As aulas voltaram, por essas semanas, e decidi tirar a limpo uma velha
questão: há ou não doutrinação ideológica em nossos livros didáticos?
Pra responder à pergunta, fui direto na fonte: analisei alguns dos
livros de história e sociologia mais adotados no país. Pesquisei nas
editoras, encontrei uma livraria que dispunha de todos os exemplares e
pus mãos à obra. Já li muita coisa na vida, mas não foram fáceis as
horas que passei tentando entender o que se dizia em todos aqueles
livros. No fim, acho que entendi.
O resultado é o seguinte: dos dez livros que analisei, 100% tem um
claro viés ideológico. Não encontrei, infelizmente, nenhum livro
“pluralista” ou particularmente cuidadoso ao tratar de temas de natureza
política ou econômica. Talvez livros assim existam, e gostaria muito de
conhecê-los. Falo apenas dos que me chegaram às mãos. Tudo livro
“manco”. E sempre para o mesmo lado.
Com um adendo: vale o mesmo para escolas públicas e privadas. Imagino
não serem poucos os sujeitos que jantam à noite, com os amigos, e
reclamam do viés “anticapitalista” da sociedade brasileira. Sem
desconfiar que anticapitalista mesmo é o discurso que seu filho
adolescente vai engolir na manhã seguinte, sem chance de reação, no
colégio.
O viés politico surge no recorte dos fatos, na seleção das imagens, nas
indicações de leitura, na recomendação de filmes e links culturais. A
coisa toda opera à moda
Star Wars: o lado negro da força é a
“globalização neoliberal” e coisas afins; o lado bom é a “resistência”
do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e dos “movimentos sociais”,
MST à frente. Tudo parece rudimentar demais para ser verdade. Mas está
lá, nos livros em que nossos adolescentes estudarão.
No Brasil contemporâneo, chega a ser engraçado. FHC é Darth Wader; Lula
é Luke Skywalker. Pra ser sincero, a saga de George Lucas me parece bem
mais sofisticada do que o roteiro seguido pelos nossos livros
didáticos. Em particular, quando tratam de nossa história recente.
No livro
Estudos de História, da Editora FTD, por exemplo,
nossos alunos adolescentes aprenderão o seguinte sobre o governo de
Fernando Henrique: era neoliberal (apesar de “tentar negar”) e seguiu a
cartilha de Collor de Melo; os “resultados dessas políticas foram
desastrosos”. Na sua época, havia “denúncias de escândalos, subornos,
favorecimentos e corrupção” por todos os lados, mas “pouca coisa se
investigou”.
Nossos alunos saberão que “as privatizações produziram desemprego”, e
que o país assistia, naqueles tempos, ao aumento da violência urbana e
da concentração de renda e à “diminuição dos investimentos”. E que, de
quebra, o MST pressionava pela reforma agrária, “sem sucesso”.
Na página seguinte, vem a luz. Ilustrado com o decalco vermelho da
campanha “Lula Rede Brasil Popular”, o texto ensina que, em 2002, “pela
primeira vez” na história brasileira, alguém que “não era da elite” é
eleito presidente. E que, graças à “política social do governo Lula”, 20
milhões de pessoas saíram da miséria. Isso tudo faz a economia crescer
e, como resultado: “telefones celulares, eletrodomésticos sofisticados e
computadores passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de pessoas,
que antes estavam à margem desse perfil de consumo”.
Lendo isto, me perguntei se João Santana, o marqueteiro do PT, por ora
preso em Curitiba, escreveria coisa melhor, caso decidisse publicar um
livro didático. E fui em frente.
Na leitura seguinte, do livro
História Geral e do Brasil, da
Editora Spicione, o quadro era o mesmo. O PSDB é um partido
“supostamente ético e ideológico” e os anos de Fernando Henrique são o
cão da peste. Foram tempos de desemprego crescente, de “compromissos com
as finanças internacionais”, em que “o crime organizado expandiu-se em
torno do tráfico de drogas, convertendo-se em verdadeiro poder paralelo
nas favelas”. E mesmo “dentro das prisões”, transformadas em “centros de
gerenciamento do tráfico e do crime organizado”, acrescentam os
autores.
Com o Governo Lula, tudo muda, ainda que com alguns senões. Numa
curiosa aula de economia, os autores tentam explicar por que a “expansão
econômica” foi “limitada”, naqueles anos: a adoção de uma “politica
amigável aos interesses estrangeiros, simbolizada pela liberdade ao
capital especulativo”; pela “manutenção, até 2005, dos acordos com o
FMI” e dos “pagamentos da dívida externa”.
O livro termina apresentando a tensão entre o Brasil “pessimista”, dos
anos FH, com os anos “otimistas” do lulismo, e conclui com um
prognóstico: “as boas notícias nos últimos anos indicavam que talvez os
anos do pessimismo a toda prova já tenham passado e, nesse caso, pode
ser o momento do não negativo como um novo paradigma para o Brasil”.
O livro
História conecte, da Editora Saraiva, segue o mesmo
roteiro. O governo FHC é “neoliberal”. Privatizou “a maioria das
empresas estatais” e os U$ 30 bilhões arrecadados “não foram investidos
em saúde e educação, mas em lucros aos investidores e especuladores, com
altas taxas de juros”. A frase mais curiosa vem no final: em seu
segundo mandato, FH não fez “nenhuma reforma”, nem tomou “nenhuma medida
importante”. Imaginei o presidente deitado em uma rede, no quarto andar
do Palácio do Planalto, enquanto o país aprovava a Lei de
Responsabilidade Fiscal (2000), o fator previdenciário (1999) ou o bolsa
escola (2001).
FHC manteve o país “alinhado” e “basicamente dependente dos EUA”,
enquanto Lula aumentou as relações diplomáticas e comerciais com a
“União Europeia e vários países africanos, asiáticos e sul-americanos”.
FH havia beneficiado os especuladores; Lula beneficiou os
“trabalhadores” e as “camadas mais pobres”. De quebra, “apoiou as
indústrias de exportação” e “incentivou muitas empresas a se
internacionalizarem”. Lendo isso, tive ganas de sair pelas ruas, com uma
bandeira vermelha. Mas me contive.
O padrão “João Santana” se repete no livro
História para o ensino médio,
da Atual Editora. É curioso o tratamento dado ao caso do “mensalão”.
Alguma menção ao julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal?
Não. Nossos alunos saberão apenas que houve “denúncias de corrupção”
contra o governo Lula, incluindo-se um caso conhecido como mensalão,
“amplamente explorado pela imprensa liberal de oposição ao petismo”.
No livro da Atual Editora, é interessante perceber o tratamento dado à
América Latina. A tensão política surge, como de regra, a partir da
clivagem “contra ou a favor do neoliberalismo”. Nossos alunos serão
instruídos sobre a resistência oferecida “à globalização capitalista
neoliberal” pelo Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e poderão
saborear, sob o rótulo de “fonte histórica”, um trecho do “manifesto de
Porto Alegre”.
Sobre o Mercosul, nossos alunos aprenderão que o Paraguai foi excluído
do bloco em 2012, em função do “golpe de Estado” que tirou do poder o
presidente Fernando Lugo. Saberão que, com a eleição de Hugo Chávez, a
Venezuela torna-se o “centro de contestação à política de globalização
capitalista liderada pelos Estados Unidos”. Que “a classe média e as
elites conservadoras” não aceitaram as transformações produzidas pelo
chavismo, mas que, mesmo assim, o comandante “conseguiu se consolidar”.
Sobre a situação econômica da Venezuela, alguma informação? Alguma
opinião crítica para dar uma equilibrada no jogo e permitir que os
alunos formem uma opinião? Nada, por óbvio.
Interessante é o tratamento dado às ditaduras na América Latina. Para
os casos da Argentina, Uruguai e Chile, um capítulo (merecido)
mostrando, no detalhe, os horrores do autoritarismo e seus heróis:
extratos de
As veias abertas da América Latina, de Eduardo
Galeano; as mães da Praça de Maio, na Argentina; o músico Victor Jara,
executado pelo regime de Pinochet, e uma sequência de indicações de
filmes sobre a “resistência” e a luta pelos direitos humanos, no
continente. Tudo perfeito.
Quando, porém, se trata de Cuba, a algumas páginas de distância, a
conversa é inteiramente diferente. A única ditadura que aparece é a de
Fulgêncio Batista. Em vez de filmes como
Antes do anoitecer, sobre a repressão cubana ao escritor e homossexual Reynaldo Arenas, nossos estudantes são orientados a assistir
Diários de motocicleta,
Che, e
Personal Che.
Não deixa de ser engraçado. Quando fala da Argentina, o livro sugere
uma “Visita ao patrimônio” no “Parque da Memória”, uma (justa) homenagem
às vitimas do terrorismo de Estado, em Buenos Aires. Quando trata de
Cuba, a “visita ao patrimônio” sugerida pelos nossos isentos autores é
ao “Museu da Revolução”, com especial recomendação para observar o
“pequeno iate” em que Fidel e Che aportaram para a gloriosa revolução.
E, imperdível: uma salinha, o rincón de los cretinos, feita para
ridicularizar tipos como Batista, Reagan e Bush.
As restrições do castrismo à “liberdade de pensamento” surgem como
“contradições” da revolução. Alguma palavra sobre os balseros cubanos?
São milhares, neste mais de meio século. Alguma fotografia, sugestão de
filme ou “link cultural”? Alguma coisa sobre o paredón cubano? Há fotos
muito boas sobre estes temas, mas nenhuma aparece em livro nenhum.
Alguma coisa sobre Oswaldo Payá, Orlando Zapata, Yoani Sánchez e a luta
pelos direitos humanos na Ilha? Alguma coisa sobre as “Damas de
Blanco”? Zero. Nossos estudantes não saberão nada sobre isto. Não terão
essa informação para que possam produzir seu próprio juízo. É
precisamente isso que se chama ideologização.
A doutrinação torna-se ainda mais aguda quando passamos dos livros de
história para os manuais de sociologia. Em plena era das sociedades de
rede, da revolução
maker, da explosão dos
coworkings e
da economia colaborativa, nossos jovens aprendem uma rudimentar visão
binária de mundo, feita de capitalistas malvados x heróis da
“resistência”. Em vez de encarar de frente o século XXI e suas incríveis
perspectivas, são conduzidos de volta a Manchester do século XIX.
Não acho que superar esse problema seja uma tarefa trivial. A leitura
desses livros me fez perceber que há um “mercado” de produtores em série
de livros didáticos muito bem estabelecido no país, agindo sob a
inércia de nossas editoras e a passividade de pais, professores,
diretores de escolas e autoridades de educação. Pessoas comprometidas
com uma visão política de mundo e dispostas a subordinar o ensino das
ciências humanas a essa visão. Sob o argumento malandro de que “tudo é
ideologia”, elas prejudicam o desenvolvimento do espírito crítico de
nossos alunos. E com isso fazem muito mal à educação brasileira.
Fernando L. Schüler é Doutor em Filosofia (UFRGS) e Professor do
Insper. É titular da Cátedra Insper Palavra Aberta e curador do Projeto
Fronteiras do Pensamento.
Siga no Twitter: @fernandoschuler
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