Amorim busca implementar o que chama de “diplomacia ativa e altiva”, conceito que desenvolveu como ministro das Relações Exteriores nos dois mandatos anteriores de Lula. No caso da guerra na Ucrânia, essa política se traduz em uma posição ambígua: o Brasil condena a invasão promovida pela Rússia, uma agressão deliberada e injustificada, mas insiste em que, como diz Lula, “alguém precisa pensar na paz”. De preferência, ele, Lula. “É complicado dizer onde termina a esperteza e começa a ingenuidade”, alfineta um diplomata com posição de destaque no Itamaraty. Insere-se no clima geral de desconfiança dos reais interesses brasileiros o fato de o governo querer incluir os cinco integrantes dos Brics em um seleto grupo de nações encarregadas de “facilitar” um cessar-fogo, sem levar em conta que três deles — África do Sul, Índia e China — estão entre os 35 países que se abstiveram na votação da resolução da ONU que condenou a guerra (o quarto é a própria Rússia). Em vez de inspirar neutralidade, a iniciativa causa má impressão ns Estados Unidos e União Europeia, aliados relevantes do Brasil.

Na cruzada por protagonismo e liderança no cenário internacional, a política externa brasileira tocada por Amorim ostenta mais pisadas na bola do que gols. No começo do governo, navios militares do Irã, país boicotado por quase todo mundo, tiveram autorização para ancorar no Porto do Rio de Janeiro. O assessor especial de Lula esteve em Moscou há um mês para reuniões com altos funcionários e Putin em pessoa abriu espaço na agenda para recebê-lo. Lula, por sua vez, recepcionou o ministro das Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, no Palácio do Planalto. Em outra ocasião, responsabilizou os países ocidentais que ajudam a Ucrânia militarmente pela continuidade da guerra — uma declaração desastrada, reflexo de conversas ao pé do ouvido com Amorim, que foi considerada “um deslize fora de tom” pelo próprio Itamaraty e rendeu protestos nas escalas seguintes, Portugal e Espanha (Lula, como se sabe, não tira o pé da estrada desde que assumiu a Presidência). Aproveitando a recente estadia em Londres, para a coração de Charles III, o presidente gastou saliva justificando as posições brasileiras junto ao primeiro-ministro Rishi Sunak. Sem sucesso. O premiê britânico não tocou no assunto publicamente.

A visão de que o Brasil não deve “falar fino” com as potências mundiais, partilhada por Lula e Amorim, tem reflexo nas questões regionais. O presidente enviou seu ex-chanceler para reabrir a embaixada brasileira na Venezuela, fechada por Jair Bolsonaro, e Amorim aproveitou para estreitar as relações com Nicolás Maduro, em um encontro revelado pelo ditador em uma postagem nas redes sociais comemorando os “acordos de união e solidariedade” entre os dois países. “A busca por marcar diferenças com o governo anterior tem gerado controvérsias desnecessárias. O Brasil consegue se colocar como ator neutro trabalhando nos bastidores, sem precisar aparecer de maneira excessiva”, critica Leandro Lima, analista da consultoria Control Risks.

Lula e Amorim tiveram dois encontros casuais antes de serem devidamente apresentados, no início do primeiro mandato, em 2003, pelo então assessor da Presidência Marco Aurélio Garcia. Três outros diplomatas foram sondados para assumir o Itamaraty, mas o presidente se decidiu por Amorim por motivos vários, inclusive alguns prosaicos: os dois compartilhavam a inconveniência de caspas no couro cabeludo. E rindo se aproximaram ainda mais. Na ocasião, Amorim era filiado ao PMDB e ex-chanceler do presidente Itamar Franco, mas, 139 viagens depois, tornaram-se amigos próximos. Uma delas foi a missão no Irã, em 2010, quando o Brasil anunciou haver convencido Teerã a produzirenergia nuclear só para fins pacíficos. Pelo feito, Lula chegou a acreditar que ganharia o Nobel da Paz (o que, aliás, teria virado uma obsessão incansável), mas o tal pacto foi desfeito em menos de 24 horas pelos Estados Unidos. A amizade se consolidou de vez quando Amorim, que quase não bebe, se rendeu a uma dose de uísque e, língua destravada, queixou-se de não poder chamar o presidente de Lula, simples assim. Ele prontamente concedeu a intimidade, que só é usada, a bem da verdade, quando estão a sós.

Neste governo, Amorim indicou dois de seus ex-chefes de gabinete para posições centrais do Itamaraty: Mauro Vieira assumiu a pasta e Maria Laura da Rocha é secretária executiva. Indicações internas para embaixadas também passam por sua mesa, onde nomes já aprovados pelo chanceler têm sido riscados. Apesar da concentração de poder em mãos alheias, Vieira garante não sentir desconforto. “Eu e o Celso costumamos rir sempre que tentam criar intrigas entre nós. São especulações recicladas, que aparecem de tempos em tempos, ao longo de quarenta anos de amizade”, diz Vieira. Quando perguntado como quer ser tratado, Amorim recorre, em tom de brincadeira, a uma resposta irônica do ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger: “Excelência serve”. Quem o conhece sabe que a piada tem lá seu fundo de verdade.


quarta-feira, 31 de agosto de 2022

A horrível política externa de Bolsonaro: já brigou com meio mundo - José Casado (Veja)

 Bolsonaro já atacou governos de 26% da população do planeta


Em 44 meses no Palácio do Planalto, ele provocou confusão com governantes de 15 países

Por José Casado Atualizado em 31 ago 2022, 07h44 - Publicado em 31 ago 2022, 06h00 

No mundo de Jair Bolsonaro política externa se faz à base de caneladas. Na contabilidade da diplomacia, em 44 meses no Palácio do Planalto ele já atacou governos de 15 países.

A mais recente ofensiva foi contra o governo do Chile, no debate eleitoral do início da semana. Em protesto, Gabriel Boric, presidente chileno, retirou seu embaixador de Brasília.

Diplomatas brasileiros listaram por região alguns episódios de agressões, quase todas gratuitas: na América do Sul, foram Chile, Argentina, Uruguai, Colômbia, Bolívia e Venezuela; na América do Norte, os Estados Unidos sob Joe Biden; na Europa, Espanha, Portugal, França, Reino Unido, Noruega, Holanda e Alemanha; e, na Ásia, China.

Nessa conta não entrou o Vaticano. Foi esquecimento, dizem no Itamaraty. Em 2019, Bolsonaro criticou a hierarquia da Igreja Católica e o governo tentou infiltrar espiões no Sínodo da Amazônia, que mobilizou o clero de nove países da região.

Os países listados somam 2,1 bilhões de habitantes. Significa que nos atritos provocados por Bolsonaro já envolveram governos de 26% da população do planeta. Um recorde na história da diplomacia verde-amarela.

https://veja.abril.com.br/coluna/jose-casado/bolsonaro-ja-criou-confusao-com-governos-de-26-da-populacao-do-planeta/

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Eleições 2022 (11/11/2021): Thomas Traumann: Moro arrasa com candidaturas tucanas (Veja)

Dou início, com esta postagem, a uma série de matérias exclusivamente dedicadas às eleições presidenciais, e gerais, de 2022, com a qual pretendo fazer um seguimento estreito da mais importante decisão a ser tomada pelos eleitores brasileiros em muitos anos, talvez a mais relevante de nossa história, pois o próximo presidente terá de reconstruir o Brasil, depois do furacão dos novos bárbaros.

Sempre colocarei o indicativo "Eleições 2022" e nessa rubrica caberão tanto matérias de terceiros, quanto análises minhas sobre o cenário político e econômico do processo eleitoral.

Concordo com Thomas Traumann: Moro pode liquidar (em todos os sentidos da palavra) com quaisquer outras candidaturas dessa confusa 3a via, e pode facilitar a vitória de Lula.

Paulo Roberto de Almeida

 . Thomas Traumann  Jornalista e consultor de comunicação, é autor de "O Pior Emprego do Mundo", sobre o trabalho dos ministros da Fazenda. Escreve sobre política e economia

Doria e Moro: articulação do ex-ministro para a eleição em 2022 descarta Senado até segunda ordem

Moro arrasa com candidaturas tucanas

  • Pesquisa mostra que com ex-juiz na disputa, Lula vence no primeiro turno
Pesquisa Genial/Quaest divulgada nesta quarta-feira, 10, mostra que a candidatura a presidente do ex-juiz da Lava Jato e ex-ministro do governo Bolsonaro, Sergio Moro, arrasa com as chances do PSDB e de outros pré-candidatos da chamada terceira via, tira votos do presidente Jair Bolsonaro e, indiretamente, amplia o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Nos dois cenários pesquisados, a entrada de Moro reduziu os pré-candidatos tucanos João Doria a 2% e o Eduardo Leite a 1%, e o senador Rodrigo Pacheco (PSD) a 1%. Moro se filiou hoje ao partido Podemos para disputar a Presidência. As duas simulações mostram Lula na frente a ponto de vencer no primeiro turno, entre 47% e 48% dos votos votais (o que daria 54% dos votos válidos). O presidente Jair Bolsonaro vem em segundo, com 21%; depois Moro com 8% e o ex-ministro Ciro Gomes com 6% ou 7% dependendo do cenário.

Todas as pesquisas presidenciais até agora mostram que existe espaço para três ou no máximo quatro candidatos viáveis: Lula e Bolsonaro já asseguraram seu lugar. Ciro Gomes tem um público fiel. O último candidato deve vir da centro-direita e Moro largou na frente.

Ironicamente, a chegada de Moro amplia a vantagem de Lula no primeiro turno por ele tirar votos de Bolsonaro e impede a viabilização de um candidato tucano. O ex-ministro da Justiça toma votos do presidente nos principais redutos do bolsonarismo: os mais ricos (entre os que ganham acima de cinco salários mínimos, ele alcança 11% das intenções de voto contra 32% de Bolsonaro e 34% de Lula) e na região Sul (Moro tem 12%, Bolsonaro 22% e Lula 45%). Em compensação, Moro é mais fraco onde Lula é mais forte, o Nordeste (ele cai a 4% ante 60% do ex-presidente) e os que ganham menos de dois salários mínimos (Moro tem 5% e Lula 61%).

Mas não será uma operação simples. Depois de Bolsonaro, Moro é o candidato mais rejeitado na pesquisa da Quaest: 61% dos eleitores dizem que o conhecem e não votariam nele, fruto do seu desgaste com as irregularidades na Operação Lava Jato e do rompimento com o bolsonarismo.

Além disso, Moro é um candidato de uma nota só, o combate à corrupção, tema que deixou o topo das preocupações dos brasileiros. Em agosto, 32% dos brasileiros diziam que a economia era o maior problema do país; agora, são 48%. 73% dos entrevistados acham que no último ano a economia piorou. Perguntados qual seria o principal problema econômico do Brasil, 23% respondem crescimento; 14% desemprego; 11% inflação e 10% miséria. Enquanto não tiver o que dizer a esses eleitores, Moro seguirá tendo um teto para crescer.