A evolução do conhecimento como uma fase distinta da evolução das https://bit.ly/47jjqZH espécies e da história da Terra

evolução
Rodolfo Hoffmann, outubro de 2025
O Homo sapiens é um animal que promoveu um acúmulo de conhecimento que é um fenômeno novo na evolução das espécies.
Questiona-se se o conhecimento é criado ou descoberto. Trata-se, essencialmente, de criação de conceitos, mas é errado contrapor a criação à descoberta, pois os conceitos são criados com inspiração na realidade observada e cabe reconhecer que também ocorre a descoberta de novos fatos ou de relações.
O conceito de “dois” (2) é uma criação do cérebro humano. O que vemos são duas árvores, duas pedras, dois cavalos etc. “Dois” é a propriedade comum a todos os conjuntos que podem ser colocados em correspondência biunívoca com o conjunto {A, B}. Usando o conceito de “dois”, falamos de “dois cavalos” ou “duas árvores”. É óbvio que a expansão do conhecimento humano teria sido dificultada se fosse necessário ter palavras específicas para “dois cavalos”, “duas árvores” etc. Criar o conceito de “dois” ´foi um dos milhões de passos do processo acumulativo de formação do conhecimento humano. É claro que as considerações feitas sobre o “dois” valem para qualquer número.
Como outro exemplo, considerem-se os conceitos de ponto, reta e plano da geometria; são inspirados na realidade que vemos, mas obviamente não têm existência real; são conceitos criados pelo cérebro humano. Basta lembrar que a reta da geometria não tem largura nem espessura e que o ponto não tem nenhuma das três dimensões. Particularmente, aprecio certas “aventuras” da abstração matemática, como a possibilidade de definir claramente um espaço vetorial de sete dimensões e ver que isso facilita a compreensão de problemas.
Usei conceitos da matemática, que são bem definidos, mas considerações semelhantes valem para uma palavra como “pedra”. Claro que as pedras são objetos reais, mas é um ser humano que decide se a palavra “pedra” se aplica ou não a um objeto qualquer. Note-se que o conceito de “pedra” é um pouco vago. Às vezes, na ciência, criam-se palavras para evitar a vagueza de palavras leigas. Os biólogos usam uma língua morta para criar nomes para as espécies de plantas e animais que querem distinguir.
O Homo sapiens existe há 200.000 anos. É um período minúsculo para evolução das espécies, considerando que a vida surgiu há mais de 3,5 bilhões de anos. Nesses 200 mil anos a espécie acumulou conhecimento que permite viagens à lua, uso de energia atômica, engenharia genética, transplantes do coração, construir sistemas eletrônicos com inteligência artificial etc. Nenhum ser humano pode, isoladamente, abarcar todo esse conhecimento. Esse processo de acúmulo de conhecimento é algo totalmente novo na história do globo terrestre e que não tem sido devidamente destacado.
Considerando o que sabemos da evolução do universo, houve uma fase inicial onde nem “química” havia; uma fase de pura física: energia e átomos. Numa segunda fase os átomos puderam se agregar em moléculas: fase da química. A terceira fase surge com os seres vivos, nos quais as transformações químicas são determinadas pelo código genético. Note-se que cada fase depende da pré-existência da anterior: não há química sem átomos e não há vida sem química. Isso vale para a quarta fase, de acumulação do conhecimento. Essa acumulação de conhecimento só pode ocorrer em um ser vivo com características especiais, com destaque para seu cérebro.
Depois que Darwin mostrou que o Homo sapiens era um produto da evolução por seleção natural, como qualquer outro animal, os Darwinistas estiveram ocupados em desmentir o criacionismo e combater a ideia de que o Homo sapiens representasse o ápice da evolução ou que fosse em algum sentido “superior” a outras espécies. Stephen Jay Gould argumenta exaustivamente que, biologicamente, não há nenhuma razão para considerar o Homo sapiens como uma espécie “superior”. Isso certamente contribuiu para que esses Darwinistas não assinalassem o acúmulo de conhecimento como um processo novo que deveria ser destacado.
O livro “A evolução é um fato”, publicado pela Academia Brasileira de Ciências em 2024 e disponível na internet, é uma fonte riquíssima de dados sobre a história do nosso planeta e a evolução da vida. Na p. 631 destacam-se seis megatrajetórias na história da Terra: I – Protovida; II – Procariotos; III – Eucariotos unicelulares; IV – Eucariotos pluricelulares; V – Terrestrialização da biosfera e VI – Inteligência humana, que teve início há 6 milhões de anos com o surgimento dos hominídeos. É importante notar que as cinco primeiras megatrajetórias são diferenciadas com base em mudanças biológicas, mas a sexta megatrajetória se distingue por um fenômeno novo: o acúmulo de conhecimento. Esse acúmulo de conhecimento dependeu do desenvolvimento da linguagem e certamente será bastante arbitrário estabelecer quando ele se tornou expressivo e relevante: já com os primeiros hominídeos, há 6 milhões de anos, ou apenas com o Homo sapiens, há 200 mil anos? No texto do livro assinala-se “… o aparecimento da inteligência humana, há poucos milhões de anos. Agora, nossa espécie não só entende o funcionamento e a história da natureza, mas transmite este conhecimento de geração em geração, controla fenômenos naturais e interfere nos rumos da evolução e na saúde da biosfera.” É importante não confundir a existência de características biológicas necessárias ao processo com o próprio processo de acumulação do conhecimento. As características biológicas (morfológicas e fisiológicas) do Homo sapiens já estão estabelecidas há 200 mil anos, mas é apenas nos últimos milênios que sua interferência na biosfera se tornou mais relevante. O acúmulo de conhecimento só pode ocorrer graças ao surgimento de uma espécie com certas características especiais, mas ele é um fenômeno essencialmente novo. E certamente o cérebro não é a única característica biológica relevante ou essencial, cabendo lembrar o papel do bipedalismo e posição ereta, deixando as mãos livres para usar instrumentos e as cordas vocais que possibilitaram o desenvolvimento da linguagem oral.
Continuando o texto citado, há menção a outro problema: “Ainda falta ao homem igualar sua sabedoria ao nível do seu conhecimento para manter o equilíbrio da biosfera dentro do sistema Terra e assegurar sua própria sobrevivência como espécie.” Esta é uma maneira muito leve e benevolente de colocar o problema. Realmente, com esse espetacular e maravilhoso conhecimento acumulado, seria de se esperar um comportamento muito mais racional. Acontece que as sociedades humanas acumularam conhecimento, mas ele está muito mal distribuído. Muitas vezes o conhecimento verdadeiro está até disponível, mas há motivos psicológicos e políticos que levam a maior parte da população a seguir mitos e líderes “carismáticos”. As ciências sociais não permitem prever o que a humanidade vai fazer. Infelizmente, não há garantia, hoje, de que a humanidade não venha a seguir caminhos que levem à sua própria extinção.
O que procurei ressaltar nestas notas é que, associado à existência do Homo sapiens, ocorreu um processo de acumulação de conhecimento que é um fenômeno novo que não deve ser confundido com a (ou reduzido à) existência de uma espécie com características necessárias ao desenvolvimento daquele processo.
Essa ideia não deve ser confundida com a proposta de existência do Antropoceno, uma era geológica na qual se torna relevante a interferência da atividade humana na biosfera. É certo que foi aquele extraordinário conhecimento acumulado que deu ao Homo sapiens o poder de interferir tanto no meio ambiente. Nesse sentido, o antropoceno seria uma consequência do processo de acumulação do conhecimento.
Essa visão da história da Terra é materialista no sentido de que tudo ocorre com matéria formada por átomos. Mas há transformações e fenômenos novos, um sendo a vida. Os seres vivos surgem e existem por meio de processos químicos, mas devemos reconhecer a extraordinária novidade no fenômeno e que ele não se reduz à química. Há certa arbitrariedade na possibilidade de destacar diferentes fases na evolução da vida. Podemos destacar o surgimento dos eucariotos, o surgimento dos vertebrados ou a extinção dos dinossauros. Consideramos fundamental destacar, como fenômeno novo, não redutível à biologia, o processo de acumulação do conhecimento que ocorreu com o Homo sapiens. É um processo que começou lentamente e foi se acelerando. A criação da escrita e, mais recentemente, o computador e a informática tiveram grande impacto no processo. E é notório que esse processo sempre misturou conhecimento válido ou verdadeiro com mitos, superstições, crendices, informações falsas, preconceitos etc.
1 Figura 4 do capítulo intitulado “A biosfera e o planeta terra: 4 bilhões de anos de interações”, de autoria de T. R. Fairchild, M. Babinski e U. G. Cordani.
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