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domingo, 18 de agosto de 2024

A raposa, o porco-espinho e Delfim Netto - Adolpho Bergamini (Veja)

 A raposa, o porco-espinho e Delfim Netto

Delfim Netto foi capaz de uma proeza ímpar, combinar dois perfis distintos em uma só personalidade, era ao mesmo tempo raposa e porco-espinho

 

Por Adolpho Bergamini

 

Conta a história que Isaiah Berlin, professor de Oxford, ficou intrigado ao deparar com um verso do poeta grego antigo Arquíloco de Paros, que dizia apenas “a raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe uma só, mas muito importante”. Não havia mais nada escrito. Ou Arquíloco parou aí, ou o resto de seu texto se perdeu. Mas Berlin mergulhou no tema e o abordou no livro Estudos sobre a Humanidade. Lá explica que porcos-espinhos relacionam tudo a um ponto de vista central, enquanto as raposas perseguem muitos objetivos, algumas vezes desconexos a princípio, mas sempre ligados a uma finalidade maior.

A teoria foi testada por Philip Tetlock, que reuniu pessoas “normais”, sem qualificações técnicas ou profissionais específicas ou pré-determinadas, para saber se haveria algum grupo ou população capaz de antever o que está por trás das incertezas do futuro. Suas conclusões estão em A arte e a ciência de antecipar o futuro e, segundo ele, o “perfil raposa” de pessoas teve mais acertos e algumas razões foram determinantes para isso. Em geral, elas se cercaram do maior número possível de informações e de variadas naturezas. Esse grupo tinha natural propensão a críticas, aceitando-as relativamente bem, e a princípio desconfiava dos temas colocados em debate. Já o “perfil porco-espinho” era formado por indivíduos capazes de formular complexas deduções, muito certos de suas conclusões e menos amigáveis a críticas. Demonstravam impaciência àqueles que não compreendiam suas razões e eram escravos de seus pressupostos.

Mas Antônio Delfim Netto, o influente economista, professor e político morto recentemente, foi capaz de uma proeza ímpar, a de ser raposa e porco-espinho. Como toda personalidade de projeção, angariou um sem número de admiradores e críticos. Há quem o ame, seja por ter sido o superministro do tempo da ditadura militar, mentor do chamado milagre brasileiro, ou por ter aconselhado informalmente os presidentes Temer e Bolsonaro, enquanto outros o odeiam justamente por essas razões. Há quem o respeite por ter sido próximo dos governos Lula e Dilma, mas também existem os desgostosos que viram com maus olhos essa aproximação. Não trarei reflexões de viés ideológico, apenas comentários aos seus pensamentos a respeito da tributação e do gasto público.

Em uma entrevista concedida ao site Consultor Jurídico em maio de 2008, Delfim Netto resumiu o seu pensamento a respeito do sistema tributário nacional. Disse que nossa Constituição Federal é o resultado do sonho de pessoas que não sabem aritmética, que estabeleceram demasiados direitos sem explicar de onde viriam as receitas para bancá-los. Disse, há mais de 15 anos, que não existe sistema tributário perfeito, sim o sistema conveniente, mas o nosso é inconveniente por ser complexo e regressivo. Foi enfático ao afirmar que não haverá redução de carga tributária enquanto não houver redução das despesas do governo, que gasta muito e mal, e que devolve serviços de má qualidade.

Em julho de 2020 foi a vez da VEJA trazer falas de Delfim Netto. Deixou claro que as pressões que estavam sendo feitas sobre o teto de gastos, aprovado no governo Temer, eram graves e ameaçavam a estabilidade. Também criticou o fato de a reforma tributária vir antes da reforma administrativa. Nas entrelinhas de sua fala reside uma obviedade ululante: os gastos públicos não podem ser ilimitados, não podem ser maiores do que as receitas e, por isso, devem ser debatidos antes de suas fontes de financiamentos – os impostos.

O tom foi o mesmo na entrevista concedida à revista Conjuntura Econômica, publicada pela FGV/Ibre em novembro de 2020. Lá já havia cravado que os Projetos de Emendas Constitucionais n. 45 e 110, hoje aprovados na forma da Emenda Constitucional n. 132, tinham problemas, principalmente pela falta de uma estrutura coerente, que pudesse lançar olhos aos tributos sobre consumo, renda e patrimônio, e construir um sistema tributário coeso. Tratar apenas dos encargos sobre consumo é, como ele disse, construir “telhado sem saber qual vai ser o andaime para suportar esse telhado”. Voltou a criticar os gastos públicos, muito maiores do que o país pode suportar.

O pensamento de Delfim Netto abordou agruras que nunca deixaram de existir e sempre tiraram o sono dos mais diversos governos, ditatoriais ou democráticos, de direita ou de esquerda. Muito por isso, vem influenciando o país desde a década de 1960. Mas hoje é mais atual do que nunca, porque os tributos pagos e suportados pelos contribuintes em 2024 ainda servem ao financiamento de uma máquina pública ineficiente, que continua gastando muito e alocando mal seus recursos, tal como 60 anos atrás.

O estudo Carga tributária e ineficiência no setor público, publicado em 2022 na revista Economia Aplicada, conduzido por economistas da USP, indicou que a máquina pública brasileira é ineficiente e simulou cenários de redução da carga tributária e dos níveis de ineficiência, isoladas e conjuntamente, para determinar o quanto haveria de ganho em bem-estar em cada cenário. Tiraram algumas conclusões, mas duas chamam mais a atenção. Primeiro, que a implementação isolada de medidas para redução de ineficiência do gasto público, por si só, sem aumento de tributos, já implicaria ganhos expressivos ao bem-estar geral. Segundo, que a redução da carga tributária só se sustenta mediante a redução da ineficiência.

Mais do que uma avaliação de economistas, é a sensação geral da população, que está insatisfeita em relação aos tributos que paga e os serviços que recebe. De acordo com o Retratos da Sociedade Brasileira, pesquisa divulgada pela Confederação Nacional das Indústrias em julho deste ano, para 77% dos entrevistados o peso fiscal atual já é alto demais e não pode ser aumentado; para 76%, os gastos do governo deveriam entregar serviços públicos melhores. Os campeões de desaprovação são os serviços de saúde, educação e estradas e rodovias, rejeitados por 78%, 77% e 76% dos entrevistados, respectivamente.

Mas as políticas públicas vão em sentido contrário. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, demonstra uma energia sem limites para implementar medidas que visam a supressão de benefícios tributários, restrição ao uso de créditos fiscais e outras ações para aumentar a arrecadação. Não é diferente quando a projeção está no médio e longo prazo, porque o governo movimenta recursos e influência para aprovar uma reforma tributária que, sem dúvida alguma, irá aumentar muito os tributos cobrados no país, tornar o sistema tributário ainda mais regressivo e, possivelmente, alimentar a escalada dos preços de bens e serviços. O resultado pode ser a diminuição do poder aquisitivo da população e o arrefecimento da economia nacional.

Temos, portanto, um cenário de aumento de tributos que vem na esteira da explosão das contas públicas. Ou seja, tudo o que criticava Delfim Netto. 

As figuras da raposa e do porco-espinho cabem em muitas situações. Por exemplo, o rei Xerxes, da Pérsia, queria vingar a humilhação que seu pai, o rei Dário, experimentou na mão dos gregos. O objetivo de sua vida era invadir a Grécia e, quiçá, a Europa. Mas, antes da empreitada consultou Artabano, seu conselheiro, que de imediato o alertou sobre os riscos da campanha militar. Os inimigos não seriam apenas os gregos, mas também o clima severo naquela época do ano, os milhares de soldados de seu exército, que deveriam ser alimentados durante a longa marcha, além de outros fatores, como a falta de portos para atracar os barcos em caso de tormentas inesperadas. Xerxes não deu ouvidos e foi adiante, Artabano voltou para administrar o reino. Xerxes era porco-espinho, que sabia uma coisa muito bem – guerrear – mas esse conhecimento não foi suficiente para salvar seus homens da fome, resgatar suas embarcações ou ajudá-lo em sua fuga desesperada à Pérsia. Artabano era raposa, sabia muitas coisas, ouvia conselhos de seus pares e tinha a capacidade de fazer ponderações a respeito das coisas a sua volta. Não tinha a audácia de um grande guerreiro para liderar exércitos e conquistar novos territórios, mas conseguiu manter de pé um reino que estava sem o seu rei.

Delfim Netto era a soma de Xerxes e Artabano. Foi um homem culto, exímio observador dos fatos ao seu redor, economista requisitado por todos e cujos conhecimentos foram divididos com governantes das mais variadas estirpes. Conhecia bem a psiquê humana, sabia se relacionar e, ele mesmo brincava, foi “exilado” em Paris regado a champanhe e caviar. Mas também era impetuoso, de opiniões fortes, e se lançava em disputas sem temer adversários.

Muitos lamentam o seu falecimento, outros não. Mas o que fica é que um homem memorável descansou, talvez o último que se importasse tanto com a redução dos gastos públicos e dos tributos que penalizam os brasileiros. Se não houver um candidato para ocupar seu lugar, torçamos para que a engenharia genética nos dê um novo híbrido de raposa e porco-espinho.