O jornalista Boris Volkhonski, editor do Russia Journal, publicado por uma das mais influentes organizações não-governamentais russas, "Fundação da Política Efetiva" (Foundation for Effective Policy), contatou-me a propósito de uma pesquisa sua, segundo ele, sobre o "sentido não-Ocidental dos negócios estrangeiros da Rússia".
Não sei dizer o que ele quer dizer com isso, exatamente, mas ao lado de diversas outras questões sobre a América Latina e suas relações com o império -- qual, exatamente?; bem, só sobrou um... -- ele me colocou uma questão sobre as relações da Rússia com os EUA, depois que a Secretária de Estado Hillary Clinton fez sua primeira visita ao inimigo cordial dos americanos, levando um "botão" de restart -- aliás, traduzido erradamente para o russo, como sabem os mais informados. Apressadamente, em viagem de Brasilia a Miami, respondi o que vai transcrito (parcialmente) abaixo.
A Rússia: não quer ser o que é, mas não pode ser o que quer... [O título é meu, obviamente, retirado de uma antiga peça de teatro espanhola, sobre um noivo pobre que não consegue convencer o pai da donzela rica a deixá-la casar com ele...]
Pergunta de Boris Volkhonski (em Inglês):
1. Do you think that the intention to press the ‘reset’ button in US–Russian relations expressed by Barack Obama’s administration means a beginning of a new ‘détente’, or is it just a kind of a tactical game aimed at achieving some short-term purposes?
PRA (resposta elaborada em Português, depois vertida para o Inglês):
Provavelmente ambos, mas analistas responsáveis não se prendem a conceitos do passado, ou de uma conjuntura determinada – como o de détente, por exemplo – para expressar e analisar realidades do presente e os desafios do futuro. A história decididamente não se repete, e as circunstâncias e configurações das relações internacionais em geral, das relações ‘especiais’ entre as duas superpotências da era da Guerra Fria, bem como os ‘problemas’ de enfrentamento global daquela época – grosso modo de 1946 a 1991 – não são mais os mesmos, e isso por um fator relativamente simples. A Rússia não é sequer a herdeira da finada União Soviética, embora ele gostaria ou pretendesse sê-lo, mas ela não tem mais o poder e a liberdade de ação de que dispôs a URSS nos tempos do socialismo, muito embora a atual Federação Russa empreenda enormes esforços para recuperar não apenas o prestígio perdido, mas sobretudo o poder – mais aparente do que real – dos tempos de Guerra Fria.
Mesmo que o mundo não seja absolutamente unipolar, como alguns acreditam, e que os EUA deixem de ser arrogantemente unilateralistas, como muitos acreditam que eles sejam, sobretudo nos anos George W. Bush, os EUA são, ainda, o grande definidor da agenda internacional em termos estratégicos e de segurança; eles são a única potência capaz de projetar poder em qualquer cenário estratégico que se conceba, o que a Rússia nem de longe é capaz de fazer. Esse poder não é exercido em sua plenitude, mas o conjunto de bases militares e a presença física dos EUA no mundo – por soldados, diplomatas, agentes diversos, e também via algumas organizações internacionais – aproximam esse país o mais possível do que poderia ser chamado de ‘império universal’. Não se trata de um império ‘extrator’, como os velhos impérios dominadores do passado – chinês, romano, islâmico, espanhol, britânico, inclusive russo-soviético – mas de um império baseado no soft power da dominação econômica indireta, ou seja, um império do livre comércio e dos investimentos.
A crise atual, que deve ser vista numa perspectiva de longo prazo, imporá alguns limites a esse império, traduzindo-se numa provável perda de poder econômico relativo: não haverá declínio tecnológico ou retrocesso econômico substantivo, mas haverá uma ausência temporária de recursos – alguns deles drenados de economias satélites, como a própria China – o que constrangerá a liberdade de ação imperial. No longo prazo, haverá uma redistribuição do poder econômico no mundo, que pode ou não beneficiar a Rússia, dependendo de como esta se insere na economia globalizada.
Atualmente, a Rússia se insere basicamente de duas formas: como grande fornecedora de commodities energéticas e como fonte de poder militar em sua região específica, a Eurásia, especialmente a Ásia central, onde o seu poder de pressão é maior, assim como sobre seus ex-satélites da MittelEuropa. Ou seja, ela pode ‘chantagear’ um pouco os países dependentes de seu suprimento de energia – basicamente os europeus ocidentais e os penduricalhos de seu ex-império imediato – e pode denegar cooperação aos EUA e à OTAN para fins de resolução de problemas regionais ou locais, alguns deles cruciais, no contexto da luta contra o terrorismo de base islâmica, os problemas do Oriente Médio, o Irã, e todos os países no entorno do Mar Negro e do Mar Cáspio.
O botão de ‘reset’ é meramente simbólico, apenas um gesto de boa vontade ao início de uma nova gestão imperial. Mas deve-se ressaltar também que a administração Obama possui uma visão não confrontacionista do mundo, diferente da postura unilateralista por princípio da administração Bush. Se esta foi agressiva, pode-se caracterizar a nova como de détente, mas isso é apenas um conceito, impróprio para os tempos atuais: o mundo já não se organiza apenas em torno dos dois grandes pólos da era da Guerra Fria e a Rússia não tem mais condições de fixar ou estabelecer a agenda do mundo como ela fazia nos tempos da URSS.
Mesmo assim, esse ‘reset’ não se destina apenas a atingir objetivos de curto prazo, limitados às relações EUA-Rússia, e sim objetivos sistêmicos, ou estruturais, da nova política externa dos EUA: estes não têm interesse numa attitude confrontacionista com a Rússia simplesmente porque a maior parte dos problemas que os EUA enfrentam na região e em torno dela, assim como alguns problemas mais distantes, passam por uma cooperação política razoável com a Rússia. Isto envolve Irã, Coréia do Norte, Oriente Médio, Conselho de Segurança da ONU, atuação da OTAN no Afeganistão e vários outros problemas.
Ou seja, resumindo, o botão de reset é de fato substantivo, mas sua importância global, ou estratégica, não pode ser comparada às antigas relações EUA-URSS. Os dados da equação mudaram bastante, e não por ação unilateral, ou imposição dos EUA, e sim por retração, decadência econômica, incapacidade política e diplomática da Rússia. Esta, a despeito de sua recuperação militar e econômica, não consegue mais determinar a agenda mundial.
(...)
Brasília-Miami, 26.03.2009
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
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4 comentários:
Ei, Paulo. Tudo bem com cê?
A chatinha aqui tem um reparinho a fazer:
"aproximam esse país o mais próximo possível do que poderia ser chamado de ‘império universal’."
Aproximam quase ao lado de próximo, não fica muito bom não...
O resto está ótimo, como sempre.
Um abraço,
Maria.
PS: Vi sua foto lá no Blog do Tambosi. A sua e a de "Glau-Glau"...
Bela análise.
Gostaria que no post viesse, junto com o texto, a cara do jornalista russo.
O senhor traduziu um fato, e não uma simples conclusão pessoal.
Parabéns pela imparcialidade.
Abraço Paulo.
Acho um pouco contemporanea que está escrito ai, parece cronica antiga anti-russa. As contradições analiticas são gritantes, se a Russia não pode projetar poder ou não é reconhecida como capaz de tal, não sei em que redoma se estuda ou dá aula de política o diplomacia mundial.
Anonimos costumam usar o anonimato para ser surpreendentemente claros, a favor ou contra, geralmente contra o blogueiro que aqui escreve.
Mas confesso que nao entendi o que pretende este anônimo...
Sorry, anonimo, nao tenho comentarios ao seu comentario para mim ininteligivel...
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