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terça-feira, 8 de abril de 2025

O tarifaço de Trump e o Brasil - Rubens Barbosa (Estadão)

 Opinião :  

O tarifaço de Trump e o Brasil

Comunicado oficial do Itamaraty está correto. A retórica radical de retaliação deve ser substituída por medidas concretas de reciprocidade, apoiadas na nova lei aprovada pelo Congresso

Por Rubens Barbosa

Estadão, 08/04/2025 


A reciprocidade tarifária anunciada por Donald Trump visa, em especial, a compensar as restrições tarifárias e as medidas não tarifárias que afetam os produtos norte-americanos e que dificultam a implementação de uma política industrial que favoreça os interesses das empresas norte-americanas. Na realidade, a medida poderá representar um dos maiores atos de autossabotagem na história dos EUA.

As tarifas universais são variáveis, oscilando de 10% a 49%, entram em vigor imediatamente e serão acrescentadas às tarifas já em vigor, dependendo do produto e do país, além das aplicadas ao aço e ao alumínio e à importação de carros. Os países agora terão de negociar a redução dessas tarifas variáveis com compensações para os EUA. Vietnã e Israel resolveram, antes do anúncio, eliminar as tarifas para os produtos norte-americanos. México, Canadá e União Europeia já deixaram saber que vão retaliar de forma proporcional. A China retaliou com tarifas no mesmo nível: 34% sobre os produtos norte-americanos. Trump disse que, se isso de fato ocorrer, irá treplicar e impor tarifas ainda mais elevadas. Estaria, assim, declarada uma dura guerra comercial global com impactos imprevisíveis. Com base na experiência passada, em especial nos idos de 1930, com a Lei Smoot-Hawley, que elevou as tarifas e isolou os EUA, pode-se antever a possibilidade de uma recessão global, com inflação, desemprego e crise cambial, ao contrário dos objetivos enunciados por Trump.

Em relação à China, o país com o maior superávit no comércio bilateral com os EUA, Trump tomou uma série de medidas, além das tarifas. Entre elas, decisão de conter investimentos em tecnologia e energia nos EUA, de revisar o acordo para evitar a bitributação de 1984 e de impor, a partir de novembro, taxas pesadas sobre navios chineses que buscam os portos norte-americanos com bens de qualquer outro país, para reduzir o domínio chinês no transporte marítimo. Essa taxação teria um efeito dramático sobre o comércio global pelo aumento no preço do frete e no custo final dos produtos no mercado norte-americano.

A região mais prejudicada foi a Ásia (China, com 34%; Vietnã, com 46%; Tailândia, com 31%; Indonésia, com 32%; Malásia, com 24%; e Taiwan, com 32%). O continente menos afetado foi a América Latina, com 10%, à exceção do México, que foi penalizado com múltiplas tarifas. À Rússia e à Coreia do Norte, zero de tarifa...

O anúncio da decisão causou alívio inicial ao governo brasileiro, visto que o País ficou no nível mais baixo das tarifas, com 10% sobre a exportação de produtos brasileiros. Isso pode ser explicado pelo fato de o Brasil ter um déficit (não um superávit) na balança comercial com os EUA, com poucos produtos com tarifas mais elevadas (etanol 18%, ante 2% dos EUA). As barreiras não tarifárias vigentes, identificadas no documento Barreiras contra o Comércio Exterior, produzido pelo United States Trade Representative (USTR), não foram consideradas. Dependendo da evolução das negociações bilaterais, não se deve descartar a possibilidade de, no futuro, o governo de Washington vir a penalizar as barreiras mencionadas no referido documento, como IPI, impostos sobre serviços audiovisuais, remessas relacionadas com obras audiovisuais, restrições à importação de equipamentos de terraplenagem, importação de bens de consumo usados, regulamentações sobre biocombustíveis, barreiras sanitárias e fitossanitárias, compras governamentais, comércio digital e propriedade intelectual.

O governo brasileiro, no nível mais alto, declarou que essas medidas unilaterais são contrárias às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e que a primeira reação será levar o caso para a OMC em Genebra, a exemplo do que já anunciaram a China e o Canadá. Além dessa medida, Lula disse que o Brasil poderia retaliar. Altos funcionários em Brasília disseram que o governo “está habilitado a tomar contramedidas que afetem os EUA, como retaliação cruzada, em propriedade intelectual, mas que não sejam um tiro no pé”.

No meio das crescentes incertezas quanto às medidas protecionistas dos EUA, o Brasil deveria negociar a volta de cotas, em vez de tarifas, sobre o aço e o alumínio e formas de reduzir o impacto negativo das medidas anunciadas sobre os produtos nacionais. A curto prazo, com a escalada das medidas protecionistas globais, será importante atentar à possibilidade de desvio de comércio para o mercado brasileiro.

Como ficou no nível mais baixo das tarifas variáveis, o Brasil não tem alternativa senão aguardar as reações ao redor do mundo, em especial do Canadá, do México, da União Europeia, da China e do Japão. A partir daí, apresentar queixa à OMC e avaliar como negociar com os EUA. O comunicado oficial do Itamaraty está correto ao anunciar uma posição de cautela para os próximos passos. A retórica radical de retaliação aos EUA deve ser deixada de lado e substituída por medidas concretas de reciprocidade, apoiadas na nova lei de defesa comercial aprovada pelo Congresso.

O cenário mundial, em rápida transformação e ebulição, exige uma visão estratégica e pragmática da parte do governo brasileiro, acima de ideologia e partidarismo, para a defesa do interesse nacional, aproveitamento das oportunidades e resposta aos desafios que surgirão para o Brasil.

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004) oficial do Itamaraty está correto. A retórica radical de retaliação deve ser substituída por medidas concretas de reciprocidade, apoiadas na nova lei aprovada pelo Congresso

Por Rubens Barbosa

Estadão, 08/04/2025 


A reciprocidade tarifária anunciada por Donald Trump visa, em especial, a compensar as restrições tarifárias e as medidas não tarifárias que afetam os produtos norte-americanos e que dificultam a implementação de uma política industrial que favoreça os interesses das empresas norte-americanas. Na realidade, a medida poderá representar um dos maiores atos de autossabotagem na história dos EUA.

As tarifas universais são variáveis, oscilando de 10% a 49%, entram em vigor imediatamente e serão acrescentadas às tarifas já em vigor, dependendo do produto e do país, além das aplicadas ao aço e ao alumínio e à importação de carros. Os países agora terão de negociar a redução dessas tarifas variáveis com compensações para os EUA. Vietnã e Israel resolveram, antes do anúncio, eliminar as tarifas para os produtos norte-americanos. México, Canadá e União Europeia já deixaram saber que vão retaliar de forma proporcional. A China retaliou com tarifas no mesmo nível: 34% sobre os produtos norte-americanos. Trump disse que, se isso de fato ocorrer, irá treplicar e impor tarifas ainda mais elevadas. Estaria, assim, declarada uma dura guerra comercial global com impactos imprevisíveis. Com base na experiência passada, em especial nos idos de 1930, com a Lei Smoot-Hawley, que elevou as tarifas e isolou os EUA, pode-se antever a possibilidade de uma recessão global, com inflação, desemprego e crise cambial, ao contrário dos objetivos enunciados por Trump.

Em relação à China, o país com o maior superávit no comércio bilateral com os EUA, Trump tomou uma série de medidas, além das tarifas. Entre elas, decisão de conter investimentos em tecnologia e energia nos EUA, de revisar o acordo para evitar a bitributação de 1984 e de impor, a partir de novembro, taxas pesadas sobre navios chineses que buscam os portos norte-americanos com bens de qualquer outro país, para reduzir o domínio chinês no transporte marítimo. Essa taxação teria um efeito dramático sobre o comércio global pelo aumento no preço do frete e no custo final dos produtos no mercado norte-americano.

A região mais prejudicada foi a Ásia (China, com 34%; Vietnã, com 46%; Tailândia, com 31%; Indonésia, com 32%; Malásia, com 24%; e Taiwan, com 32%). O continente menos afetado foi a América Latina, com 10%, à exceção do México, que foi penalizado com múltiplas tarifas. À Rússia e à Coreia do Norte, zero de tarifa...

O anúncio da decisão causou alívio inicial ao governo brasileiro, visto que o País ficou no nível mais baixo das tarifas, com 10% sobre a exportação de produtos brasileiros. Isso pode ser explicado pelo fato de o Brasil ter um déficit (não um superávit) na balança comercial com os EUA, com poucos produtos com tarifas mais elevadas (etanol 18%, ante 2% dos EUA). As barreiras não tarifárias vigentes, identificadas no documento Barreiras contra o Comércio Exterior, produzido pelo United States Trade Representative (USTR), não foram consideradas. Dependendo da evolução das negociações bilaterais, não se deve descartar a possibilidade de, no futuro, o governo de Washington vir a penalizar as barreiras mencionadas no referido documento, como IPI, impostos sobre serviços audiovisuais, remessas relacionadas com obras audiovisuais, restrições à importação de equipamentos de terraplenagem, importação de bens de consumo usados, regulamentações sobre biocombustíveis, barreiras sanitárias e fitossanitárias, compras governamentais, comércio digital e propriedade intelectual.

O governo brasileiro, no nível mais alto, declarou que essas medidas unilaterais são contrárias às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e que a primeira reação será levar o caso para a OMC em Genebra, a exemplo do que já anunciaram a China e o Canadá. Além dessa medida, Lula disse que o Brasil poderia retaliar. Altos funcionários em Brasília disseram que o governo “está habilitado a tomar contramedidas que afetem os EUA, como retaliação cruzada, em propriedade intelectual, mas que não sejam um tiro no pé”.

No meio das crescentes incertezas quanto às medidas protecionistas dos EUA, o Brasil deveria negociar a volta de cotas, em vez de tarifas, sobre o aço e o alumínio e formas de reduzir o impacto negativo das medidas anunciadas sobre os produtos nacionais. A curto prazo, com a escalada das medidas protecionistas globais, será importante atentar à possibilidade de desvio de comércio para o mercado brasileiro.

Como ficou no nível mais baixo das tarifas variáveis, o Brasil não tem alternativa senão aguardar as reações ao redor do mundo, em especial do Canadá, do México, da União Europeia, da China e do Japão. A partir daí, apresentar queixa à OMC e avaliar como negociar com os EUA. O comunicado oficial do Itamaraty está correto ao anunciar uma posição de cautela para os próximos passos. A retórica radical de retaliação aos EUA deve ser deixada de lado e substituída por medidas concretas de reciprocidade, apoiadas na nova lei de defesa comercial aprovada pelo Congresso.

O cenário mundial, em rápida transformação e ebulição, exige uma visão estratégica e pragmática da parte do governo brasileiro, acima de ideologia e partidarismo, para a defesa do interesse nacional, aproveitamento das oportunidades e resposta aos desafios que surgirão para o Brasil.

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)

terça-feira, 25 de março de 2025

Defesa e soberania nacional - Rubens Barbosa (Estadão)

Opinião : Defesa e soberania nacional

Num mundo de incertezas, não se pode mais ignorar as atuais vulnerabilidades das Forças Armadas
Por Rubens Barbosa
Estadão, 25/03/2025

A evolução da economia global e a ordem política internacional nunca estiveram tão incertas e inseguras. A mudança da política externa dos EUA em relação à Rússia, aos aliados europeus e à Otan, caso mantida nos próximos anos, acarretará profundos impactos em todos os países, sobretudo nos em desenvolvimento. As transformações no cenário internacional terão consequências nos seus esforços para alcançar os objetivos relacionados ao desenvolvimento econômico e social e à segurança para a preservação da soberania nacional.
O Brasil é uma potência média, a 10.ª economia do mundo, 210 milhões de habitantes e território continental, cujo objetivo é se tornar um país plenamente desenvolvido. A estratégia nacional, além do desenvolvimento, deveria ter como objetivo a segurança interna e externa, levando em conta o ambiente internacional de que extraímos recursos, know-how, tecnologia e investimentos para o desenvolvimento do País, mas que também poderá vir a representar ameaças à soberania nacional.
As grandes vulnerabilidades na área da Defesa são a quase completa dependência do fornecimento de equipamento bélico dos EUA e da Otan e a imprevisibilidade orçamentária. A Lei Orçamentária aprovada pelo Congresso não reflete as necessidades reais das Três Forças, cujas despesas discricionárias estão muito abaixo do que seria necessário para atender aos projetos especiais. A obsolescência dos equipamentos, especialmente os da Marinha, e a falta de previsibilidade orçamentária dificultam um planejamento de médio e longo prazos, agravado agora pela instabilidade no cenário global. As áreas prioritárias definidas na Estratégia Nacional de Defesa, cibernética, nuclear e espacial, requerem investimentos, que são insuficientes. A Base Industrial de Defesa se ressente da baixa aquisição de seus produtos pelo governo (diferente do que ocorre em outros países), da falta de apoio oficial para o financiamento das exportações e de maior estímulo à pesquisa e desenvolvimento no setor. O esforço para uma autonomia gradual das Forças Armadas exige um planejamento de longo prazo (10 a 20 anos), que deveria incluir o processo de atualização conceitual das Três Forças, material e orçamentário, com a redução de seu efetivo, com maior mobilidade e aquisição de equipamentos modernos e mais adequados às realidades das novas formas de ameaças internas e externas, com a criação de uma base logística de defesa, independente do Ministério da Defesa, como ocorre em outros países desenvolvidos para racionalizar a aplicação dos investimentos. Tudo isso acarretaria uma redução no custo de pessoal e um gasto mais eficiente.
No entorno geográfico, o Brasil tem fronteira com dez países, crescentes problemas com o crime transnacional pelo tráfico de drogas, de armas e, mais recentemente, pelo garimpo ilegal na Amazônia. No litoral, a proteção dos campos de petróleo no território marítimo e o crime transnacional são preocupações. Nas duas frentes, as Forças Armadas não estão adequadamente equipadas para a defesa da soberania e do território nacionais. Em tempos em que se menciona a possibilidade de aquisição da Groenlândia e a retomada do Canal do Panamá, é bom lembrar a riqueza mineral e a biodiversidade da Amazônia, sem falar na disponibilidade da água, cada vez mais fatores estratégicos. Por outro lado, numa região livre de conflitos armados surgiu a ameaça de a Venezuela atacar a Guiana para atender a reivindicação territorial, o que representa um desafio para a Defesa nacional e poderia acarretar a presença de bases militares externas na América do Sul, contrariando a tradicional posição do governo brasileiro.
Nesse contexto, cresce a necessidade de definir, dentro do objetivo nacional de segurança, uma estratégia de Defesa. Essa necessidade, imposta agora de fora para dentro, esbarra em dois obstáculos: a cultura nacional e a vontade política interna. O contexto histórico tem direta influência sobre esses dois fatores: de um lado, a ausência de conflitos armados nos últimos 150 anos e de uma evidente ameaça externa que ponha em risco nosso território, e, de outro lado, as reservas políticas em relação às Forças Armadas em razão das sucessivas interferências na vida política do País desde o início da República, em 1889.
Num mundo de incertezas, não se pode mais ignorar as atuais vulnerabilidades das Forças Armadas e a necessidade do fortalecimento da indústria nacional de Defesa. E, com base na nova atitude profissional das Forças Armadas nos últimos 40 anos, examinar, de forma transparente, a normalização do relacionamento entre civis e militares com a definição de regras e práticas de um efetivo controle do Executivo, Legislativo e Judiciário sobre os militares, como em muitos países. A reformulação do artigo 142 da Constituição e a aprovação da PEC sobre a participação de militares na política devem ser examinadas dentro desse contexto. Com isso, seria virada uma página delicada da história nacional e seriam superadas as resistências para o fortalecimento institucional da Forças Armadas.
Neste novo cenário interno e externo, torna-se urgente incluir a Defesa na discussão sobre o lugar do Brasil no mundo e sobre seus objetivos de médio e longo prazos, acima da divisão e da polarização interna.

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/defesa-e-soberania-nacional/

terça-feira, 11 de março de 2025

Trump-Zelenski e o diálogo meliano - Rubens Barbosa O Estado de S. Paulo

Opinião:  Trump-Zelenski e o diálogo meliano

Poucas vezes a conhecida observação de que ‘a História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa’ foi tão apropriada

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 11/03/2025 | 03h00


O confronto entre os presidentes Donald Trump e Volodmir Zelenski na Casa Branca traz lembranças históricas e indica incertezas para o futuro.

Ocorreu-me recordar um episódio – o diálogo meliano – registrado pelo historiador grego Tucídides na sua conhecida História da Guerra do Peloponeso, retratando o conflito entre Atenas e Esparta, ocorrido em (431 a.C.-404 a.C.).

Melos, uma pequena ilha dórica no mar Egeu, optou por manter posição neutra na guerra. Atenas, visando a expandir seu império e a demonstrar seu poder, exigiu a submissão dos melianos. A negativa de Melos, baseada em princípios de justiça e na esperança de auxílio espartano, contrastava com a perspectiva implacável dos atenienses. Diante da recusa de Melos em se submeter, Atenas impôs sua vontade pela força: a cidade foi sitiada, seus homens executados e as mulheres e crianças tornadas como escravas.

Na negociação entre Atenas e Melos, em 416 a.C., os representantes atenienses afirmam que “o justo nas discussões entre os homens, só prevalece quando os interesses de ambos os lados são compatíveis e que os fortes exercem o poder e os fracos se submetem”. “Os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem”. “A decisão é mais quanto à própria salvação, evitando oferecer resistência diante do que é muito mais forte”. “Melos não tem possibilidade de resistir e deve submeter-se para evitar sua destruição”. “Nenhum povo considera bom apenas o que lhe agrada e justo o que serve aos seus interesses”. “O interesse próprio anda lado a lado com a segurança, enquanto é perigoso cultivar a justiça e a honra”. “Meras esperanças, relativas ao futuro, são insuficientes para justificar qualquer expectativa de sucesso levando em conta os recursos disponíveis, comparados com aqueles que existem contra”. “Os que agem como convém em relação aos mais fortes procedem corretamente”. “Os desejos fazem ver o irreal como se já estivesse acontecendo”.

Por sua vez, os melianos, sustentando uma posição ética diante da opressão, argumentam que “a justiça deve prevalecer sobre a força” e que Esparta, sua aliada natural, virá em sua ajuda. Com isso, defenderam a legitimidade de sua neutralidade e a crença de que os deuses e a aliança com Esparta lhes favoreceria. “Para seus cidadãos, a amizade (com Atenas) é prova de fraqueza, o ódio (de Atenas) é uma demonstração de força”. “Ceder imediatamente é perder toda a esperança, mas a continuação da luta ainda poderá manter-nos de pé”.

O diálogo meliano é um exemplo do realismo político, em que a força e o interesse próprio prevalecem sobre a moralidade e a justiça. A crueza da afirmação “os fortes exercem seu poder e os fracos se submetem” reflete uma visão cínica das relações internacionais, que segue sendo atual na política internacional e oferece, ainda hoje, elementos para uma reflexão profunda sobre a natureza do poder e os limites dos ideais de justiça em um mundo dominado pela força e pelo interesse de autonomia dos países.

O episódio explicita o custo do uso da força e da brutalidade da guerra, bem como as limitações da justiça em um mundo dominado pelo mais forte. A negociação entre Atenas e Melos não só ilustra o realismo político já existente 400 anos antes de Cristo, mas também levanta questões universais sobre o poder, a justiça e a moralidade, temas que continuam a ser debatidos na política contemporânea.

O diálogo enfatiza a ideia de que a justiça só existe entre iguais em poder e de que a realidade das relações internacionais é marcada pela dominação dos mais poderosos. Impressiona a atualidade da postura ateniense de pragmatismo no contexto da realpolitik nos dias de hoje, com o uso da força econômica e comercial para obter vantagens políticas.

Tudo isso ficou exposto para o mundo na discussão acalorada no Salão Oval da Casa Branca, em frente às câmeras das televisões. “Você não tem cartas hoje para continuar a guerra”, “vocês vão perder o armamento que os EUA lhes fornecem”, a “Europa não tem condições de ajudar”. “Você tem de agradecer a vontade dos EUA em terminar a guerra, que vocês não têm condição de manter”, “sem os EUA você não tem nenhuma força”, foram algumas das afirmações de Trump, atualizando as frases do diálogo de Melos.

“Mostraremos claramente que é para o benefício de nosso império, e também para a salvação de vossa cidade, que estamos aqui dirigindo-vos a palavra, pois nosso desejo é manter o domínio sobre vós sem problemas para nós, e ver-vos a salvo para a vantagem de ambos os lados”, em outras palavras, parafraseando os atenienses, vociferou Trump a Zelenski.

O que aconteceu no Salão Oval – uma armadilha ao presidente ucraniano criada pelo presidente dos EUA e seu e vice – foi algo sem precedente nos 250 anos da história dos EUA. Poucas vezes a conhecida observação de que “a História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa” foi tão apropriada para descrever um diálogo sobre como terminar uma guerra.

Se a política externa dos EUA se mantiver nos próximos anos, como explicitada no encontro – a ruptura do tratamento da Rússia como adversária dos últimos 60 anos e o distanciamento da Otan e da Europa – trará profundas transformações no cenário global e no próprio conceito de Ocidente.

 

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/trump-zelenski-e-o-dialogo-meliano/


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Entrar ou não entrar na OCDE - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

Entrar ou não entrar na OCDE

Contrariando a política de governos anteriores, inclusive do PT, a atual gestão decidiu congelar as negociações
Por Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 25/02/2025

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um dos principais centros de discussão e definição das agendas econômica, comercial, financeira, social e ambiental global, é integrada por 38 países, inclusive Chile, México, Colômbia (governos de esquerda) e Costa Rica. A Argentina busca acelerar seu ingresso na organização.
Ao Brasil, seria importante ingressar na OCDE para poder influir no exame de questões que afetam os interesses nacionais e que serão reguladas internacionalmente neste ou em outros fóruns. Iniciadas na década de 1990, as relações do Brasil com a OCDE foram intensificadas gradualmente nos governos Cardoso, Lula e Rousseff. Em 2007, junto com outros cinco países, o Brasil virou “parceiro prioritário” da organização. Em 2015, o então chanceler Mauro Vieira assinou acordo de cooperação com a organização. Em 2017, o Brasil submeteu pedido de adesão à OCDE, mas o seu processo de acessão só foi iniciado em 2022, no governo Bolsonaro, juntamente com Argentina, Peru, Indonésia, Tailândia, Croácia, Romênia e Bulgária.
Depois de o conselho da organização aceitar um país como candidato, os membros definem o trajeto a ser seguido para a acessão. O passo inicial – que o Brasil já cumpriu – é a apresentação de memorando, pelo país candidato, contendo sua posição em relação aos instrumentos da OCDE (252 declarações, recomendações e decisões), com a possibilidade de estabelecimento de prazos e condições para a adesão. O Brasil já participa de todos os comitês técnicos da organização e contribui para as discussões e formulações de políticas internacionais, um dos aspectos mais relevantes quando se analisa a conveniência do ingresso brasileiro.
Contrariando a política de governos anteriores, inclusive do PT, a atual gestão decidiu congelar as negociações. No governo Lula 3, um grupo de trabalho foi criado, em agosto de 2023, para tratar do assunto, mas ele não se reúne com frequência. A primeira reunião de 2025 ocorreria no final de janeiro, mas foi adiada. O motivo foi que apenas 40% dos ministérios responderam, até agora, ao Itamaraty sobre as avaliações de impacto das medidas. Surge, agora, a notícia de que o governo Lula reavalia o memorando com os termos da adesão do Brasil à OCDE.
A organização é parte integrante do G-7 e do G-20 e subsidia os países-membros com dados e elementos de análise para as discussões. Mas, em 2024, pela primeira vez na história do G-20, o governo brasileiro resolveu rebaixar a OCDE como uma das organizações centrais na preparação para a Cúpula do Rio de Janeiro e inclui-la apenas como “convidada” em vários dos trabalhos do grupo.
A resistência do governo Lula em concluir os procedimentos de entrada na OCDE tem, principalmente, motivações ideológicas e políticas. Primeiro, uma premissa de que o “clube” tem um viés neocolonialista, pois é liderado por potências ocidentais que defendem a adesão dos demais países a uma série de regras. Isso num contexto em que esses setores do governo têm preferência por uma ordem mundial na qual o Sul Global e organismos como os Brics sejam priorizados. Segundo, há uma visão de que a OCDE vem se tornando um bloco com um viés mais político do que econômico. A organização, por exemplo, condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2023, o que gerou críticas da diplomacia brasileira por não ser uma instância diplomática. Politicamente, a resistência serve ainda como contraponto aos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que tiveram como uma das prioridades em política externa a adesão ao bloco. Bolsonaro, inclusive, tratou diretamente do assunto com Donald Trump, em 2019, e ganhou o apoio público dele à reivindicação. A assessoria especial para assuntos internacionais da Presidência da República lidera a oposição ao ingresso na OCDE, com o apoio da Casa Civil, do PT e de parte do Itamaraty.
Dentro do próprio governo Lula, apesar da oposição do Palácio do Planalto, há setores favoráveis à adesão, como o Ministério da Fazenda, o do Planejamento e Orçamento, o do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e a Controladoria-Geral da União.
Apesar de a resistência ideológica ter atrasado o processo, o Brasil continua a ter uma relação próxima com a OCDE. O chanceler Mauro Vieira já esteve, por duas vezes, na sede da organização em Paris. Em dezembro, houve a assinatura de um termo na área de integridade da informação, uma setor que o governo Lula, em geral, prioriza. Além disso, muitas instituições, como agências reguladoras (CVM e Cade), TCU e STF, além de governos estaduais, têm contato direto com a organização.
O momento para discutir a entrada ou não do Brasil na OCDE não poderia ser mais oportuno. A mudança a favor do acesso ajudaria a desfazer a percepção no exterior de que Brasília está deixando de ter uma atitude de equidistância nas disputas e tensões entre os EUA e a China/Rússia para se alinhar a um dos lados. O ingresso na OCDE mostraria a independência do Brasil, país ocidental, mas com crescentes interesses na Ásia, em especial no mercado chinês, e indicaria que o assunto é tratado como uma estratégia de Estado, com menos ideologia e mais pragmatismo.
Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/entrar-ou-nao-entrar-na-ocde/

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Lei da selva no comércio internacional - Rubens Barbosa (O Estado de S.Paulo)

 Opinião:

Lei da selva no comércio internacional

Governo brasileiro deveria promover estudos para definir legislação que defenda os interesses do agro e da indústria
Por Rubens Barbosa
O Estado de S.Paulo, 11/02/2025 | 03h00

O mundo se transformando rapidamente, tanto na economia como na ordem política. O livre comércio está sendo substituído pelo nacionalismo, pelo protecionismo e por medidas que enfraquecem a globalização. O comércio exterior já está sofrendo fortes impactos.
Considerações de poder, com base na segurança nacional, passaram a influir na aplicação de restrições comerciais como arma política, como as sanções e restrições. Medidas americanas (tarifas, chips, nuvem) e chinesas (área de mineração). O início do governo Trump nos EUA é uma clara indicação de que poderá haver uma escalada nessas medidas restritivas levando a uma guerra comercial envolvendo os EUA, a China e a Europa, com fortes consequências para os países em desenvolvimento, como o Brasil.
As medidas tomadas agora pelos EUA foram precedidas por restrições unilaterais adotadas pela União Europeia (UE), no contexto da política de meio ambiente (Green Deal), barrando a entrada de produtos agrícolas oriundos de áreas desmatadas e industriais que não possam compensar suas emissões de gás de efeito estufa.
A UE, antecipando-se a eventuais políticas restritivas contra os países-membros, se adiantou e produziu legislação, já em vigor, para defender os produtos da região, a chamada lei contra medidas restritivas comerciais e de investimento (lei anticoerção – Regulamento 2.675 do Parlamento Europeu e do Conselho, 22/11/2023).
A lei anticoerção europeia determina que a restrição econômica existe quando um país não europeu aplica ou ameaça aplicar medidas afetando o comércio ou o investimento a fim de evitar ou obter a cessação, modificação ou adoção de uma medida por parte da UE ou de algum Estado-membro, assim interferindo na decisão legítima e soberana da UE ou de um Estado- membro.
A comissão preliminarmente deverá explorar com o país que impõe a coerção as opções negociais baseadas na boa-fé para a suspensão das medidas ou obter reparação pelo dano.
As medidas poderão ser tomadas pela UE quando três condições estejam presentes: os esforços de negociação não produzam resultados depois de um período razoável de tempo (as medidas não foram suspensas nem houve compensação pelo dano); as medidas de reposta da UE são necessárias para proteger os interesses europeus e os direitos em algum caso particular; as medidas de resposta são de interesse na UE.
Se os entendimentos e negociações com a parte agressora não conseguirem eliminar a medida ou a ameaça de medida restritiva, será possível aplicar, na defesa do interesse europeu, determinadas medidas. Essas medidas, que terão de ser equivalentes na natureza e na quantidade, poderão incluir: imposição de tarifas novas ou aumentadas; restrições de exportação ou importação, incluindo controles de exportação; bens ou medidas internas aplicadas a bens; bens ou serviços de compras governamentais ou licitação de bens ou serviços; medidas afetando comércio de serviços; medidas afetando o acesso de investimento direto na UE; restrições sobre proteção de direitos de propriedade intelectual e sua exploração comercial; restrições no sistema bancário, seguro, acesso ao mercado de capital europeu e outras atividades do serviço financeiro.
No caso do Brasil, não há legislação que permita a tomada de medidas contrárias à imposição de sanções, medidas restritivas ou tarifas unilaterais, em desrespeito às regras negociadas internacionalmente. O Brasil sempre defendeu que os direitos afetados na área comercial deveriam ser defendidos multilateralmente na Organização Mundial de Comércio (OMC). Nos últimos anos, a OMC, como a instituição que julga diferenças comerciais entre países, foi esvaziada pela não aprovação pelos EUA de juízes para o órgão de apelação do mecanismo de solução de controvérsias, e com isso perdeu a força e a influência que beneficiava os países em desenvolvimento, sem outro recurso para contrapor às medidas unilaterais sem base legal. Para superar essa dificuldade, em 2022, a OMC aprovou decisão que autoriza os países que aderiram (inclusive o Brasil) a tomar medidas de retaliação após decisão de primeira instância.
A lei da selva no comércio internacional, nos últimos anos, ampliada com as novas políticas do governo Trump, ameaça todos os países com medidas restritivas e a imposição de tarifas unilaterais. Nesse contexto, o governo brasileiro deveria promover estudos para definir legislação que defenda os interesses do agro e da indústria, com a aprovação de contramedidas que respondam à imposição por outro país de restrições ao comércio exterior brasileiro, sem uma base legal.
A legislação brasileira de defesa comercial tem um caráter defensivo e existe há muitos anos. As novas circunstâncias do cenário internacional e a perspectiva de uma escalada na aplicação de medidas restritivas generalizadas demandam uma legislação adicional, atualizada, para evitar prejuízo aos interesses do governo e do setor privado. A legislação da UE poderia ser adaptada às circunstâncias e características do agro e da indústria nacionais.
Governo e Congresso têm de agir de forma coordenada para analisar e aprovar essa legislação o mais rapidamente possível.

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/lei-da-selva-no-comercio-internacional/

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

A COP 30 no Brasil - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 Opinião:  A COP 30 no Brasil

Nunca em seus 500 anos o País esteve no centro de discussões sobre temas globais. Neste momento, o Brasil é voz que terá de ser ouvida

Por Rubens Barbosa

Estadão, 28/01/2025 | 03h00


A conferência anual dos países-membros da Convenção da ONU sobre Mudança de Clima, a ser realizada em Belém, em novembro de 2025, começa a apresentar-se como a mais desafiadora de toda a História.

Na sua trigésima edição, a COP do Brasil, e não da floresta, enfrentará desafios importantes na logística do encontro, na geopolítica global e nas negociações em função dos limitados avanços registrados na reunião da COP-16, sobre biodiversidade, em Cali, na Colômbia, e da COP-29, realizada em Baku, no Azerbaijão, apesar do apoio político manifestado na declaração da cúpula do G-20, recentemente realizada. A COP-30 deverá continuar a tratar dos temas de sua agenda, como o cumprimento do Acordo de Paris, de 2015, e a proteção das florestas e das agendas que saíram dos encontros em Cali e Baku, como financiamento climático, mercado de carbono, transição energética e biodiversidade.

A COP-30 ocorrerá assim em um ambiente preocupante, em que a temperatura do planeta pode estar se aquecendo acima do limite de 1,5ºC previsto no Acordo de Paris e as emissões de gás carbono, crescendo na contramão dos compromissos assumidos. Em termos geopolíticos, as dificuldades para a aprovação de financiamento para os países mais vulneráveis aumentaram, e o negacionismo ambiental atingiu o seu máximo com as políticas ambientais de Donald Trump.

Difícil imaginar o que poderá avançar da agenda que incluiria (1) acelerar a descarbonização com compromissos mais ousados para a redução das emissões de gás de efeito estufa até 2030, com o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5ºC; (2) apoiar políticas de adaptação para mitigar os impactos das mudanças climáticas, especialmente em países mais vulneráveis; (3) garantir que o financiamento necessário para os países em desenvolvimento esteja disponível; (4) implementar o artigo 6 do Acordo de Paris com a regulamentação do mercado de carbono para incentivar o investimento em tecnologias verdes e soluções climáticas; e (5) proteger a Amazônia e os biomas tropicais.

Do ponto de vista do Brasil, as questões relacionadas com o financiamento climático, transição energética justa, regulamentação do mercado internacional de carbono, preservação da Amazônia e cooperação entre o Sul Global certamente estarão entre as prioridades. Será o momento de insistir na observância das circunstâncias locais em temas como agricultura tropical e combustíveis fósseis na matriz energética.

Muitas serão as reuniões e discussões preparatórias para a defesa dos interesses brasileiros no encontro de 2025. Em algumas áreas, em função de disputas internas, ainda não estão claras as posições nacionais. Depois de meses de discussão, o embaixador André Corrêa do Lago foi designado como presidente da COP no Brasil e terá a responsabilidade de coordenar as reuniões e iniciativas durante o evento. As incertezas sobre as posições brasileiras continuam. Para definir as prioridades que o Brasil levará para a conferência, será necessário concluir as discussões internas. Será necessário um detalhamento de como se alcançar as metas mais ambiciosas (banda de 59% a 65%) para a redução de emissão de gás de efeito estufa, de investimentos na transição energética, além do Plano do Clima, a Estratégia Nacional de Biodiversidade, o Pacto pela Transição Ecológica, a Estratégia Nacional de Adaptação e Mitigação. Na questão do desmatamento da Amazônia, a redução anunciada para 2024 é significativa, mas as queimadas foram um retrocesso. Os ilícitos na Amazônia (desflorestamento, queimadas e garimpo ilegal) continuam e estão se agravando, sem que o Estado em seus três níveis apresente um plano consistente para assegurar seu poder em toda a região contra o crime organizado. A questão da pesquisa e exploração na Margem Equatorial terá de ser decidida.

O grande desafio para os trabalhos preparatórios e as discussões durante a realização da reunião de Belém está na saída dos EUA do Acordo de Paris e na baixa prioridade de Trump para as questões ambientais e mudança do clima. Donald Trump dificilmente comparecerá ao encontro no Brasil. A participação dos EUA poderá ocorrer com a presença de alguns Estados e instituições ambientais. As posições do presidente Javier Milei, da Argentina, poderão também dificultar a formação de consensos regionais. O risco de esvaziamento político da COP-30 é real.

Nunca em seus 500 anos o Brasil esteve no centro de discussões sobre temas globais. Neste momento, o Brasil é voz que terá de ser ouvida em questões ambientais, de transição energética e de mudança de clima.

A partir dos trabalhos preparatórios da COP-30, com os EUA pouco interessados, abre-se uma grande oportunidade para o Brasil assumir efetivamente a liderança global nas questões ambientais e de mudança de clima. Para tanto, seria necessária uma imediata e bem realizada coordenação entre governo, iniciativa privada e sociedade civil, de forma que se possa concretizar esse objetivo. Essa coordenação será essencial para a definição dos interesses estratégicos do Brasil na conferência. Se o Brasil não ocupar esse vazio político, certamente a Europa, com seu “Green Deal” e as medidas restritivas já adotadas, tenderá a assumir essa liderança.

O Brasil não pode perder mais essa oportunidade.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/a-cop-30-no-brasil/

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

'Sucesso fiscal e político de Milei na Argentina coloca desafios importantes para o Brasil' - Rubens Barbosa (Estadão)

O Estado de S. Paulo, 7 de janeiro de 2025

https://click.jornal.estadao.com.br/?qs=6b7c71bc9e984005f634baf92e2ce99c9777853655fe5bded7a122c4e92accf694609c61280fe35144195830c82f3a13ede61781c098f1652717f0e3a598006d


 

Admirável mundo novo - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 Admirável mundo novo

Estão governo e empresas brasileiras conscientes das mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário mundial?

 

Opinião:  Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 24/12/2024


No meio de grandes transformações na economia e na ordem internacional, estamos entrando numa nova etapa histórica pela interação de diversos fatores de grande intensidade.

Em primeiro lugar, a supremacia ocidental econômica, financeira e militar dos últimos 200 anos está sendo questionada e, na visão de muitos, está sendo reduzida. O mundo começa a se dividir em um grupo de nações ocidentais (sem definição geográfica) – EUA, Europa, Japão, Austrália e outras – e, de outro, um crescente grupo de nações, liderado pela China, tendo como base o Brics, formado por dez países, com 13 nações convidadas como associadas e mais de uma dezena pedindo para integrá-lo. A influência dos EUA, como a nação mais poderosa do mundo, parece estar em declínio, como se vê na tentativa de conter o conflito no Oriente Médio.

Em segundo lugar, o rápido avanço das tecnologias em várias áreas – inteligência artificial, computação, biotecnologia –, o mais profundo da história da humanidade (maior, talvez, que a invenção da roda, que a revolução industrial e mesmo que a arma nuclear), sobretudo pela possibilidade de a inteligência artificial tomar decisões independentemente da ação humana, com profundas consequências políticas e econômicas globais.

Em terceiro lugar, as mudanças climáticas produzidas pela ação humana estão na raiz de uma crescente crise ecológica, com desastres em todos os continentes (furacões e inundações, queimadas, chuvas e secas) causando destruição e morte, além do crescimento do nível dos oceanos em razão do aquecimento global, ameaçando aumentar o número de refugiados.

Em quarto lugar, as instituições multilaterais criadas depois do fim da guerra, em 1945, para a preservação da paz e da segurança mundiais, não são mais capazes de responder a todos esses desafios por não mais serem representativas da nova geopolítica e da nova geoeconomia global. A Cúpula do Futuro, reunião convocada pelo secretário-geral da ONU, em setembro passado em Nova York, para examinar como poderia ser a governança num mundo multipolar em tempos de grandes mudanças e desafios para a humanidade, terminou esvaziada, sem qualquer perspectiva para indicar caminhos de uma nova governança global. As guerras na Ucrânia e no Oriente Médio em crescente tensão, pela invasão do Líbano e da Síria pelo exército israelense, com a possibilidade de escalada, continuarão a ter impacto na economia e na política global. Caso o conflito se estenda com um eventual ataque de Israel contra o Irã, com o apoio dos EUA, a situação poderá sair do controle, com a possível interferência de potências antiocidentais ao lado do Irã.

Um quinto fator poderia ser acrescentado. Um livro recente – A guerra por Outros Meios (War by Other Means, Harvard Press) – capta as mudanças na formulação e na execução das políticas internas e externas dos países. Um dos aspectos novos examinados é o uso de instrumentos econômicos e comerciais como um meio de alcançar objetivos geopolíticos. A relação entre poder econômico e geopolítica passa a ser fundamental no mundo atual. Nesse sentido, tornam-se elementos básicos a performance macroeconômica do país, a evolução da política econômica internacional e os instrumentos utilizados na busca dos objetivos geopolíticos.

A geoeconomia passou a ser um elemento crítico quando se analisa o papel de cada país neste novo mundo. A geoeconomia focaliza o uso da força por meio de instrumentos econômicos e comerciais para promover e defender os interesses nacionais, para produzir resultados geopolíticos favoráveis e efeitos positivos sobre os objetivos geopolíticos. As restrições à venda de chips para a China, a proibição de compra de roteadores chineses pelos EUA, as medidas protecionistas comerciais da União Europeia, com a desculpa de evitar o desmatamento de florestas, as políticas restritivas minerais da China e o congelamento unilateral de reservas de terceiros países são alguns exemplos da utilização de medidas econômicas como armas, criando verdadeiras guerras por outros meios.

No contexto da geoeconomia, a defesa da segurança nacional passa a ser frequentemente utilizada na ação política nos EUA, na China e em outros países. Utilizado de forma crescente como justificativa de medidas econômicas e comerciais, “o papel da segurança nacional na política e estratégia de comércio e investimento está aumentando em toda parte. Há mudanças na maneira como as pessoas estão abordando a questão da política comercial, a política econômica internacional e isso é verdade nas economias de mercado do mundo todo”, como reconheceu alto funcionário norte-americano. As prioridades econômicas e as novas preocupações com a segurança nacional (que pode incluir tudo) se fundem e tornam superados os conceitos de liberalismo e livre mercado.

Essas são as novas realidades globais. Os países terão de se ajustar para conseguir defender com êxito seus próprios interesses, mas, em primeiro lugar, terão de definir seus objetivos estratégicos, fortalecer os fundamentos de sua economia e ter uma clara visão de seus interesses de médio e longo prazos.

Estão governo e empresas brasileiras conscientes dessas mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário?

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/admiravel-mundo-novo/

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Admirável mundo novo - Rubens Barbosa (Estadão)

 Opinião:  

Admirável mundo novo

Estão governo e empresas brasileiras conscientes das mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário mundial?

 

Por Rubens Barbosa

24/12/2024 | 03h00

No meio de grandes transformações na economia e na ordem internacional, estamos entrando numa nova etapa histórica pela interação de diversos fatores de grande intensidade.

Em primeiro lugar, a supremacia ocidental econômica, financeira e militar dos últimos 200 anos está sendo questionada e, na visão de muitos, está sendo reduzida. O mundo começa a se dividir em um grupo de nações ocidentais (sem definição geográfica) – EUA, Europa, Japão, Austrália e outras – e, de outro, um crescente grupo de nações, liderado pela China, tendo como base o Brics, formado por dez países, com 13 nações convidadas como associadas e mais de uma dezena pedindo para integrá-lo. A influência dos EUA, como a nação mais poderosa do mundo, parece estar em declínio, como se vê na tentativa de conter o conflito no Oriente Médio.

Em segundo lugar, o rápido avanço das tecnologias em várias áreas – inteligência artificial, computação, biotecnologia –, o mais profundo da história da humanidade (maior, talvez, que a invenção da roda, que a revolução industrial e mesmo que a arma nuclear), sobretudo pela possibilidade de a inteligência artificial tomar decisões independentemente da ação humana, com profundas consequências políticas e econômicas globais.

Em terceiro lugar, as mudanças climáticas produzidas pela ação humana estão na raiz de uma crescente crise ecológica, com desastres em todos os continentes (furacões e inundações, queimadas, chuvas e secas) causando destruição e morte, além do crescimento do nível dos oceanos em razão do aquecimento global, ameaçando aumentar o número de refugiados.

Em quarto lugar, as instituições multilaterais criadas depois do fim da guerra, em 1945, para a preservação da paz e da segurança mundiais, não são mais capazes de responder a todos esses desafios por não mais serem representativas da nova geopolítica e da nova geoeconomia global. A Cúpula do Futuro, reunião convocada pelo secretário-geral da ONU, em setembro passado em Nova York, para examinar como poderia ser a governança num mundo multipolar em tempos de grandes mudanças e desafios para a humanidade, terminou esvaziada, sem qualquer perspectiva para indicar caminhos de uma nova governança global. As guerras na Ucrânia e no Oriente Médio em crescente tensão, pela invasão do Líbano e da Síria pelo exército israelense, com a possibilidade de escalada, continuarão a ter impacto na economia e na política global. Caso o conflito se estenda com um eventual ataque de Israel contra o Irã, com o apoio dos EUA, a situação poderá sair do controle, com a possível interferência de potências antiocidentais ao lado do Irã.

Um quinto fator poderia ser acrescentado. Um livro recente – A guerra por Outros Meios (War by Other Means, Harvard Press) – capta as mudanças na formulação e na execução das políticas internas e externas dos países. Um dos aspectos novos examinados é o uso de instrumentos econômicos e comerciais como um meio de alcançar objetivos geopolíticos. A relação entre poder econômico e geopolítica passa a ser fundamental no mundo atual. Nesse sentido, tornam-se elementos básicos a performance macroeconômica do país, a evolução da política econômica internacional e os instrumentos utilizados na busca dos objetivos geopolíticos.

A geoeconomia passou a ser um elemento crítico quando se analisa o papel de cada país neste novo mundo. A geoeconomia focaliza o uso da força por meio de instrumentos econômicos e comerciais para promover e defender os interesses nacionais, para produzir resultados geopolíticos favoráveis e efeitos positivos sobre os objetivos geopolíticos. As restrições à venda de chips para a China, a proibição de compra de roteadores chineses pelos EUA, as medidas protecionistas comerciais da União Europeia, com a desculpa de evitar o desmatamento de florestas, as políticas restritivas minerais da China e o congelamento unilateral de reservas de terceiros países são alguns exemplos da utilização de medidas econômicas como armas, criando verdadeiras guerras por outros meios.

No contexto da geoeconomia, a defesa da segurança nacional passa a ser frequentemente utilizada na ação política nos EUA, na China e em outros países. Utilizado de forma crescente como justificativa de medidas econômicas e comerciais, “o papel da segurança nacional na política e estratégia de comércio e investimento está aumentando em toda parte. Há mudanças na maneira como as pessoas estão abordando a questão da política comercial, a política econômica internacional e isso é verdade nas economias de mercado do mundo todo”, como reconheceu alto funcionário norte-americano. As prioridades econômicas e as novas preocupações com a segurança nacional (que pode incluir tudo) se fundem e tornam superados os conceitos de liberalismo e livre mercado.

Essas são as novas realidades globais. Os países terão de se ajustar para conseguir defender com êxito seus próprios interesses, mas, em primeiro lugar, terão de definir seus objetivos estratégicos, fortalecer os fundamentos de sua economia e ter uma clara visão de seus interesses de médio e longo prazos.

Estão governo e empresas brasileiras conscientes dessas mudanças e preparados para defender os interesses nacionais neste novo cenário?

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

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quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Mercosul revigorado - Rubens Barbosa O Estado de S. Paulo,

 Opinião: Mercosul revigorado

Com a futura assinatura do acordo com a UE, o bloco sul-americano pode iniciar um círculo virtuoso de inserção internacional

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 10/12/2024 


A reunião presidencial do Mercosul, em Montevidéu, na semana passada, foi uma das mais importantes desde sua criação em 1991, em função da decisão dos países do Mercosul e da União Europeia (UE) de dar por concluída definitivamente a negociação do acordo de parceria em discussão há 30 anos.

Com a futura assinatura do acordo com a UE, o Mercosul sai do isolamento e pode iniciar um círculo virtuoso de inserção internacional. Foi assinado acordo comercial com o Panamá e iniciadas conversações com os Emirados Árabes Unidos.

Na fase mais recente, em 2019, Mercosul e UE acordaram os principais trade-offs da negociação, como as diversas cotas em bens agrícolas acertadas entre o Mercosul e a UE. Em 2023/2024, foram propostos reajustes para preservar a capacidade do Estado para alavancar políticas de interesse público, como em compras governamentais (foram excluídas todas as compras do SUS do capítulo de compras, pela importância que possuem para o acesso a medicamentos, assim como para reforçar o sistema produtivo de medicamentos). Para equilibrar algumas partes do acordo, foram recusados os termos do documento adicional (side letter) sobre comércio e desenvolvimento sustentável apresentado no início de 2023 pela UE. De forma inédita, foi agora estabelecido um mecanismo para evitar que medidas unilaterais das partes prejudiquem o equilíbrio estabelecido no acordo, pois tais medidas têm o potencial de comprometer concessões comerciais negociadas e desequilibrar o resultado acordado. Após o “acordo político” de 2019, a UE adotou legislações que, a depender da forma como sejam implementadas, poderão romper o equilíbrio do entendimento de 2019 em temas que não foram renegociados na etapa iniciada em 2023. É o caso, por exemplo, das cotas oferecidas pela UE para a exportação de carnes do Mercosul, que não foram reabertas na etapa de 2023. Estabeleceu-se que uma arbitragem definirá se houve esvaziamento dos compromissos assumidos e em que montante, independentemente de ter havido violação ou não do acordo. Se for o caso, a parte que restringiu o comércio deve oferecer compensações comerciais (abertura de mercado) ao outro lado. Se não houver acordo quanto à compensação, há direito à “retaliação” (suspensão de benefícios previstos no acordo), no montante definido em arbitragem, com vistas a restabelecer o equilíbrio do que foi negociado.

Em mais de 30 anos de existência, o Mercosul negociou acordos comerciais de pouca relevância para a economia nacional (Egito, Israel, Cingapura e, em breve, entrará em vigor o com a Palestina). O acordo com a UE, o segundo mercado (16%) para o Brasil, de mais de 800 milhões de pessoas e 27 países, é de longe o mais importante até aqui e manda uma mensagem poderosa à comunidade internacional quanto à colaboração ampliada entre duas regiões que defendem os mesmos valores e interesses, além de sinalizar o fim do isolamento do Mercosul. Cerca de 90% dos produtos dos dois países terão tarifa zero no primeiro ano do acordo.

Para o Brasil, a assinatura do acordo reforça a projeção externa do País e fortalece a política de independência e equidistância em uma das questões geopolíticas que dividem hoje o mundo: as tensões entre os EUA e a China. No caso da UE, amplia as áreas de contato com uma região líder em segurança alimentar, energia limpa e que passou a priorizar o meio ambiente. É importante lembrar que não se trata apenas de um acordo comercial, mas também de um ambicioso acordo de associação estratégica com a União Europeia, que inclui três vertentes: a política, a de cooperação e a do livre comércio. Em seguida, deverá ser assinado o acordo com a Efta, a Associação Europeia de Livre Comércio, integrada por Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein.

As transformações na economia e na ordem global tornam o acordo entre o Mercosul e a UE ainda mais estratégico tanto para o Mercosul quanto para a União Europeia. Os dois lados perceberam que esse acordo, no contexto atual, representa mais do que interesses comerciais e passa a ser importante também pelas implicações geopolíticas globais.

Resta agora a assinatura e aprovação dos acordos de diálogo político, de cooperação e de livre comércio. O comercial, pelo Conselho da União Europeia e pelos Congressos dos países do Mercosul, e os demais pelos Parlamentos dos países-membros da UE. A oposição da França, da Itália e da Polônia ao comercial terá de ser superada pela maioria liderada pela Alemanha, Portugal e Espanha.

Outra matéria importante incluída na pauta do Mercosul foi o pedido da Argentina para que seja revista, para dar maior flexibilidade, a regra da Resolução 32 pela qual as negociações de acordos comerciais devem ser feitas conjuntamente pelos países-membros. Com isso, o governo argentino espera poder negociar acordo de livre comércio isoladamente com os EUA, embora pareça pouco provável que os EUA mudem sua política e abram negociações comerciais com a Argentina. A proposta argentina não tem chance de ser aceita pelos países do Mercosul (e agora a UE também vai demover Javier Milei), mas adquire um caráter sensível porque a Argentina coordenará os trabalhos do Mercosul no primeiro semestre de 2025.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), FOI COORDENADOR NACIONAL DO MERCOSUL

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/mercosul-revigorado/


terça-feira, 26 de novembro de 2024

A reunião do G-20 no Brasil - Rubens Barbosa (Estadão)

A reunião do G-20 no Brasil

O atual contexto de polarização e desconfiança e a perspectiva do novo governo Trump tornam difícil um avanço real nos temas tratados

 Opinião  Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 26/11/2024 | 03h00


O G-20, que inclui as principais economias globais, foi criado como uma resposta à crise financeira que abalou a economia mundial em 2008. Desenvolvimento sustentável, segurança e resiliência econômica e transformação digital são os principais focos de atenção dos países-membros.

A reunião, que se realizou na semana passada no Rio, ocorreu em um momento de crescente tensão internacional, com a escalada nas guerras na Ucrânia e em Gaza, e de incerteza, com as possíveis repercussões globais da eleição de Donald Trump e de suas políticas econômicas, comerciais e externas. Esses desafios têm como pano de fundo as transformações na economia global, pela polarização política, a desinformação em massa e a persistência da pobreza, em um contexto de grandes avanços tecnológicos e produtivos.

O Brasil colocou como lema do encontro “construir um mundo justo e um planeta sustentável” e definiu como prioridades (1) a inclusão social e o combate à fome e à pobreza; (2) as transições energéticas e o desenvolvimento sustentável em suas dimensões econômicas, sociais e ambientais; e (3) a reforma das instituições de governança global.

A negociação da Declaração dos Líderes do G-20 foi um processo longo que conseguiu superar as dificuldades de última hora sobre a linguagem a ser adotada em diversas passagens, mas em especial no tocante às guerras da Ucrânia e Gaza, que impediram o consenso nas últimas reuniões do grupo. A diplomacia conseguiu minimizar a oposição de alguns líderes nessas e em outras áreas e incluir boa parte da agenda proposta pelo Brasil.

Os diferentes capítulos da declaração versaram sobre a situação econômica e política internacional, a inclusão social e o combate à fome e à pobreza, o desenvolvimento sustentável, a transição energética, a ação climática e a reforma das instituições da governança global.

O documento evitou críticas diretas à Rússia e a Israel, ressaltou a crise humanitária das guerras, sublinhou a necessidade de se chegar ao fim dos conflitos, do aumento da ajuda humanitária, e reafirmou a solução dos dois Estados, com a criação do Estado palestino. No capítulo sobre a fome e a pobreza ressaltou a criação da proposta brasileira de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, para tentar mitigar a situação de cerca de 730 milhões de pessoas que atualmente enfrentam a fome e dos 2,4 bilhões que enfrentam a insegurança alimentar moderada ou severa. Foi também incluída referência à questão de taxação dos mais ricos, numa linguagem indireta, “patrimônio líquido ultra-alto”. Foi dada grande ênfase para o desenvolvimento sustentável, com ênfase no aumento do financiamento aos países em desenvolvimento, em apoio a medidas de preservação ambiental, mudança de clima e transição energética justa, nas dimensões econômicas, sociais e ambientais, respeitadas as circunstâncias locais. Foi reafirmada a importância de serem mantidas e ampliadas as metas de redução de emissões de gás de efeito estufa e de desmatamento previstas no Acordo de Paris, de 2015, e o aumento do financiamento público e privado para o meio ambiente e mudança de clima para os países em desenvolvimento. Foi lançada a Iniciativa de Bioeconomia. O revigoramento das instituições teve apoio dos líderes das principais economias no tocante à governança política, das instituições financeiras e comerciais. Sugeriu-se maior poder à Assembleia Geral da ONU e a ampliação dos membros permanentes e rotativos do Conselho de Segurança, sem fazer menção a países específicos, apenas à América Latina e África. Incluiu-se ainda dar maior voz aos países em desenvolvimento no FMI e no Banco Mundial, e fortalecer a OMC.

A reunião do G-20 tem de ser vista dentro do contexto político-diplomático que tem caracterizado os encontros anteriores do grupo. A declaração chegou ao consenso possível e expressa as principais preocupações das maiores economias do globo, mas não pretende – nem tem esse objetivo – resolver os problemas que afetam os países. O atual contexto de polarização e desconfiança, exacerbado pelos conflitos na Ucrânia e em Gaza, e a perspectiva do novo governo Trump tornam difícil um avanço real na grande maioria dos temas tratados.

No momento em que cada país procura colocar seus interesses em primeiro lugar, a diplomacia brasileira conseguiu incluir na agenda do G-20 preocupações sociais ao lado dos temas geopolíticos, econômicos e comerciais. A implementação da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza conta com a efetiva adesão de 82 países, e pode ser considerada como a decisão mais importante do ponto de vista do Brasil. Foram relevantes as menções ao financiamento para o meio ambiente, ao compromisso de metas do Acordo de Paris mais ambiciosas, além da referência de que todas essas questões devem levar em conta as circunstâncias locais, em crítica indireta às decisões tomadas pelos países desenvolvidos, sem levar em consideração as dimensões dos países em desenvolvimento.

A partir de janeiro, com o início do novo governo norte-americano, as questões geopolíticas, ambientais e multilaterais tratadas certamente sofrerão forte influência das mudanças que ocorrerão em Washington, e poucos se lembrarão dos termos da declaração do G-20 no Rio.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/a-reuniao-do-g-20-no-brasil/

 

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

O Impacto da Eleição de Trump sobre o Brasil - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

O Impacto da Eleição de Trump sobre o Brasil.

Algumas promessas de campanha e declarações do presidente eleito certamente devem estar causando preocupação ao governo brasileiro

Por Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 12/11/2024 | 03h00

 

A eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA terá não só profundas repercussões na política interna norte-americana, como também no cenário internacional, com forte impacto na geopolítica, na economia global e em alguns temas globais, como meio ambiente, mudança do clima, imigração, transição energética e avanço da direita. Ajustes, acomodações e resistências acontecerão em função das mudanças prometidas, a partir de janeiro.

As políticas econômicas e comerciais do governo Trump, se cumpridas as promessas, em função de políticas expansionistas para criar empregos, medidas nacionalistas e protecionistas de política industrial, com o consequente reflexo na inflação, no déficit público e na taxa de juros do Federal Reserve (Fed), poderão impactar o comportamento do dólar, a inflação e a taxa de juros no Brasil.

As relações institucionais entre o Brasil e os EUA não deverão ser afetadas. Comércio, investimentos, tecnologia e outras áreas de cooperação continuarão a fluir normalmente, mas algumas promessas de campanha e declarações de Trump certamente devem estar causando preocupação ao atual governo: a questão da Venezuela, a proximidade com a China, a evolução do Brics, a busca de protagonismo global, a possibilidade de imposição de tarifas para a exportação de todos os países para os EUA, a agenda climática, a eventual deportação de brasileiros, as acusações de corrupção, as relações de Trump com o bolsonarismo e os problemas com Elon Musk, associados à retórica de restrições à liberdade de expressão nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).

As ações globais para a preservação do meio ambiente, o combate à mudança de clima e a transição energética ficarão afetadas pela perda de prioridade no novo governo Trump, que prometeu ampliar a pesquisa e exploração de petróleo e gás no território americano e novamente abandonar o Acordo de Paris, eliminando as metas de redução de emissões de gás carbono. A COP-30, no Brasil, será diretamente afetada e poderá ser esvaziada pela ausência do presidente dos EUA.

A escalada retórica de Trump, já presidente eleito, sobre a situação política interna na Venezuela é inquietante para a política externa brasileira. Apesar de a América do Sul não ter prioridade na política externa dos EUA e a Venezuela não ter sido mencionada na campanha eleitoral, Trump disse, em entrevista no TikTok, que a Venezuela é um caos, que a população está sofrendo e que seu governo vai ter várias opções para responder a essa questão, inclusive a opção de uma intervenção militar. Certamente, terá apoio de outros países, como a Argentina, de Javier Milei, e resistências de potências extrarregionais que apoiam Caracas, como a Rússia e a China.

As relações com a China, a principal parceira comercial do Brasil, passarão por um momento muito delicado pela eventual reação dos EUA à aproximação brasileira com Pequim, pela dependência do mercado chinês. As decisões sobre a política de Lula da Silva em relação ao Brics, na reunião no ano próximo no Brasil, podem representar o maior desafio da política externa do atual governo. A presença no Brasil dos novos membros, autoritários e ditaduras, e a questão do ingresso da Venezuela no grupo deverão gerar reação da oposição de direita brasileira, às vésperas do início da campanha eleitoral de 2026. A decisão sobre o eventual ingresso do Brasil na Rota da Seda pode ter implicação no relacionamento com o governo Trump, visto que ainda com Joe Biden altas autoridades norte-americanas mandaram sinais claros sobre os riscos de uma eventual adesão do Brasil.

A promessa de deportar 10 milhões de imigrantes dificilmente será cumprida na totalidade, mas com certeza, em parte, será implementada. O maior contingente de brasileiros no exterior está nos EUA (1,9 milhão – 290 mil ilegais) e poderá ser afetado, o que gerará desconforto para o governo Lula.

O avanço da direita na região ganhará reforço e apoio de Washington. Javier Milei e Nayib Bukele serão prestigiados e ganharão mais espaço na América Latina, esvaziando ainda mais a liderança regional do Brasil e a busca de influência global (guerras na Ucrânia e Gaza).

Até mesmo na política interna poderá haver ações contrárias ao atual governo. Eduardo Bolsonaro estava em Mar-a-Lago, comemorando a vitória republicana, e não será surpresa se vier a estimular provocações e mesmo restrições ao governo Lula no final de 2025. Sem falar num eventual apoio do governo Trump à retórica de perseguição política a Jair Bolsonaro e de julgamento em relação aos condenados pelos acontecimentos de 8 de janeiro em Brasília e à declaração de inelegibilidade do ex-presidente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Os imprudentes pronunciamentos do presidente Lula manifestando sua preferência por Kamala Harris para “defender a democracia e evitar o nazismo e o fascismo com outra cara” e aconselhando Trump a “pensar como habitante do planeta Terra” não vão ajudar na relação entre os chefes de Estado dos dois países.

Em face de todos esses desafios de política externa, de acordo com o interesse nacional e refletindo a mudança do eixo da política comercial para a Ásia/China, torna-se urgente uma declaração do governo brasileiro, sem ideologia ou partidarismo, com o objetivo de reafirmar uma posição de independência em relação a países ou grupo de países.

 

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR, MEMBRO DA APL, FOI EMBAIXADOR EM WASHINGTON

 

https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/o-impacto-da-eleicao-de-trump-sobre-o-brasil/