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terça-feira, 30 de abril de 2024

Israel e Ucrânia: dois países inaceitáveis para o PT: Lula acata a rejeição- Marcelo Godoy (Estadão)

 Exército escolhe empresa isralenese em licitação bilionária e abre nova disputa com o PT

Estadão.com.br 29 de abril de 2024

Marcelo Godoy

Companhia de Israel era uma das quatro finalistas da licitação; para petistas, comprar equipamento do país em guerra na Faixa de Gaza significaria dar apoio indireto à ação condenada pelo governo
O exército brasileiro anunciou nesta segunda-feira que a empresa israelense Elbit Systems, e suas subsidiárias brasileiras Ares Aeroespacial e Defesa e AEL Sistema, venceu a licitação internacional da Força Terrestre para adquirir 36 viaturas blindadas de combate, conhecidas como obuseiros de calibre 155 mm autopropulsados sobre rodas (VBCOAP-SR). A escolha deve criar novo atrito entre a Força Terrestre, o Partido dos Trabalhadores (PT) e integrantes do governo Luiz Inácio Lula da Silva.

O Atmos israelense venceu a disputa entre os veículos blindados de obuseiro de 155 mm autopropulsados sobre rodas que podem ser adquiridos pelo Exército Foto: Reprodução/EstadãoA administração Lula deve levar em consideração o resultado da escolha técnica feita pelo Exército, mas esta deve agora passar por considerações de ordem geopolítica. Israel está em guerra contra os terroristas do Hamas, na Faixa de Gaza, em uma ação cuja intensidade e danos causados à população civil palestina têm sido alvo de críticas ao redor do mundo. Recentemente, o Conselho de Segurança das Nações Unidas votou uma resolução ordenando um cessar-fogo no conflito, o que foi ignorado por Israel.

Em 18 de fevereiro, durante entrevista em Adis-abeba, na Etiópia, Lula comparou a ação de Israel em Gaza ao Holocausto, o genocício judeu perpetrado pelos nazista durante a 2.ª Guerra Mundial. A reação do governo de Binyamin Netanyahu foi imediata: além de acusar o brasileiro de antissemitismo, o governo de Netanyahu declarou Lula persona non grata em Israel.

Após comparação com Holocausto, presidente Lulafoi declarado persona no grata pelo governo de Israel Foto: Ricardo Stuckert / PRPara além das disputas entre os dois governos, as Forças Armadas e as polícias do Brasil mantêm uma relação antiga com empresas de Israel. A Marinha, por exemplo, depende dos israelenses para a manutenção das turbinas de seus caças A4 Skyhawk, baseados no Rio. Polícias brasileiras compraram armas e até mesmo material de espionagem de empresas de Israel. O Exército fechou a compra recente de mísseis anticarro Spike LR, da israelense Rafael, cuja entrega está atrasada em razão da guerra.

Este é o primeiro senão ao produto da Elbit, o sistema Atmos 2000, vencedor da licitação para o VBCOAP. Trata-se de uma licitação milionária, cujos valores podem chegar perto de R$ 1 bilhão. Os outros três concorrentes eram a empresa Nexter francesa, com seu sistema Caesar, o SH-15 da chinesa Norinco e o viaturas do sistema eslovaco Zuzana, cujo fabricante firmara uma parceria com a brasileira Avibrás, cujos milhões do novo contrato poderiam ajudar a retirar a empresa da recuperação judicial.

No caso do sistema israelense, haveria dúvidas sobre a capacidade da empresa respeitar os prazos de entrega previstos pelo Exército em razão da imprevisibilidade de uma escalada no conflito no Oriente Médio. O mesmo problema afetaria os concorrentes europeus, cujos países estão comprometidos em apoiar a Ucrânia na guerra com a Rússia. As 36 novas viaturas VBCOAP vão equipar as unidades de artilharia divisionária do Exército.

O obuseiro Caesar francês (foto) estava entre os veículos blindados de artilharia de 155 mm autopropulsados que podiam ser adquiridos pelo Exército Foto: NEXTER CAESARA esquerda petista se articula para pressionar o governo Lula contra a possibilidade de a Força Terrestre fechar a compra do equipamento israelense. Petistas históricos, como José Genoino, consideram que adquirir o produto da Elbit System seria financiar indiretamente o esforço de guerra de Israel. Genoino alertou em março que isso traria um enorme desconforto para a base social do governo, que não entenderia a medida, ainda mais diante do atual nível de confrontação com a administração Netanyahu. Não só a esquerda do partido é contra. Na semana passada, o vice-presidente da sigla, o deputado federal Washington Quaquá, também se manifestou contra o negócio com Israel.

Não era segredo para o Exército a animosidade do governo em relação a atual administração de Israel. mesmo assim decidiu seguir adiante com "sua escolha técnica". No ano passado, a Força Terrestre defendeu a venda de 400 unidades do blindado Guarani em versão ambulância para a Ucrânia, mas a operação de R$ 3,5 bilhões recebeu parecer contrário do Ministério das Relações Exteriores e foi vetada pelo presidente Lula. Agora, a Força mais uma vez leva o problema à mesa do presidente a fim de que ele decida.

É possível que critérios geopolíticos prevaleçam no caso, pois as compras da defesa têm regras próprias. Diante das restrições orçamentárias e do surgimento de novas prioridades, como a artilharia antiaérea de médio alcance, ocupem o lugar da compra das viaturas blindadas de obuseiros autopropulsados no Exército. A Força Terrestre começa a trabalhar com um cenário de restrição orçamentária cujo fim ainda não é previsível.


segunda-feira, 29 de abril de 2024

Tel-Aviv terá de decidir entre ser um pária internacional ou um parceiro no Oriente Médio - Thomas L. Friedman (The New York Times, Estadão)

 Tel-Aviv terá de decidir entre ser um pária  internacional ou um parceiro no Oriente Médio

Thomas L. Friedman

The New York Times É colunista e ganhador de três prêmios Pulitzer. Escreveu 'De Beirute a Jerusalém'
O Estado de S. Paulo, 29/04/2024

A diplomacia dos EUA para colocar um fim à guerra em Gaza e forjar um novo relacionamento com a Arábia Saudita vem convergindo para uma grande escolha diante do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu: o que Israel deseja mais, Rafah ou Riad? Israel prefere organizar uma invasão completa de Rafah para tentar acabar de vez com o Hamas, sem oferecer estratégia para a saída de Gaza ou horizonte político para uma solução de dois Estados? Ao escolher este caminho, o resultado será apenas a piora do isolamento de Israel, forçando uma ruptura real com o governo Biden.

Ou prefere a normalização das relações com a Arábia Saudita, uma força de paz árabe para Gaza e uma aliança de segurança liderada pelos EUA contra o Irã? Isso teria um custo diferente: um compromisso do seu governo de trabalhar para a criação de um Estado palestino com uma Autoridade Palestina reformada, mas com o benefício de incluir Israel na mais ampla coalizão de defesa americana, árabe e israelense que o Estado judaico já integrou, ao mesmo tempo criando alguma esperança de que o conflito com os palestinos não seja uma "guerra perpétua".

Esta é uma das decisões mais importantes que Israel já teve diante de si. E o que me parece ao mesmo tempo perturbador e deprimente é o fato de, seja na coalizão que governa o país, na oposição ou nas forças armadas, não haver hoje uma só liderança que ajude consistentemente os israelenses a compreender essa escolha, entre ser um pária global ou um parceiro no Oriente Médio, ou explicando por que a segunda alternativa é a correta.

TRAUMA. Reconheço o quanto os israelenses estão traumatizados por causa dos ignóbeis assassinatos, estupros e sequestros praticados pelo Hamas no dia 7 de outubro. Não me surpreende que muitos aqui simplesmente desejem vingança, e seus corações endureceram a tal ponto que não conseguem enxergar nem se importar com todos os civis, incluindo milhares de crianças, que foram mortos em Gaza enquanto Israel demole tudo para tentar eliminar o Hamas. Tudo isso foi dificultado ainda mais pela recusa do Hamas, até o momento, em libertar os reféns restantes.

Mas vingança não é estratégia. É pura insanidade o fato de Israel estar nessa guerra há mais de seis meses e a liderança militar israelense ter permitido que Netanyahu siga buscando uma "vitória total" ali, incluindo um provável mergulho em breve nas profundezas de Rafah, sem nenhum plano de saída ou parceiro árabe preparado para interceder uma vez que a guerra termine. Se Israel acabar envolvido em uma ocupação indefinida de Gaza e da Cisjordânia, isso exporia o país a tóxicos desgastes militares, econômicos e morais que seriam o deleite do mais perigoso adversário de Israel, o Irã, e afastaria seus aliados no Ocidente e no mundo árabe.

INTERESSE ÁRABE. No início do conflito, líderes israelenses diziam que líderes árabes moderados desejavam que Israel eliminasse o Hamas, um braço da Irmandade Muçulmana que todos os monarcas árabes detestam. É claro que eles gostariam de ver o fim do Hamas.

Agora está claro que isso é impossível, e prolongar a guerra não é do interesse dos Estados árabes moderados, particularmente a Arábia Saudita.

A partir das conversas que tive em Riad e em Washington, descreveria a visão atual do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman da invasão israelense nos seguintes termos: saiam assim que possível. No momento, tudo que Israel está fazendo é matar cada vez mais civis, voltando contra si os sauditas que eram favoráveis à normalização das relações, criando mais recrutas para a Al-Qaeda e o EI, aumentando o poder do Irã e seus aliados, fomentando a instabilidade e afastando da região um investimento estrangeiro muito necessário. A ideia de acabar com o Hamas "de uma vez por todas" é um sonho inalcançável, na visão dos sauditas.

Se Israel quiser prosseguir com operações especiais em Gaza para atingir a liderança do grupo, tudo bem. Mas nada de ocupação permanente. Por favor, vamos chegar a um cessarfogo pleno e à libertação dos reféns o quanto antes, para nos concentrarmos no acordo de normalização e segurança envolvendo americanos, sauditas, israelenses e palestinos.

Esse é o outro caminho que Israel poderia trilhar agora, aquele que nenhuma liderança importante da oposição israelense está defendendo como prioridade, mas aquele pelo qual torcem o governo Biden e os sauditas, egípcios, jordanianos, marroquinos e emiradenses. Nada garante o seu sucesso, mas o mesmo vale para a "vitória total" que Netanyahu está prometendo.

ABRIR MÃO. Este outro caminho começa com Israel abrindo mão de qualquer invasão militar a Rafah, que fica bem na fronteira com o Egito e consiste na principal rota de entrada da ajuda humanitária em Gaza.

A região tem mais de 200 mil moradores permanentes e, agora, mais de um milhão de refugiados. Também é ali que se diz que os últimos quatro batalhões mais intactos do Hamas estão protegidos e, quem sabe, até seu líder, Yahya Sinwar.

O governo Biden vem dizendo publicamente que Netanyahu não deve se envolver em uma invasão completa de Rafah sem ter um plano crível para retirar os civis. Mas, privadamente, eles são mais diretos ao dizer a Israel: não pode haver invasão maciça a Rafah, e ponto final.

Um funcionário do governo americano me explicou: "Não estamos dizendo a Israel para simplesmente deixar o Hamas em paz. Estamos dizendo que acreditamos haver uma forma mais precisa de ir atrás da liderança do grupo, sem demolir cada quarteirão de Rafah".

Os funcionários acreditam que, se Israel demolir agora toda a cidade de Rafah, depois de ter feito o mesmo com grande parte de Khan Yunis e da Cidade de Gaza, sem ter um parceiro palestino com credibilidade para aliviar o fardo de segurança de governar uma Gaza despedaçada, o país cometerá o tipo de erro cometido pelos EUA no Iraque, sendo obrigado a lidar com uma insurgência e uma crise humanitária permanentes.

Mas haveria uma diferença essencial: os EUA são uma superpotência que pôde falhar no Iraque e se recuperar. Para Israel, uma insurgência em Gaza seria um fardo pesadíssimo, especialmente sem ter amigos.

E é por isso que os americanos me dizem que, se Israel for adiante em Rafah, o presidente Biden pensará em limitar a venda de determinados armamentos a Israel.

Isso porque o governo Biden acredita que uma invasão total prejudicará as perspectivas de uma nova troca de reféns e destruirá três projetos vitais nos quais o governo vem trabalhando para melhorar a segurança de Israel no longo prazo.

PROJETOS. O primeiro é uma força de paz árabe que poderia substituir as forças israelenses em Gaza, para que Israel possa sair dali sem se ver encalhado com uma ocupação simultânea de Gaza e da Cisjordânia. Vários países árabes têm debatido o envio de forças de paz a Gaza para substituir os israelenses, desde que haja um cessar-fogo permanente, e a presença desta força seria formalmente abençoada por uma decisão conjunta da Organização pela Libertação da Palestina, o guarda-chuva que reúne a maioria das facções palestinas, e a Autoridade Palestina. Os países árabes muito provavelmente insistiriam em receber alguma assistência logística dos militares americanos. Nada foi decidido ainda, mas a ideia é ativamente considerada pelos envolvidos.

O segundo é o acordo diplomático de segurança entre americanos, sauditas, israelenses e palestinos, cujos termos o governo está perto de finalizar com o príncipe herdeiro saudita. Entre eles: 1) um pacto de defesa mútua entre EUA e Arábia Saudita que eliminaria qualquer ambiguidade a respeito do que os americanos fariam se o Irã atacasse a Arábia Saudita.

Os EUA viriam em defesa de Riad, e vice-versa; 2) facilitar o acesso saudita ao armamento americano mais avançado; 3) um acordo nuclear civil supervisionado que permitiria à Arábia Saudita reprocessar os próprios depósitos de urânio para uso no seu próprio reator nuclear civil.

CONTRAPARTIDA. Em troca, os sauditas limitariam o investimento chinês no país e quaisquer laços militares com Pequim, desenvolvendo seus sistemas de defesa da próxima geração usando somente armamento americano. A Arábia Saudita também normalizaria as relações com Israel, desde que Netanyahu assumisse o compromisso de trabalhar por uma solução de dois Estados com uma Autoridade Palestina reformada.

E, por fim, os EUA reuniriam Israel, Arábia Saudita, outros países árabes moderados e os principais aliados europeus em uma só arquitetura integrada de segurança para combater a ameaça dos mísseis iranianos.

Esta coalizão não poderá ser invocada sem que Israel saia de Gaza e assuma o compromisso de trabalhar por um Estado palestino. Os Estados árabes não aceitarão serem vistos como protegendo Israel do Irã se Israel estiver ocupando permanentemente Gaza e a Cisjordânia. Funcionários dos governos americano e saudita também sabem que, sem Israel no acordo, os componentes de segurança dificilmente conseguiriam a aprovação do Congresso.

A equipe de Biden quer concluir a parte americana e saudita do acordo para poder atuar como o partido de oposição que falta a Israel nesse momento, e dizer a Netanyahu: você pode ser lembrado como o líder que governava no momento da maior catástrofe militar de Israel no dia 7 de outubro, ou como o líder que tirou Israel de Gaza e abriu o caminho para a normalização das relações entre Israel e o país muçulmano mais importante. A escolha é sua. E essa proposta deve ser apresentada publicamente, para que todos os israelenses possam vê-la.

Os interesses de Israel no longo prazo estão em Riad, e não em Rafah. É claro que nenhuma dessas alternativas é uma certeza e ambas trarão riscos. E sei que não é tão fácil para os israelenses pesar os prós e os contras quando há atualmente tantos protestos globais criticando o país pelo seu comportamento em Gaza ao mesmo tempo em que ignoram a conduta do Hamas. Mas é esse o papel das lideranças: defender que o caminho para Riad traz vantagens muito maiores no fim do que o caminho para Rafah, que será apenas um mortal beco sem saída.

Respeito totalmente o fato de que serão os israelenses que terão de viver com a própria escolha. Só gostaria de me certificar de que eles sabem que há uma escolha. 

TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

segunda-feira, 22 de abril de 2024

STF: Como Chegamos Até Aqui? - Livro de Duda Teixeira, resenha por Diogo Schelp (Estadão)

 Análise

Novo livro sobre o STF expõe riscos do poder crescente e caráter elitista da Corte

STF: Como Chegamos Até Aqui?, de Duda Teixeira, conta a história de como o tribunal passou a ocupar espaço político no País; leia análise do livro feita pelo colunista do Estadão 

 

Por Diogo Schelp 

O Estado de S. Paulo, 22/04/2024 


Um estrangeiro desavisado que chegar ao Brasil hoje e se dispuser a observar o debate público ficará surpreso ao perceber que a figura mais falada da arena política — e a mais temida — é um juiz da corte máxima do País. Pensará, também, que a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) é um problema apenas para quem adora espalhar fake news nas redes sociais, torceu para que as Forças Armadas dessem um golpe entre novembro de 2022 e janeiro de 2023 ou se atiraria de um precipício caso o ex-presidente Jair Bolsonaro ordenasse.

Ao se fiar apenas no retrato do momento, as percepções desse estrangeiro estariam completamente equivocadas. As polêmicas que envolvem o STF e especificamente o ministro Alexandre de Moraes não afetam apenas a direita bolsonarista e nem vão se encerrar quando o bilionário Elon Musk resolver procurar outros alvos para suas postagens.

O pior é que uma boa parcela dos brasileiros sofre do mesmo equívoco do tal estrangeiro fictício, presa que está no retrato do momento da disputa entre parlamentares de oposição e STF ou dos xingamentos de bolsonaristas a ministros da corte nas redes sociais. É preciso olhar para o passado recente e entender como chegamos até aqui. Ao fazê-lo, descobrimos que o poder individual e coletivo dos onze integrantes do STF cresce gradualmente há anos, em perfeita desarmonia com o Legislativo e o Executivo, e que isso, a depender das circunstâncias, afeta todo o espectro político — além de contribuir para perpetuar um dos aspectos da desigualdade social no País, o do acesso à Justiça.

Eis o que demonstra, com muito didatismo, o livro STF: Como Chegamos Até Aqui? (Avis Rara; 128 páginas; R$ 39,90), do jornalista Duda Teixeira, que chega esta semana às livrarias. Não se trata de uma obra com histórias de bastidores da nossa Corte Suprema, mas de um livro-reportagem que recorre a documentos históricos e a entrevistas com juízes, desembargadores, advogados e acadêmicos, entre historiadores e antropólogos, para entender o que levou à hipertrofia do tribunal constitucional, como isso impacta na política e na vida nacional e o que ainda pode ser feito a respeito.

O STF nasceu em 1890, inspirado na Suprema Corte americana, para guardar e aplicar a Constituição, intervindo apenas “em espécie e por provocação de parte”. Ou seja, nada dessa história de abrir investigações, iniciar processos, proibir a circulação de informações ou mandar prender gente por conta própria como vemos atualmente. No que se refere às regras para que os Três Poderes pudessem impor freios uns aos outros de forma equilibrada, as coisas por aqui não saíram tão bem quanto nos Estados Unidos. No período em que os americanos tiveram uma constituição, os brasileiros tiveram sete.

Ao longo da história da nossa República, o STF teve momentos melhores e outros piores, como durante a última ditadura, quando a composição do tribunal foi alterado ao gosto dos militares por meio da mudança no número de ministros e da cassação de alguns integrantes. Mas foi a Constituição de 1988 que lançou as sementes para que a corte fosse adquirindo um protagonismo e um poder crescentes ao longo das décadas seguintes. Para começar, “a Carta ampliou a quantidade de instituições que podem perguntar ao STF se uma lei é ou não constitucional”, escreve Teixeira. Antes, só a Procuradoria-Geral da República podia fazer isso. Atualmente, qualquer partido nanico consegue inundar o STF com questionamentos, como de fato acontece.

Além disso, há centenas de políticos e autoridades que só podem ser julgados pelo STF quando acusados de algum crime — é o famoso foro privilegiado. Os ministros do STF também precisam decidir sobre pedidos de habeas corpus e representam a quarta (!) e última instância judicial do País, caso haja alguma questão constitucional envolvida em processos que chegam de todo o Judiciário.

Pouco a pouco, a corte foi adquirindo a tradição de assumir papeis que cabem ao Legislativo e ao Executivo sob a desculpa de decidir a constitucionalidade de leis e políticas públicas. Isso começou a ocorrer com mais frequência já no governo de Fernando Henrique Cardoso, ganhou força nos primeiros mandatos de Lula e saiu do controle a partir da gestão de Jair Bolsonaro, que por não conseguir lidar com o Congresso deixava que tudo fosse judicializado.

O livro é rico em exemplos dos avanços do STF sobre atribuições do governo ou do Parlamento. Analisados em conjunto e em uma perspectiva cronológica, permitem compreender como a corte ganhou musculatura. Tem para todos os gostos. Há, por exemplo, o julgamento sobre pesquisas com células-tronco, em 2008, em que o STF passou por cima de uma lei discutida e aprovada no Parlamento, enquanto um dos ministros tentou tipificar um novo crime em cima de suas próprias suposições morais e filosóficas e outro aproveitou a oportunidade para expandir as situações em que o aborto é permitido. Mais recentemente, há a discussão atual em torno da Lei Antidrogas, com os integrantes da corte se dispondo a definir detalhes como a quantidade de maconha que separa um usuário de um traficante.

Decisões contraditórias da corte, às vezes com intervalos curtos de tempo e com idas e vindas de um mesmo ministro, são citadas em bom número no livro. Assim, o STF muda o entendimento sobre como deve ser um processo de impeachment de um presidente (Fernando Collor e Dilma Rousseff não tiveram o mesmo tratamento), da mesma forma que é capaz de aplicar com maior ou menor liberalidade uma mesma regra constitucional, a de que parlamentares só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável, a depender das circunstâncias políticas.

Teixeira argumenta que, pela Constituição, o senador petista Delcídio Amaral não poderia ter sido preso em 2015, nem o deputado bolsonarista Daniel Silveira, em 2021. Em ambos os casos, ministros do STF fizeram um contorcionismo interpretativo para considerar que os crimes eram permanentes, permitindo a prisão “em flagrante” dos políticos.

Em outro exemplo, um entendimento da Corte que serviu para afastar do cargo o deputado Eduardo Cunha, em 2016, não valeu depois para os senadores Renan Calheiros e Aécio Neves. E praticamente a mesma composição do STF, com um intervalo de poucos anos, suspendeu a nomeação de Lula como ministro de Dilma, de Cristiane Brasil para o Ministério do Trabalho de Michel Temer e de Alexandre Ramagem como diretor da Polícia Federal sob Bolsonaro, em três episódios de interferência indevida e injustificável em prerrogativas do presidente da República.

Fica claro no livro que os ministros do STF se permitem tomar decisões disparatadas como essas — julgando não com base no Direito, mas em interesses pessoais ou políticos — por uma variedade de razões. Entre elas está o fato de que a Corte cria as próprias regras sobre como proceder em determinadas situações. Em 2023, por exemplo, o tribunal anulou trecho do Código de Processo Civil que impedia juízes de atuar em casos a cargo de bancas de advocacia de parentes (os escritórios das esposas de quatro ministros têm processos na Corte, alguns envolvendo disputas bilionárias).

A outra é que, por não haver nenhuma instância acima do STF, seus integrantes dão de ombros para regras da magistratura, para prazos e para procedimentos sem precisar temer qualquer sanção. É o que permite que eles abram processos de ofício e distribuam para o relator que quiserem, sem obedecer à norma do sorteio, como fez o ministro Dias Toffoli com o inquérito das fake news, também chamado de inquérito do fim do mundo.

Também se sobressaem o fator vaidade e a questão do vínculos políticos. No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, muitos ministros do STF falam fora dos autos em entrevistas, palestras e aulas e apreciam os holofotes dos julgamentos televisionados. Ao mesmo tempo, não se privam da companhia de figuras influentes da política nacional ou de empresários em festas ou viagens particulares — mesmo que essas pessoas enfrentem processos no próprio STF.

O autor aborda também o acesso privilegiado de certos advogados a ministros do Supremo, prática conhecida jocosamente como “embargos auriculares”. Ou seja, a imparcialidade dos integrantes da nossa mais alta Corte é colocada em dúvida, com boas razões, com frequência. E eles não parecem se incomodar muito com isso. Desde que, claro, ninguém diga nada.

Críticas diretas a ministros do STF são muito mal recebidas. Alguns deles tratam de processar os autores das opiniões negativas na primeira instância da Justiça, contando com a alta probabilidade de que os juízes pensarão duas vezes antes de tomar uma decisão que vá contra aquele que está no topo da magistratura.

Outros partem para algo mais rápido e efetivo: a censura. Foi uma reportagem sobre Dias Toffoli na revista Crusoé, da qual Teixeira é editor, o que motivou, no início, o interminável inquérito das fake news. E foram críticas diretas a Alexandre de Moraes que o levaram, em alguns dos casos que agora vêm à tona com mais detalhes, a ordenar a suspensão de perfis ou conteúdos das redes sociais.

Essa postura dos ministros do STF, que deveriam entender que receber críticas faz parte da descrição do cargo, é comparada por Teixeira ao crime contra a “pessoa do rei ou seu Estado real”, previsto nas Ordenações Filipinas, conjunto de leis da coroa portuguesa que vigorou entre os séculos XVII e XIX. Dizia seu livro quinto, título VI, que o “lesa-majestade (...) é um crime tão grave e abominável, que os antigos sabedores o estranharam e o comparavam à lepra”.

A Suprema Corte brasileira que emerge do livro STF — Como chegamos até aqui é implacável com os pobres, como mostram exemplos de penas duras que foram mantidas para ladrões de galinhas, de bermudas ou de macacos automotivos, e garantista com poderosos, a ponto, escreve o autor, de reverter entendimento anterior sobre a possibilidade de prisão em segunda instância para favorecer Lula, em 2019, “fulanizando” a jurisprudência. Compreender e reconhecer seus excessos interessa a todos os brasileiros, independente de posicionamento político. E, apesar dos ecos das Ordenações Filipinas, criticar abertamente sua atuação ainda é a melhor forma de pressionar seus integrantes a conter o próprio poder.

Análise por Diogo Schelp 

Jornalista e comentarista político, foi editor executivo da Veja entre 2012 e 2018. Posteriormente, foi redator-chefe da Istoé, colunista de política do UOL e comentarista da Jovem Pan News. É mestre em Relações Internacionais pela USP.

 

 

terça-feira, 9 de abril de 2024

Diplomacia ideologizada - Denis Lerrer Rosenfield ( Estadão)

 ESPAÇO ABERTO

Diplomacia ideologizada

O atual governo, de repente, torna-se um baluarte do antiocidentalismo, sob a máscara esquerdista da luta contra o Imperialismo norte-americano'

Denis Lerrer Rosenfield 
O Estado de S. Paulo, 8/04/2024

Em períodos normais, as relações externas do País têm pouco impacto sobre a política interna. Presidentes e diplomatas estão centrados na defesa dos interesses estratégicos do Brasil, de seus interesses comerciais e em sua inserção num mundo cada vez mais globalizado. Isso se traduz pelo fato de que questões diplomáticas se tornam assuntos restritos de especialistas e do Itamaraty. Saliente-se a neutralidade e a imparcialidade, enquanto princípios norteadores, do trabalho de nossa diplomacia. Todavia, a diplomacia presidencial está tendo como efeito a perda de popularidade do presidente.

A causa se deve a que o presidente Lula e o PT geraram uma inflexão desta política diplomática, praticamente operando uma ruptura, embora não cansem de dizer que estão apenas fazendo uma correção de rota. Se há correção de rota, caberia determinar se há rota alguma no que estão apresentando, salvo se a virmos sob o prisma do apoio a presidentes autocráticos, avessos à democracia, e da crítica feroz aos valores ocidentais, aqueles mesmos que introduziram no mundo os princípios da liberdade e da igualdade. Chega a ser lamentável a fraternidade introduzida com os terroristas do Hamas, com o ditador Nicolás Maduro, com Vladimir Putin e Cuba.

De repente, o atual governo torna-se um baluarte do antiocidentalismo. Tudo isso sob a máscara esquerdista da luta contra o "imperialismo norte americano", como se nosso futuro estivesse atrelado ao fundamentalismo islâmico, do Hamas ou do Irã, aos valores da "Grande Nação" russa, eurasiana e não ocidental, ou ao esquerdismo venezuelano.

Dentre as aberrações diplomáticas, fica difícil privilegiar uma ou outra. A de Maduro é um caso contumaz de apreço pela violência, pela ditadura e pela mais cruel repressão, e isso desde o primeiro governo Lula. Segue coerente! Seria, ao arrepio de toda a lógica, uma "democracia" por realizar eleições fraudulentas, sem a participação legítima da oposição e sem imprensa e meios de comunicação livres.

Ademais, a população venezuelana vive sob a miséria e a violência, como se isso fosse, então, o reino do socialismo/comunismo. Se esse é o reino da igualdade, melhor os eleitores brasileiros se organizarem para o próximo pleito eleitoral, pois não é isso que almejam.

Ainda sob a ótica diplomática, bastou o Itamaraty fazer uma nota amiga, tímida, solidária com Maduro e sua trupe, quase se desculpando por exprimir uma pequena discordância, para que o ditador e seu ministro de Relações Exteriores dessem um tapa na cara do Brasil. E o que fez o presidente brasileiro? Calou-se!

O caso da Rússia é um caso à parte, pois a ditadura de Putin é considerada como se fosse de esquerda, quando defende abertamente valores de extrema direita, ancorados na Igreja Ortodoxa, na repressão indiscriminada a quaisquer opositores, em valores antiocidentais, propugnando pela ideia de uma civilização russa que se projetaria para o exterior, sendo a invasão da Ucrânia o seu primeiro passo e tendo em Alexander Dugin o seu mais proeminente pensador. Lula e o PT são uma amostra de daltonismo político, nem mais sabendo distinguir esquerda de direita.

Cuba é outro exemplo de um amor incontido. A ditadura castrista e seus herdeiros não cessam de submeter a sua população à miséria, à repressão policial, à ausência de liberdade, com uso intensivo de prisões e tortura, se for o caso. Essa ilha é tão feliz sob o domínio comunista que os seus servos (não se pode considerá-los cidadãos) têm um único objetivo: fugir do paraíso. Recentemente, uma dirigente petista chegou a dizer que a situação cubana se deve ao "bloqueio" americano. Não há nenhum bloqueio, mas embargo! A ilha não está cercada militarmente, pode comercializar com quem quiser, salvo com os Estados Unidos e com empresas americanas no mundo. Por que não se torna próspera negociando com a Rússia, a China e o Irã?

A visita do presidente Emmanuel Macron ao Brasil, por sua vez, foi constrangedora. Os dois presidentes não negociaram o que é mais importante para o Brasil: o acordo Mercosul-União Europeia. O presidente francês deu-se, inclusive, ao luxo de dizer que a proposta atual, fruto de 20 anos de laboriosas negociações, era "péssima". Tudo deveria recomeçar, provavelmente para atender aos interesses dos agricultores franceses, que nem querem ouvir falar de restrições ambientais, pelos próximos 20 anos. Lula e Macron ficaram saltitando de mãos dadas como namorados e fazendo fotos com indígenas na Amazônia. Os franceses adoraram as fotos! Paradoxalmente, Lula colocou-se na posição do colonizado e Macron, do colonizador.

Lula, até agora, não se desculpou por sua infame comparação entre o Holocausto judeu sob o nazismo e a autodefesa de Israel, operando uma guerra urbana, em meio a túneis e com o Hamas utilizando a sua população como escudo humano. Hospitais tornam-se centros do terror, em flagrante crime de guerra. Entretanto, numa completa inversão, Israel é que seria culpado pela "destruição de hospitais". Vale aqui, também, o antiocidentalismo, senão o antissemitismo.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Estadão diz que, sob Lula, Brasil é “impotência regional medíocre” - Editorial Estadão

Estadão diz que, sob Lula, Brasil é “impotência regional medíocre”

Jornal considera o petista rígido com a Europa e o Oriente, mas omisso em relação ao próprio continente

Pleno News, 8/04/2024

https://pleno.news/brasil/politica-nacional/estadao-diz-que-sob-lula-brasil-e-impotencia-regional-mediocre.html?utm_source=pushnotification&utm_medium=notificacao 

O jornal O Estado de S.Paulo chamou o Brasil sob a gestão Lula (PT) de “impotência regional medíocre” ao observar que o país permanece omisso diante dos abusos cometidos pelo ditador Nicolás Maduro, na Venezuela. No texto opinativo, o periódico aponta que, enquanto o petista comete exageros ao falar da Europa e do Oriente Médio, ele impõe um “silêncio ensurdecedor ao Itamaraty” em relação ao próprio continente Sul Americano.

O editorial contextualiza que Maduro, após impedir que o principal grupo de oposição se candidatasse às eleições, decidiu agora “legalizar” a repressão por meio de uma lei “Contra o Fascismo, Neofascismo e Expressões Similares”. Através da nova legislação, qualquer manifestação ou movimento que o regime considerar “fascista” poderar ser punido com mais de 8 anos de cadeia.

– A ironia é que, se houvesse Justiça independente na Venezuela, Maduro e seus bate-paus seriam os primeiros a ser punidos por esses crimes, a começar pelo último. Não há na América do Sul nada mais similar ao regime fascista de Mussolini que o regime chavista – avalia o jornal.

O Estadão também apontou que Maduro promulgou a lei criando o Estado venezuelano da “Guiana Essequiba”, visando anexar 70% do território do país vizinho. Apesar disso, o que de fato surpreende o veículo de imprensa não é a postura de Maduro e sim a omissão da parte de Lula.

– A condenação da comunidade internacional civilizada é unânime, inclusive de lideranças de esquerda latino-americanas. Todos os países do Mercosul, com exceção do Brasil, condenaram sem meias palavras a orgia totalitária chavista. (…) Lula rebaixou o Estado brasileiro a uma usina de panos quentes. No improviso de uma entrevista coletiva, Lula se descuidou de sua habitual hipocrisia deixando escapar que considera “grave” o bloqueio à candidatura da substituta de Corina, mas, oficialmente, o máximo que permitiu à sua chancelaria foi uma nota de “preocupação”. O resto é silêncio, mesmo ante a ameaça de um conflito regional – assinalou o periódico.

Por fim, o Estadão manifesta que a política externa brasileira foi “sequestrada pelas afinidades pessoais e ideológicas de Lula” e está “desmoralizada ante a comunidade internacional”.


sábado, 6 de abril de 2024

O Itamaraty lulopetista choca pela desfaçatez das posições em favor de criminosos de guerra e violadores dos direitos humanos (Estadão)

Brasil muda de posição e se abstém sobre inquérito sobre crimes na guerra da Ucrânia

Lula: "Conheci o Putin no G7, no G20, na ONU. Nós fazemos partes de várias organizações internacionais que você tem a participação heterogênea de muitos países, muita gente que você não concorda, mas faz parte", 

Estadão, 5/04/2023

O governo brasileiro se absteve numa votação no Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas e deixou de apoiar um pedido de extensão do prazo de trabalho da comissão de inquérito sobre crimes de guerra na Ucrânia. A comissão havia sido criada em março de 2022, com voto favorável do Brasil, após a invasão do território ucraniano por tropas russas.

O Brasil foi um dos 17 países que se abstiveram na votação, realizada nesta quinta-feira, dia 4, em Genebra, na Suíça. A resolução, no entanto, foi aprovada por 27 votos a favor e 3 contra.

Com isso o mandato da Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Ucrânia foi renovado por um novo período de um ano. Em abril de 2023, a comissão de inquérito havia sido postergada por 12 meses - ela seria encerrada caso não recebesse a nova extensão do mandato agora. No ano passado, o Brasil não era parte do conselho e portanto não participou da votação.

O Estadão pediu esclarecimentos ao Itamaraty sobre o que motivou a abstenção do Brasil e questionou se o posicionamento não se choca com políticas do atual governo de promoção dos direitos humanos. Até o momento não houve resposta. O espaço segue aberto para manifestação.

Durante a votação nesta quinta-feira, o embaixador Tovar da Silva Nunes, representante permanente do Brasil junto às Nações Unidas em Genebra, afirmou que os termos da resolução aprovada poderiam impedir o diálogo entre os dois lados na guerra.

Tovar Nunes ponderou que o país manifesta "profunda preocupação" com a situação na Ucrânia, "particularmente com as alegadas violações envolvendo crianças deslocadas e deportadas, ataques a civis e o crescente número de mortes".

"No entanto, permanecemos descontentes com o texto diante de nós. A resolução é desequilibrada e coloca o fardo das violações dos direitos humanos apenas em um lado do conflito, não deixando espaço suficiente para o diálogo que poderia criar condições para prevenir violações de direitos humanos e construir uma paz duradoura na região", afirmou o chefe da missão brasileira em Genebra.

"Desde a sua criação em 2002, o Brasil argumentou que a comissão de inquérito não parecia ser o mecanismo adequado para revisar os fatos no terreno. No momento de sua concepção, referências a processos judiciais futuros antecipavam o resultado das investigações propostas. À luz desses fatos, o Brasil vai se abster nesta resolução."

O embaixador também questionou menções no texto da resolução aprovada a iniciativas jurídicas contra a Rússia, no TPI e na Corte Internacional de Justiça (CIJ), dizendo que poderiam ser "prejudiciais".

A diplomacia de Kiev rebateu o argumento brasileiro de que o conteúdo da proposta fosse tendencioso ou impedisse o diálogo. A representante da Ucrânia disse que o único pedido era que o conselho mantivesse o monitoramento das "atrocidades cometidas pela agressão russa" e que o mecanismo internacional independente verificasse a dor enfrentada diariamente pelo povo ucraniano.

Na mesma resolução aprovada, o CDH da ONU cobrou que o governo Vladimir Putin pare imediatamente violações de direito humanos e abusos contra a lei humanitária internacional na Ucrânia. Exigiu também a retirada rápida, do território ucraniano, das tropas militares invasoras e de grupos mercenários aliados de Moscou. E cobrou que o governo Putin não recrute ilegalmente residentes do território invadido para suas Forças Armadas.

O CDH disse ainda que a Rússia deve parar a deportação forçada e ilegal de civis do território ucraniano. Putin é alvo de um mandado de prisão em aberto, expedido pelo Tribunal Penal Internacional, acusado de transferência forçada de crianças, um crime de guerra.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva tem feito uma série de gestos em favor da Rússia. Autoridades do governo têm dito, por exemplo, que Putin seria bem-vindo ao país para a cúpula do G20 e argumentam que ele gozaria de certas prerrogativas e imunidades por ser chefe de Estado.

Em uma discussão paralela, na Comissão de Direito Internacional da ONU, o Brasil se posicionou a favor da imunidade de autoridades governamentais e contra o alcance de ordens de prisão do TPI a países - e a seus representantes - que não integrem o estatuto fundador da corte, como é o caso da Rússia desde 2016. O Itamaraty, no entanto, argumento que o debate é genérico e não teria implicação no caso da vinda de Putin ao Rio para o G20.

O governo brasileiro tem objetado tentativas de países aliados da Ucrânia e adversários de Moscou, entre eles os EUA e membros do G-7, de excluir Putin da arena internacional. O Brasil também se opôs a sanções e, em mão contrária, ampliou o comércio com os russos, que atingiu US$ 11 bilhões no ano passado.

Em setembro de 2023, no G20 da Índia, Lula defendeu em entrevista a uma rede de TV indiana que Putin não seria preso no país. Depois, em entrevista coletiva, voltou atrás de criar obstáculos a uma eventual ordem de prisão no país e afirmou que o caso caberia à Justiça brasileira.

Na esteira da controvérsia, o governo já discutiu inclusive a possibilidade de reavaliar a participação no Estatuto de Roma, que criou o TPI, por considerar que ele não funciona de forma adequada. A revisão tem apoio de Celso Amorim.

"Conheci o Putin no G7, no G20, na ONU. Nós fazemos partes de várias organizações internacionais que você tem a participação heterogênea de muitos países, muita gente que você não concorda, mas faz parte", argumentou Lula, na quinta-feira, dia 28. "Faz parte do processo democrático conviver democraticamente na adversidade. Não são fóruns de iguais, são de Estados, de países e temos de respeitar o direito de cada um fazer o que quer no seu país, criticando o que não concorda."

Os posicionamentos de Lula a respeito da guerra na Ucrânia afetaram a popularidade do presidente e provocaram a impressão, entre parceiros ocidentais, que ele apoia o regime russo. Lula já cogitou que a Ucrânia deveria ceder a Crimeia para firmar um acordo de paz e disse que tanto Putin quanto o presidente ucraniano Volodimir Zelenski tinham o mesmo grau de responsabilidade pela guerra. A Ucrânia, porém, foi invadida unilateralmente pelos russos, em 24 de fevereiro de 2022.

Ele afirmou ainda que os EUA e países europeus incentivavam a guerra ao fornecer armas e dinheiro para defesa de Kiev. Lula vetou a exportação de equipamentos bélicos fabricados no Brasil. O petista fracassou na tentativa de se colocar como potencial mediador do conflito.

Na semana passada, disse ainda que não era obrigado a ter o mesmo "nervosismo" dos europeus com Putin e disse que os "bicudos vão ter de se entender". O presidente e o PT enviaram cartas de cumprimentos pela reeleição de Putin, numa eleição sem controlada que foi alvo de contestação internacional.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Macron fez Lula avançar um pouco mais do que gostaria na questão das eleições venezuelanas - Lourival Sant'Ana (Estadão)

A visita de Macron e o tímido afastamento de Lula da ditadura venezuelana 

Política externa brasileira teve um reencontro com o Iluminismo com a visita do presidente francês. É cedo para dizer se foi o despertar de um longo e profundo sono dogmático 

Foto do author Lourival Sant'Anna

Por Lourival Sant'Anna ( ESTADAO / 31mar24)

A política externa brasileira teve um reencontro com o Iluminismo. Se foi o despertar de um longo e profundo sono dogmático ou apenas um breve clarão em meio às trevas, é cedo para dizer. Em três dias de visita, Emmanuel Macron percorreu sorridentemente com Lula os eixos estratégicos das relações Brasil-França. O presidente brasileiro aproveitou o instante de lucidez até para se desmarcar, ainda que timidamente, da ditadura venezuelana.

Lula e Macron têm vários pontos em comum. Ambos enfrentam uma oposição autoritária, governam países amazônicos, recusam-se a se alinhar com os EUA e detestam Jair Bolsonaro.

Eles se comprometeram em Belém a investir 1 bilhão de euros em iniciativas de conservação e desenvolvimento sustentável nos próximos quatro anos na Amazônia brasileira e na Guiana Francesa. Isso é quase três vezes todo o Fundo Amazônia.

No fórum empresarial Brasil-França, em São Paulo, com ênfase na transição energética, Macron celebrou aumento de 26% nos investimentos franceses no Brasil, ultrapassando estoque de 40 bilhões de euros. Mais de 1.100 filiais de empresas francesas atuam no Brasil. Com mais de meio milhão de contratados, os franceses são os maiores empregadores estrangeiros aqui.

Até mesmo em um ponto prejudicial aos interesses do Brasil, a implosão do acordo Mercosul-União Europeia, os dois presidentes estão alinhados. Macron acredita no livre comércio, mas não encontra condições políticas para fazer frente ao protecionismo agrícola francês, explorado por sua rival Marine Le Pen.

Lula não acredita em livre comércio. Há mais de 20 anos ele protege os setores da indústria e dos serviços da competição externa. Em seu primeiro mandato, torpedeou a criação da Área de Livre Comércio das Américas.

Lula respondeu ao banimento europeu às importações de commodities associadas ao desmatamento com outro obstáculo: a proteção das compras governamentais. Assim, os dois amigos podem culpar um ao outro pelo sepultamento do acordo.

No Rio, ambos viram a Marinha brasileira lançar ao mar o submarino Tonelero, o terceiro construído com tecnologia francesa. Macron afirmou que a França não transferiu tanta tecnologia de defesa a nenhum outro país. A parceria envolve a construção de cinco submarinos, o último deles com propulsão nuclear.

O Brasil tem outros cinco submarinos, fruto de parceria com a Alemanha, que também compartilhou tecnologia. É o único país do Hemisfério Sul com capacidade de construir submarinos. Essas armas são estratégicas para a proteção da vasta e rica costa brasileira. A propulsão nuclear eleva sua autonomia e reforça seu maior ativo: a invisibilidade.

Noutro lampejo, o presidente brasileiro abandonou o discurso contra a aquisição de armas, que o levou no passado recente a acusar Estados Unidos e Europa de terem interesse em fomentar a agressão russa contra a Ucrânia. “Queremos ter conhecimento para garantir a todos os países que querem paz que saibam que o Brasil estará ao lado de todos porque a guerra não constrói, a guerra destrói”, discursou.

É o poder de dissuasão, e não a retórica pacifista, que previne guerras. O escritor romano Flávio Vegécio já sabia disso no século 4: “Aquele que deseja a paz precisa se preparar para a guerra”.

Macron afirmou que potências pacíficas como França e Brasil têm de “falar com firmeza e força”, caso não queiram ser “lacaios” de outras nações: “Nós temos a mesma visão de mundo. Rejeitamos um mundo que seja prisioneiro da conflitualidade entre duas grandes potências. E temos de defender nossa independência, nossa soberania e o direito internacional”.

Macron é herdeiro de uma antiga tradição francesa, que preconiza um sistema de defesa europeu robusto e independente dos EUA. A França não faz parte da estrutura militar da Otan, mesmo sendo aliada. Esse propósito se tornou mais crítico para a Europa com a ascensão de Donald Trump, que ameaça violar as alianças de defesa dos EUA.

Ao mesmo tempo, Macron é um dos líderes da ajuda militar à Ucrânia, e tem afirmado que a Rússia precisa ser derrotada. Mas não se espera que Lula entenda isso. O Brasil não é relevante nessa questão.

Na região em que o Brasil pode exercer um papel, a América Latina, Lula parece ter entendido algo. “Não tem explicação jurídica, política, você proibir um adversário de ser candidato”, disse ele sobre a exclusão da candidata da oposição venezuelana, Corina Yoris, por sua vez substituta da verdadeira candidata impedida de disputar a eleição presidencial, María Corina Machado.

Macron precisa voltar mais vezes.

domingo, 24 de março de 2024

Por que o Brasil cresce pouco: pela falta de investimento, o físico e o social - Rolf Kuntz (Estadão)

 Interessante artigo do Rolf Kuntz, publicado no Estadão de hoje. Aponta um problema excluído das análises dos economistas do governo e do PT : a pífia taxa de investimento – 14,7% do Produto Interno Bruto (PIB) estimada pela Fundação Getúlio Vargas para o mês de janeiro ( menor que a taxa média mensal, de 16,3%, do período iniciado em janeiro de 2015

Maurício David

Novo país, só com novo crescimento

Se quiser produzir, em seu governo, um legado relevante, o presidente Lula terá de se empenhar nestes dois investimentos, o físico e o social 

Por Rolf Kuntz 

O Estado de S. Paulo, 24/03/2024


O morticínio em Gaza, a guerra na Ucrânia e as lambanças atribuídas ao ex-presidente Jair Bolsonaro são muito mais interessantes que a pífia taxa de investimento – 14,7% do Produto Interno Bruto (PIB) – estimada para o mês de janeiro pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mas os cricris da imprensa, da Faria Lima e da academia podem apontar mais um detalhe sinistro. Além de pífia, essa taxa é menor que a mísera média mensal, de 16,3%, do período iniciado em janeiro de 2015. O presidente Lula pode ter excelentes motivos, ainda mais como presidente do Grupo dos 20, para dar mais atenção àqueles assuntos do que a uns números medíocres. Ministros da área econômica talvez possam, ou devam, gastar algum tempo com essas ninharias. Mas serão, mesmo, ninharias?

O otimismo presidencial só parece ter sido afetado, nos últimos dias, pela perda de popularidade apontada por algumas pesquisas. Ele cobrou mais trabalho dos ministros, mais atenção à saúde e maior esforço de comunicação. Maior empenho pode ser uma boa ideia, principalmente se houver objetivos claros e estratégias bem definidas. Os otimistas ainda esperam esses detalhes. O presidente pode, com razão, festejar o crescimento econômico de 2,9% no ano passado, mas o horizonte está pouco claro neste momento.

Os sinais positivos observados no começo do ano ainda são pouco entusiasmantes. A recuperação da indústria permanece como um dos desafios principais. A produção industrial diminuiu 1,6% em janeiro e acumulou avanço de 0,4% em 12 meses. Mas ainda ficou 0,8% abaixo do patamar pré-pandemia (começo de 2020) e em nível 17,5% inferior ao recorde alcançado em maio de 2011. Em fevereiro novo recuo deve ter ocorrido, segundo estimativa da Confederação Nacional da Indústria (CNI). O País continua incapaz, tudo indica, de reverter a desindustrialização, mas o assunto foi pelo menos incluído na pauta do governo.

A produção deve ter aumentado 0,6% em janeiro, segundo o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br). O Monitor do PIB, atualizado mensalmente pela FGV, indicou expansão de apenas 0,1%, liderada pela agropecuária e pelos serviços. Mas a economia rural, embora ainda vigorosa, deve crescer menos neste ano que em 2023, segundo as últimas projeções. O avanço geral será mais dependente da indústria do que vem sendo há alguns anos. Mas o setor industrial dependerá de renovação e de muito investimento para reassumir, por um período longo, o velho papel de principal motor do crescimento.

Contudo, a formação de capital produtivo na indústria e na maior parte da infraestrutura tem sido, neste século, muito limitada. Tem-se investido muito mais na modernização e na expansão produtiva do agronegócio. Também os serviços têm avançado mais que o setor industrial na expansão da capacidade e na renovação. Somadas todas as parcelas, a taxa de investimento da economia continua muito abaixo da necessária para sustentar um crescimento mais vigoroso. A média do período iniciado em 2015 foi estimada pela FGV em 16,3% do PIB. É uma taxa muito inferior, portanto, àquelas observadas no mundo emergente, com frequências superiores a 20% do PIB.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva conhece a importância da formação de capital produtivo, mas tem-se mostrado, na prática, pouco propenso a cuidar do assunto de uma forma ampla. Não se vai longe quando se concentra o esforço nos chamados “investimentos sociais” e pouco se trabalha pelos outros objetivos. Uma boa malha de transportes – para citar um exemplo fácil – pode beneficiar tanto o grande empresário rural ou industrial quanto as populações mais necessitadas.

A atenção a essas populações depende, é claro, de políticas especiais e às vezes complexas, mas um governo eficiente deve buscar ao mesmo tempo o aumento da produção e a promoção da igualdade. Importantes em todo o mundo, as políticas educacionais e de formação de mão de obra são especialmente relevantes no Brasil, assim como o saneamento e a promoção da saúde pública. O setor privado pode ter papel importante nessas tarefas, mas a responsabilidade básica e intransferível é do setor público.

Para isso é preciso gastar muito, com muita competência e com muito cuidado na fixação de objetivos, porque o dinheiro é escasso e o orçamento público é muito ruim. Recursos públicos são engessados, a gestão de pessoal é pouco flexível e a elaboração orçamentária é sujeita à apropriação de verbas para fins pessoais de parlamentares. Num país onde faltam recursos para investir em equipamentos materiais, pode ser especialmente difícil mobilizar capital e vontades para o desenvolvimento humano. Se quiser produzir, em seu governo, um legado relevante, o presidente Lula terá de se empenhar nestes dois investimentos, o físico e o social, ambos essenciais para a construção de um país mais produtivo e mais moderno em todos os sentidos. Se engajar todos os ministros nessa aventura, ainda terá de batalhar pelo apoio, muito mais difícil, de parlamentares muito raramente voltados para grandes questões nacionais.

*JORNALISTA