Paulo Roberto de Almeida
A globalização e o direito comercial: uma longa evolução, por Paulo Roberto de Almeida
O
direito comercial, em seu sentido estrito, é bem mais recente do que as
formas mais primitivas de comércio entre as comunidades humanas:
codificado de modo sistemático, tal como a conhecemos atualmente, ele
pode ser considerado como historicamente contemporâneo da era das
grandes navegações, quando, pela primeira vez na história da humanidade,
o planeta se tornou efetivamente global, a partir da gesta colombina,
em 1492, e do périplo marítimo de Fernão de Magalhães, em 1521. Desde
então, ele vem conhecendo progressos formais e substantivos,
impulsionando, no plano do rule-making, as diversas ondas de
prosperidade que tanto beneficiaram as sociedades da era moderna e
contemporânea nos últimos cinco séculos.
Na sua expressão mais antiga, porém, ele
pode ser visto como praticamente simultâneo aos primeiros
estabelecimentos estáveis de ocupação humana em um determinado
território, aqueles dotados de instituições estatais permanentes e,
portanto, de regras formais para administrar as relações entre as
pessoas e seus ativos materiais. A despeito do fato de que linhas
regulares de comércio já existiam nas primeiras comunidades humanas de
tipo urbano, desde o oitavo milênio antes de Cristo – com destaque para
Çatal Hoyuk, na atual Turquia – a modalidade original de uma lex mercatoria
primitiva está presente numa das 282 leis do Código de Hamurabi,
conhecido por existir no primeiro estado “moderno” no começo do segundo
milênio a.C., na Babilônia. Com efeito, diversos dispositivos desse
código regulavam aspectos privados e públicos da atividade humana, entre
eles comércio, finanças e propriedade, influenciando, mais tarde, a
redação do direito romano e suas derivações regionais nas mais diversas
comunidades desse vasto império da antiguidade clássica.
A presença do Estado, como regulador das
relações entre agentes econômicos, ou a própria iniciativa dos agentes,
entre si, se fazia presente numa das “leis” desse Código, especialmente a
que determinava as obrigações recíprocas entre as partes numa transação
qualquer. Essa lex mercatoria da Mesopotâmia dizia o seguinte:
“Se o mercador conceder, a um agente, milho, lã, óleo, ou qualquer
outro tipo de bem com o qual comerciar, o agente deve registrar o valor
[da mercadoria] e retornar [o dinheiro] ao mercador; o agente deve tomar
um recibo selado pelo [valor do] dinheiro que ele conceder ao
mercador”.[1]
Como se vê, não apenas o direito comercial deita raízes nos exemplos
mais precoces de intercâmbio comercial, mas o próprio intervencionismo
estatal é bem mais antigo do que se imagina, com base nas formas
modernas de mercantilismo e de ativismo econômico estatal, a partir da
consolidação da forma atual do Estado centralizado, nas monarquias
absolutas da Europa pós-medieval.
Foi justamente nessa fase de unificação
comercial do mundo por meio das grandes navegações ultramarinas e no
alvorecer do mercantilismo enquanto doutrina oficial de vários estados
engajados na expansão imperial que uma espécie de lex mercatoria
universal começa a tomar forma, em padrões relativamente similares aos
atualmente conhecidos. Ela nem sempre foi escrita, sendo bem mais
“codificada” informalmente numa série de práticas reciprocamente aceitas
por mercadores nos mais diversos portos do mundo. Menos de duas décadas
depois que Vasco da Gama abriu o caminho das Índias aos comerciantes
portugueses – e, de fato, a todos os demais concorrentes europeus – um
farmacêutico português convertido em negociante e diplomata informa,
chamado Tomé Pires, deixou, em sua Suma Oriental (1512), uma
descrição saborosa do porto de Malaca, no estreito que leva do Índico ao
Pacífico, uma aglomeração de 40 a 50 mil pessoas, mas dividida em 61
“nações” representadas em seu comércio de transbordo e em cujo porto se
faziam negócios em 84 línguas, do Golfo Pérsico ao conjunto da Ásia. Ele
expressava sua admiração pelo exuberante comércio e os altos lucros
produzidos pelo intenso intercâmbio de mercadorias entre essas diversas
partes do mundo, traduzindo empiricamente o que pode ser considerado
como o início do direito comercial dos tempos modernos:
Malaca é uma cidade que foi feita para
mercadorias, bem mais do que qualquer outra no mundo; [é] o fim das
monções e o começo de outras [os ventos e as correntes marítimas que
aceleravam a navegação entre o Mar Vermelho e as costas da Índia].
Malaca está cercada e se situa no meio, e as trocas e o comércio entre
as diferentes nações situadas a um milhar de léguas em todas as direções
precisam se dirigir a Malaca… Quem for senhor de Malaca, tem a sua mão
na garganta de Veneza.[2]
Desde então, o direito comercial
abandonou suas formas mais espontâneas, tal como existentes na península
itálica da Idade Média tardia, e passou a ser codificado num conjunto
de regras e princípios que unem, de modo praticamente natural, uma das
mais antigas comunidades globalizadas da civilização humana: a dos
comerciantes, que constituem, segundo Nayan Chanda, junto com os
pregadores, os guerreiros e os aventureiros, os agentes primários mais
constantes da globalização.
De fato, pode-se identificar antecedentes
do direito comercial em tempos recuados, entre os fenícios, por
exemplo, depois com os romanos e os comerciantes do Báltico, na alta
Idade Média, como os legítimos predecessores dos progressos que seriam
observados a partir dos tempos modernos, sempre vinculados ao comércio
marítimo e às navegações de caráter exploratório e de penetração
comercial. A partir de seus passos iniciais nas cidades florescentes da
Europa medieval, ele terá intenso desenvolvimento nos séculos seguintes,
sempre assumindo um caráter transnacional, o que o torna, efetivamente,
um dos pilares da primeira onda de globalização, a que toma impulso na
era moderna, antes mesmo da revolução industrial. Ocorreu, é verdade,
uma distinção entre a sua aplicação pela common law, de tradição britânica, e sua regulação estatal pelas Ordonnances sur le commerce de terre (e de mer),
na época de Luís XIV, como consagra a tradição dirigista continental,
mais especificamente francesa. Depois dessa legislação da época
absolutista, a França napoleônica promulgou, em 1807, seu Código
Comercial, base de inúmeros outros instrumentos em diversos países.
O Brasil não ficou imune a esse
movimento, mas foi preciso aguardar quase meio século para que fosse
aprovado o primeiro Código Comercial, em 1850. Essa importação do modelo
francês de regulação mercantil não se fez sem certo prejuízo do
comércio e das atividades econômicas em geral, já que internalizou
igualmente o padrão dirigista e intervencionista do Estado sobre
atividades eminentemente privadas. De fato, como indica um historiador
do caso francês, o Code atribui preeminência às sociedades
pessoais: “La société anonyme, qui est une association de capitaux, est
regardée avec méfiance et doit être autorisée par l´État comme un cas
d’exception. Ce régime restrictif entrave la création des grandes
compagnies”.[3]
É verdade que os legisladores brasileiros
aproveitaram não só elementos do código francês, mas também dos códigos
espanhol (1829) e português (1833) para elaborar um instrumento
próprio, mas esse processo não foi linear, pois que durante certo tempo
ainda continuaram a vigorar no Brasil a legislação herdada do período
português, no qual vigiam, em matéria comercial, as Ordenações
Filipinas, ou ainda a Lei da Boa Razão, de 1769, em virtude da qual eram
subsidiárias, nas questões mercantis, as normas legais “das nações
cristãs iluminadas e polidas que com elas estavam resplandecendo na boa,
depurada e sã jurisprudência”.[4]
Instalada em 1832 uma comissão de
“pessoas probas e inteligentes” em matéria de comércio, concluiu-se dois
anos depois um projeto elaborado sob a inspiração de que “um código de
comércio deve ser redigido sobre os princípios adotados por todas as
nações comerciantes, em harmonia com os usos e estilos mercantis, que
reúnem debaixo de uma só bandeira os povos do novo e do velho mundo”.[5]
Após longos debates parlamentares e uma tramitação delongada nas duas
Câmaras, foi finalmente promulgada, em junho de 1850, a lei nº 556, Código Comercial do Império do Brasil,
com 913 artigos divididos em três partes: do comércio em geral, do
comércio marítimo e das quebras (isto é, das falências); completava-o um
título sobre os tribunais de comércio e sobre a ordem do juízo nas
causas comerciais. Ele não fazia em princípio discriminação contra os
não nacionais, colocando obviamente sob sua jurisdição todos os atos de
comércio praticados por estrangeiros residentes no Brasil. O Código não
reconhecia, porém, o ato de comércio isolado, exigindo, como condição de
comercialidade, a intervenção de pelo menos um comerciante, ou seja um
agente de profissão mercantil. A condição de comerciante estava pois
reservada, além das sociedades mercantis ou por ações, à pessoa física
exercendo profissionalmente o comércio, sem distinção de nacionalidade.
A partir do Código de 1850, qualquer
estrangeiro capaz, residente no Brasil, podia legalmente ser
comerciante, assim como as empresas constituídas sob as leis
brasileiras; estas últimas, tendo a maioria ou mesmo a totalidade de
seus sócios de nacionalidade estrangeira, nem por isso deixavam de ser
nacionais, se registradas de acordo com a legislação do Brasil. De fato,
os estrangeiros dominavam certos ramos do comércio de importação de
maneira absoluta, como por exemplo os portugueses para os vinhos e os
britânicos nos artigos de vestuário e objetos de metalurgia. O declínio
relativo, depois da guerra do Paraguai, da presença dessa última
nacionalidade, comparativamente a outros comerciantes estrangeiros, como
os franceses e alemães, é explicado como resultante da ligação direta,
via cabo submarino, entre a Europa e o Brasil, o que permitia um contato
direto entre os fornecedores europeus e seus clientes brasileiros.
Mesmo entre os comissários de café, atividade que a historiografia
tradicional sempre acreditou ser dominada por brasileiros, a presença
estrangeira era majoritária: de maneira geral, os brasileiros eram a
minoria no comércio internacional.
Salvo restrições específicas, decorrentes
da legislação ordinária, os comerciantes de nacionalidade estrangeira
se equiparavam aos nacionais. O próprio Código estabelecia algumas
dessas restrições, na sua parte relativa ao comércio marítimo, por
exemplo, que reservava prerrogativas e favores a embarcações brasileiras
aquelas que pertencessem efetivamente aos súditos do Império. A
proibição, nesse caso, era drástica: se alguma embarcação registrada
como sendo brasileira pertencesse de fato a estrangeiro, ela poderia ser
apreendida; a navegação de cabotagem, salvo durante um período, foi em
geral reservada a embarcações brasileiras, da mesma forma como deveriam
ser brasileiros e domiciliados no Império os capitães ou mestres de
navios.
Esta era, contudo, uma situação
relativamente excepcional, pois que, no mais das vezes, o grosso das
atividades econômicas estava aberto à participação de capitais e de
cidadãos estrangeiros, operando em grande medida sem necessidade de
autorização prévia, mediante mero registro na junta comercial. Alguns
setores podiam exigir a concessão da autoridade, como as lavras das
minas, os transportes ferroviários ou navais, a iluminação pública e a
instalação de cabos telegráficos, o que implicava formalmente um ato
administrativo, mais raramente a promulgação de uma lei, atribuindo
permissão temporária para o oferecimento de algum serviço ou o
desempenho de alguma atividade.
Mais para o final do Império, com o
crescimento da presença estrangeira na vida econômica nacional, alguns
setores começaram a expressar reservas quanto à sua conveniência para o
País. Lei aprovada em 1882, que liberou a organização de empresas de
responsabilidade limitada — até essa data, as empresas somente podiam
operar legalmente após consentimento expresso do Conselho de Estado —,
exigia em contrapartida que as empresas estrangeiras ainda conseguissem
aprovação específica do Parlamento para se instalarem.[6]
De forma geral, o Brasil republicano vai operar uma nacionalização de
grande parte das atividades econômicas – data do início do século XX a
“lei do similar nacional”, de feição claramente protecionista –,
tendência que seria reforçada ainda mais pela Constituição e pelos
diversos códigos de exploração de recursos naturais surgidos a partir da
revolução de 1930; a ditadura estado-novista exacerbaria o
protecionismo e o nacionalismo estatizante, características que só
seriam revertidas, praticamente, na última década do século, para
novamente emergirem com força a partir de 2003, com a mudança de maioria
política, e sua ideologia econômica, no Executivo e no Parlamento.
O direito comercial no Brasil aparece e
se desenvolve, portanto, não exatamente como uma emanação da própria
sociedade econômica, mas possuindo estreitos vínculos com a soberania
estatal, aspecto sempre cultivado na tradição jurídica brasileira, já
que tivemos de esperar quase o final do século XX para, finalmente,
aprovar uma lei de arbitragem, equiparando esse mecanismo facilitador
aos laudos judiciais. De fato, até parece uma aberração que se tenha
tido de aguardar décadas, senão um século inteiro, para que fosse
finalmente incorporada a arbitragem ao ordenamento jurídico brasileiro,
quando esse instituto integra desde muito tempo os procedimentos
comerciais típicos nos países da Custom Law, inclusive quando
estão envolvidos agentes nacionais e estrangeiros. A arbitragem é uma
espécie de direito comercial alternativo aplicado pela própria classe
dos comerciantes: ele não se apresenta apenas como um instrumento de
utilidade prática, mas de fato como uma real necessidade, aliás
plenamente compatível com os mecanismos e os processos mais
característicos da globalização: rapidez, flexibilidade, liberdade dada
aos próprios agentes de escolherem foro aplicável, base legal,
instrumentos decisórios e os “juízes”, ou árbitros, da disputa.
Dos albores da humanidade, ainda nos
tempos de Hamurabi e suas tabletes de argila, rabiscadas em caracteres
cuneiformes, aos nossos tempos, de escrita virtual e de tabletes
digitais, o comércio, de bens físicos ou intangíveis, continuará a se
expandir em ritmo sempre superior ao do próprio crescimento da produção
física no mundo. Sua expressão regulatória, o direito comercial, é
consubstancial a esse desenvolvimento e o conhecimento adequado de suas
normas por parte dos agentes diretos do comércio é essencial agentes
primários da globalização. Mas mesmo não o conhecendo a fundo, todos o
praticam, consciente ou inconscientemente: como o personagem de Molière,
que fazia prosa sem saber, somos todos, um pouco, contrafações de
Monsieur Jourdan na era da globalização.
[1] Citado por Nayan Chanda, Bound Together: How Traders, Preachers, Adventurers, and Warriors Shaped Globalization (New Haven: Yale University Press, 2007), p. 30 e 339, com base em R. H. Pfeiffer, “Hammurabi Code: Critical Notes”, American Journal of Semitic Languages and Literatures (1920): 310-15; “Business in Babylon”, Bulletin of the Business Historical Society 12 (1938): 25-27. Existe uma edição brasileira desse livro: Sem Fronteira (Rio de Janeiro: Record, 2011).
[2] Citado igualmente por Nayan Chanda, Bound Together, op. cit., com base em Armando Cortesão (tradutor e editor), The Suma Oriental of Tomé Pires… and the Book of Francisco Rodrigues (Londres: Hakluyt Society, 1944, p. 286-87), p. 52 e 342.
[3] Cf. Gabriel de Broglie, Le XIXe Siècle: l’éclat et le déclin de la France (Paris: Perrin, 1995), p. 175.
[4] Cf. João E. Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre (Rio de Janeiro: Forense, 1969), p. 35.
[5] Idem, p. 37.
[6] Cf. John Schulz, A crise financeira da abolição: 1875-1901 (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Instituto Fernand Braudel, 1996), p. 16.
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor do Centro Universitário de Brasília – Uniceub (@pauloalmeida53).
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