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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sábado, 17 de agosto de 2024

O país rendido - Fernando Schüler (Veja)

O país rendido

Fernando Schüler, Veja (17/08/2024)

"O ministro cismou com isso aí”, diz um juiz, em Brasília. “Isso aí” é  um cidadão brasileiro. Crítico duro do “sistema”, do próprio ministro, na balbúrdia digital. Como o ministro está “sem sessão”, continua o  auxiliar, ele está com tempo para ficar “procurando”. O grand finale vem do próprio ministro: “Peça para o Eduardo analisar as mensagens (do tal “cidadão crítico”) para vermos se dá para bloquear e prever multa”. Para resumir: primeiro  escolhe o alvo político. Depois vai pesquisando na internet para  produzir o “laudo”. Isto é, a justificativa de que a autoridade precisa  para fazer o que quer fazer. Isto é, censurar, bloquear e tudo que  sabemos. Em outro momento, o foco é uma revista. “Vamos levantar todas  essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes”, diz a autoridade.  O juiz responde que havia encontrado apenas matérias jornalísticas e  pergunta o que deveria colocar lá. “Use sua criatividade”, responde o  chefe, seguido de algumas risadas.

As mensagens reveladas por  Glenn Greenwald e Fabio Serapião, na série de reportagens publicadas  esta semana, são um striptease das instituições brasileiras. É evidente  que há muito o que vir à tona, há o necessário contraditório e há a  investigação minuciosa disso, que deve ser feita. Mas o que já veio à  tona é para lá de preocupante. Imaginem uma autoridade de Estado, em  Brasília, literalmente pedindo para “disfarçar” o nome de um tribunal, e  do próprio ministro, em documentos oficiais. Para não ficar “chato”, ou  muito “descarado”. A autoridade pedindo para “ajustar” um documento  oficial (haveria outro nome para isso?), dizendo: “Onde se lê o nome de  um tribunal (que realmente fez o pedido), ponha o nome de outro  tribunal”. Pois é. Não há muito o que dizer sobre tudo isso. Os fatos  falam tão alto que qualquer comentário soa um pouco irrelevante. O modus operandi é claro. Define-se o foco político e logo se demanda da assessoria que  se produzam as “provas”. Como definiu um jurista bem-humorado, “atira a  flecha e depois pinta o alvo”. Punições ad hoc, sem devido  processo, sem provocação, sem contraditório. E, nesse caso, feitas por  um tribunal eleitoral fora do período eleitoral. É isso. Nós nos  transformamos na única democracia do planeta onde os direitos  individuais mais elementares de um cidadão flutuam à mercê da  subjetividade de uma autoridade de Estado. Autoridade que fica “braba”.  Que “cisma” com este ou aquele. E a partir daí “é uma tragédia”, como  escutamos em um dos áudios.

Tragédia, sim. Mas para quem vai em  cana sem nem saber por quê. Quem é banido das redes “de ofício”. Quem  tem as contas bloqueadas por um papo furado no WhatsApp. Quem morre num  presídio de Brasília, sem eira nem beira, porque ninguém despachou o  processo. Uma tragédia, de fato. E quem sabe merecida. Minha intuição é  que nos transformamos exatamente no país que desejamos ser.

Boa  parte do Brasil deseja que as coisas sejam assim. Deseja que tenhamos  uma “democracia de tutela”. Com a condição de que o grande xerife mande  fazer laudo só para o “outro lado”. Enquanto for assim, tudo estará bem  para boa parte da imprensa, da academia, das “instituições” e do mundo  político. O amor à “abstração da regra”, vamos convir, nunca foi  especialidade brasileira. Não passa de autoilusão imaginar que nosso  vezo patrimonialista só funciona nas relações entre o Estado e o mundo  dos interesses materiais. Ele está lá, inteirinho, no modo como lidamos  com o universo dos direitos. No servilismo do auxiliar da autoridade que  pergunta: “O que eu devo escrever nesse dossiê?”. Na autoridade que  diz: “Muda aí o nome do tribunal”. Que alerta que o “doutor” está com  pressa, quer a “prova” logo, porque quer fazer o que já decidiu fazer.  Tudo sob uma certa ficção em torno da legalidade autorreferente,  ajustada aos imperativos do “contexto”.

Ainda na outra semana tivemos notícia da soltura do Filipe Martins.  A prisão cujas razões formalmente apresentadas nunca existiram. Do  sujeito que de fato nunca tentou fugir, nunca saiu do país, e que mesmo  assim ficou lá, em uma prisão no Paraná, durante seis meses. Alguém  preocupado? Alguém vai responder por isso? Ou há muito já entendemos o  jogo? Cá entre nós, é o mesmo caso daquela “senhora que pintou uma  estátua com batom”, na ótima definição do ex-ministro Nelson Jobim esta  semana. A Débora Santos, que de fato pintou uma frase irônica naquela  estátua da Justiça, na frente do STF, e está em cana há catorze meses, com os dois filhos pequenos por aí, à espera de um dia terem a mãe de volta, em casa.

Jobim  é um raro exemplo de intelectual brasileiro que distingue o mundo da  política, com suas paixões, e o mundo dos direitos, pautado pela lei e  sua impessoalidade. A distinção republicana, por excelência. Esta semana  ele definiu o 8 de Janeiro de maneira precisa: não uma “tentativa de  golpe”, mas a “catarse pela frustração com a não obtenção de uma  intervenção militar”. No transe brasileiro, nada disso importa. Há uma  narrativa política, há alguém que detém o poder e há suporte na  sociedade. A partir daí, ajusta-se o universo dos direitos. Um pouco  como se aprende nas revelações da semana. Ajustam-se os laudos, os  documentos, as razões para justificar um delito. E sua própria  tipificação. Tudo se move, no calor da política. E a “abstração da  regra” soa não muito mais do que o resmungo de quem perdeu. Simplesmente  perdeu. Quando observo essas coisas, me vem à lembrança a antiga  provocação de Roberto Schwarz sobre as “ideias fora do lugar”, em nossa  tradição. Sua referência é tão distante quanto o século XIX.  A “disparidade entre a sociedade escravocrata e as ideias do liberalismo  europeu”. Mas me soa tremendamente atual. A estranheza de uma elite que  enche a boca para falar em democracia, mas aplaude o “deixa que eu dou  um jeito” para arrumar provas e fazer o que a Autoridade deseja fazer.  Que fala em “garantismo”, mas com a boca torta pelo uso do cachimbo. Em  um mundo em que a retórica e sua negação, no universo da democracia  liberal, convivem sem problema.

Talvez por isso minha referência sempre será Eleanor Norton, a  advogada negra que em um dia qualquer de 1969, diante da Suprema Corte  americana, defendeu os direitos de Clarence Brandenburg, um abjeto líder  da KKK. E o fez por entender algo bastante simples: que os direitos  dele eram ao mesmo tempo os nossos direitos. Ela o fez em nome de um  princípio. Em nome da Constituição. Algo que a “obrigava por vezes a  defender pessoas que não me defenderiam”. Essa história sempre me tocou.  E digo que sobre isso não alimento lá grandes expectativas no Brasil de  hoje. Vejo que já fomos contaminados pelo vírus do ódio e da paixão  política, em um país no qual nunca prosperou, de fato, uma tradição  liberal-democrática. E por isso a relativização do direito. O truque.  O ministro nervoso, o e-mail inventado, o laudo feito sob medida.  O abuso, enfim. Tudo que faz tanta gente boa sinceramente desejar ir  embora, simplesmente. Largar de mão esta república que parece não ter  mais jeito.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Juízes e desembargadores abusam dos bolsos dos pobres - Carlos Alberto Sardenberg

 

Gente escabrosa!

Gesto nobre, realidade nem tanto

Carlos Alberto Sardenberg

O Globo, 03/02/2024

Todo mundo que fez algum acordo de leniência no tempo em que se combatia a corrupção está animado

Foi bonita a festa de abertura do ano judiciário, na última quinta-feira. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, arregaçou as mangas e retirou as grades que bloqueavam a entrada do prédio da Corte. Significado importante: está afastada ameaça de golpe.

Mas, procurando na imprensa e nas redes sociais, verifica-se que a notícia amplamente dominante é outra. Trata-se decisão do ministro Dias Toffoli de suspender o pagamento da multa de R$ 3,8 bilhões com que a ex-Odebrecht, hoje Novonor, se comprometeu no acordo de leniência de 2016. Toffoli anunciou sua decisão no mesmo dia 1º de fevereiro e ganhou primeira página em todos os noticiários. No ano passado, ele suspendera a multa da J&F, de R$ 10 bilhões.

A Odebrecht estava na Lava-Jato. A J&F, não. Era outro processo. Logo, todo mundo que fez algum acordo de leniência, no tempo em que se combatia a corrupção, está animado. Tem gente se preparando para pedir de volta o dinheiro já devolvido à Justiça em razão de confissões variadas de corrupção.

Não se trata, portanto, de caso isolado. Trata-se do desmonte total do sistema de combate à corrupção. Não se abrem casos novos, e se dá um jeito de cancelar os antigos.

Também não se trata de caso isolado o pagamento de vencimentos milionários a juízes e magistrados. O teto salarial do funcionalismo é o vencimento dos ministros do STF, R$ 44 mil a partir deste mês. Teto furado. Procurem nos 92 tribunais do país, e se encontram pagamentos de mais de R$ 1 milhão a juízes e desembargadores. Vencimentos acima de R$ 100 mil são frequentes.

Como conseguem? Auxílios diversos, férias vencidas, vantagens pagas retroativamente — sempre conforme decisão dos próprios juízes.

Em janeiro último, o Tribunal de Contas do Estado do Rio informou que o conselheiro Domingos Brazão tinha direito a 365 dias de férias por não ter usufruído o benefício entre os anos de 2017 e 2022. Só por aí, já seria o caso de estranhar: se são seis anos sem tirar férias, deveriam ter sobrado seis meses de férias. Mas eles têm dois meses por ano. Logo 12 meses de férias, mais o terço, que podem ser recebidos em dinheiro. Algo perto do R$ 850 mil, sem correção.

Dir-se-ia: trabalhou seis anos sem tirar férias, merece.

Ocorre que o conselheiro estava afastado de suas funções enquanto era alvo de investigações por suspeita de fraude e corrupção. Não trabalhou, pois. Mas recebeu seus vencimentos, na totalidade e em dia. É isso que o senhor e a senhora estão pensando: ficou seis anos recebendo sem trabalhar, recebendo, e agora ganhou direito a férias atrasadas.

É a simples aplicação de regras praticadas das mais variadas maneiras. Outro pequeno exemplo: o Tribunal de Contas da União suspendeu o pagamento retroativo do adicional por tempo de serviço, benefício que havia sido extinto em 2006 e volta agora. Pois, em dezembro passado, Toffoli derrubou a decisão do TCU, estendendo o benefício a juízes federais. Custo: R$ 1 bilhão. Os juízes mais antigos poderão receber até R$ 2 milhões.

Não fica só no dinheiro. A mulher de Dias Toffoli, a advogada Roberta Maria Rangel, é contratada pela J&F, a mesma empresa beneficiada por seu marido. Sim, ela não trabalha no caso em questão, mas isso elimina a suspeição?

De todo modo, está dentro da norma fixada pelo próprio STF. No ano passado, a Corte, por 7 a 4, flexibilizou as regras de impedimento e permitiu que magistrados julguem casos em que as partes sejam clientes de escritórios de cônjuges e parentes. São seis ministros nessa condição.

E as mordomias público-privadas. Mais um pequeno exemplo: a Associação Cearense de Magistrados promoveu uma baita festa de Natal. Com patrocínio e apoio de empresas privadas que têm processos no Tribunal de Justiça do estado. O presidente da associação, José Hercy Ponte de Alencar, não viu nada errado. E defendeu a categoria, porque “os magistrados estão no seu limite, dando seu suor, sangue e trabalho para a população”.

Não é em todo o Judiciário, mas em alguma parte há um processo de desmoralização.