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terça-feira, 31 de outubro de 2023

Relatos sobre a morte de Putin talvez não sejam tão exagerados: muita gente gostaria que isso ocorresse, da elite sobretudo - Alexander Motyl (The Hill)

O próprio Putin pode ter armado uma armadilha para seus detratores, ou sucessores. 

THE VIEWS EXPRESSED BY CONTRIBUTORS ARE THEIR OWN AND NOT THE VIEW OF THE HILL

Reports of Putin’s death might not be greatly exaggerated

Is Russian president Vladimir Putin dead?

According to a mysterious Russian Telegram channel called “General SVR” and Valery Solovey, a prominent Russian political analyst, the answer is yes.

In fact, the Russian president supposedly breathed his last on Thursday, Oct. 26. The Putin we see now is thus actually his double, who, Solovey claims, has been filling in for the sickly real Putin for several months.

Few Russian or Western analysts believe General SVR and Solovey (who some say are one and the same person). After all, they have no concrete evidence supporting their sensational claims. They do provide remarkably detailed accounts of Putin’s supposed death that enhance their verisimilitude, but imaginative crackpots and secret police provocateurs would be expected to do the same.

The problem is that Solovey strikes one as anything but a crackpot or a dupe of the Federal Security Service. He has a biting sense of humor, speaks well, argues logically and generally comes across as the kind of professor every student would want. Other than his claims regarding Putin’s death and the supposed exile of Yevgeny Prigozhin, the deceased head of the mercenary Wagner Group, to an island off the coast of Venezuela, his analyses of Russia’s internal politics are invariably smart and incisive.

So, if Solovey isn’t a madman or a puppet, he must be one of two remaining possibilities.

As a would-be opposition leader who may or may not really believe that Putin is dead, Solovey may be determined to sow confusion in the ranks of Russian elites and among ordinary Russians, leading them to wonder whether the great leader is still alive and to question whether the man claiming to be Putin really is Putin — thereby undermining his legitimacy.

With Russia’s presidential elections scheduled for March 2024, popular doubt about Putin’s health and existence can only complicate the Kremlin’s plans regarding just who should run and what margin of victory should there be. Unsurprisingly, Putin’s spokesman, the ever-mendacious Dmitry Peskov, felt compelled to deny rumors of Putin’s death and the existence of Putin doubles as fake news. But, since Peskov is always assumed never to tell the truth, was the denial a confirmation, or was it really a denial?

The other possibility is that Solovey and General SVR are not bona fide independent democratic oppositionists, as they claim to be. They may in fact be agents of the security services or spokesmen for powerful elites able to provide Solovey — who lives in Moscow and, despite his savage criticism of Putin, has managed to avoid arrest — with protection. The intended effect of the death claim would be the same — doubt, confusion and delegitimation — but the fact that the instigators could be establishment elites has more worrisome implications for Putin and the political system.

Two democrats in cahoots with a handful of others in Russia can effectively spread rumors, but cannot upend the existing system. In contrast, elite efforts to delegitimize the current regime bespeak a significant crack within what appears to outside observers as a monolithic regime.

And that, in turn, means that the post-Putin power struggle has already broken out, even if the real Putin is still alive. It’s broken out because the elites, both those supporting Putin and those opposing him, believe that Putin is too enervated, too weak or too politically moribund to make a difference.

Would the elites providing cover to Solovey be democratically inclined or, at least, opposed to retaining the existing Putinite system? Given Russia’s political culture, given that its population has been taught to despise liberalism and democracy for over two decades, and given the high likelihood that establishment elites may be out to merely reform the system and not replace it, chances are that Solovey’s possible protectors are conservative reformers who would want to dismantle the worst aspects of Putinism and try to end the war against Ukraine before the number of Russian dead exceeds 300,000. Solovey himself describes his politics as liberal conservative, which may also be the appropriate modifiers to describe his protectors.

Regardless of whether Putin is physically dead or alive, the brouhaha over his rumored death clearly shows that he’s in serious trouble. Hundreds of thousands of Russians have read General SVR’s and Solovey’s claims. Many more are discussing them. Seeds of doubt about the “grandpa in the bunker,” as Putin’s critics call him, have been planted.

And just as the general and Solovey have no proof of Putin’s death, their critics have no proof of his life, as one can always claim that the man claiming to be the real Putin is really a doppelganger.

Russian politics is becoming even more bizarre than usual. Strap on your seatbelts: The next few weeks and months are likely to be even more full of surprises.

Alexander J. Motyl is a professor of political science at Rutgers University-Newark. A specialist on Ukraine, Russia and the USSR, and on nationalism, revolutions, empires and theory, he is the author of 10 books of nonfiction, as well as “Imperial Ends: The Decay, Collapse, and Revival of Empires” and “Why Empires Reemerge: Imperial Collapse and Imperial Revival in Comparative Perspective.”

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O que foi feito do apanhador no campo de centeio? - Jorio Dauster (Revista Inteligência Insight)

REVISTA INTELIGÊNCIA – INSIGHT

Ano XXV – nº 102 – setembro de 2023

O que foi feito do apanhador no campo de centeio?                                                                                                    

                                                                                                                    JORIO DAUSTER

Os milhões de leitores em todo o mundo do livro de J.D. Salinger “O apanhador no campo de centeio” sabem que Holden Caulfield, aos 17 anos, está se recuperando de um colapso nervoso numa clínica psiquiátrica após ser expulso do colégio no ano anterior e passar três dias muito doidos em Nova York. Como ícone da rebelião dos adolescentes contra as convenções da vida adulta, todos nós que em algum momento compartilhamos de suas angústias e incertezas nos perguntamos o que foi feito de Holden após a crise que o deixou tão abalado a ponto de exigir uma longa internação.

A última página do livro oferece uma perspectiva relativamente otimista de superação, mas ainda cercada de sérias dúvidas. Em suas próprias palavras: “Uma porção de gente, principalmente esse cara psicanalista que tem aqui, vive me perguntando se eu vou me esforçar quando voltar para o colégio em setembro. Na minha opinião, isso é o tipo da pergunta imbecil. Quer dizer, como é que a gente pode saber o que é que vai fazer até a hora em que faz o troço? A resposta é não sei. Acho que vou, mas como é que eu posso saber? Juro que é uma pergunta cretina.”

Essa declaração, típica do protagonista e narrador do livro, está muito longe daqueles reconfortantes epílogos de certos romances em que, nas palavras de Henry James, se distribuem “os últimos prêmios, pensões, maridos, esposas, bebês, fortunas, parágrafos adicionais e observações jubilosas.” Não é à toa que, em livros infantis, são comuns esses remates finais que servem para tranquilizar as jovens mentes temerosas de um desfecho trágico. Mas ainda recentemente vimos isso na saga de Harry Potter, em que os personagens, já mais velhos e com famílias constituídas, vivem os famosos happy ending em que Hollywood também já foi mestre.

No entanto, se Salinger nos abandona no escuro, só faz estimular a curiosidade intelectual de quem ainda se surpreende com a força quase mítica de um personagem que viu a luz do dia em 1951, mas que, pela cronologia da obra, já teria hoje mais de cem anos.

Esse desejo de saber o que foi feito de Holden ao voltar a encarar as atribulações cotidianas certamente não é privilégio de poucos, já tendo inclusive havido duas tentativas literárias de responder a essa indagação existencial. Em 2009, o autor sueco Fredrik Colting escreveu um livro intitulado “60 Years Later: Coming Through the Rye”, em que Holden Caulfield foge de um asilo para velhos em Nova York aos 76 anos e sai vagando pela cidade como seu genuíno alter ego fizera décadas antes. Salinger, enfurecido, processou o autor, e o livro teve sua comercialização proibida por uma decisão judicial. Mais recentemente, Mary O’Connell escreveu “In the Rye”, em que Holden Caulfield mais uma vez circula por Manhattan, agora aparentemente em busca de sua professora de literatura norte-americana. Diante das complicações legais impostas por Salinger, o romance nunca chegou a ser publicado. Se temos dois casos conhecidos, não é difícil imaginar quantas reencarnações de Holden Caulfield jazem nas gavetas de frustrados autores que sonharam com o day after do herói de suas juventudes.

Uma linha de investigação especulativa nos leva à própria obra de J.D. Salinger, porque, curiosamente, ele usou o nome Holden Caulfield em diversos contos publicados antes do “Apanhador”, a começar por aquele intitulado “Slight Rebellion off Madison”, comprado pela The New Yorker já em 1941, mas, devido à Segunda Guerra Mundial, só aproveitado pela revista cinco anos mais tarde. No entanto, esses contos não revelam uma linha do tempo consistente, e os personagens que carregam aquele nome têm características inteiramente diferentes e até contraditórias. Como exemplo mais notável dessas discrepâncias, num deles Holden Caulfield é um soldado que morre em ação em 1944 – quando o Holden do “Apanhador” teria dezesseis anos em 1949. Assim, permanece um mistério porque o autor tinha tamanha fixação pelo nome, mas, infelizmente, os contos não podem nos servir como uma indicação prévia sobre o futuro do “nosso” Holden.

Outra possível pista poderia ser dada pelas semelhanças existentes entre o próprio Salinger e o rapaz que zanza por Nova York sem ter coragem de confessar aos pais que foi expulso do colégio. Ambos, o autor de carne e osso e sua criação literária, pertenciam a famílias de alta classe média, moravam em excelentes apartamentos nas partes mais nobres de Manhattan, tinham problemas nas escolas, exibiam personalidades complexas. Mas as convergências são mais profundas e bem mais sombrias.

Como sargento do Corpo de Contrainteligência do Exército, a função de Salinger consistia em interrogar prisioneiros de guerra graças à sua fluência em alemão e francês. Todavia, embora não participasse diretamente da luta armada, ele desembarcou na Normandia no famoso Dia D, em junho de 1944, e presenciou todas as carnificinas que ocorreram ali e na longa marcha que atravessou as Ardenas e o conduziu até a Alemanha no ano seguinte. Em abril de 1945, entrou no campo de extermínio de Kaufering IV, parte do complexo de Dachau, onde viu as pilhas de cadáveres semicarbonizados. Num de seus poucos comentários sobre o que vivenciou como combatente, ele disse certa vez à filha: “Você nunca realmente elimina do seu nariz o cheiro de carne queimando, por mais tempo que viva.” Não surpreende que dias depois de terminada a guerra, profundamente perturbado, Salinger se internou num hospital de Nuremberg sofrendo o que à época se chamava de “fadiga de combate”, mas hoje é caracterizado como transtorno de estresse pós-traumático.

E o homem que voltou da guerra não era o mesmo. Apesar de ter tido dois encontros gloriosos com o correspondente de guerra Ernest Hemingway, os milhares de camaradas mortos no curso da campanha tingiram de amargura as passagens mais tarde usadas em “O apanhador do campo de centeio” que ele continuou a escrever mesmo durante os bombardeios, levando sua máquina de escrever para debaixo de mesa. E, pouco depois de publicado o livro que o fez mais famoso do que desejava, Salinger se retirou em 1953 para os cafundós de New Hampshire onde levou uma vida de recluso até morrer em 2010, aos 91 anos.

É muito provável, assim, que a composição de “O apanhador no campo de centeio” tenha representado uma liberação para Salinger, uma imensa catarse, ao escrever, na verdade, um livro de guerra transmudando-o na experiência de um conturbado adolescente que tinha muito do autor. Entretanto, o que dificilmente se vê numa primeira leitura, quando as aventuras tresloucadas do rapaz dominam nossa percepção, é que ele transferiu também para Holden Caulfield seu transtorno de estresse pós-traumático – e talvez até mais em matéria de distúrbio mental.

No caso de Holden, o trauma é causado pela perda de Allie, o irmão mais moço que ele amava, que morre de leucemia no dia (precisamente indicado) 18 de julho de 1946. E ele relembra: “Eu só tinha treze anos, e meus pais resolveram que eu precisava ser psicanalisado e tudo, porque quebrei todas as janelas da garagem. Mas realmente acho que eles tinham razão. Dormi na garagem na noite em que ele morreu e quebrei a droga dos vidros todos com a mão, sei lá por quê. Tentei até arrebentar os vidros da camioneta que nós tínhamos naquele verão, mas a essa altura minha mão já estava quebrada e tudo, e não consegui. Reconheço que foi o tipo da coisa estúpida de se fazer, mas eu nem sabia direito o que estava fazendo, e vocês não conheciam o Allie. Minha mão ainda dói de vez em quando, nos dias de chuva e tudo, e nunca mais consegui fechar direito a mão – assim bem apertada – mas, fora isso, não me importo muito. De qualquer jeito, sei que não vou mesmo ser um cirurgião ou um violinista, ou droga nenhuma.”

Não podia ser mais clara a descrição de um surto psicótico, e é possível lamentar que, à luz do ocorrido, os pais de Holden não lhe tivessem proporcionado de imediato o prolongado tratamento que ele precisou ter poucos anos mais tarde. Pois o fato é que, ao longo do livro, as manifestações de rebeldia contra a hipocrisia do mundo adulto são acompanhadas de frequentes referências ao irmão e à depressão que lhe causa sua ausência, não faltando nem mesmo, como sintoma do transtorno, o desejo de se suicidar. Mas será que, por fim, Holden se recuperou totalmente com a ajuda do irmão mais velho D.B., que o visita na clínica psiquiátrica pouco antes da alta, e da maravilhosa irmã mais moça. Phoebe, que parece entendê-lo como ninguém e se mostra tão protetora ao sentir que ele está entrando numa crise profunda?

A essa hipótese otimista se opõe a triste possibilidade de que Holden sofresse realmente de um distúrbio bipolar que, dependendo de sua severidade, poderia persegui-lo durante toda a vida adulta. Essa eventualidade é estranhamente sugerida pelo fato de que a leitura do “Apanhador” despertou emoções poderosas em várias pessoas com comprovadas doenças mentais. Como se, de algum modo, elas tivessem sentido as vibrações negativas que incontáveis leitores sadios não percebem. Com efeito, vários episódios violentos foram associados ao romance, inclusive o assassinato da atriz Rebecca Schaeffer por Robert John Bardo e o atentado contra Ronald Reagan por John Hinckley Jr. E, no caso mais notável, depois de matar John Lennon, Mark David Chapman foi preso carregando um exemplar do livro comprado naquele mesmo dia e no qual tinha escrito: “Para Holden Caulfield, de Holden Caulfield. Essa é minha declaração.”

Mas, quem sabe, existe um epílogo menos trágico porque Salinger, desde que autorizou a publicação de sua última obra em 1965, escreveu incansavelmente até morrer. Seu filho Matt Salinger e a viúva do autor, Colleen O’Neill, são responsáveis por selecionar os escritos de quase meio século que verão a luz do dia – e talvez a circunstância de que Matt já representou o Capitão América no cinema comprove que ele tem o vigor necessário para levar a bom termo a gigantesca tarefa. Como há quem diga que esse tesouro literário contém nada menos de 15 romances, não custa sonhar que um deles seja a continuação do “Apanhador” e que nele possamos finalmente saber o que foi feito do nosso velho amigo Holden Caulfield.  


                                                                                                                                      jorio@dauster.com


Venezuela: governo chavista tenta barrar vitória da oposição nas próximas eleições: fraude ao acordo feito com Brasil e EUA (Estdão)

 Na Venezuela, Tribunal Supremo suspende resultado das primárias da oposição* 


 Processo eleitoral da oposição venezuelana é freado pelo Tribunal Supremo de Justiça após uma sequência de ataques de Nicolás Maduro Em uma movimentação atípica que afunda na incerteza a viabilidade do processo eleitoral na Venezuela, o Tribunal Supremo de Justiça venezuelano ordenou nesta segunda-feira, 30, a suspensão de “todos os efeitos” do resultado das eleições primárias da oposição, que foram realizadas no último 22 de outubro e conduzidas de forma autônoma pela Comissão Nacional de Primária (CNdP). 

 A eleição, que mobilizou quase 2.5 milhões de venezuelanos e que teve como vencedora a candidata de centro-direita María Corina Machado — com mais de 92% dos votos —, foi questionada pela ditadura de Nicolás Maduro, que através de um recurso apresentado por aliados no aparato judicial, busca frear o processo criticando supostas “irregularidades”, segundo declararam membros do CNdP ao Estadão. “Todos os efeitos das diferentes fases do processo eleitoral conduzido pela Comissão Nacional de Primária estão suspensos”, afirma a decisão emitida nesta segunda-feira pela Câmara Eleitoral do Supremo Tribunal de Justiça (TSJ) da Venezuela. A decisão ordena que a Comissão Nacional de Primária (CNdP) apresente ao judiciário, no prazo de três dias, os “registros administrativos” das fases do processo, incluindo todas as atas do processo — documentos que contém dados sobre a constituição das seções eleitorais, os livros de cédulas, as atas de escrutínio, e até as próprias identidades dos eleitores. “Não podemos fazer isso, não podemos entregar as atas, porque isso seria colocar em risco a identidade dos eleitores. 

Seria violentado o voto secreto”, disse ao Estadão Andrea Tavares, Secretária-Geral do partido La Causa R, que participou do processo eleitoral. Segundo Andrea Tavares, o TSJ também exige que sejam entregues as atas de aceitação da nomeação de María Corina Machado, Freddy Superlano e Henrique Capriles — três candidatos que foram “inabilitados” pelo regime e que, em teoria, não poderiam ser eleitos. Contudo, a oposição considera estas inabilitações “inconstitucionais” e alega que elas têm sido utilizadas pela ditadura como ferramenta para barrar das eleições os principais líderes dissidentes que aspiram a cargos públicos. 

 Na última semana, o deputado da Assembleia Nacional, José Brito, considerado um aliado do regime de Maduro, entrou com um recurso no TSJ para revisar supostas “irregularidades” nas primárias da oposição. Em 2019, Brito havia sido expulso do partido Primero Justicia sob acusações de utilizar uma comissão da Assembleia para impedir a continuidade de investigações contra empresários ligados a Maduro que foram acusados de corrupção, incluindo o colombiano Alex Saab, que foi processado nos Estados Unidos por conspiração para lavagem de dinheiro. 

 “As primárias tiveram um sucesso esmagador que o regime não estava esperando, pois estava sendo subestimada a participação das pessoas no processo. Ao ver este sucesso, agora o regime tenta atacar e desacreditar a eleição, começando uma perseguição contra os cidadãos que tiveram a responsabilidade de organizar o processo eleitoral”, afirmou Tavares. Para a oposição venezuelana, estes ataques marcaram a ruptura do acordo assinado em 17 de outubro junto com a classe governista em Barbados, onde ambos os lados se comprometeram a promover a coexistência política em troca do levantamento gradual das sanções dos EUA. 

O acordo, que contou com a presença de uma delegação brasileira representada por Celso Amorim e que foi saudado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também permitiria eleições livres e democráticas no país, mas era visto com receio por parte da oposição, cujo maior medo — a assinatura de um contrato de fachada que não seria respeitado por Maduro — foi confirmado nesta segunda-feira. “Os partidos reconhecem e respeitam o direito de cada ator político de selecionar seu candidato para as eleições presidenciais livremente e de acordo com seus mecanismos internos, em conformidade com as disposições da constituição e da lei”, diz o primeiro ponto do acordo de Barbados. Nos últimos dias, o regime de Nicolás Maduro acusou a oposição de “inflar” os resultados das primárias, das quais participaram pelo menos 2.440.415 pessoas, de acordo com o CNdP. 

O governo critica os números e afirma que não participaram mais 700 mil pessoas no processo. O procurador-geral do regime, Tarek William Saab, anunciou que seria realizada uma investigação de crimes cometidos pela Comissão, como usurpação de funções eleitorais, usurpação de identidade, lavagem de dinheiro e associação criminosa. De acordo com Saab, as primárias foram “uma fraude total”. Na última semana, membros do CNdP, incluindo seu presidente, Jesús María Casal, bem como membros das diretorias regionais, receberam uma notificação da promotoria que convocava todos os organizadores das primárias para depor nesta segunda-feira. As eleições primárias foram organizadas então de forma independente. 

O chavismo critica a irregularidade das primárias com o argumento de que o Comité Nacional Eleitoral (CNE) não participou do processo. Contudo, de acordo com o presidente do CNdP, quatro meses antes havia sido solicitada a assistência técnica e apoio institucional do CNE, então presidido por Pedro Calzadilla, para organizar a votação. Esta solicitação foi ignorada durante meses, até que o CNE decidiu abandonar suas funções sem responder à solicitação. Em junho passado, uma semana depois do envio da solicitação da oposição, todos os membros do alto escalão do CNE renunciaram a menos de um ano de terem ocupado seus cargos. O motivo das renúncias continua sendo desconhecido.  

Guerra Hamas-Israel: duro discurso do Brasil no Conselho de Segurança da ONU (FSP)

 O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, fez um duro discurso em nome do Brasil no Conselho de Segurança da ONU nesta segunda-feira (30). 

FSP, 31/10/2023

Na véspera do fim da presidência brasileira do órgão, o chanceler disse que o conselho tem "repetida e vergonhosamente fracassado" em sua resposta ao conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas. Vieira afirmou que, enquanto mais de 8.000 palestinos foram mortos em Gaza, incluindo 3.000 crianças, "o Conselho de Segurança faz reuniões e ouve discursos, sem ser capaz de tomar uma decisão fundamental: acabar com o sofrimento humano em terreno". "Tanques e tropas estão no terreno em Gaza, e o tempo para agir está acabando. 

Minhas perguntas a todos vocês são: se não agora, quando? Quantas vidas mais serão perdidas até que nós finalmente passemos do discurso para a ação?", questionou o brasileiro. Desde a eclosão do conflito, quatro resoluções foram propostas no órgão mais importante da ONU: duas pela Rússia, que não obtiveram o número mínimo de votos, uma pelo Brasil, vetada pelos EUA, e uma americana, vetada por Rússia e China. 

 "Nós continuamos em um impasse em razão de divergências internas, particularmente entre alguns dos membros permanentes, e graças ao uso persistente do Conselho para alcançar seus próprios propósitos, em vez de colocar a proteção de civis acima de tudo", disse o ministro, em alusão ao embate entre americanos, chineses e russos. Os três países, mais França e Reino Unido, têm assento permanente no Conselho e, portanto, poder de vetar resoluções. Os europeus, no entanto, não fazem uso do instrumento desde 1989. 

Com o acirramento do antagonismo entre Washington, de um lado, e Moscou e Pequim, de outro, a guerra de vetos tem levado o Conselho a uma paralisia nos principais conflitos atuais: Ucrânia versus Rússia e Israel versus Hamas. "As graves e sem precedentes crises humanas diante de nós exigem que rivalidades estéreis sejam abandonadas. O fato de o Conselho não ser capaz de cumprir sua responsabilidade de salvaguardar a paz e a segurança internacionais devido a antigos antagonismos é moralmente inaceitável", completou Vieira. 

 Ele fez um apelo para que os membros mostrem vontade política para fazer concessões e sejam "minimamente equilibrados e inclusivos em seu diagnóstico" e próximos passos. O pedido mira, novamente, os membros permanentes, sobretudo EUA e Rússia. Enquanto americanos são fortes aliados de Israel e vêm sendo criticados pelo apoio a Tel Aviv diante do desastre humanitário em Gaza, russos são acusados de não trabalharem por uma solução, apresentando resoluções unilaterais com objetivo meramente retórico. 

 O custo do fracasso em responder à crise, afirmou Vieira, vai recair também sobre "o multilateralismo, as Nações Unidas e este conselho, em particular". Em aparente ato falho, o ministro falou inicialmente "Estados Unidos" (United States, em inglês) em vez de "Nações Unidas" (United Nations). Ao final do discurso, após ser alertado pelo embaixador brasileiro na ONU, Sérgio Danese, ele repetiu a frase para fazer a correção. Vieira defendeu que uma resolução precisa ser aprovada para permitir o fim das hostilidades e, assim, a entrada de ajuda humanitária em Gaza, assim como condições de trabalho para os envolvidos no resgate de reféns e no trabalho humanitário. 

 Diante das divergências em torno da linguagem a ser utilizada –muitos países, como os árabes, Rússia e China, pedem um cessar-fogo, termo rejeitado pelos americanos, que concordaram com "pausa humanitária"—, o ministro defendeu que a violência precisa acabar "por meio de qualquer modalidade que possa ser acordada sem mais delongas". Até agora, a ajuda humanitária que chegou a Gaza, viabilizada por um acordo costurado por americanos com Egito, Israel e ONU, é insuficiente, criticou o diplomata: "pouco mais que uma oportunidade de foto [marketing]". Além da entrada de suprimentos, como alimentos e combustível, e acesso de pessoal humanitário, o diplomata enfatizou a evacuação de cidadãos estrangeiros em Gaza. 

Um grupo de cerca de 30 brasileiros está na região, sem conseguir sair. Sem citar Israel explicitamente, o brasileiro afirmou que, enquanto todo Estado tem o direito de defender seus cidadãos –justificativa de Tel Aviv para a ofensiva em Gaza–, as ações devem ser "consistentes com o direito internacional humanitário, em especial os princípios de distinção, proporcionalidade, precaução, necessidade militar, e humanidade". "O Brasil condena fortemente ações que borrem a linha entre civis e combatentes", disse.  

O ministro destacou que 35% dos 250 vetos por membros permanentes do Conselho de Segurança foram em temas relacionados ao Oriente Médio. Como a Folha mostrou, o conflito entre Israel e Palestina é o que mais sofre bloqueios no órgão, sobretudo pelos EUA. "Isso reflete a ineficiência do sistema de governança e a falta de representatividade de certas partes do mundo nesse organismo", ecoando as críticas de longa data do Brasil à composição do Conselho de Segurança e a pressão por sua reforma. Na semana passada, durante café com jornalistas, o presidente Lula (PT) também criticou o Conselho, e disse que a rejeição da resolução brasileira mostra por que o país quer acabar com o poder de veto pelos membros permanentes. 

 Em conjunto com os outros nove membros não permanentes, o Brasil trabalha na proposta de uma quinta resolução sobre o conflito. Ainda não há, contudo, previsão de votação do texto, em negociação. 


Guerra Hamas-Israel: Pronunciamento do Brasil no CSNU: último gesto na presidência - Nota do MRE

Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Comunicação Social

 

Nota nº 501

30 de outubro de 2023

 

Intervenção do Ministro Mauro Vieira em sessão emergencial do Conselho de Segurança da ONU sobre situação na Faixa de Gaza

 

(Versão original em inglês)

Distinguished representatives,

I thank the briefers for their extensive information on the humanitarian situation on the ground and commend the work of their teams in locus and elsewhere. They honor once again the work of this Organization and everything it stands for.

Following instructions by President Lula, I come before you again today with a profound sense of urgency and dismay.

We must always bear in mind the human faces on both sides of the conflict.

Therefore, I extend Brazil’s deepest condolences to the families and friends of all civilians, including the brave and dedicated United Nations personnel, who have lost their lives in the ongoing crises stemming from the protracted conflict in Israel and Palestine, tragically reignited by the terrorist actions by Hamas against Israel on October 7th. Nothing justifies such crimes. All hostages must be immediately and unconditionally released and access to them by the Red Cross must be immediately granted.

At the same time, the current situation in Gaza is deeply appalling and indefensible by any humane standard and under international humanitarian law. An alarming humanitarian catastrophe is unfolding before our eyes, with thousands of civilians, including an overwhelming and intolerable number of children, being punished by crimes they have not committed. In 3 weeks, we have watched this conflict claim the lives of more than 8 thousand civilians, of whom more than 3 thousand are children. Since the last time I spoke in this Council, just last week, the count of children deaths increased by 1 thousand. 

Meanwhile, the Security Council holds meetings and hears speeches, without being able to take a fundamental decision: to end the human suffering on the ground. As thousands in Israel and Palestine mourn their loved ones, as Israelis agonize over the fate of hostages, as Gazans suffer under relentless military operations that are killing civilians, including an intolerable number of children, we have the means to get something done and yet we repeatedly and shamefully fail.

Since 7 October, we have met several times and considered four draft resolutions. However, we remain at an impasse due to internal disagreements, particularly among some permanent members, and thanks to the persistent use of the Council to achieve self-oriented purposes, instead of putting the protection of civilians above all. The grave and unprecedented human crises before us require that sterile rivalries be relinquished. That the Council is not able to discharge its responsibility of safeguarding international peace and security due to old antagonisms is morally unacceptable.

Let us not fool ourselves. The eyes of the world are staring at us and will not move away from our distressing inability to act. They all see that our incapacity to unite in response to the human crises facing us today questions the very raison d'être of this Council.  Someone has even written that, in addition to civilians, this body lies beneath the rubbles in Gaza. The difference is that we are our own saviors. We just need to do what is right: to spare innocent lives from the scourge of wars.

There may still be time to rescue the Council and sustain the hope that many of us still have in our capacity to be true to our mandate under the Charter. But this is possible only if there is enough political will to compromise, and to be minimally balanced and inclusive in our diagnosis and way forward. Failure to do so – yet another failure - will add an increasingly higher cost in human lives above all, but also to multilateralism, in general, and the United Nations and this Council, in particular.

Last week, a hope for consensus seemed to emerge, echoing the Secretary-General's call for a humanitarian ceasefire, as the 10th Emergency Special Session of the General Assembly passed a resolution that called for a humanitarian truce leading to a cessation of hostilities. A light at the end of the tunnel seemed to appear also when the Secretary-General, who had personally been in the region to assess the situation on the ground, announced the opening of the Rafah border crossing for some initial aid deliveries, and some hostages were released. The United Nations, through its Secretariat, under the leadership of UNSG Antonio Guterres, UNRWA and other bodies and agencies, has been working tirelessly to address the human crises facing us. It rests on the Security Council the responsibility to follow through.

The price of inaction is unacceptably high. The growing urgency for the families of the hostages and the unbearable pain for the civilian population of Gaza cannot be understated. The positive first steps taken by the UN bodies and agencies do not go far enough, as the escalation of the conflict makes the situation more dire by the hour. The relevance of a resolution of the Security Council lies on the need for sustained humanitarian aid and for granting safe working conditions for those involved in rescuing hostages and providing humanitarian work. The cessation of hostilities is therefore to the benefit of the civilian population on both sides. At the risk of reinstating the obvious, I want to put it bluntly: there cannot be rescuing of hostages and humanitarian aid under shells.

This is why Brazil and fellow E-10 members have been working tirelessly to try to get this Council to act more decisively since the last showdown around proposed resolutions.

In Brazil’s view, the main goals are clear: the immediate and unconditional release of all hostages, and the end of violence, through whatever modalities can be agreed without further delay, so that rapid, safe, unhindered, and sufficient humanitarian aid can be delivered to the strained people of Gaza. Besides the 8 thousand lives lost, many more are about to meet their fatal destiny, as hospitals have no means to keep providing basic treatment for the patients. Therefore, providing essential resources to those in Gaza, including water, food, medical supplies, fuel and electricity, is urgent and imperative.

Surgeries are being performed without anesthetics, lives are being lost at hospitals for lack of energy and the most basic medical supplies. Food and water are scarce, and prices have skyrocketed. And the flow of humanitarian aid, so far, amounts to little more than a photo-op.

Tanks and troops are on the ground in Gaza, and time for action is running out. My questions to you all are: if not now, when? How many more lives will be lost until we finally move from rhetoric to action?

It is also critical and urgent to allow for the safe and immediate evacuation of foreign nationals from Gaza and from elsewhere in the region if they feel threatened.

While every state has the right and duty to protect its citizens, actions must be consistent with international law and international humanitarian law, in particular the principles of distinction, proportionality, precaution, military necessity, and humanity. The right and duty to protect a state’s population cannot and should not come at the cost of more death of civilians and more destruction of civilian infrastructure. As UNSG Guterres has repeatedly reminded us: even wars have rules.

Any indiscriminate attacks against civilians and critical infrastructure, as well as depriving civilians of basic goods and services, are morally unjustifiable and illegal under international humanitarian law. Brazil strongly condemns actions that blur the line between civilians and combatants.

Today, UNRWA shed light on the grim and disheartening reality in Gaza, highlighting the objectionable level of destruction of civilian infrastructure and the tragic loss of innocent lives, including of women, children, and at least 35 of its staff. The World Health Organization has been constantly recalling the urgent need for the cessation of violence and for humanitarian action at a time when Gaza's health infrastructure is on the verge of collapse.

Beyond the immediate and very urgent humanitarian considerations, a threat to regional stability looms, and any repercussions could be catastrophic. Brazil urges a united shift towards de-escalation and calls on all parties to act with the utmost restraint. A cessation of hostilities is urgently needed to create the conditions for a full, durable and respected ceasefire and the resumption of a credible peace process.

All this is at stake as we keep our efforts to get this Council to act with a unified voice.

Distinguished Members of the Council,

International humanitarian law provides a clear path to avoid or at least greatly alleviate civilian suffering. The framework for collective action is clear.

Our collective response to this crisis, which we all fear will only worsen if nothing is done, will be a defining moment for the United Nations. The staggering fact is that the Security Council does not have a reasonable record when it comes to maintaining international peace and security in the Middle East: issues related to the region, in general, received 35% of the 250 vetoes of the Permanent Members. Since 2016, the Council has not been able to pass a single resolution on the situation in Palestine. The situation in the Middle East is therefore by far one of the most blocked issues in the Security Council. This speaks of ineffectiveness of the governance system and of the lack of representation of certain parts of the world in this body.

A decision on the humanitarian aspects of the current crises will certainly not redress the historic failure of the Security Council regarding the situation in the Middle East. It will however stop further human suffering now. Thank you.


* * * * 


(Tradução para o português)

Intervenção do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Mauro Vieira, em reunião emergencial do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a situação na Faixa de Gaza

Nova York, 30 de outubro de 2023

 

Ilustres representantes,

Agradeço os relatores pela vasta informação sobre a situação humanitária no terreno e exalto o trabalho de suas equipes, tanto em campo quanto em outros lugares. Eles honram, mais uma vez, o trabalho desta Organização e tudo o que ela representa.

Seguindo as instruções do Presidente Lula, venho diante dos Senhores novamente hoje com um profundo senso de urgência e consternação.

Devemos sempre ter em mente os rostos humanos de ambos os lados do conflito.

Expresso, portanto, as mais profundas condolências do Brasil às famílias e amigos de todos os civis, incluindo a equipe corajosa e dedicada das Nações Unidas, que perderam suas vidas nas crises em curso decorrentes do conflito prolongado em Israel e Palestina, tragicamente reacendido pelos atos terroristas do Hamas contra Israel em 7 de outubro. Nada justifica tais crimes. Todos os reféns devem ser imediata e incondicionalmente libertados, e o acesso a eles pela Cruz Vermelha deve ser imediatamente concedido.

Ao mesmo tempo, a situação atual em Gaza é assombrosa e indefensável, em qualquer padrão humano e segundo o direito humanitário internacional. Uma catástrofe humanitária alarmante desenrola-se diante de nossos olhos, com milhares de civis, incluindo um número avassalador e intolerável de crianças, sendo punidos por crimes que não cometeram. Em 3 semanas, testemunhamos esse conflito ceifar a vida de mais de 8 mil civis, dos quais mais de 3 mil são crianças. Desde a última vez que falei neste Conselho, na semana passada, o número de mortes de crianças aumentou em mil.

Enquanto isso, o Conselho de Segurança realiza reuniões e ouve discursos, sem ser capaz de tomar uma decisão fundamental: pôr fim ao sofrimento humano no terreno. Enquanto milhares em Israel e Palestina choram por seus entes queridos, enquanto os israelenses agonizam com o destino dos reféns, enquanto os gazenses sofrem sob operações militares implacáveis que estão matando civis, incluindo um número intolerável de crianças, nós temos os meios para fazer algo e, ainda assim, repetida e vergonhosamente falhamos.

Desde 7 de outubro, encontramo-nos várias vezes e levamos à consideração quatro projetos de resolução. No entanto, permanecemos em um impasse, devido a discordâncias internas, especialmente entre alguns membros permanentes, e devido ao uso persistente deste Conselho para atingir objetivos autocentrados, em vez de colocar a proteção de civis acima de tudo. A crise humana grave e sem precedentes diante de nós exige o abandono de rivalidades estéreis. O fato de o Conselho não ser capaz de cumprir sua responsabilidade de salvaguardar a paz e segurança internacionais em razão de antigas hostilidades é moralmente inaceitável.

Não nos enganemos. Os olhos do mundo estão voltados para nós e não se desviarão de nossa incapacidade perturbadora de agir. Todos veem que nossa incapacidade de nos unir em resposta às crises humanas que enfrentamos hoje leva a questionar a própria razão de ser deste Conselho. Alguém até escreveu que, não apenas os civis, mas também este órgão está sob os escombros de Gaza. A diferença é que somos nossos próprios salvadores. Só precisamos fazer o que é certo: poupar vidas inocentes do flagelo das guerras.

Pode ainda ser que haja tempo para resgatar este Conselho e manter a esperança que muitos de nós ainda temos em nossa capacidade de honrar nosso mandato sob a Carta das Nações Unidas. Mas isso só será possível se houver vontade política suficiente para alcançarmos compromissos e para sermos minimamente equilibrados e inclusivos em nosso diagnóstico e no caminho a seguir. O fracasso em fazê-lo - mais um fracasso - acarretará um custo cada vez mais alto, acima de tudo em vidas humanas, mas também para o multilateralismo em geral, e para as Nações Unidas e este Conselho, em particular.

Na semana passada, uma esperança pelo consenso parecia surgir, ecoando o apelo do Secretário-Geral por um cessar-fogo humanitário, à medida que a 10ª Sessão Especial de Emergência da Assembleia Geral aprovou uma resolução pedindo um cessar-fogo humanitário que levaria a um cessar das hostilidades. Uma luz no fim do túnel parecia vislumbrar-se também quando o Secretário-Geral, que esteve pessoalmente na região para avaliar a situação no terreno, anunciou a abertura da fronteira de Rafah para algumas entregas iniciais de ajuda, e alguns reféns foram libertados. As Nações Unidas, por meio de seu Secretariado, sob a liderança do Secretário Geral Antonio Guterres, da UNRWA e de outros órgãos e agências, têm trabalhado incansavelmente para enfrentar as crises humanas que enfrentamos. Cabe ao Conselho de Segurança seguir adiante.

O preço da inação é inaceitavelmente alto. A urgência crescente para as famílias dos reféns e a dor insuportável para a população civil de Gaza não podem ser subestimadas. Os primeiros passos positivos dados pelos órgãos e agências da ONU não vão longe o suficiente, à medida que a escalada do conflito torna a situação mais grave a cada hora. A relevância de uma resolução do Conselho de Segurança está na necessidade de ajuda humanitária sustentada e na garantia de condições de trabalho seguras para aqueles envolvidos no resgate de reféns e na prestação de assistência humanitária. O cessar das hostilidades, portanto, beneficia a população civil de ambos os lados. Com o risco de reafirmar o óbvio, quero colocar de forma direta: não pode haver resgate de reféns e ajuda humanitária sob bombardeios.

Por isso, o Brasil e os demais membros do E-10 têm trabalhado incansavelmente para tentar fazer com que este Conselho aja de forma mais decidida, desde a última divergência em torno de propostas de resolução.

Na visão do Brasil, os principais objetivos estão claros: a libertação imediata e incondicional de todos os reféns e o fim da violência, de quaisquer formas que possam ser acordadas sem mais demora, para que a ajuda humanitária rápida, segura, suficiente e desimpedida possa ser entregue à sofrida população de Gaza. Além das 8 mil vidas perdidas, muitas mais estão prestes a encontrar seu destino fatal, uma vez que os hospitais não têm meios para fornecer tratamento básico aos pacientes. Portanto, prover recursos essenciais para aqueles que estão em Gaza, incluindo água, comida, suprimentos médicos, combustível e eletricidade, é urgente e imperativo.

Cirurgias estão sendo realizadas sem anestesia, e vidas estão sendo ceifadas nos hospitais, por falta de energia e dos mais básicos insumos médicos. Alimentos e água estão escassos, e os preços dispararam. E o fluxo de ajuda humanitária, até o momento, basta para muito pouco mais do que uma oportunidade de fotografia.

Tanques e tropas estão no terreno em Gaza, e o tempo para agir está se esgotando. Minhas perguntas a todos aqui são: se não agora, quando? Quantas vidas mais serão perdidas até que finalmente passemos da retórica à ação?

Também é crítico e urgente permitir a evacuação segura e imediata de estrangeiros de Gaza e de outras áreas da região, caso se sintam ameaçados.

Embora todo Estado tenha o direito e o dever de proteger seus cidadãos, as ações devem ser consistentes com o direito internacional e o direito internacional humanitário, em particular com os princípios de distinção, proporcionalidade, precaução, necessidade militar e humanidade. O direito e o dever de proteger a população de um Estado não podem e não devem vir à custa de vidas de civis nem de destruição da infraestrutura civil. Como o Secretário-Geral António Guterres nos lembrou repetidamente: mesmo as guerras têm regras.

Quaisquer ataques indiscriminados contra civis e infraestrutura crítica, bem como a privação de civis de bens e serviços básicos, são moralmente injustificáveis e ilegais sob o direito internacional humanitário. O Brasil condena, veementemente, ações que confundam a linha entre civis e combatentes.

Hoje, a UNRWA lançou luz sobre a realidade sombria e desoladora em Gaza, ao destacar o nível condenável de destruição da infraestrutura civil e a trágica perda de vidas inocentes, incluindo mulheres, crianças e pelo menos 35 de seus funcionários. A Organização Mundial da Saúde tem constantemente recordado a necessidade urgente do cessar da violência e da ação humanitária, num momento em que a infraestrutura de saúde em Gaza está à beira do colapso.

Além das considerações humanitárias imediatas e urgentíssimas, paira a ameaça à estabilidade regional, e quaisquer repercussões poderiam ser catastróficas. O Brasil insta a uma guinada unida em direção à desescalada e apela a todas as partes para agirem com o máximo de contenção. É urgentemente necessário um cessar das hostilidades para criar as condições para um cessar-fogo total, duradouro e respeitado e para a retomada de um processo de paz credível.

Tudo isso está em jogo, enquanto continuamos nossos esforços para fazer com que este Conselho aja com uma única voz.

 

Ilustres Membros do Conselho,

O direito internacional humanitário oferece um caminho claro para evitar ou, ao menos, aliviar significativamente o sofrimento de civis. O quadro para ação coletiva é claro.

Nossa resposta coletiva a essa crise, que todos tememos que só piorará, se nada for feito, será um momento definidor para as Nações Unidas. O fato espantoso é que o Conselho de Segurança não tem um histórico razoável, quando se trata da manutenção da paz e da segurança internacionais no Oriente Médio: questões relacionadas à região, em geral, receberam 35% dos 250 vetos dos Membros Permanentes. Desde 2016, o Conselho não conseguiu aprovar uma única resolução sobre a situação na Palestina. A situação no Oriente Médio é, portanto, de longe uma das questões mais bloqueadas no Conselho de Segurança. Esse fato expressa a ineficácia do sistema de governança e a falta de representação de certas partes do mundo neste órgão.

 

Uma decisão sobre os aspectos humanitários das crises atuais certamente não remediará o fracasso histórico do Conselho de Segurança em relação à situação no Oriente Médio. No entanto, ela impedirá mais sofrimento humano agora. Obrigado.

[Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/intervencao-do-ministro-mauro-vieira-no-conselho-de-seguranca-da-onu]


segunda-feira, 30 de outubro de 2023

O Sul Global não existe - Paulo Roberto de Almeida (Crusoé)

 Meu mais recente artigo publicado na Crusoé, do qual transcrevo alguns trechos: 

4491. “O Sul Global não existe”, Brasília, 12 outubro 2023, 3 p. Artigo sobre uma realidade criada por ideólogos que não apresenta consistência suficiente para ser chamado de grupo político. Artigo para a revista Crusoé, publicado sob o mesmo título (n. 287, 27/10/2023, link: https://crusoe.uol.com.br/Colunistas/o-sul-global-nao-existe). Relação de Publicados n. 1530.


O Sul Global não existe

  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Artigo sobre um conceito criado por ideólogos que não apresenta consistência suficiente para ser chamado de grupo político.

Revista Crusoé, (n. 287, 27/10/2023, link: https://crusoe.uol.com.br/Colunistas/o-sul-global-nao-existe). Relação de Publicados n. 1530. 

 

Ideias contam, afirmam os historiadores, o que parece ser confirmado pela própria história. Certas declarações de líderes políticos ou militares de peso, ao lado de interpretações de filósofos influentes, acabam ganhando foros de atores e fatores decisivos em determinados processos históricos e passam a ser consideradas como tendo o poder de determinar o curso da história e, assim, de mudar a sua própria trajetória.

Pensem, por exemplo, no conceito de “luta de classes”, um corriqueiro lugar comum dos historiadores franceses no seguimento imediato da grande revolução de 1789, mas que acabou virando o eixo central de todo e qualquer processo histórico depois que dois jovens ideólogos alemães converteram essa interpretação derivada dos três grandes estamentos do Antigo Regime em fator crucial de toda e qualquer mudança politica e social: “proprietários e escravos”, “senhores feudais e servos de gleba”, “burgueses e proletários”, todas essas “lutas” seriam o verdadeiro “motor da história”. Era uma abordagem simplista, mas que teve um extraordinário sucesso nos 150 anos seguintes. Considerem, igualmente, o conceito de “complexo de Édipo”, que Freud generalizou a partir da literatura grega clássica e que passou a ser um dos eixos centrais das interpretações psicanalíticas desde então. 

Marx e Freud foram dois grandes pensadores contemporâneos que marcaram de forma indelével o século XX, e isso não tanto por algum poder político concreto de que dispusessem, mas pela simples força de suas ideias, que impregnaram as mentes e as ações de milhares de outros personagens dotados de influência social.

(...)

Esse conceito, tomado de forma unificada para somente um dos lados, é um completo equívoco acadêmico, político e geográfico, o que não o impede de ser utilizado de forma oportunista por políticos populistas. Mas, de forma alguma, a diversidade de nações nele incluídas e a multiplicidade de interesses nacionais agregados aleatoriamente nos Estados hoje componentes podem ser considerados a expressão de um grupo coeso em suas vontades e disponível para uma ação conjunta em face de um Norte hegemônico e dominador. 

Existe alguma possibilidade de que a Rússia neoczarista da atualidade ou de que a China novamente imperial, e com pretensões hegemônicas, possam ser os aliados de um inexistente “Sul Global” na luta pela construção de uma “nova ordem global” que não mais seria dominada pelo “Norte” do atual Ocidente dominador? A hipótese é inverossímil. Aliás, considerar que o Brics possa representar o tal de Sul Global é mais inverossímil ainda.

Para os saudosistas de um antigo terceiro-mundismo político retardatário, o tal de “Sul Global” já não é mais um simples expediente acadêmico equivocado, e sim uma entidade homogênea capaz de ajudá-los em suas pretensões oportunistas de liderar um suposto “bloco” unificado, mas que é tão diáfano quanto inexistente, para todos os efeitos práticos.

 

Brasília, 4449, 12 outubro 2023; revisão: 24/10/2023.

Império Otomano e República da Turquia: uma longa história - Norberto Paredes (BBC Mundo)

 

100 anos de Turquia: como caiu o Império Otomano, a superpotência que queria ser universal

Foto do projeto "Turkiye Century" em um monumento temporário na Praça da Torre do Relógio Galataport, no distrito de Beyoglu, em Istambul.

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A Turquia completa 100 anos em 29 de outubro

“Viva a República! Vida longa a Mustafa Kemal Pasha!", gritaram os legisladores turcos em 29 de outubro de 1923, depois de proclamarem um novo modelo de governo e empossar Kemal Atatürk como primeiro presidente do país que acabava de nascer.

Enquanto muitos comemoravam, outros ainda lamentavam a queda do Império Otomano, uma das maiores superpotências que a humanidade já conheceu.

Neste domingo (29/10), completam-se 100 anos desde o nascimento da Turquia e pouco mais de um século desde a queda definitiva do Império.

O golpe final foi desferido em novembro de 1922, quando a Grande Assembleia Nacional aboliu o cargo de sultão, encerrando aproximadamente 600 anos de história da dinastia Osmanli, a família que liderou o império desde sua fundação, em 1299, até a sua dissolução.

A queda da superpotência, que rivalizou com os países mais poderosos do mundo durante vários períodos da história, foi uma tragédia para os turcos.



O Estado otomano se expandiu por três continentes, governando o que hoje é a Bulgária, o Egito, a Grécia, a Hungria, a Jordânia, o Líbano, Israel, os territórios palestinos, a Macedônia, a Romênia, a Síria, partes da Arábia Saudita e a costa norte de África.

Muitos outros países como a Albânia, Chipre, Iraque, Sérvia, Qatar e Iêmen também eram parcial ou totalmente otomanos.

Em muitas destas nações, no entanto, o legado imperial é tão controverso que alguns preferem esquecê-lo. Em outras, como a Turquia, ele é recordado com nostalgia e como uma época dourada que gera orgulho.


A dinastia Osmanli (ou Casa de Osman) começou com uma oportunidade aproveitada por Osman I, então líder do império Seljuk.

Ao notar a fraqueza de seu império e do vizinho Bizantino, Osman decidiu fundar seu emirado em 1299 na Anatólia, o território hoje conhecido como Turquia

Ele se tornava assim o fundador e primeiro sultão de um Estado turco que logo começaria a se expandir até cobrir mais de 5 milhões de km2.

Os descendentes de Osman, cujo nome às vezes é escrito Ottman ou Othman e de onde veio o termo "Otomano", governaram a poderosa nação durante seis séculos.

A queda de Constantinopla

Fim do Podcast

Olivier Bouquet, professor de História Otomana e do Oriente Médio na Universidade Paris Diderot, destaca que, em 1299, foi fundado apenas um “Estado Turco”.

O Império de fato começaria a tomar forma com a queda de Constantinopla, em 1453.

Com uma entrada simbólica em Constantinopla, montado em um cavalo branco, o sultão Mehmed II pôs fim a mil anos de Império Bizantino e posteriormente ordenou o assassinato de grande parte da população local, forçando o resto ao exílio.

Ele logo repovoou a cidade trazendo pessoas de outras partes do território otomano.

Mehmed II também renomeou Constantinopla para Istambul, a "cidade do Islã", e começou a reconstruí-la.

Assim, a cidade se tornou não só a capital política e militar do império, mas também, devido à sua posição no cruzamento entre Europa, África e Ásia, um importante centro comercial mundial.

A força econômica que o império ganharia deveu-se em grande parte à política de Mehmed II de incentivar o aumento da quantidade de comerciantes e artesãos no seu estado.

Ele encorajou muitos comerciantes a se mudarem para Istambul e estabelecerem negócios lá. Os governantes posteriores continuaram esta política.

Receita do sucesso

Além do fato de o poder máximo ter sido transferido para apenas uma pessoa, evitando rivalidades, Bouquet explica que o império teve sucesso por outros motivos, sendo um dos principais o seu caráter de Estado fiscal-militar.

O chefe turco Osman (1258-1324), considerado o fundador do Império Otomano.

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O chefe turco Osman (1258-1324), considerado o fundador do Império Otomano.

“Era um Estado em que a extração de recursos da riqueza fiscal estava ligada à conquista militar, que tinha o objetivo de adquirir mais riqueza e fazer entrar mais impostos de forma centralizada”, disse o especialista à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Outro elemento propulsor do império, segundo o historiador, foi o seu poderio militar.

Os ataques do exército otomano foram rápidos e contaram com forças especializadas, como o famoso corpo de elite dos janízaros, ou janíçaros, que protegiam o sultão, e os sipaios, uma temida tropa de cavalaria de elite que em tempos de paz era responsável pela cobrança de impostos.

Também desempenharam papel importante a burocracia altamente centralizada do império, que lhe permitiu organizar a distribuição das suas riquezas, o fato do império ser inspirado e unido pelo islamismo, e de toda a sociedade ter o mesmo governante como referência.

“Era em tese uma sociedade que permitia outras religiões e, em teoria, não havia conversão forçada (ao Islã). Mas na verdade houve. Houve uma política de islamização em certos territórios”, diz Bouquet.

Os otomanos também se destacaram por seu pragmatismo: pegaram as melhores ideias de outras culturas e tornaram-as suas também.

Solimão, o Magnífico

Um dos sultões mais conhecidos do império foi Solimão, o Magnífico, que reinou entre 1520 e 1566 e fez com que o seu Estado chegasse aos Balcãs e à Hungria, chegando às portas da cidade romana de Viena.

Solimão, o Magnífico.

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Solimão, o Magnífico

Embora no Ocidente ele seja lembrado como “o Magnífico” e no Oriente como “o Legislador”, Suleiman tinha outros títulos tão exagerados quanto surpreendentes.

Estes incluem "o deputado de Allah na Terra", "Senhor dos Senhores deste mundo", "Dono dos pescoços dos homens", "Refúgio de todas as pessoas em todo o mundo", entre muitos outros que denotam a sua importância.

Um dos seus apelidos mais polêmicos era "Imperador do Oriente e do Ocidente", algo visto por historiadores como um desafio direto à autoridade de Roma que, naquela época, havia sido superada pela autoridade otomana.

Embora o império atingisse sua extensão territorial máxima mais tarde, o período de Solimão, o Magnífico, é considerado no Ocidente como uma era de ouro para os otomanos, quando aconteceram muitas campanhas militares bem-sucedidas.

O império que queria ser universal

O nome “Imperador do Oriente e do Ocidente” também deixa claro que o Império Otomano se via e se considerava como único, sem nenhum igual ou semelhante.

“Aos olhos dos sultões otomanos, não havia outro imperador além do sultão otomano”, explica o historiador Olivier Bouquet.

Sultão Mahmud II saindo da Mesquita Bayezid, Constantinopla, em 1837

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Sultão Mahmud II saindo da Mesquita Bayezid, Constantinopla, em 1837

Segundo ele, a ideia de um império universal vem da herança bizantina e do Islã.

“Eles queriam conquistar todos os territórios onde viviam homens e mulheres”, diz o professor. "Todos os países localizados fora dos 'territórios do Islã' (Dar al-Islam) tinham uma vocação para ser conquistados."

Isso explica a longa duração do Império Otomano: seu exército não tinha limites na conquista de territórios, que avançou durante séculos.

“E o império começou a enfraquecer no momento em que as conquistas ficaram mais difíceis ou param”, acrescenta Bouquet.

O começo do fim

Um dos primeiros episódios a enfraquecer a superpotência em que se transformara o Estado Otomano foi a sua derrota na Batalha de Lepanto, em 1571.

O império enfrentara a Liga Santa, uma coligação militar composta por Estados Católicos e liderada pela monarquia espanhola e um grupo de territórios onde hoje está a Itália.

Esta é descrita como uma das batalhas mais sangrentas que a humanidade viu desde a antiguidade e pôs fim à expansão militar otomana no Mediterrâneo.

A derrota na Batalha de Lepanto em 1571 foi um golpe devastador para o Império Otomano.

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A derrota na Batalha de Lepanto em 1571 foi um golpe devastador para o Império Otomano.

A partir daí terminava a sorte do império, dando espaço a um longo e progressivo declínio.

Vários erros de cálculo somados à instabilidade política e econômica de Istambul no início do século XX acabaram desmoronando um império cujo brilho já estava manchado.

O primeiro foi a Primeira Guerra dos Balcãs (1912-1913), na qual enfrentou a Liga Balcânica (Bulgária, Grécia, Montenegro e Sérvia), que, apoiada pela Rússia, tentava expulsar os otomanos de suas terras.

Militarmente inferior, o Império Otomano perdeu a guerra e com ela todos os seus territórios na Europa, com exceção de Constantinopla e arredores.

Historiadores recordam esta derrota como um ponto de virada e um episódio "humilhante" para os otomanos.

O golpe final

Os territórios otomanos restantes atravessavam um mau momento econômico, devido ao desenvolvimento de outras rotas comerciais, à crescente rivalidade comercial com a América e a Ásia, e ao aumento do desemprego.

Eles também enfrentavam as ambições expansionistas de potências europeias como a Grã-Bretanha e a França.

Além disso, as tensões entre diferentes grupos religiosos e étnicos aumentaram. Armênios, curdos e gregos, entre outros povos, sentiam-se cada vez mais oprimidos pelos turcos.

Com todos esses problemas, Istambul embarcou em uma nova guerra contra uma poderosa aliança liderada pela França, o Império Britânico, os Estados Unidos e a Rússia.

A vitória dos Aliados no Oriente Médio durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi um dos gatilhos para a desintegração do Império Otomano, que já estava com os dias contados.

Depois disso, foram criados o mandato francês na Síria e os mandatos britânicos no Iraque e na Palestina, todos sob a supervisão da Liga das Nações (órgão que precedeu a ONU).

Os otomanos não sabiam que em 1917, no meio da guerra, a França e a Grã-Bretanha já tinham concordado secretamente em dividir seus territórios pelo tratado Sykes-Picot.

Nesse mesmo ano, também foi assinada a Declaração Balfour, documento no qual o governo britânico prometia ao povo judeu um “lar” na região da Palestina, que também fazia parte do império.

Nasce um país: Turquia

Oficialmente, o império deixou de existir em 1º de novembro de 1922, quando o cargo de sultão foi abolido.

Um ano depois nasceu a República da Turquia.

Depois de liderar uma revolução republicana, Mustafa Kemal Atatürk, considerado "o pai da Turquia moderna", tornou-se seu primeiro presidente.

O último sultão do Império Otomano, Mehmed VI, temia ser morto pelos revolucionários e teve de ser retirado de Istambul por agentes britânicos.

Ele acabou exilado na Itália de Benito Mussolini, no balneário de San Remo, mesmo local onde havia sido acertada a divisão de seu império.

Lá ele morreu quatro anos depois, tão pobre que as autoridades italianas confiscaram seu caixão até que as dívidas com comerciantes locais fossem pagas.

Mustafa Kemal Atatürk

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Mustafa Kemal Atatürk governou a Turquia desde a sua criação, por 15 anos.

A república que nascia deixou para trás suas aspirações imperiais e se baseou no Kemalismo, uma ideologia implementada por Atatürk que tinha como valores o republicanismo, o populismo, o nacionalismo, o secularismo, o estatismo e o reformismo.

Muitos historiadores afirmam que o secularismo da Turquia moderna é um “grande” legado do Império Otomano.

Neo-otomanismo

Por outro lado, o califado Otomano continuou brevemente como instituição na Turquia, embora com autoridade bastante reduzida, até que também foi abolido em 3 de março de 1924.

Atualmente, a visão de que a derrota dos otomanos na Primeira Guerra Mundial pôs fim ao seu império é contestada por alguns, que afirmam que a sua queda é culpa do Ocidente.

“A ideia da responsabilidade ocidental (na queda do império) foi assumida durante vários anos pelo regime de Ancara e pelo atual presidente da República Turca (Recep Tayyip Erdogan)”, afirma o historiador Olivier Bouquet.

Recep Tayyip Erdogan

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Recep Tayyip Erdogan

Nos últimos anos, o sentimento de nostalgia que alguns na Turquia sentem pela era otomana alimentou o ressurgimento do chamado neo-otomanismo.

Trata-se de uma ideologia política islâmica e imperialista que, no seu sentido mais literal, defende a honra do passado otomano da Turquia e o aumento da influência turca nas regiões que estiveram sob domínio otomano.

Durante muitas décadas, os líderes da Turquia moderna se esforçaram para se distanciar do legado imperial e do Islã com a intenção de projetar uma face mais “ocidental” e “secular”.

Mas desde sua ascensão ao poder, Erdogan não esconde sua nostalgia pelo passado otomano do seu país e sua herança islâmica.

Prova disso foi a controversa conversão em 2020 da Hagia Sophia – que Atatürk transformou em um dos museus mais emblemáticos de Istambul – em uma mesquita.

Da mesma forma, Erdogan demonstrou repetidamente sua admiração por Selim I, um sultão que liderou uma das maiores expansões do Império Otomano.

Depois de vencer um referendo constitucional em 2017, que expandiu enormemente seus poderes presidenciais, Erdogan fez sua primeira aparição pública no túmulo do antigo sultão otomano.

E, mais recentemente, decidiu dar seu nome a uma das pontes construídas sobre o famoso estreito de Istambul, no Bósforo.

“O Império Otomano desapareceu, mas há um neo-otomanismo que se desenvolveu (…) Há muito mais referências ao Império Otomano hoje do que havia no final do século XX”, conclui Bouquet.