Política
externa: desafios e contradições
Rubens
Ricupero
CEBRI -
Casa das Garças, 25 de fevereiro de 2019.
Encontrei no texto de um jovem
historiador, Daniel Afonso da Silva, frase que define o estado de espírito com
que preparei estes comentários. A frase é
de Ortega y Gasset, que dizia: “No
sabemos lo que nos pasa y esto es precisamente lo que nos pasa, no saber lo que
nos pasa”.
As
palavras de Ortega expressam bem a perplexidade do homem diante de um mundo em
transformação não só vertiginosa, mas sem interrupção. Confrontados por
mudanças bem mais estonteantes que as de então, também nós nos
perguntamos: o que nos passa, o que nos está
a suceder no Brasil e no mundo? Tudo, a política externa e a rigor qualquer
política, tudo parte da resposta que dermos a essa pergunta. Isto é, a
definição da política nasce da maneira certa ou errada com que formos capazes
de apreender e interpretar a realidade interna e externa.
Em 1905, o barão do Rio Branco
comentava: “A verdade é que só havia
grandes potências na Europa e hoje elas são as primeiras a reconhecer que há no
Novo Mundo uma grande e poderosa nação com que devem contar...”. Dessa
percepção acertada da emergência de um novo centro de poder mundial próximo a
nós, Rio Branco extraiu uma decisão: estabelecer na capital dos Estados Unidos
a primeira missão diplomática brasileira em nível de embaixada, fato raro na
época. Para não deixar dúvida a respeito de sua intenção, declarou: “Desloquei o eixo das relações diplomáticas
do Brasil de Londres para Washington”.
Eis aí um exemplo bem-sucedido de
análise precisa da realidade internacional seguida da consequência prática que
se devia retirar dessa percepção. Trinta e cinco anos depois, em meio à
fulminante ofensiva nazista, ao colapso do exército francês, três dias antes da
ocupação de Paris, o ditador Getúlio Vargas, em discurso no encouraçado Minas Gerais, acreditava vislumbrar o “limiar de uma nova era” na qual “os povos vigorosos, aptos à vida, necessitam
seguir o rumo de suas aspirações, em vez de se deterem na contemplação do que
se desmorona e tomba em ruina” (11 de junho de 1940).
Por sorte, o ministro das Relações
Exteriores se chamava Oswaldo Aranha, uma das raras vocações autênticas de político
de forte convicção democrática e liberal que o Brasil produziu. Sua força de
caráter e perseverança, favorecidas pelo oportunismo varguista após a entrada
na guerra dos Estados Unidos, pouparam ao país o erro irreparável do qual os
argentinos se penitenciam até hoje. Como escreveu seu biógrafo Stanley Hilton:
“a história do Brasil poderia ter sido
outra, caso este homem de ação não estivesse à frente da chancelaria nas horas
cruciais de tomada de posição entre as duas grandes coalizões de forças [...]
no final dos anos 1930”.
Esses dois exemplos de passado não
muito distante provam o ponto central da discussão: a fim de acertar em
política, é preciso contar com diagnóstico correto dos problemas e da situação.
Para tanto, o processo decisório deve estar em mãos de pessoas de qualidade
moral e intelectual não necessariamente iguais a Rio Branco e Aranha, mas de
experiência e talentos razoáveis. Será que preenchemos essas duas condições
neste momento?
Antes
de responder, temos de indagar se é possível, a esta altura, cumprir a promessa
de dizer algo de significativo acerca da política externa de Bolsonaro. Na data
de hoje, o governo completa 56 dias de vida. Em parcela não desprezível do
período, esteve quase acéfalo devido à hospitalização do presidente. Em menos
de um mês, o vice-presidente respondeu duas vezes pelo governo, gerando ciúmes
e desconfianças.
Nesse
quadro, de que elementos dispomos para indicar como o Chefe de Estado e seus
principais colaboradores encaram o mundo atual e seus desafios? Normalmente,
deveríamos partir de documentos e discursos programáticos. Nesse capítulo, a
colheita é pobre, por não ter havido tempo talvez ou capacidade intelectual de
produzir textos panorâmicos. Quando a oportunidade se apresentou, como no encontro
de Davos, preferiu-se optar por discurso minimalista, sem maiores
generalizações.
Somos
assim forçados a extrair aqui e ali, de entrevistas, mensagens, discursos, os
fragmentos de uma narrativa que permitam reconstruir o que seria a visão que o
governo tem do mundo e do Brasil. Uma primeira pista, na Apresentação da
mensagem ao Congresso, espanta pela evidente desconexão que revela com a
realidade: “O Brasil resistiu a décadas
de uma operação cultural e política destinada a destruir a essência mais
singela e solidária de nosso povo, representada nos valores da civilização
judaico-cristã”.
Pondo
de lado o reducionismo simplista dessa distorção da história brasileira
recente, a afirmação aplica a nosso país a fórmula com que setores de extrema
direita pretendem explicar a crise do mundo atual. Segundo essa visão, vive-se
no momento uma ofensiva mortal contra a chamada civilização judaico-cristã
conduzida por forças obscuras como o “marxismo cultural”, o “alarmismo
ambiental”, o “globalismo”. Este último é conceito confuso e difuso, uma
espécie de conspiração da ONU, das organizações internacionais, do
multilateralismo, para impor aos países comportamentos contrários à tradição e
à própria natureza, como a ideologia de gênero, a aceitação da diversidade
sexual etc. Em termos concretos, a ameaça viria da China e do seu capitalismo anacronicamente
chamado de “maoísta”.
O
discurso de posse do ministro das Relações Exteriores constitui do começo ao
fim uma diatribe contra a ordem global, da qual promete: “libertar a política externa, [...] libertar o Itamaraty”, pois, “a política externa brasileira estava presa
fora do Brasil”. Peremptoriamente adverte: “Não estamos aqui para trabalhar pela ordem global. Aqui é o Brasil”. O
problema do mundo seria o ódio ao lar, ao próprio povo, o ódio a Deus, que
perfaz a agenda global, com o intuito de acabar com as nações, afastar o homem
de Deus e destruir a humanidade, nada menos que isso.
Obviamente não se pode tomar a sério formulações
como essas, vazias de conteúdo, disparates pronunciados com pompa e falta de
senso do ridículo. Se duvidam do que digo, vejam esta pérola de profundidade
filosófica: “O mito é o mito”. O
texto é todo assim, comprometido pelo exibicionismo pedante de descabidas
digressões filológicas, recheadas de citações em grego. Não falta nem um trecho
em tupi-guarani que reconfortaria o coração do major Policarpo Quaresma,
incompreendido na proposta de adoção da língua brasílica como idioma nacional “por estar adaptada perfeitamente aos órgãos
vocais e cerebrais dos brasileiros”.
Para quem admirava na tradição do Itamaraty
o senso de medida e proporção, o equilíbrio, o realismo, a moderação
construtiva, é penoso constatar que o discurso do sucessor de Rio Branco e
Aranha, de Afonso Arinos e San Tiago Dantas, desperta hoje chacotas, zombarias,
hilaridade. Voltando à pergunta inicial sobre se dispomos de presidente ou
ministro capaz de diagnosticar corretamente a realidade, a resposta que se
impõe é não. Manifestamente, nem o presidente, nem seu ministro, sabem o que
nos passa, são incapazes de compreender a complexidade da sociedade global e de
traçar nela a linha a ser seguida pelo país.
Num
governo heterogêneo no qual o espectro de racionalidade varia bastante de uma
ponta à outra, as relações internacionais se situam infelizmente no extremo periférico
que os americanos chamam de “lunatic
fringe”, a franja lunática das opiniões.
Vejamos
agora o que produziu em termos de ações e iniciativas concretas a combinação de
inépcia diplomática com excentricidade ideológica. Cabem aqui não apenas as
decisões executadas. Também as adiadas ou frustradas após o anúncio devido a reações
desfavoráveis geram efeitos negativos que devem ser debitados aos responsáveis.
Desse ponto de vista, o processo decisório do governo tem sido tão rico em
confusões que um jornalista chegou a comentar que Bolsonaro acertava quando
recuava e errava quando avançava.
O
que mais assombra é que decisões de implicações gravíssimas para a segurança ou
os interesses nacionais são anunciadas e suspensas com leviandade reveladora da
irresponsabilidade de seus autores. É o caso de três desses anúncios: a da
oferta de uma base militar aos Estados Unidos após a visita do Assessor John
Bolton, o da mudança da embaixada brasileira de Tel Aviv a Jerusalém e o da
retirada do Brasil do Acordo de Paris sobre Mudança Climática. Em nenhum desses
exemplos se apresentou qualquer justificativa racional e válida para
fundamentar a decisão.
Uma
base militar constitui, no interior da soberania nacional, um enclave de
jurisdição de potência estrangeira, similar a Guantánamo em Cuba. Em perto de 200
anos de vida independente, somente uma vez o Brasil concedeu bases a outro
país, e isso apenas em situação de guerra, durante a Segunda Guerra Mundial.
Que ameaças sofremos agora para cogitar repetir ação que só se contempla como preliminar
de guerra ou de grave perigo? Que consequências traria para a segurança de
nossa população o eventual uso de uma base para atacar outra nação? Quais as
implicações do ponto de vista da Constituição? é possível tomar decisão de
tamanha gravidade sem aprovação do Congresso?
A
ideia parece haver sido abandonada devido à reação adversa dos militares. No
entanto, o simples fato de ter sido discutida com alta autoridade americana
deixa-nos alarmados e inseguros. Não se esclareceram as circunstâncias desse
episódio obscuro, aspecto essencial para medir-lhe o alcance. De quem partiu a
iniciativa? De Bolton, do presidente Bolsonaro, de Eduardo Bolsonaro, na visita
semiclandestina que efetuou a Washington? Fica-se com a impressão de que na
relação com os EUA, o céu é o limite, como disse o ministro Ernesto Araújo, ou
mais apropriadamente, que não existe nessa relação nenhum limite, nem o da
decência, nem o da soberania ou do patriotismo.
A
motivação da transferência da embaixada em Israel nada tem a ver com interesses
do Estado ou do povo brasileiro. Por considerações eleitorais, destina-se a
atender ao setor mais obscurantista e retrógrado de seitas evangélicas que impõem
ao governo suas bizarras crenças escatológicas. A proposta fere de frente a
Constituição da República, leiga e independente de qualquer fé religiosa. O
Brasil sempre defendeu que a fixação definitiva da capital deveria se
subordinar a acordo resultante de negociações entre Israel e os palestinos,
inspiradas na teoria da coexistência dos dois Estados.
Na
ausência de solução negociada, a transferência da embaixada significaria tomar
partido em favor de medida imposta por conquista militar, abandonando a
equidistância entre as partes. Passaríamos a ser vistos como aliados do lado
israelense, inimigos dos palestinos e de uma saída negociada e pacífica para o
conflito no Oriente Médio aos olhos dos árabes e das centenas de milhões de
muçulmanos do mundo inteiro.
O
governo não foi capaz de apontar um só interesse objetivo do Brasil, de ordem política,
comercial, de imagem e de soft power, que
seria servido por tal decisão. Ao contrário, os riscos de prejuízos são
consideráveis e evidentes. Basta lembrar que nada menos que quarenta e nove por
cento do total das vendas brasileiras de proteína animal se destina a mercados
árabes e do Irã. A mobilização dos setores exportadores ameaçados deteve até o
momento a marcha da insensatez.
Ainda
que a medida não se concretize, o simples anúncio seguido de incontáveis idas e
vindas cria a sensação de governo errático e não confiável. Muito mais que as
perdas comerciais, já perceptíveis na mudança de atitude da Arábia Saudita, do
Egito e outros árabes, talvez seja irreparável o dano político causado à reputação
no Oriente Médio de uma diplomacia outrora respeitada pelo equilíbrio e estabilidade.
Bem
mais avariada sai a reputação da diplomacia brasileira do quiproquó relativo ao
Acordo de Paris sobre Clima. O presidente Bolsonaro anunciara a princípio que seu
governo se retiraria do Acordo invocando razões inteiramente falsas, dignas das
fake news de seu modelo inspirador
Donald Trump. Alegou que o tratado violava a soberania do país, impondo-lhe
metas inatingíveis.
Na
verdade, uma das características do instrumento e sua principal fraqueza é que
as metas são voluntárias e definidas pelos países, por isso mesmo denominadas NDCs
(Nationally Determined Contributions) ou
Contribuições Determinadas Nacionalmente. Ora, pouco antes da afirmação de
Bolsonaro, o então ministro do Meio Ambiente do governo Temer, Edson Duarte,
havia anunciado (13/12/2018) que o Brasil se antecipara em dois anos ao
cumprimento da meta de redução de emissões, que deveria ser atingido apenas em
2020.
A
segunda razão invocada pelo desinformado presidente é que o Acordo forçaria
goela abaixo do Brasil algo misterioso intitulado Corredor Tríplice A ou Caminho
da Anaconda. Trata-se de proposta de Martin von Hildebrand, americano
naturalizado colombiano, para preservar uma faixa de floresta de 200 milhões de
hectares dos Andes até o Atlântico pela Amazônia, seguindo o curso do Solimões,
através de terras de oito países amazônicos, onde vivem 385 comunidades
indígenas e 30 milhões de pessoas. A mera enunciação dos números evidencia o
caráter de ficção da ideia, do mesmo gênero que o famoso projeto dos Lagos, do
Hudson Institute, nos anos 1970. A elucubração jamais saiu do papel e nunca
chegou sequer às discussões oficiais conducentes ao Acordo de Paris, que, como
recordamos acima, se baseia em contribuições voluntárias dos governos.
O
que salvou o Acordo foi a intervenção de um dos principais apoios do
presidente, o agronegócio. Inúmeros componentes do agro, do setor de produtos
florestais ao do cacau e café, alertaram que dependiam do Acordo para acessar centenas
de milhões de dólares disponíveis para projetos de desenvolvimento agropecuário
sustentáveis. Visivelmente a contragosto, o governo teve de admitir que “por
ora” não deixaria o tratado.
De
qualquer forma, a sobrevida precária que assim se conferiu à presença
brasileira no Acordo apenas atenua um pouco, sem mudar em substância, o abalo
dramático e perdurável ocasionado ao respeito de que desfrutou nossa diplomacia
ambiental. Fomos um dos principais artífices do tratado, confirmando que no
domínio do meio ambiente nenhuma solução pode ser alcançada sem a participação
ativa do nosso país, potência ambiental graças à maior floresta equatorial do
mundo, à maior reserva de água doce, ao imenso patrimônio de biodiversidade, à
riqueza de alternativas de energia limpa e sustentável. Como classificar uma
diplomacia que joga fora esse ativo na questão que constitui a mãe de todas as
ameaças, o risco mais grave à sobrevivência da civilização humana no planeta?
O
que existe de comum entre os três anúncios – o da base militar, da
transferência da embaixada e da retirada do Acordo de Paris – é que em todos, o
governo Bolsonaro adere à agenda de Donald Trump de maneira mecânica e caudatária.
Uma das semelhanças entre os dois governos é que tanto Trump como seu discípulo
brasileiro insistem em romper com tudo o que se fazia nos governos
anteriores.
Em
menos de dois meses, o governo Bolsonaro pode jactar-se de haver efetivamente promovido
a demolição radical da política externa que, em linhas gerais, vinha sendo
seguida desde o governo Geisel. Essa orientação mereceu em 1984 de Tancredo
Neves, líder da oposição, o seguinte juízo: “Se há um ponto na política brasileira que encontrou consenso em todas
as correntes de pensamento, esse ponto é a política externa levada a efeito
pelo Itamaraty.”
Depois
da redemocratização, não houve solução de continuidade na política externa. Sua
essência consistia na recusa da lógica da Guerra Fria e do alinhamento
automático à visão e à agenda dos EUA e das grandes potências. Gelson Fonseca
resumiu a diplomacia do governo FHC numa fórmula que se aplicaria a rigor a muitos
governos desde 1985, mesmo aos do PT: a
busca da autonomia pela participação. Ao fazer do alinhamento com os
Estados Unidos a marca definidora de sua política externa, o governo Bolsonaro
causa uma ruptura na linha diplomática brasileira dos últimos 44 anos.
Retrocede
ao momento imediatamente posterior ao golpe militar no governo Castelo Branco e
ao chamado alinhamento automático dos tempos áureos da Guerra Fria, no governo
Dutra da segunda metade dos anos 1940. Com um agravante: naquela época, os
dirigentes brasileiros encaravam a luta contra a União Soviética liderada pelos
americanos como equivalente ao combate interno contra o Partido Comunista e a
subversão. Em outras palavras, havia coincidência entre a agenda interna do
Brasil e a agenda internacional dos EUA.
Essa
coincidência desapareceu com o fim da Guerra Fria, do comunismo e da União
Soviética. Desde então, a agenda internacional americana se concentra em temas como
a contenção da ascensão da China; o antagonismo com a Rússia; os problemas
derivados das invasões do Afeganistão, do Iraque, da queda de Gaddafi na Líbia,
as ameaças do terrorismo fundamentalista islâmico; o programa nuclear e de
mísseis da Coreia do Norte; a hostilidade ao Irã e sua influência na Síria; a
contenção da imigração. Nenhum desses assuntos tem algo a ver com interesses
brasileiros e em certos aspectos até os contrariam.
Os
entusiastas do alinhamento não vão demorar a descobrir que os americanos são
amos insaciáveis e intratáveis, que exigem adesão total e sem reservas. Não se
contentam com relações platônicas. Por haver intuído isso, o finado chanceler
argentino Guido Di Tella havia proclamado em tom de deboche: “No queremos tener relaciones platónicas:
queremos tener relaciones carnales y abyectas”.
A
sujeição à agenda de Trump começou cedo. Em meados de fevereiro, o ministro do
Exterior compareceu, sem qualquer justificativa de interesse brasileiro, à
reunião de Varsóvia convocada pelos EUA para apertar o cerco contra o Irã. A reunião
foi um fracasso, pois se abstiveram de participar os ministros de relações
exteriores da França, da Alemanha e da União Europeia, justamente os que os
americanos desejavam pressionar a abandonar o acordo nuclear com os iranianos. Entretanto,
a presença do Brasil como coadjuvante do coro pró-americano chama a atenção
para fato alarmante.
Por
motivação puramente ideológica e a fim de agradar os americanos, a diplomacia
atual está disposta a sacrificar interesses brasileiros concretos. O Irã
representa 7% do total das exportações brasileiras de carne, tanto quanto a
União Europeia. No ano passado, vendemos aos iranianos um bilhão de dólares de
milho, mais de quinhentos milhões de soja, 328 milhões de carnes. O intercâmbio
com Teerã rendeu ao Brasil seu quinto maior superávit comercial. Os
exportadores brasileiros estão sendo obrigados a despachar seus produtos
através do território da Turquia. Que interesse teria o país em prestigiar as
sanções americanas, unilaterais, ilegais e prejudiciais ao comércio brasileiro?
Mas
o verdadeiro preço que o governo Trump cobrará de Bolsonaro não é o Irã, nem a
embaixada em Jerusalém, ou a saída do acordo de Paris. O objetivo primordial da
estratégia norte-americana reside na contenção da China, na luta para impedir
que os chineses alcancem a superioridade em tecnologias de ponta que lhes
assegure a posição de primeira superpotência mundial. É isso que está em jogo
no conflito comercial entre os dois gigantes. O Brasil, assim como a América
Latina, a África e outras regiões passam a ser cenários da disputa estratégica.
Em
recente entrevista a O Estado de São
Paulo, ao ser indagado sobre o que Trump espera do governo Bolsonaro, Steve
Bannon respondeu: “Claramente, há uma
preocupação com a China [...] O Brasil será um dos campos de batalha, pois a
China não vê o Brasil pelo seu capital humano [...] O que eles veem é uma ampla
oportunidade de recursos naturais e de agricultura. O tipo de capitalismo que
fazem no Brasil e na África subsaariana [...]é o capitalismo predatório dos
chineses que tem de ser contido. Um dos locais-chave para contê-lo é o Brasil.”
Essa
opinião não mereceria maior atenção se fosse restrita a Bannon ou mesmo aos
governantes de Washington. O problema é que ela se parece estranhamente à visão
do próprio Bolsonaro, segundo o qual a China quer comprar o Brasil, não comprar
do Brasil. Após essa declaração, puseram-se panos quentes, o presidente-eleito
recebeu o embaixador chinês, o mesmo fez o vice, general Mourão. É inegável,
porém, que a relação Brasil-China se rachou, acendeu-se uma luz amarela e as
coisas não serão mais o que eram antes.
Bolsonaro
já atribuiu a motivos ideológicos a expansão do comércio brasileiro com a China
e prometeu fazer com que o intercâmbio do Brasil com os EUA volte a ser dominante
em nossas trocas externas. Para uma plateia qualificada como esta, não preciso
demonstrar com números e porcentagens porque o mercado chinês desempenha papel
insubstituível no saldo comercial e nas relações econômicas externas do país.
Tampouco
necessito mencionar que o progressivo declínio das exportações brasileiras ao
mercado americano se deve a fatores dificilmente reversíveis: a concentração de
nossas vantagens comparativas em produtos primários nos quais os EUA são nossos
concorrentes (soja, milho, carne bovina, de frango, suco de laranja, algodão), o
colapso da competitividade exportadora da indústria, a diversificação de nossos
mercados, as cadeias integradas de valor com o contíguo México que os
americanos consolidaram ao longo de 25 anos do NAFTA etc.
Há
uma contradição insanável entre o populismo antiglobalista, alma do governo, e
o liberalismo de Guedes, avesso a subsídios, empenhado na abertura da economia,
na redução das barreiras e na inserção do país na economia global. Na primeira
escaramuça acerca da importação de leite em pó, o setor ruralista impôs uma
derrota à equipe econômica. Haverá outras, pois as contradições estão por todo
o lado, como entre evangélicos e o agronegócio na questão da mudança da
embaixada.
A
insensibilidade para interesses concretos deriva da incapacidade de perceber a
realidade, a brasileira e a internacional. Significativa do descolamento da
realidade é a lista tanto dos países nominalmente privilegiados no discurso de
posse do chanceler quanto as omissões, talvez mais eloquentes ainda. Nomeados
individualmente foram apenas os EUA de Trump, o Israel de Netanyahu, a “nova” Itália de Salvini, a Hungria de Viktor
Orban e a Polônia. A mistura é digna de uma salada russa. O tempero que lhe dá
unidade é o caráter iliberal ou antiliberal dos regimes, a hostilidade a
imigrantes e refugiados, o nacionalismo, a negação dos direitos humanos, dos
problemas ambientais, da promoção da igualdade entre mulheres e homens.
Pertencer
a esse grupo é condenar-se ao isolamento e à reprovação da opinião pública
mundial. Para o Brasil, é retroceder aos tempos do regime militar. Nessa época,
o país cultivava o mau hábito de sair esmagado nas votações da ONU, na
companhia solitária do Portugal salazarista, da África do Sul do apartheid, de
Israel e dos EUA. Sofríamos, segundo o embaixador Araújo Castro, do complexo de
Greta Garbo (I want to be alone), eu
quero ficar sozinha. É o que nos espera novamente.
Em
outras palavras, vamos perder, se é que já não perdemos, a única coisa que nos restou
depois que o colapso político-econômico dos últimos anos liquidou, dentro e
fora do Brasil, a imagem de um país que tinha dado certo. O que sobrara, não
obstante o fracasso, era um patrimônio não desprezível de poder brando ou suave, de
soft power, de respeito por uma
diplomacia profissional competente, comedida, força construtiva de moderação e
equilíbrio. Agora, restará apenas o fracasso.
Dentre
as omissões do discurso oficial, destacam-se a Argentina, o Mercosul, o México,
a Aliança do Pacífico, a União Europeia, a China, a Ásia, a Índia, o grupo dos
BRICS, o Oriente Médio, em resumo, as áreas de concentração das oportunidades
de exportação, a começar pelo agro. Outro exemplo da incapacidade de reconhecer
o interesse nacional é o da migração. Em contraste com os EUA de Trump, o
Brasil é hoje país de emigração, muito mais que de imigração. Que sentido tem
então retirar a assinatura do Pacto Global para Migração, de cuja proteção
poderiam beneficiar-se três milhões de brasileiros emigrantes?
Nas
últimas semanas, a crise venezuelana ofereceu ao Brasil a oportunidade de
aglutinar os latino-americanos em torno de uma solução para restabelecer a
democracia sem interferência de potências de fora. Poderíamos ter proposto um
programa mínimo com base na realização de eleições sob administração de
transição e fiscalização internacional. Preferimos passivamente deixar a
iniciativa e a liderança ao governo Trump, aceitando figurar como atores
coadjuvantes de uma empresa sobre a qual não exercemos nenhum controle.
Colaboramos para fazer a América do Sul retroceder a cenário de rivalidade de
EUA e Rússia.
Não
admira que os diplomatas estrangeiros tenham começado a gravitar em torno do vice,
general Mourão, que desponta surpreendentemente, em meio ao desvario ideológico,
como fonte de sensatez e realismo. Simplesmente por ter os pés no chão, começa
a acumular poder.
Sobre
os menos de dois meses da política externa, não resta muito a dizer. Deixei de
fora os aspectos mais extravagantes e os mais inquietantes, entre eles o
patrulhamento ideológico no Instituto Rio Branco, no Instituto de Pesquisas em
Relações Internacionais, a reforma administrativa açodada feita por estranhos
ao Itamaraty, imposta de cima para baixo, com violação da hierarquia funcional,
subversão de práticas e procedimentos testados na experiência.
A
partir de agora, as viagens presidenciais aos EUA e Israel previstas para março
devem começar a produzir, se não resultados concretos de monta, ao menos
exposições mais sistemáticas do que pretende o governo com a diplomacia. Pela
amostragem que vimos, é difícil esperar grande coisa.
Afinal, o próprio vice-presidente, general
Mourão, em entrevista à Época, e cito
aqui a matéria “ironizou o destaque aos
EUA e a Israel dado pelo chanceler nas relações diplomáticas. -Vai todo mundo
virar israelense desde criancinha? Vai todo mundo virar fã dos americanos de
qualquer jeito? Indagou em tom de troça. – A diplomacia são métodos e
objetivos, não um fim. É preciso inserir conceitos claros, não interferir em assuntos
de outros países”.
E,
sugeriu como título da reportagem: “Terá
Ernesto condições para tocar e dizer o que é a política externa do Brasil?” Termino
com os comentários e a pergunta do general, pois não saberia encontrar melhor
fecho.
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Meu comentário (PRA) final:
O diplomata mais lúcido do Brasil, o mais completamente equipado com conceitos precisos, conhecimento histórico, equilíbrio de posições, domínio da matéria, sensatez na defesa de posições solidamente ancoradas em tradições diplomáticas brasileiras, clareza na expressão de suas opiniões, coragem de veicular críticas fundamentadas em fatos, declarações, demonstrações de bizarrices detectadas no seu terreno de atuação ao longo de décadas de uma rica vida pública, o George Kennan brasileiro, formula, em algumas páginas contundentes, o mais incisivo e poderoso diagnóstico da não diplomacia atual, a carência de uma verdadeira política externa. Serve para reflexão e para alimentar debates subsequentes, que virão certamente, junto com diatribes, contestações e ironias indevidas...