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domingo, 30 de março de 2025

O batom de Bolsonaro - Marcelo Godoy (Estadão)

O batom de Bolsonaro

Marcelo Godoy

O Estado de S. Paulo, 30/03/2025

Atentar contra as liberdades é o pior dos crimes que alguém pode cometer em uma República

Marco Mânlio Capitolino aspirou à realeza e acabou precipitado da Rocha Tarpeia. É o que Tito Lívio conta no livro VI da História de Roma – Ab urbe condita libri. A República condenou Mânlio, apesar de suas ações nobres, porque – movidas pela “vergonhosa paixão de reinar” – deixavam de motivar recompensa e glória para se tornarem odiosas.

Bolsonaro, como os antigos acusados em Roma, compareceu ao fórum. Sua presença não constrangeu os ministros – Lula não esteve lá quando o STF definiu que os condenados em 2.ª instância deviam ir para o cárcere, antes do trânsito em julgado.

Bolsonaro sabe o significado de seu gesto. É de manipular as redes e de explorar meias-verdades que o bolsonarismo é sempre acusado pelos adversários.

A última delas foi o caso da cabeleireira Débora dos Santos, que foi a Brasília se unir aos acampados em frente ao QG do Exército, onde a palavra de ordem era a sediciosa “intervenção das Forças Armadas”. O ataque às sedes dos Poderes tinha o fim de ocupá-las para obter a adesão dos militares. Tudo provado à exaustão por centenas de mensagens entre os réus. A cabeleireira tem dois filhos. Uma condenação a 14 anos resultaria em dois de cadeia antes da progressão ao semiaberto.

Aqui é preciso diferenciar dois tipos de reações: a dos que procuram corrigir os excessos de uma Justiça afrontada e pedem aos julgadores equilíbrio e respeito ao estado democrático de direito e a da miríade de oportunistas que usa o caso de Débora para atacar o dever que a Justiça tem de mandar para a cadeia os golpistas que cometeram o pior dos crimes em uma República: aspirar à tirania e atentar contra as liberdades.

Há políticos que, em vez de se preocuparem com o gangsterismo em suas cidades e Estados, resolveram “salvar” a cabeleireira. Mal conseguem esconder o verdadeiro interesse: herdar os votos de Bolsonaro, o réu que, em breve, será atirado pelo STF, não da Rocha Tarpeia, mas ao malfadado rol dos culpados.

O batom da cabeleireira é parecido com o qual a Procuradoria diz que Bolsonaro escreveu sua participação no golpe. Era chefe supremo das Forças Armadas. Tomou conhecimento da conspiração para anular as eleições. Militares puseram em execução duas operações por fora da cadeia do comando. Iniciariam a empreitada. Bolsonaro não os impediu. Como seria beneficiado, aderiu à conduta. Está no Código Penal: comete-se crime por ação ou omissão. Essa é a lei. Eis o batom de Bolsonaro.

Negar o golpe é como negar o petrolão. Há muito este país espera uma revolução: a do cumprimento das leis. É isso que os Poderes da República e cada cidadão devem ao Brasil. Quando as leis são cumpridas, nenhuma anistia é “necessária”.


domingo, 16 de março de 2025

Militares: os donos da República? - Guilherme Rodrigues

 Questões sobre a ordem militar

 

Por GUILHERME RODRIGUES*

O golpe de Estado aparece para as forças militares como apenas mais uma de suas atribuições, dada uma pretensa situação de “desordem” permanente em que a sociedade brasileira se encontra

 

Há uma colocação muito precisa feita por Heráclito Sobra Pinto a respeito dos militares brasileiras em que o jurista diz: “Tendo proclamado a República, [os militares] julgaram-se donos da República, e nunca aceitaram não serem os donos da República.” A colocação, popularizada hoje pelo podcast Medo e delírio em Brasília, não poderia ser mais precisa no que diz respeito ao pretenso papel que as forças armadas atribuíram a si mesmas desde o golpe de Estado que inaugurou a República em 1889.

Este foi, porém, apenas o primeiro de muitas tentativas de golpes, sendo que alguns foram de fato bem-sucedidos, afinal de contas, tal prática parece ser o modus operandi que tal facção armada da política brasileira usou durante cerca dos últimos 150 anos – chega a ser farsesco acompanhar esta história nos livros e teses que dissertaram sobre os militares no Brasil. Isso, contudo, não é tão cômico se nos lembrarmos o nível indescritível de violência que foi operado em tais atividades, para além de, claro, a prática cotidiana militar que é, em suma, violenta.

Ao tratar, portanto, dos militares no Brasil seria o caso de reiterar tal dado a todo momento, quer dizer, que sua tutela no Estado sempre foi feita com muita coerção, em todos os níveis imagináveis. E, tão alinhados à história da República, seria também o caso de recordar como seu pensamento está organicamente alinhado a uma certa veio positivista, que fez fama na intelectualidade brasileira na segunda metade do século XIX – não à toa o lema inscrito na bandeira da República: “ordem e progresso”.

Tal tradição viu com muito maus olhos toda e qualquer marca que pudesse ser associada ao passado do país, numa busca incessante por apagamento e esquecimento dos traços profundamente enraizados dos tempos coloniais — ainda que se saiba muito bem como tais marcas não somente subsistem até hoje, mas, em verdade, formam a profundidade e a superfície do tecido social. Os esforços de modernização dos positivistas levaram ao famoso bota-abaixo na cidade do Rio de Janeiro do início do século passado, destruindo lugares como o primeiro colégio de jesuítas de Manoel da Nóbrega (que ficava no extinto morro do Castelo) e a casa de Machado de Assis na antiga rua do Cosme Velho.

Mas não é só isso: as políticas de embranquecimento, junto às leis de vadiagem estavam todas atreladas a tal imaginário positivista de modernização, que carregava a militaresca “ordem” contra as tradições entendidas como selvagens, primitivas, bárbaras – que, em verdade, se associavam fundamentalmente às formas de vida das camadas mais vulneráveis da população, como os antigos escravizados e os indígenas.[i]

O uso da força brutal da coerção das massas se articula com o discurso eugenista, com as estruturas ideológicas deste positivismo; e a instituição das forças armadas, mergulhada completamente nesta formação, não somente adere ao pensamento como dá materialidade à ordem necessária para sua realização, a saber, o apagamento por meio do desaparecimento, assassinato, tortura, exílio, ocultamento de pessoas e tradições inteiras. O golpe de Estado aparece para as forças militares como apenas mais uma de suas atribuições, dada uma pretensa situação de “desordem” permanente em que a sociedade brasileira se encontra, pela presença ostensiva de grupos que tingem de manchas uma suposta unidade nacional que nunca existiu; o aparato militar usa de sua força armada, então, para empurrar goela abaixo uma ordem em nome de um progresso que avança por cima de pessoas, de histórias, de casas e de cidades inteiras.

Dos inúmeros exemplos que se pode levantar, gostaria de relembrar aqui o caso de Canudos, pela força pedagógica que a destruição do arraial da Bahia em 1897 tem em sentido de ilustrar tal atribuição dos militares; e, curiosamente, é um homem de formação positivista, num livro de estrutura e argumento positivistas que vai sugerir uma crítica profunda não somente aos militares em plena Primeira República, no calor do momento, mas à própria ideia de progresso, de civilização e de modernidade da qual sua própria obra bebe – Euclides da Cunha.

Não se trata de dizer que o argumento, a estrutura e o vocabulário d’Os sertões não seja positivista; e que tudo isto parte do princípio que os sertanejos seriam pessoas “destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização”[ii], mas é notável perceber como há um tensionamento destes mesmos conceitos internamente à obra, o que a faz dialeticamente um texto da melhor natureza – afinal, em muitos momentos é esta mesma civilização aparece ironizada e contendo seu próprio negativo, a barbárie.

Neste sentido, a obra relata a destruição do arraial com uma ironia refinadíssima, que muitas vezes foge ao leitor desavisado. Desde o início se pode perceber algo assim: “Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições.”[iii] Lembre-se como nada do avanço da civilização nos sertões foi pacífico, o que já tinha sido apontado no livro em outros momentos. Tais afirmações podem pegar o leitor de surpresa na medida em que uma ironia assim está esvaziada do tão famoso humour pelo qual ficarão conhecidos Machado de Assis e Drummond: resta em Cunha apenas a brutalidade do desvelamento da violência da pacificação do sertão de Canudos.

A obra vai, como se sabe, desmontar como o argumento do governo da República contra Canudos – que lutava contra uma insurreição monarquista – era falso. O capítulo em que se narra a quarta expedição a Canudos na terceira parte do livro destrincha em seu início como os homens da capital construíram tal falso argumento, potencializado pelos grandes jornais da época, como A Gazeta de Notícias e O Estado de S. Paulo, lembrando-nos como o discurso jornalístico mainstream funciona a favor dos aparatos de repressão e violência, se servindo de invenções disparatadas ao gosto do que hoje se chama de “fake news” nos grupos de WhatsApp; nas palavras do livro: “A mesma toada em tudo. Em tudo a obsessão do espantalho monárquico, transmudando em legião – coorte misteriosa marchando surdamente na sombra — meia dúzia de retardatários, idealistas e teimosos.”[iv]

Diante da derrota do militar Moreira César, a quarta expedição se organizou ao redor de um discurso que buscava a falsa afirmativa de uma revolta monarquista, apontando também para uma suposta inferioridade sub-humana dos sertanejos. O que chama a atenção do autor, porém, é outro dado: “A rua do Ouvidor valia por um desvio das caatingas. A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro. E a guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral. O homem do sertão, encourado e bruto, tinha parceiros porventura mais perigosos.”[v]

O escritor percebe como aquilo que ora se distingue como selvageria está no interior daquilo que se chama civilização. A condição da cidade civilizada é, em verdade, não muito distinta dos sertões de Canudos; e, no final, Euclides da Cunha chega inclusive a argumentar uma racionalidade própria na resistência sertaneja, óbvia até: “Estes, ao menos, eram lógicos. Insulado no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico, só podia fazer o que fez – bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas.”[vi]

Esta é, enfim, a face da civilização: uma força armada devastadora que destruiu Canudos, que assassinou brutalmente seus moradores; algo que se inicia por uma disputa por modos de vida; de linguagem, de desejo e de trabalho. Neste sentido os patriotas decidiram agir, e, nas palavras de Cunha, “agir era isto – agremiar batalhões.”[vii]

O exército brasileiro, portanto, encabeça o massacre criminoso de Canudos (que é assim mesmo nomeado no livro – um crime), usando dos mais brutais subterfúgios para matar e destruir o arraial. Considerando-se os donos da República, os militares, buscando uma prova do fim da insurreição e da desordem, ao final da campanha, exumam o cadáver de Antônio Conselheiro e tiram a famosa foto que hoje conhecemos do profeta; mas, não satisfeitos, cortam-lhe a cabeça, para seguiram portando-a numa parada em festa no Rio de Janeiro.

Ao terminar seu relato, a obra traz um tom de assombramento diante da violência que significou a expedição militar em nome da civilização, da ordem e do progresso. O avanço da civilização apareceu como um assalto armado contra uma população cuja história era já de exílio, abandono e violência. A ação militar foi, de certo modo, destruir as tinturas desta mancha, a marca de seu próprio passado violento; e o que chama a atenção de Cunha é como tal campanha tenha sido levada a cabo por “filhos do mesmo solo”, diferentes dos sertanejos por atuarem como “mercenários inconscientes” que vivem na capital sob a ideologia do progresso europeu.

Diante de um exemplo tão eloquente, seria o caso de lembrar que os militares jamais foram responsabilizados por seus sucessivos atos de violência contra a própria população. Parafraseando Julio Strassera em seu discurso final no julgamento que condenou os chefes militares argentinos da última ditadura, a nossa oportunidade é agora. Não se trata, porém, de meramente condenar generais de quatro estrelas, mas de forçar esta instituição a uma refundação: destituir todo seu comando, suas escolas, seus tribunais, suas aposentadorias especiais – lembrá-los de sua condição de servidores públicos a serem tratados com o mesmo estatuto que todos; forçarem a estudar conosco e terem uma formação em uma escola como qualquer outro.

Mais do que isso, que sejam, como na Argentina, julgados pela justiça comum – não estamos em guerra para que exista um tribunal militar. Só assim será possível dizer que há alguma justiça, memória e luto por todos aqueles que morreram pela despropositada ordem das baionetas.

 

*Guilherme Rodrigues é doutor em teoria literária pelo IEL da Unicamp.

Notas


[i] Neste sentido, vale conferir o trabalho recente de Guilherme Prado Roitberg, que tem pesquisado a eugenia no Brasil desde o século XIX, sua aplicação no aparato modernizador do Estado e seu funcionamento na sociedade brasileira, principalmente entre os anos 1920 e 1930.

[ii] CUNHA, Euclides da. Os sertões: (Campanha de Canudos). 4ª ed. São Paulo: Ateliê editorial, 2009, p. 65.

[iii] CUNHA, ibid. p. 331.

[iv] CUNHA, ibid. pp. 499-500.

[v] CUNHA, ibid. p. 501.

[vi] CUNHA, ibid. p. 502.

[vii] CUNHA, ibid. p. 503.

sábado, 15 de junho de 2024

Militares são os grandes beneficiados por um Estado pródigo

 A Previdência dos militares será colocada na mesa para integrar o pacote de gastos, sinalizou a ministra do Planejamento, Simone Tebet, em entrevista ao jornal O Globo. "Eu tenho coragem para colocar tudo", disse Tebet, que citou o alerta do Tribunal de Contas da União sobre o tema.

 

Em 2023, FFAA gastou 36,54% com pessoal militar ativo e 63,46% com pessoal militar inativo

 

 

Gastos com Pessoal Militar das Forças Armadas – Fonte: ME

 

Base: Ano de 2023

 

Itens

Quantitativo

R$ Bilhões

%

Ativos

350.238

33,8

36,54

Reserva e Reforma

167.232

30,9

33,41

Pensionistas

234.078

27,8

30,05

Total Pessoal Militar

751.548

92,5

100,00

 

 

Em 2023, existiam 350.238 militares ativos das Forças Armadas, sendo que 199.318 eram rotativos que não faziam parte do RPPS (Regime Próprio da Previdência Social dos Militares), com isso o efetivo ativo contribuinte para o RPPS era de apenas 150.920 militares para um contingente de 401.310 inativos (reservas, reformas e pensões), gerando uma relação de 0,38 ativos para 1,00 inativos.

 

O quadro demonstrativo acima demonstra, de forma clara e indiscutível, para a distorção causada pela pensão das filhas de militares nas contas nacionais, gerando uma aberração econômica, onde se gasta 36,54% com pessoal ativo e 63,46% com pessoal inativo (reservas, reformas e pensões).

                                                                                                                                                              

Essa anomalia econômica foi encerrada em 2001, mas em função do maldito direito adquirido existente para os trabalhadores de primeira classe (servidores públicos) seus efeitos financeiros somente ocorrerão em torno do ano de 2036. 

 

 

Arquivos oficiais do governo estão disponíveis aos leitores.

 

Ricardo Bergamini

 

 

Previdência de militares será colocada na mesa no pacote de corte de gastos, diz Tebet a jornal

 

São Paulo

 

14/06/2024 

 

A Previdência dos militares será colocada na mesa para integrar o pacote de gastos, sinalizou a ministra do Planejamento, Simone Tebet, em entrevista ao jornal O Globo. "Eu tenho coragem para colocar tudo", disse Tebet, que citou o alerta do Tribunal de Contas da União sobre o tema…

 

Veja mais em https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2024/06/14/previdencia-de-militares-sera-colocada-na-mesa-no-pacote-de-corte-de-gastos-diz-tebet-a-jornal.htm?cmpid=copiaecola


sexta-feira, 16 de junho de 2023

As corporações em seus quadrados respectivos: militares e diplomatas - Paulo Roberto de Almeida

 Nunca concordei inteiramente com essa ideia de que a guerra é muito importante para ser deixada apenas para os militares. Esse tipo de simplismo repetido quinhentas vezes estes muito errado. Os militares profissionais TÊM de estar necessariamente associados ao processo decisório de qualquer questão externa (por vezes até interna) que envolva a segurança nacional, o território da pátria e a soberania. Ponto.

Por outro lado, eu certamente NÃO concordo com uma frase que pretenderia que a diplomacia é muito importante para ser deixada apenas a diplomatas. Pode até ser, mas em circunstâncias muito específicas, naquelas que envolvem aspectos não diretamente diplomáticos de problemas externos.
Mas CERTAMENTE, a diplomacia é uma coisa muito importante para ser deixada a NÃO DIPLOMATAS.
Do contrário, dá nisso que estamos assistindo por aí: o amadorismo rebaixando as melhores tradições da política externa do Brasil, violando princípios e valores de nossa diplomacia, e rebaixando o conceito do Brasil no mundo, inclusive em contradição com a Carta da ONU e os interesses nacionais, que passam a ser guiados pelos instintos dos mandantes da ocasião e os adeptos de determinadas causas políticas, carregadas de simpatias ideológicas ou de antipatias a determinados países.
Não preciso entrar em detalhes sobre o que está ocorrendo com a nossa política externa, já demolida no governo anterior, e bastante arranhada atualmente, assim como as tribulações da diplomacia profissional, que precisa acomodar preferências pessoais do chefe de plantão...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16/06/2023

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Militares continuam a fazer confusão em torno das eleições, e o Itamaraty segue atrás...

 Sem TSE, Itamaraty discute ‘aperfeiçoamento eleitoral’ com militares


Chanceler Carlos França se reuniu no Ministério da Defesa com o general-ministro Paulo Sergio e com o chefe da Equipe das Forças Armadas de Fiscalização do Sistema Eletrônico de Votação.

por Hugo Souza
31 de agosto de 2022

No início da tarde da última quinta-feira, 25, Dia do Soldado, o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, foi ao Ministério da Defesa acompanhado de dois funcionários do Itamaraty para tratar de “aperfeiçoamento da segurança e da transparência do processo eleitoral”.

Nenhum representante do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) participou da reunião, na qual as Forças Armadas informaram “mais detalhadamente” a Carlos França suas “propostas” de mudanças no sistema eletrônico brasileiro de votação. Pela defesa, quem participou da reunião, além do general-ministro Paulo Sergio Nogueira de Oliveira, foi o coronel do Exército Marcelo Nogueira de Souza, chefe da Equipe das Forças Armadas de Fiscalização do Sistema Eletrônico de Votação (EFASEV).

Em meados de julho, o coronel Marcelo Sousa disse no Senado da República que “é possível que um código malicioso tenha sido inserido na urna e fique lá latente esperando algum tipo de acionamento”.

O chanceler Calos França, por seu turno, disse em maio na Câmara dos Deputados que “os reclamos do governo brasileiro por um voto auditável e transparente vai na direção da busca de transparência”.

A principal das “propostas” que o general Paulo Sergio e o coronel Marcelo Sousa discutiram na última quinta-feira com o chanceler Carlos França é que, no dia das eleições, o teste de integridade das urnas eletrônicas seja feito nas seções eleitorais e com eleitores reais liberando a urna com biometria, em vez de nas sedes dos TREs e com as urnas liberadas por servidores da Justiça Eleitoral.

A proposta é tida pela Defesa como “inegociável”. No entendimento “colaborativo” do ministro-general Paulo Sergio, só esta mudança “reduziria a possibilidade de um código malicioso furtar-se ao teste”. Técnicos do TSE, porém, já informaram ao presidente do tribunal, Alexandre de Moraes, que a possibilidade de testar as urnas eletrônicas com biometria de eleitores reais no dia da eleição é “inviável”, “impossível em várias frentes”.

Entre o “inegociável” e o “inviável”, portanto, criou-se um impasse. Ou melhor: o impasse foi deliberadamente criado, construído, premeditado pelos militares, que, com seus pós-graduados em informática há tempos debruçados sobre as urnas, decerto já sabiam há tempos sobre a inviabilidade da requisição.

‘Faz parte do meu putsch’
Este Come Ananás mostrou na semana passada que o objetivo da sinuca é ter na manga da farda, para todo caso, um pretexto – “a possibilidade de um código malicioso furtar-se ao teste”, como disse o general Paulo Sérgio no Senado – para tentar adiar indefinidamente o primeiro ou o segundo turnos ou, havendo eleições, apontar possibilidade de fraude, bagunçando o coreto, quando e se Lula for declarado presidente eleito.

Neste sentido, as tratativas da Defesa com o Itamaraty sobre “aperfeiçoamento da segurança e da transparência do processo eleitoral”, feitas à revelia do TSE, em clara extrapolação de papeis institucionais, mostram que o movimento de preparação dos espíritos da “comunidade internacional” para a eventualidade de, digamos, um problema técnico com as eleições não se esgotou com a famigerada reunião de Bolsonaro com embaixadores no Palácio do Planalto, na qual os ministros Paulo Sergio e Carlos França estiverem presentes e sentaram-se lado a lado na primeira fila da plateia.

Neste sentido, nesta quarta-feira, 31, a praticamente um mês do primeiro turno e com um parecer técnico de inviabilidade da proposta na praça, Paulo Sergio vai ao TSE para dar um “alô” ao inimigo; para reforçar a proposta, apesar de tudo, junto a Alexandre de Moraes.

No melhor estilo codinome beija-flor: “invento desculpas/provoco um briga”.

No melhor estilo “faz parte do meu putsch”.

https://comeananas.news/sem-tse-itamaraty-discute-aperfeicoamento-eleitoral-com-militares/

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Militares "têm juízo" e não embarcarão num golpe de Bolsonaro, diz Celso Amorim (Sputnik, Brasil 247)

 Militares "têm juízo" e não embarcarão num golpe de Bolsonaro, diz Celso Amorim


"Não vai haver golpe. Agora, pode haver um tumulto, pode haver uma tentativa", alertou o ex-ministro da Defesa, ex-chanceler e conselheiro de Lula para geopolítica

Brasil 247, 4 de agosto de 2022

Sputnik - Crítico implacável do direcionamento da política externa conduzida durante o mandato de Jair Bolsonaro (PL), o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim não poupou o verbo ao fazer um balanço da condução do atual presidente em assuntos internacionais: "Não há nem como fazer balanço, porque não dá para fazer balanço de destruição".

O saldo negativo é dado pelo principal conselheiro em política externa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de cuja gestão foi chanceler entre os anos de 2003 e 2010, e que é o principal adversário de Bolsonaro na disputa pela Presidência da República nas eleições de 2022. Lula, no entanto, lidera com folga as pesquisas de intenção de voto.

"Digo isso com tranquilidade porque não estou só falando do governo Lula, no qual fui ministro, ou do governo Dilma, em que fui ministro da Defesa, mas do Brasil [de modo geral]."

Em entrevista exclusiva de pouco mais de uma hora concedida à Sputnik Brasil na última segunda-feira (1º), Amorim aponta os direcionamentos que devem coroar a diplomacia do Brasil no caso de Lula ser conduzido, novamente, à chefia do Executivo, como indicam as atuais projeções eleitorais.

"É difícil resumir, mas é preciso reconhecer que há três ou quatro grandes problemas que são globais e que, portanto, merecem a nossa atenção. Qual a nossa influência em cada um deles só a prática dirá. Eles são: uma mudança climática; as pandemias e ameaças globais à saúde; a desigualdade (que está na raiz de muitos problemas, inclusive refugiados e imigração, com isso criando problemas sociais e até conflitos); e, agora, uma coisa que eu não tinha incluído nas grandes ameaças [anteriormente]: as armas nucleares", elenca.

O ex-chanceler defende a integração não apenas da América do Sul — tema de seu recém-lançado livro, intitulado "Laços de Confiança" — mas da América Latina como um bloco regional, algo que classifica como "vital".

Também indica um olhar especial para o continente africano.

"Vamos dar uma grande prioridade à África por razões históricas, étnicas, culturais e da própria formação do povo brasileiro", ressalta.

Faz certo mistério sobre uma eventual recondução ao posto de ministro das Relações Exteriores, mas, em caso da vitória de Lula, apela para uma "salinha" no Palácio do Planalto para tomar um cafezinho com o ex-presidente.

"Talvez isso seja até muita ambição da minha parte", brinca.

Amorim ironiza a cobiça do atual governo pelo ingresso na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e aponta que um eventual ciúme dos Estados Unidos por uma política externa brasileira independente da hegemonia norte-americana precisa ser lidado de "maneira adulta e pacífica".

Descarta, também, qualquer tipo de aventura golpista por parte do atual governo — temor que vem sendo ventilado na sociedade civil brasileira devido a falas do presidente.

Veja, abaixo, a terceira e última parte da entrevista cedida por Amorim à Sputnik Brasil.

Sputnik Brasil: Caso o ex-presidente Lula seja eleito em 2022, o senhor voltaria a ser o chanceler do Brasil?

Celso Amorim: Nós vamos cruzar essa ponte quando chegarmos lá. Agora, todo o trabalho é pela eleição. Nós vamos recuperar a democracia, recuperar a civilidade e o respeito internacional — para o que a eleição é fundamental. Eu tenho toda disposição para ajudar o presidente em tudo o que for necessário.

Agora, já houve todo o tipo de especulação e, se for uma mulher [escolhida como ministra], eu acharia ótimo. Nunca tivemos tantas mulheres embaixadoras em postos importantes quanto em nosso governo [Lula, de 2003 a 2010], então seria uma boa hipótese. Há também, a hipótese de pessoas mais jovens.

Eu digo de brincadeira que eu me daria por satisfeito se ele me oferecer uma salinha lá no fundo do Palácio do Planalto para tomar um cafezinho com ele de vez em quando. Talvez isso seja até muita ambição da minha parte.

SB: Com o mandato encerrando, como o senhor avalia a política externa conduzida pelo governo de Bolsonaro? Dá para se fazer um balanço a respeito?

CA: Não há nem como fazer balanço, porque não dá para fazer balanço de destruição. Ele tentou destruir ao máximo, algumas coisas ele não conseguiu, pois o Itamaraty revela ainda que tem uma atitude impositiva.

Mas em certos episódios, como esse recente da convocação de embaixadores estrangeiros para falar mal da Justiça Eleitoral, a chefia do Itamaraty não se comportou bem, na minha opinião. Enfim, cada um sabe da sua vida, de modo que eu não devo dizer o que a pessoa deveria ou não fazer. Mas eu fiquei um pouco decepcionado, porque achei que o atual chanceler, Carlos França, estava procurando ser mais moderado. Claro que com o Bolsonaro é impossível fazer uma boa política externa. Mas o chanceler pode agravar ou minorar. Ele estava tentando minorar. Mas essa reunião com a presença dele é muito lamentável.

Eu nunca vi isso na diplomacia, e para falar a verdade, nunca vi em nenhum país: o presidente convocar embaixadores estrangeiros para falar mal das próprias instituições, e na realidade, praticamente, até anunciar um possível golpe, induzindo a crer na possibilidade de um golpe. Isso é inacreditável. Tudo isso desmoraliza muito a nossa ação externa.

Agora, o Brasil é um país grande, de muita tradição. Não só nos governos Lula e Dilma, em que eu estive, mas em governos anteriores. Eles poderiam não ter, talvez, a mesma amplitude de ação em alguns casos, mas eram respeitados. O Brasil sempre foi respeitado internacionalmente. Fui embaixador, por exemplo, em Genebra, no GATT [Acordo Geral de Tarifas e Comércio], na época do Collor. O Brasil estava naquela confusão interna, mas a voz do Brasil no exterior era respeitada. Foi feita naquela época pelo meu xará, Celso Leifert, que era ministro (um homem de visão ideológica diferente da minha, mas um homem correto), a Rio-92. No GATT, nós defendemos posições dentro do contexto da época, que tinha suas limitações, como a prevalência do Consenso de Washington. O Brasil defendeu posições razoáveis, teve alianças com a Índia. Sempre o Brasil teve uma posição correta e razoável, e agora não.

Agora, é uma coisa totalmente descabida, ofendem-se governantes estrangeiros, seja diretamente, seja (o que é pior ainda) através da cônjuge mulher. Eu nunca vi uma coisa semelhante. Falta decoro diplomático. O Brasil é um país isolado em sua própria região, porque o Brasil não tem contato com ninguém.

Teve a cúpula do Mercosul, em Assunção, onde não temos sequer um governo de esquerda, e o presidente não foi. O único interesse dele [Bolsonaro] é não perder a eleição.

SB: Quais os principais pontos de inflexão da condução da política externa no governo Bolsonaro?

CA: Ele mesmo disse que não veio construir, que ele veio desconstruir, e ele faz isso em todos os setores. Tudo aquilo que foi criado de institucional no Estado brasileiro ele tem procurado destruir.

Isso vai do IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] ao INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], passando pela Funai [Fundação Nacional do Índio] e pelo Itamaraty. Ele não destruiu mais o Itamaraty como instituição porque é difícil. A política externa se faz na base da confiança, e o Brasil jogou fora seu capital de confiança que foi criado ao longo dos anos.

Digo isso com tranquilidade porque não estou só falando do governo Lula, no qual fui ministro, ou do governo Dilma, em que fui ministro da Defesa, mas do Brasil [de modo geral].

Quando eu era embaixador na ONU, queriam que o Brasil presidisse uma comissão sobre a antiga Iugoslávia. Por acaso, estava de férias. E o embaixador do Japão, então presidente do Conselho [de Segurança da ONU], me ligou e pediu para vir, porque o Brasil tinha que estar [presente]. E eu perguntei: mas por quê? Ele me explicou que o Brasil é o único país que os EUA e a Rússia aceitam. Essa é a credibilidade diplomática que o país tinha. Isso não quer dizer que se concordasse com tudo dos Estados Unidos ou tudo da Rússia, pelo contrário, seria impossível.

Eles tinham confiança no que a gente fazia. Isso contrasta com essa situação atual em que o Brasil não é chamado a uma reunião do G7, em que são convidados outros países, e o Brasil não é convidado. Isso jamais se passaria no período do Lula. Pelo contrário, o Brasil participou de todas as reuniões — naquela época, era o G8 [quando incluía a Rússia, removida em 2014]. Hoje, nós estamos auto-marginalizados.

SB: O senhor acha que essas ameaças constantes do presidente Jair Bolsonaro em relação à democracia significam que ele seja capaz de dar um golpe com o uso das Forças Armadas?

CA: Não creio. Eu acho que pode causar muito tumulto ainda, porque não sabemos como vai se comportar. Até porque uma das coisas que caracterizam o Bolsonaro é a imprevisibilidade total do comportamento dele. Se você me dissesse que ele iria visitar a Rússia no meio de uma crise que, seis dias depois, levou a uma guerra. Claro que talvez ele não pudesse adivinhar, mas a informação corria nos serviços [diplomáticos]. Mas ele não só foi como prestou solidariedade. Então ele é imprevisível. Mas eu acho que não há condições.

Sempre que houve um golpe militar ou com apoio militar na América do Sul, em geral, e no Brasil, em particular, ele se deu com apoio da elite econômica, da grande mídia e de potências externas ocidentais, sobretudo pelos próprios Estados Unidos. Eu acho que nenhum dos três fatores, hoje, joga a favor [de um golpe], então torna isso muito difícil. São três grupos muito poderosos.

E quando o secretário de Defesa dos EUA [Lloyd Austin] vem aqui ao Brasil e diz na frente do nosso ministro da Defesa que o poder militar tem que estar subordinado ao poder civil, e defende a democracia. Antes disso, o próprio governo americano tinha dito que o sistema eleitoral brasileiro é um exemplo para o hemisfério e para o mundo. Não acho que vai haver golpe. Agora, pode haver um tumulto, pode haver uma tentativa.

Você vê declarações totalmente descabeladas de militares da reserva, às vezes, do Clube Militar. Mas isso tinha e sempre teve. Tinha uma pessoa que trabalhava comigo, um general de quatro estrelas, e ele sempre se referia à "reserva raivosa". Porque aí todos os ressentimentos, aquilo ali é um túmulo de fervura constante. Eu acho que não é isso o que predomina, o que vai predominar é o pensamento do alto comando. E o alto comando tem juízo.

SB: Quais devem ser os direcionamentos da política externa brasileira?

CA: Com Bolsonaro, não existe. Com Bolsonaro, é uma espécie de um buraco escuro que o Brasil caiu, e você tem que esquecer.

Você pode comparar com Fernando Henrique [Cardoso], você pode comparar até com o [Fernando] Collor, com o [José] Sarney, porque aí você está no domínio do mais ou menos racional. Mas o período de Bolsonaro está fora de qualquer possibilidade de comparação.

É difícil resumir, mas é preciso reconhecer que há três ou quatro grandes problemas que são globais e que, portanto, merecem a nossa atenção. Qual a nossa influência em cada um deles só a prática dirá.

Eles são: uma mudança climática; as pandemias e ameaças globais à saúde; a desigualdade (que está na raiz de muitos problemas, inclusive refugiados e imigração, com isso criando problemas sociais e até conflitos); e, agora, uma coisa que eu não tinha incluído nas grandes ameaças [anteriormente]: as armas nucleares. Esses são os grandes problemas que eu acho que devem ser enfrentados. Agora, como enfrentá-los? Qual é o tipo de relacionamento? Eu acho que buscando, apesar de tudo o que falamos aqui, das dificuldades, buscando contribuir para um mundo multipolar. Como o Brasil pode contribuir para um mundo multipolar?

Não só se relacionando bem com vários países, como já comentamos aqui (BRICS, EUA, UE), mas sobretudo fortalecendo a integração da América do Sul e da América Latina, para que ela também seja um bloco forte com capacidade de discutir com a União Europeia, com capacidade de discutir com os Estados Unidos sem ser uma submissão. Ela não pode ser objeto, ela não pode ser pátio traseiro, como dizem em espanhol, de nenhuma potência. Nem dos Estados Unidos, nem da China. Essas são as formas gerais.

Vamos dar uma grande prioridade à África por razões históricas, étnicas, culturais e da própria formação do povo brasileiro, e aí a gente vai vendo.

Queremos fortalecer o multilateralismo porque nós fizemos um esforço enorme na época do governo Lula em relação à Organização Mundial do Comércio, sabemos que ela está muito debilitada, mas o que se puder fazer para fortalecer deve ser feito. E, também, de uma forma geral, fortalecer o sistema multilateral.

Agora, é preciso ter a clareza de que o sistema multilateral tem que ser fortalecido, mas tem que ser modificado. Você não pode ter, 77 ou 78 anos depois do final da Segunda Guerra Mundial, o mesmo sistema que foi criado naquela época. Isso é uma coisa absurda.

Eu gosto muito de uma comparação que faz uma analista norte-americana chamada Anne-Marie Slaughter que diz assim: "É só pensar que em 1950, por exemplo, o mundo fosse se reger pelas regras de 1860, 1870". É uma coisa que não dá para [se basear]. Os países não eram os mesmos, as regras não eram as mesmas, então não tem [como]. Então essa mudança [de mentalidade] eu acho que é muito importante.

Na mudança da governança global, você tem que ter instrumentos efetivos para levar adiante políticas importantes com relação ao meio ambiente, ao clima, enfim, esses temas todos que eu mencionei. Ao mesmo tempo, as questões da paz e da guerra você tem que ter um certo equilíbrio, que não é o que existe no Conselho de Segurança [da ONU] hoje.

A tendência, hoje, quando há um problema importante (e eu sei disso porque participei de um grupo importante sobre o ebola), a questão estava sendo levada para o Conselho de Segurança da ONU. Agora, veja bem: como é que você pode discutir um tema como a pandemia em um órgão sujeito a veto? Não tem nem cabimento uma coisa dessas. Como é que você vai discutir temas como aquecimento global em um órgão sujeito a veto? Inclusive um veto que não tem nada a ver com o poder dos países? É um poder relativo de cada país. Então essa mudança da governança global é absolutamente fundamental. Eu acho que precisaria ter alguma espécie de institucionalização de algo parecido com o G20, um G20 um pouco mais modificado, um pouco mais africano e um pouco menos europeu, e também com uma representatividade de Estados pequenos.

Hoje, o G20 é um fórum importante. Mas ele não tem poder direto: ele não diz ao Banco Mundial o que ele tem que fazer. São os burocratas do Banco Mundial que decidem. No máximo, talvez, eles escutem o governo norte-americano, alguns governos europeus que dão dinheiro. Mas não é isso que tem que ser. Tem que ser uma coisa mais equilibrada, mais democrática. Então, eu acho que essa governança mundial tem que ser modificada. É preciso que alguém tome a iniciativa disso.

SB: Como o senhor avalia a possibilidade de retomada da integração latino-americana considerando essa guinada à esquerda, que, agora, inclui até a Colômbia, e com a eventual eleição do presidente Lula?

CA: Acho que a guinada à esquerda até ajuda e facilita pela afinidade. Mas, mesmo que não houvesse a guinada à esquerda, essa integração é necessária. Ela é vital. Volto a mencionar o meu livro porque até o título se chama "Laços de Confiança" do Brasil na América do Sul, e essa expressão me ocorreu quando eu estava saindo de uma reunião com o [ex-presidente da Colômbia, Álvaro] Uribe, que era o que pensava mais diferente da gente.

Mesmo dentro da pluralidade, tinha aquela visão comum, com variações, naturalmente, de que era importante estar junto. Isso, hoje em dia, é por um lado mais forte, porque essa necessidade de atuar em conjunto em temas como aquecimento global, pandemia, desigualdade é absolutamente fundamental, assim como em matéria de comércio como em outras matérias.

Assim como você disse, é mais fácil, porque é bom ter laços de confiança, mas melhor ainda ter laços de amizade e laços de afinidade. Eu vejo isso ocorrendo e temos hoje, no México, um governo muito progressista também, e é uma coisa que não ocorria desde o Lázaro Cárdegas, desde os anos 1940. Então isso é um fato de grande importância. Claro que o México, passe o que passa, tem uma relação muito especial com os Estados Unidos por causa da geografia. Mas, mesmo assim, tem tido atitudes muito corajosas e positivas.

Acho que temos que fazer isso [a integração regional da América Latina]. Tem coisas óbvias que precisam mudar, por exemplo, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, que pela primeira vez, por causa do [ex-presidente dos EUA, Donald] Trump, [tem um comando que não é latino-americano]. Mas o [atual presidente dos EUA, Joe] Biden não fez nada para mudar, se o Biden quisesse fazer um gesto positivo em relação à América Latina tinha que mudar esse cara e botar um latino-americano, que é o que sempre foi. Mesmo na dominação, os EUA sempre foram mais sutis, escolhiam um latino-americano que não fosse hostil a eles, e ele também seria uma pessoa mais sensível às nossas necessidades. Então você ter dirigindo o Banco Interamericano de Desenvolvimento uma pessoa que é representativa do que há de mais reacionário nos Estados Unidos com a América Latina não é possível. Enfim, só estou dando um exemplo. Agora, quanto mais unidos nós estivermos, mais fácil é de conseguirmos.

SB: O que o senhor pensa a respeito da entrada do Brasil na OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico]?

CA: Eu penso. Fico pensando (risos).

SB: Na entrevista de Lula para o UOL cedida na semana passada, ele falou que a única coisa que ele exigiria dos EUA seria respeito. O senhor acha que, com a volta do Lula e a retomada do projeto de liderança regional do Brasil, isso poderia causar algum tipo de incômodo para o governo norte-americano?

CA: Você sabe que, quando um país está em uma posição hegemônica, ele quer que todos obedeçam. Uma vez tive uma conversa com o Bill Richards, que era o embaixador deles na ONU, tinha sido governador do Novo México e foi, inclusive, pré-candidato à presidência, mas nunca conseguiu a nomeação. Eu disse para ele que o melhor aliado não é aquele que concorda sempre; o melhor aliado é aquele que tem valores parecidos, mas que tem outros caminhos e outras maneiras de dizer. E o Bill Richards, que era um homem muito inteligente e muito irônico, disse assim: "É, mas eu acho que preferimos aqueles que concordam sempre" (risos). Então isso aí mostra que há um potencial de controvérsia, mas tem que lidar com a controvérsia de maneira adulta e pacífica.

Eu acho que é isso que nós queremos que exista entre Brasil e EUA. São os dois maiores países do hemisfério. Claro que com uma enorme desproporção de riqueza, mas o Brasil tem um imenso território e um potencial enorme. Um tema central da política internacional do Brasil vai ser a questão do clima. E o Brasil é uma grande potência nisso, e tem que ser uma potência do bem para ajudar a superar esse temor que todos temos do aquecimento global chegar a níveis insuportáveis.

https://www.brasil247.com/poder/militares-tem-juizo-e-nao-embarcarao-num-golpe-de-bolsonaro-diz-celso-amorim

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Uma petição para afastar os militares da vida política

Pela defesa do processo eleitoral e pela exclusão dos militares da política

Está mais do que evidente o erro que foi convidar as Forças Armadas para integrar Comissão de Fiscalização do Processo Eleitoral. O grau de politização em que se encontram militares de alta patente, em especial aqueles do Exército, tem se revelado como um fator de instabilidade, insegurança e incerteza quanto ao futuro da República e da democracia. 

Presidente da República, o militar Jair Bolsonaro, tem buscado, através de inúmeros meios, desacreditar o processo eleitoral. São mentiras e mais mentiras dirigidas contra o processo eleitoral, num conjunto aterrador de crimes de responsabilidade. O último circo montado tratou de envergonhar o país diante de um número significativo de autoridades estrangeiras. Enquanto isso, os presidentes das casas legislativas, bem como o Procurador Geral da República, fazem a egípcia. 

Parte da alta cúpula militar, se não toda ela, tem realizado ações que caminham no mesmo sentido. Se a orientação vem da alta cúpula, ou do Presidente, é, para os efeitos imediatos, irrelevante, pois ambos traem o princípio maior a que devem estar subordinados, isto é, a defesa do interesse da sociedade brasileira, cujo marco legal está inscrito na Constituição.

Não é função das Forças Armadas garantir a lisura do processo eleitoral. Não é papel das Forças Armadas avalizar qualquer poder civil, muito menos o poder soberano da sociedade na escolha de seus dirigentes.

A sociedade brasileira, desde que restaurada a democracia que nos foi roubada pelos anos de ditadura militar,  sempre depositou confiança em seu processo eleitoral. Não serão, portanto, aqueles que nos roubaram a democracia ontem que serão seus garantidores amanhã.

Solicitamos, portanto, ao Tribunal Superior Eleitora que exclua, de qualquer comissão relativa ao processo eleitoral, todo e qualquer membro das Forças Armadas.

Solicitamos, também, enquanto não é aprovada quarenta para que militares possam concorrer a cargos públicos, que a Justiça Eleitora exija o cumprimento das normas próprias que impedem que militares, mesmo na reserva, se apresente com sua patente hierárquica. Afinal, não há general ou capitão na vida civil; há apenas cidadãos. Se a própria autoridade militar não cumpre seu próprio ordenamento, que seja forçada a tanto.

Precisamos, de uma vez por todas, extirpar o câncer do autoritarismo que insiste em se fazer presente da vida política do país e cujo foco principal está nas Forças Armadas. Chega! Viva a Constituição de 88, viva a Democracia. Em defesa de nosso processo eleitoral!

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Militares burlam o teto de gastos, ILEGALMENTE

 O teto salarial já é ridiculo em si, mais ainda por ser inconstitucional, e triplamente por ser facilmente ultrapasssado por todos os apaniguados, incluindo milicos aproveitadores, de forma ilegal. Torna-se CORRUPÇÃO pura e simples quando o próprio governo introduz medidas para BURLAR indecorosamente tal teto em favor de seus protegidos, inclusive os mesmos milicos vergonhosos.

Paulo Roberto de Almeida 

Militares burlam o teto de gastos

BRASÍLIA - Uma auditoria interna do governo, realizada pela Controladoria-Geral da União (CGU), sobre a atuação de militares em cargos públicos aponta fortes indícios de irregularidades em pagamentos e ocupações de nada menos que 2.327 militares e seus pensionistas. A investigação apontou uma série de problemas, como acúmulo de funções simultâneas por militares da ativa e recebimento dobrado de salários e benefícios que extrapolam o teto constitucional.  

O Estadão teve acesso exclusivo ao relatório da auditoria realizada pela CGU, que atua como um órgão de controle interno do governo federal, responsável por fiscalizar o patrimônio público e combater crimes de corrupção e fraudes. O objetivo foi verificar em detalhes a situação dos militares que passaram a trabalhar para o governo federal, um contingente que triplicou na gestão Bolsonaro e que, conforme levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU), ultrapassa 6 mil pessoas.

Auditoria interna do governo, realizada pela Controladoria-Geral da União (CGU), aponta fortes indícios de irregularidades em pagamentos e ocupações de 2.327 militares e pensionistas de militares Foto: CGU/Divulgação

O relatório, concluído no mês passado, se baseou em informações oficiais do Ministério da Economia e do Ministério da Defesa. Como linha de corte, os auditores se concentraram em dados de dezembro de 2020. A partir daí, cruzaram informações do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape) e do Sistema de Informações de Empresas Estatais (Siest). Esses sistemas armazenam as informações de pagamentos a agentes públicos do governo federal e estão sob gestão do Ministério da Economia. Paralelamente, cada informação foi confrontada com os dados que a CGU recebeu do Ministério da Defesa, a respeito de pagamentos realizados a militares e seus pensionistas. 

Foram encontrados 558 casos de ocupação simultânea de cargos militares e civis sem nenhum tipo de amparo legal ou normativo para isso. Deste total, 522 militares estão ocupando postos na administração pública direta e outros 36, em estatais federais. “Como consequência do presente achado, tem-se a possível vinculação ilícita de militares a cargos, empregos ou funções civis. Essa situação pode ensejar danos ao erário e à imagem da administração pública federal”, afirma o relatório de auditoria.

Uma segunda irregularidade encontrada: centenas de casos extrapolam o prazo máximo de atuação paralela dos militares, se consideradas aquelas situações de exceção em que esse trabalho simultâneo é permitido. O levantamento aponta que 930 militares chegam a se enquadrar em casos legais de acúmulo de cargos, mas desrespeitam o limite legal de até dois anos neste tipo de função simultânea, ou seja, eles seguem recebendo salário da administração pública, em desrespeito às leis.

“Tem-se como possível causa residual a eventual má-fé de militares ao permanecerem como requisitados para atividades civis federais por tempo prolongado, nos casos em que estejam cientes da irregularidade”, conclui o relatório. “O comando constitucional é claro em limitar o vínculo civil de militares ao período máximo de dois anos, devendo o militar ser transferido para a reserva caso a situação do vínculo temporário persista.”

A terceira irregularidade diz respeito a salários pagos. Foram identificados 729 militares e pensionistas de militares com vínculo de agente público federal que receberam acima do teto constitucional, sem sofrerem nenhum tipo de abatimento em seus vencimentos. Em dezembro de 2020, o salário teto no Brasil, baseado no que é recebido pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), era de R$ 39.293,32. Como o período analisado pela CGU focou um retrato da situação de dezembro de 2020, o próprio órgão afirma que, se todos os casos levassem à devolução do dinheiro público pago a mais, só naquele mês teriam de ser devolvidos R$ 5,139 milhões aos cofres públicos.

A regra do teto constitucional, afirma a CGU, “deve ser observada para todos os agentes públicos, civis ou militares”, mas enfrenta mais desafios quanto ao controle no caso de militares e seus pensionistas, porque, nestes casos, “os benefícios são pagos por órgãos distintos, sendo o único controle existente a autodeclaração do beneficiário”.

Filtragem de resultados

As informações apuradas pela auditoria não partiram de um simples cruzamento de banco de dados de diferentes ministérios do governo federal. Para chegar ao resultado que aponta indícios graves de irregularidades, os auditores fizeram, conforme consta no documento, um “amplo estudo normativo, em busca de todos os regramentos relacionados ao tema”, para excluir cenários em que o vínculo simultâneo entre o serviço militar e público tenha amparo legal.

Nesta filtragem, foram excluídos, por exemplo, os casos de militares da reserva ou reformados que estejam ocupando cargo público. O resultado também deixa de fora os militares ligados a atividades da área de saúde e que passaram a ocupar um cargo público no mesmo setor da gestão pública. As exceções incluem ainda militares da ativa que estejam no serviço público para necessidades temporárias e dentro do prazo de até dois anos, além dos militares inativos que são contratados para atividades de natureza civil em caráter voluntário. “Vencida essa etapa, foram realizados os cruzamentos de dados com o objetivo de identificar as ocorrências de militares com vínculos civis que apresentavam indícios de irregularidades, ou seja, já eliminados os casos de exceção”, afirma a auditoria.

Além das irregularidades encontradas, a CGU revela a fragilidade da gestão de recursos humanos do governo, que “ocorre de maneira segregada”. Isso ocorre porque o vínculo militar é gerido pelo Ministério da Defesa, que não se submete ao controle da CGU, enquanto os cargos públicos são de responsabilidade da Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal, do Ministério da Economia. É esta secretaria que cuida do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal (Sipec), alvo central da auditoria.  

“Observa-se contexto de dificuldade intrínseca para implementação de controles, seja pela atuação em conjunto de duas unidades gestoras, seja pelo desafio de comunicação eficaz e tempestiva entre tais unidades, seja pelo uso de sistemas estruturantes distintos”, afirma a auditoria. “Caso existisse tal integração, poderia ser facilmente implementado um controle sistêmico e automático para impedir tais casos, ou mesmo notificar os gestores a respeito.”

Exército e ministérios afirmam que apuram casos apontados

Os ministérios da Economia e da Defesa, além das Forças Armadas, não mencionaram quantos casos com indícios graves de irregularidades já foram efetivamente confirmados e que medidas foram tomadas contra essas fraudes. 

Questionado pela reportagem, o Exército declarou que “participou do esforço conjunto com a Controladoria-Geral da União (CGU), mas que a “identificação de coincidências de vínculos civil e militar” merece “uma análise pormenorizada, trazendo oportunidade de correção de possíveis inconsistências”.

Sem citar números ou detalhes, o Exército afirmou que, após nova análise, “verificou-se que a maior parte das inconsistências corresponderia, em princípio, a acumulações potencialmente lícitas, amparadas pela legislação”. Mas, como mostra a reportagem, diversas exceções que permitem o trabalho paralelo de militares com o serviço público já foram consideradas na auditoria.

“Cada coincidência/inconsistência de dados está sendo avaliada individualmente. As providências corretivas serão adotadas, após ser dada a oportunidade de os envolvidos apresentarem justificativas às inconformidades porventura confirmadas, seguindo rigorosamente o preconizado na legislação”, afirmou o Exército.

Segundo a Força, suas unidades já foram avisadas “para fins de regularização” e esse trabalho está em andamento. “Encontra-se em curso, agora, uma análise detalhada, trazendo oportunidade de correção de possíveis inconsistências. Seguindo os trâmites legais, será ressarcido oportunamente qualquer valor que porventura tenha sido repassado de forma indevida, sem prejuízo de outras sanções previstas no ordenamento jurídico brasileiro.”

O Ministério da Defesa declarou à reportagem que, dentro da administração central da pasta, identificou dois casos de irregularidades. Um envolvia ocupação simultânea irregular e outro o recebimento de salário acima do limite constitucional. O servidor, que não teve a sua identificação mencionada, “foi notificado a promover o ressarcimento dos valores, o que já vem ocorrendo”.

“O Ministério da Defesa atua permanentemente em contato com órgãos de controle interno e externo com o objetivo de cumprir rigorosamente a legislação”, afirmou.

A Aeronáutica e a Marinha foram questionadas sobre o assunto, mas não responderam aos pedidos de esclarecimento.

O Ministério da Economia declarou, por meio de nota, que as informações da auditoria “já foram encaminhadas diretamente aos órgãos envolvidos para manifestação e providências que eventualmente se fizerem necessárias”. 

Perguntado se as irregularidades já foram sanadas e se houve punição ou ressarcimento financeiro de pagamentos, o ministério afirmou que “tais apontamentos não são necessariamente irregularidades” e que, “no momento, existe apenas a relação de indícios, que serão analisados pelos órgãos envolvidos”.

A respeito das fragilidades de fiscalização e falta de integração entre as bases do Ministério da Economia e o Ministério da Defesa, a pasta chefiada por Paulo Guedes declarou que está em andamento um “projeto destinado à promoção de uma integração sistêmica”.