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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Democracia aqui, e também acolá: um chamado à coerência da Política Externa Brasileira - Conselho Acadêmico do Livres (Estadão)

 Democracia aqui, e também acolá: um chamado à coerência da Política Externa Brasileira


 André Portela, Elena Landau, Fernando Schuler, Leandro Piquet, Paulo Roberto de Almeida, Natalie Unterstell e Sandra Rios 


O Estado de S. Paulo, 27/09/2024

 

Não há dúvida de que a Venezuela vive sob uma ditadura: falta de liberdade de imprensa, perseguição e assassinato de opositores, além de uma crise econômica severa que gerou o maior fluxo migratório das Américas. Para manter seu poder, Nicolás Maduro alterou a Constituição, controlou o judiciário e as forças armadas, destruiu a economia e sufocou a sociedade civil, expulsando até o escritório de Direitos Humanos da ONU.

Este cenário geral já estava claro quando o presidente Lula recebeu o ditador venezuelano com honras de chefe de Estado no Palácio do Planalto, em maio de 2023. Ou quando, em março deste ano, minimizou a situação de Maria Corina Machado, opositora barrada pelo regime, fazendo pouco caso do desrespeito ao Acordo de Barbados, que visava garantir condições para a disputa. Na ocasião, ainda comparou a situação na Venezuela com a lei da ficha limpa que o impediu de concorrer em 2018, rebaixando as instituições brasileiras.

Ao enviar Celso Amorim para observar a eleição, Lula demonstrou conivência com o regime. O processo foi marcado por evidências claras de fraude. OEA, Uruguai e Argentina, entre outros parceiros regionais, fizeram críticas duras. Assim como o governo de esquerda do Chile, liderado por Gabriel Boric, evidenciando que a defesa democrática pode estar acima de recortes ideológicos. O Brasil se apequenou.

A oposição venezuelana apresentou provas de fraude, corroboradas por observadores internacionais e pesquisadores independentes. Como resposta, a Justiça da Venezuela emitiu mandado de prisão contra o presidente eleito, Edmundo González, agora asilado na Espanha. E como se portou a nossa diplomacia? Não seguiu o mandamento constitucional, que aponta para a defesa da democracia e dos direitos humanos. Assistimos, na verdade, à minimização das violações à liberdade na Venezuela. Infelizmente, a postura não surpreende.

Desde o final da década anterior, nossa política externa tem se deixado conduzir por concepções de mundo que nos aproximam de ditaduras. Sob o manto de uma iniciativa “contra-hegemônica” em prol do “Sul Global”, há a adoção de uma visão rasa de pragmatismo, que dimensiona incorretamente o interesse nacional. Na companhia dos maiores violadores de direitos humanos do planeta, esse processo penhora as melhores credenciais diplomáticas do Brasil - nossa confiabilidade.

O atual governo parece não entender que nosso respeito na seara internacional era fruto da defesa de princípios, por gerações, mesmo quando esta implicava em prejuízos mais imediatos.

A reiterada indiferença em relação aos crimes de guerra na agressão da Rússia à Ucrânia tem sido outro triste exemplo. Ao não marcar a diferença entre agressor e agredido, o atual governo acaba por reconhecer as duas partes como iguais no conflito, em frontal contradição com a Carta da ONU e a própria Constituição brasileira, que consagram o respeito à soberania e à não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados.

Por absurdo, o presidente brasileiro chegou a sugerir a cessão do território ucraniano em troca da paz. Dessa forma, a ideia de “neutralidade” do Brasil nesse conflito é terrivelmente falsa, na medida em que nega material de socorro emergencial para um lado, e aumenta exponencialmente as importações de produtos do outro.

Há quem justifique o relativo silêncio do Brasil pelos descontos na compra de fertilizantes e óleo diesel, ou pela participação no BRICS, “para discussão de problemas globais”. Será mesmo que o cidadão brasileiro aceitaria ser cúmplice das barbáries perpetradas pela agressão russa à Ucrânia em troca de uma ilusória projeção mundial?

Mesmo entre os que estão mais à esquerda do espectro político há dificuldades de justificar certos posicionamentos. Por exemplo, o que diria uma defensora da igualdade de gêneros sobre a aproximação do Brasil ao Irã – um país que persegue e mata mulheres por não seguirem à risca os códigos de ‘decência religiosa’ dos Aiatolás?

Na comunidade internacional, o governo brasileiro tem sido visto como indiferente ao conjunto básico de direitos e garantias individuais consolidados em diversos acordos subscritos e ratificados pelo Brasil. Há uma profunda incongruência da atual política externa com respeito a valores e princípios tradicionais de nossa diplomacia. Uma postura injustificável no contexto de corrosão de regimes democráticos ao redor do mundo e aumento de impulsos autoritários em diferentes países.

Essa ambiguidade com a qual o governo federal tem tratado temas tão caros como direitos humanos poderá ter implicações domésticas. A relativização do valor da democracia no âmbito externo pode levar a uma degradação da confiança na democracia no âmbito interno. Por zelo às nossas liberdades, uma clara revisão de rumos é mais do que necessária.

 

André Portela, Elena Landau, Fernando Schuler, Leandro Piquet, Paulo Roberto de Almeida, Natalie Unterstell e Sandra Rios são conselheiros do Livres.


https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/democracia-aqui-e-tambem-acola/


segunda-feira, 6 de maio de 2024

Convicções e democracia - Fernando Schuler (Veja)

 Fernando Schüler é leitura obrigatória aos domingos. 

Convicções e democracia

Fernando Schuler

Veja, 5/05/2024

Causou certo furor a notícia de que o governador Tarcísio de Freitas teria feito elogios ao ministro Alexandre de Moraes. Não faço ideia se a notícia era verdadeira e não entro no mérito das declarações. Do meu modesto ponto de vista, podem-se preservar boas relações institucionais, em uma democracia, ainda que se possam criticar — mesmo duramente — as ações de uma autoridade. Se isto não for possível, não vivemos mais propriamente em uma democracia liberal. Seria este o nosso problema? O ponto que me parece interessante foi a discussão que se seguiu. Em especial, a ideia de que se estaria gerando uma “direita moderada” no país. E que isto seria positivo. Um artigo bastante provocativo dizia que o Brasil precisava de um “bolsonarismo moderado”. A turma da lacração aproveitou para faturar alguns likes, mas o artigo tocava em um bom ponto: o país precisa parar com essa ideia de “erradicar” o outro lado e aceitar a ideia de que esquerda e direita devem conviver com alguma civilidade. E que isto deve incluir indistintamente quem apoiou Lula ou Bolsonaro, nos últimos anos.


Desde a redemocratização, o Brasil sempre teve uma disputa entre posições mais “à direita” e mais “à esquerda”. Sempre teve duas “turmas”, em termos de visão econômica e sobre o papel do Estado. Elas são identificáveis nas grandes decisões e nas votações do Congresso nos últimos trinta e tantos anos. Nas privatizações do início dos anos 90, envolvendo a CSN, a Embraer, a Vale do Rio do Doce, o setor de telefonia, as duas turmas já estavam lá. Cada uma com seu léxico próprio. Um lado chamando de “modernização”; outro, de “desmonte” do Estado. Foi assim com a reforma do Estado. Quando se votou a Emenda 19 à Constituição, introduzindo a avaliação de desempenho dos servidores (nunca posta em prática), um lado ficou a favor, outro, contra. A mesmíssima coisa aconteceu com o Plano Real, a criação das organizações sociais, as agências reguladoras, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Em cada uma dessas decisões, estavam lá as duas turmas.


No ciclo de reformas que se abre com o impeachment, em 2016, a história se repete. Teto de gastos, lei das estatais, reforma trabalhista. Lula associando a reforma a um “tratamento do tempo da escravidão” para os trabalhadores, e a outra turma, que seria a mesma base dos governos Temer e Bolsonaro, mais quase todo o PSDB, falando em “desburocratizar” as relações de trabalho. Com Bolsonaro, o roteiro segue intacto. Reforma da previdência, marco do saneamento, privatização da Eletrobras, lei da liberdade econômica, autonomia do Banco Central. Talvez apenas no biênio 2003-2004 tenhamos cruzado alguma fronteira, quando se aprovaram coisas como aquela minirreforma da previdência e a criação das PPPs, com o apoio da então oposição. Mas foi uma exceção. Quando Palloci caiu, o trem voltou para os trilhos.


O que explica a existência dessas duas agendas? Arrisco uma resposta rápida: convicção. É óbvio que o contexto importa, que em um momento temos uma pandemia, em outro, um impeachment, e, ainda em outro, aquelas “denúncias” contra o presidente, no governo Temer. Há muita coisa, inclusive a sorte e o azar. Mas no fim do dia a constante é a convicção. Se quem lidera o país acha realmente que ter uma regra dura como a lei das estatais, tentando proteger nossas empresas do clientelismo político, é ou não importante; se quem lidera acha que é estratégico ter um BC independente, ou que é positivo abrir o mercado de saneamento para o setor privado. Por muito tempo, e com alguma razão, fomos adquirindo uma visão cínica da política — a ideia de que tudo se moveria a partir do pequeno jogo de poder. Coisas como a distribuição de emendas, os penduricalhos para a alta burocracia, o populismo de perdoar dívidas e conceder incentivos aqui e ali — tudo isso é parte da espuma, do feijão com arroz da política. Mas é só observar a trajetória das grandes reformas, daquilo que realmente fez a diferença, em nossa história recente, para perceber que era a convicção de quem tinha o comando do jogo que fez, ao cabo, toda a diferença.


Tempos atrás, alguém me disse que uma “esquerda moderna poderia ter apoiado toda esta série de reformas”, ao longo do tempo. De fato. Se tivéssemos um Tony Blair no Brasil, ou um Roger Douglas, o líder trabalhista que revolucionou a Nova Zelândia nos anos 80, liderando nossa esquerda, isso poderia ter acontecido. Mas a verdade é que não temos. Nem mesmo um Pepe Mujica, com coragem para denunciar uma ditadura que por aqui apoiamos, conseguimos produzir. Talvez Fernando Henrique tenha sido nosso mestre reformador. Aquele que vem da tradição da esquerda e entende, em um certo momento, que o mundo mudou e que é preciso modernizar o Estado, privatizar empresas, levar a sério a responsabilidade fiscal. É interessante comparar precisamente a linha de continuidade de seu programa de reformas com o que foi feito no Brasil recente. Ou alguém acha que existe alguma contradição entre o programa de reformas dos anos 90 e o que fizemos agora sobre o saneamento ou a independência do BC?

Convicção também vale para a democracia. Pela primeira vez, desde a transição dos anos 80, temos um problema em larga escala com as “regras do jogo”. Não precisamos de nenhuma investigação do Congresso americano para saber o que está acontecendo no nosso próprio quintal. Dias atrás observei um jornalista de “direita” sendo processado pela máquina jurídica do Poder Executivo, por ter “passado do limite” em suas críticas ao presidente. Como o “limite” era decidido pelo próprio poder político, me perguntei o que aconteceria se isto se tornasse uma regra. O que aconteceria se um eventual governo de “direita” resolvesse igualmente processar todos os jornalistas de “esquerda” que passassem do limite, também definido pelo próprio governo. Rapidamente, nos consagraríamos como a pátria do lawfare. Da intimidação jurídica típica de países autoritários.

Tudo isto já foi longe demais. Uma democracia liberal, para funcionar, exige que os direitos sejam iguais para todos. Pessoas que obstruem rodovias ou invadem prédios públicos devem ser julgadas, na forma da lei, tanto quanto autoridades que abusam do poder, punindo pessoas, praticando censura prévia, atropelando o devido processo, à revelia das leis e da Constituição. Esta é a condição mais elementar para que o debate franco e aberto, e por vezes duro e “fora do tom”, possa florescer em nossa democracia. O que precisamos, no fundo, é zerar o problema com as regras do jogo. É de normalidade institucional, para que o debate econômico e social volte ao centro do jogo. Algo que demanda convicção. A convicção da democracia liberal. Se é disso que se trata quando se faz um apelo à moderação, estou de pleno acordo. Se, no entanto, isto significa a transigência com a infração sistemática de direitos, penso que ingressamos em um caminho que ninguém deveria trilhar.


terça-feira, 1 de março de 2016

O lixo educacional brasileiro - Fernando Schuler

Tudo isso é sabido, eu mesmo já tinha lido esse tipo de lixo ideológico quando meus filhos frequentaram escolas brasileiras do "primário" e do "ensino médio"; foram livros que estiveram em nossas casas, com imenso desgosto em que essas mentiras e bobagens estivessem sendo servidas para filhos de famílias menos preparadas para enfrentar essa doutrinação estúpida. Nunca tive tempo, porém, para analisar e sobretudo para reagir ao lixo educacional. Graças ao Fernando Schuler temos agora uma ideia da natureza do lixo. Trata-se apenas de uma amostra. O conjunto é muito pior...
Paulo Roberto de Almeida

É ético usar a sala de aula pra "fazer a cabeça" dos nossos alunos?

A depender dos livros didáticos nacionais, os jovens terão uma visão rudimentar, de um mundo dividido entre capitalistas malvados versus heróis da resistência

FERNANDO SCHÜLER
Revista Época, 29/02/2016
 
As aulas voltaram, por essas semanas, e decidi tirar a limpo uma velha questão: há ou não doutrinação ideológica em nossos livros didáticos? Pra responder à pergunta, fui direto na fonte: analisei alguns dos livros de história e sociologia mais adotados no país. Pesquisei nas editoras, encontrei uma livraria que dispunha de todos os exemplares e pus mãos à obra. Já li muita coisa na vida, mas não foram fáceis as horas que passei tentando entender o que se dizia em todos aqueles livros. No fim, acho que entendi.
O resultado é o seguinte: dos dez livros que analisei, 100% tem um claro viés ideológico. Não encontrei, infelizmente, nenhum livro “pluralista” ou particularmente cuidadoso ao tratar de temas de natureza política ou econômica. Talvez livros assim existam, e gostaria muito de conhecê-los. Falo apenas dos que me chegaram às mãos. Tudo livro “manco”. E sempre para o mesmo lado.
Com um adendo: vale o mesmo para escolas públicas e privadas. Imagino não serem poucos os sujeitos que jantam à noite, com os amigos, e reclamam do viés “anticapitalista” da sociedade brasileira. Sem desconfiar que anticapitalista mesmo é o discurso que seu filho adolescente vai engolir na manhã seguinte, sem chance de reação, no colégio.
O viés politico surge no recorte dos fatos, na seleção das imagens, nas indicações de leitura, na recomendação de filmes e links culturais. A coisa toda opera à moda Star Wars: o lado negro da força é a “globalização neoliberal” e coisas afins; o lado bom é a “resistência” do Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e dos “movimentos sociais”, MST à frente. Tudo parece rudimentar demais para ser verdade. Mas está lá, nos livros em que nossos adolescentes estudarão.
No Brasil contemporâneo, chega a ser engraçado. FHC é Darth Wader; Lula é Luke Skywalker. Pra ser sincero, a saga de George Lucas me parece bem mais sofisticada do que o roteiro seguido pelos nossos livros didáticos. Em particular, quando tratam de nossa história recente.
No livro Estudos de História, da Editora FTD, por exemplo, nossos alunos adolescentes aprenderão o seguinte sobre o governo de Fernando Henrique: era neoliberal (apesar de “tentar negar”) e seguiu a cartilha de Collor de Melo; os “resultados dessas políticas foram desastrosos”. Na sua época, havia “denúncias de escândalos, subornos, favorecimentos e corrupção” por todos os lados, mas “pouca coisa se investigou”.
Nossos alunos saberão que “as privatizações produziram desemprego”, e que o país assistia, naqueles tempos, ao aumento da violência urbana e da concentração de renda e à “diminuição dos investimentos”. E que, de quebra, o MST pressionava pela reforma agrária, “sem sucesso”.
Na página seguinte, vem a luz. Ilustrado com o decalco vermelho da campanha “Lula Rede Brasil Popular”, o texto ensina que, em 2002, “pela primeira vez” na história brasileira, alguém que “não era da elite” é eleito presidente. E que, graças à “política social do governo Lula”, 20 milhões de pessoas saíram da miséria. Isso tudo faz a economia crescer e, como resultado: “telefones celulares, eletrodomésticos sofisticados e computadores passaram a fazer parte do cotidiano de milhões de pessoas, que antes estavam à margem desse perfil de consumo”.
Lendo isto, me perguntei se João Santana, o marqueteiro do PT, por ora preso em Curitiba, escreveria coisa melhor, caso decidisse publicar um livro didático. E fui em frente.
Na leitura seguinte, do livro História Geral e do Brasil, da Editora Spicione, o quadro era o mesmo. O PSDB é um partido “supostamente ético e ideológico” e os anos de Fernando Henrique são o cão da peste. Foram tempos de desemprego crescente, de “compromissos com as finanças internacionais”, em que “o crime organizado expandiu-se em torno do tráfico de drogas, convertendo-se em verdadeiro poder paralelo nas favelas”. E mesmo “dentro das prisões”, transformadas em “centros de gerenciamento do tráfico e do crime organizado”, acrescentam os autores.
Com o Governo Lula, tudo muda, ainda que com alguns senões. Numa curiosa aula de economia, os autores tentam explicar por que a “expansão econômica” foi “limitada”, naqueles anos: a adoção de uma “politica amigável aos interesses estrangeiros, simbolizada pela liberdade ao capital especulativo”; pela “manutenção, até 2005, dos acordos com o FMI” e dos “pagamentos da dívida externa”.
O livro termina apresentando a tensão entre o Brasil “pessimista”, dos anos FH, com os anos “otimistas” do lulismo, e conclui com um prognóstico: “as boas notícias nos últimos anos indicavam que talvez os anos do pessimismo a toda prova já tenham passado e, nesse caso, pode ser o momento do não negativo como um novo paradigma para o Brasil”.
O livro História conecte, da Editora Saraiva, segue o mesmo roteiro. O governo FHC é “neoliberal”. Privatizou “a maioria das empresas estatais” e os U$ 30 bilhões arrecadados “não foram investidos em saúde e educação, mas em lucros aos investidores e especuladores, com altas taxas de juros”. A frase mais curiosa vem no final: em seu segundo mandato, FH não fez “nenhuma reforma”, nem tomou “nenhuma medida importante”. Imaginei o presidente deitado em uma rede, no quarto andar do Palácio do Planalto, enquanto o país aprovava a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), o fator previdenciário (1999) ou o bolsa escola (2001).
FHC manteve o país “alinhado” e “basicamente dependente dos EUA”, enquanto Lula aumentou as relações diplomáticas e comerciais com a “União Europeia e vários países africanos, asiáticos e sul-americanos”. FH havia beneficiado os especuladores; Lula beneficiou os “trabalhadores” e as “camadas mais pobres”. De quebra, “apoiou as indústrias de exportação” e “incentivou muitas empresas a se internacionalizarem”. Lendo isso, tive ganas de sair pelas ruas, com uma bandeira vermelha. Mas me contive.
O padrão “João Santana” se repete no livro História para o ensino médio, da Atual Editora. É curioso o tratamento dado ao caso do “mensalão”.  Alguma menção ao julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal? Não. Nossos alunos saberão apenas que houve “denúncias de corrupção” contra o governo Lula, incluindo-se um caso conhecido como mensalão, “amplamente explorado pela imprensa liberal de oposição ao petismo”.

No livro da Atual Editora, é interessante perceber o tratamento dado à América Latina. A tensão política surge, como de regra, a partir da clivagem “contra ou a favor do neoliberalismo”. Nossos alunos serão instruídos sobre a resistência oferecida “à globalização capitalista neoliberal” pelo Fórum Social Mundial, de Porto Alegre, e poderão saborear, sob o rótulo de “fonte histórica”, um trecho do “manifesto de Porto Alegre”. 
Sobre o Mercosul, nossos alunos aprenderão que o Paraguai foi excluído do bloco em 2012, em função do “golpe de Estado” que tirou do poder o presidente Fernando Lugo. Saberão que, com a eleição de Hugo Chávez, a Venezuela torna-se o “centro de contestação à política de globalização capitalista liderada pelos Estados Unidos”. Que “a classe média e as elites conservadoras” não aceitaram as transformações produzidas pelo chavismo, mas que, mesmo assim, o comandante “conseguiu se consolidar”. Sobre a situação econômica da Venezuela, alguma informação? Alguma opinião crítica para dar uma equilibrada no jogo e permitir que os alunos formem uma opinião? Nada, por óbvio.
Interessante é o tratamento dado às ditaduras na América Latina. Para os casos da Argentina, Uruguai e Chile, um capítulo (merecido) mostrando, no detalhe, os horrores do autoritarismo e seus heróis: extratos de As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano; as mães da Praça de Maio, na Argentina; o músico Victor Jara, executado pelo regime de Pinochet, e uma sequência de indicações de filmes sobre a “resistência” e a luta pelos direitos humanos, no continente. Tudo perfeito.
Quando, porém, se trata de Cuba, a algumas páginas de distância, a conversa é inteiramente diferente. A única ditadura que aparece é a de Fulgêncio Batista. Em vez de filmes como Antes do anoitecer, sobre a repressão cubana ao escritor e homossexual Reynaldo Arenas, nossos estudantes são orientados a assistir Diários de motocicleta, Che, e Personal Che.
Não deixa de ser engraçado. Quando fala da Argentina, o livro sugere uma “Visita ao patrimônio” no “Parque da Memória”, uma (justa) homenagem às vitimas do terrorismo de Estado, em Buenos Aires. Quando trata de Cuba, a “visita ao patrimônio” sugerida pelos nossos isentos autores é ao “Museu da Revolução”, com especial recomendação para observar o “pequeno iate” em que Fidel e Che aportaram para a gloriosa revolução. E, imperdível: uma salinha, o  rincón de los cretinos, feita para ridicularizar tipos como Batista, Reagan e Bush.
As restrições do castrismo à “liberdade de pensamento” surgem como “contradições” da revolução. Alguma palavra sobre os balseros cubanos? São milhares, neste mais de meio século. Alguma fotografia, sugestão de filme ou “link cultural”? Alguma coisa sobre o paredón cubano? Há fotos muito boas sobre estes temas, mas nenhuma aparece em livro nenhum.
Alguma coisa sobre Oswaldo Payá, Orlando Zapata, Yoani Sánchez e a luta pelos direitos humanos na Ilha? Alguma coisa sobre as “Damas de Blanco”? Zero. Nossos estudantes não saberão nada sobre isto. Não terão essa informação para que possam produzir seu próprio juízo. É precisamente isso que se chama ideologização.
A doutrinação torna-se ainda mais aguda quando passamos dos livros de história para os manuais de sociologia. Em plena era das sociedades de rede, da revolução maker, da explosão dos coworkings e da economia colaborativa, nossos jovens aprendem uma rudimentar visão binária de mundo, feita de capitalistas malvados x heróis da “resistência”. Em vez de encarar de frente o século XXI e suas incríveis perspectivas, são conduzidos de volta a Manchester do século XIX.
Não acho que superar esse problema seja uma tarefa trivial. A leitura desses livros me fez perceber que há um “mercado” de produtores em série de livros didáticos muito bem estabelecido no país, agindo sob a inércia de nossas editoras e a passividade de pais, professores, diretores de escolas e autoridades de educação. Pessoas comprometidas com uma visão política de mundo e dispostas a subordinar o ensino das ciências humanas a essa visão. Sob o argumento malandro de que “tudo é ideologia”, elas prejudicam o desenvolvimento do espírito crítico de nossos alunos. E com isso fazem muito mal à educação brasileira.

Fernando L. Schüler é Doutor em Filosofia (UFRGS) e Professor do Insper. É titular da Cátedra Insper Palavra Aberta e curador do Projeto Fronteiras do Pensamento.
Siga no Twitter: @fernandoschuler
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