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quarta-feira, 19 de maio de 2010

Politica Nuclear do Iran (2): uma simples declaracao tripartite, não um acordo

Este comentário, enviado por um interlocutor habitual deste blog, Paulo Araújo, merece todo o destaque, e no entanto, trata de uma questão elementar: a diferença básica, essencial, entre o que seria um acordo, en bonne et due forme (ou seja, formal, como se concebe na prática diplomática internacional), e uma simples declaração de intenções, que foi o que assinaram em Teheran os três ministros das relações exteriores dos países envolvidos, Brasil, Turquia e Irã.

Paulo Araújo disse...

Caro,

Esclareça-me, se possível, uma dúvida. Por que todos estão falando em Acordo se o que de fato foi gerado em Teerã é uma Declaração? Seria possível, em termos estritamente diplomáticos, que os três países assinassem um documento com a estrutura formal de um Acordo? Se era possível, por que assinaram uma Declaração?

A imprensa daqui e de fora continua chamando a Declaração de Acordo. Eu penso que é um erro grosseiro. Bastaria apenas ler com a devida atenção o documento. A Declaração assinada é uma carta de intenções.

No texto a palavra "declaração" aparece quatro vezes para não deixar dúvida sobre a espécie de documento.

Para efeito de classificação arquivística, as análises diplomática (o exame da estrutura formal do documento legal ou administrativo) e tipológica de documentos antigos e atuais distinguem em nível formal e hierárquico as espécies documentais Declaração e Acordo:

DECLARAÇÃO - documento diplomático ou não, segundo sua solenidade, enunciativo, descendente. Manifestação de opinião, conceito, resolução ou observação, passada por pessoa física ou por um colegiado.
Protocolo inicial: a palavra Declaração. Nome e titulação do declarante. A corroboração ou cláusulas de vigência.
Protocolo final: datas tópica e cronológica, assinaturas (da autoridade emitente e da precação que, no caso do decreto executivo, é dada pelo ministro ou secretário da pasta que tenha relação com o assunto do decreto).

ACORDO - documento diplomático normativo, pactual, horizontal. Ajuste ou pacto realizados por duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, em torno de um interesse comum, ou para resolver uma pendência, demanda ou conflito.
Protocolo inicial: “Pelo presente acordo de... celebrado entre...” Segue-se o nome das pessoas pactuantes e suas qualificações.
Texto: “fica estipulado...” Segue-se o motivo do acordo. “E como as partes estão de acordo firmam o presente acordo”.
Protocolo final: datas tópica e cronológica, assinaturas dos pactuantes e das testemunhas (conforme o caso, não obrigatórias). (Glossário de espécies documentais elaborado por Helena L. Belloto)

Isso não é frescura. Trata-se da estrutura formal do documento, que é escolhido em função do que e como os signatários querem enunciar. Eu pensava que não haveria o mínimo sentido os três países assinarem um Acordo, pois os termos somente seriam válidos (teriam caráter normativo) se o Acordo estiver assinado pelo governo do Irã e pela AIEA. Mas aqui todos falam em Acordo como se não houvesse a distinção.

Minha pergunta é bem objetiva. Não sei se estou certo, mas eu penso que a escolha pela estrutura formal da Declaração não foi aleatória por que na diplomacia nada é aleatório. A escolha pela forma da Declaração tem uma razão de ser nos diplomas (documentos oficiais) assinados por países.

Por que o ministro Celso Amorim, entre outros, fala tanto em Acordo se de fato o que foi assinado é uma Declaração? Isto é, é normal e esperado que o governo e seus apoiadores soltem foguetes e batam o bumbo. Porém, se pretendiam passar ao público a mensagem "um Acordo foi fechado pelos três países”, por que raios não assinaram um Acordo de fato e sim preferiram assinar uma Declaração? Claro que para efeito dos meios de comunicação de massa a palavra "acordo" é muito mais impactante.

No link abaixo a entrevista de Celso Amorim na qual ele repete várias vezes a palavra “acordo” e omite a palavra “declaração”:
http://blog.planalto.gov.br/entrevista-com-celso-amorim-persuasao-foi-mais-eficiente-do-que-a-pressao/

5 comentários:

José Marcos disse...

FALTA DE ACORDO TERMINOLÓGICO

Prezado Paulo Araújo,

De acordo com o livro "Direito Internacional Público" de Francisco Rezek, os termos "declaração" e "acordo" são variantes terminológicas de "tratado". Para Rezek, há cerca de duas dezenas de nomes alternativos para "tratado" na língua portuguesa cujo "uso é livre, indiscriminado e, muitas vezes ilógico" (Rezek, pág.15). Rezek ilustra seu argumento listando algumas das variantes terminológicas concebíveis em português: "acordo, ajuste, arranjo, ata, ato, carta, código, compromisso, constituição, contrato, convenção, convênio, declaração, estatuto, memorando, pacto, protocolo e regulamento(Rezek, pág.16)." Desta forma, baseando-se em Rezek - que já foi membro do Tribunal Internacional de Justiça -, não estaria errado o uso indistinto dos termos "declaração" e "acordo", pois não há consenso terminológico na utilização deles. Para conferir, eis os dados do livro que consultei:
"Direito Internacional Público" de Francisco Rezek, 11 edição, editora Saraiva,2008.

PS. Consultando a Internet, encontrei um link sobre o Glossário que você citou. Segundo este link, o nome da autora do Glossário é Heloísa Belloto, e não Helena Belloto. Ainda segundo esse link, Heloísa Liberalli Bellotto é licenciada e doutora em História
(USP), bacharel em Biblioteconomia (FESP) e especialista em
Arquivística. Consultando a bibliografia do Rezek, o nome de Belloto não aparece. Consultando a bibliografia da Belloto, o nome do Rezek não consta. É louvável que ela tenha tentado colocar ordem na terminologia diplomática, mas parece que o Rezek não leu o livro dela não...
Link consultado em 19 de maio 2010, às 12h 55min.
http://www.scribd.com/doc/27349761/Texto-pdf-17-Como-Fazer-Analise-Diplomatic-A-e-Analise-Tipologica

Paulo Roberto de Almeida disse...

José Marcos,
Parece que você tem um acordo terminológico com o Rezek, que lhe faz boa companhia.
Temos um desacordo terminológico entre eu, o Paulo Araujo e vocês dois, pois soa estranho, aliás bizarrissimo que um mestre do direito internacional tenha escrito, como você transcreve, que declaração e acordo são equivalentes a tratado.
Não só bizarro, mas incongruente com toda a prática e a tradição diplomática internacional.
Declaração é um ato unilateral, pode ser feita na ausência de qualquer obrigação verificável, e geralmente dispensa processualística de atos internacionais, que no caso dos tratados devem ser formalmente aprovados pelos parlamentos (isso em democracia, claro) e depois ratificados pelo Executivo (ditaduras dispensam formalidades, mas ainda assim assinam acordos, que são diferentes de declarações).
Tratados e acordos e acordos podem ser sinônimos, são atos internacionais, mas apenas se se revestirem das formalidades normalmente associadas a essa palavra: agrément, accord, ou agreement, ou treaty, que implica preâmbulos, definiões, artigos substantivos, solucão de controvérsias, disposições finais e especiais, prazo de validade, entrada em vigor, denúncia, etc. Isso é acordo.
Declaração dispensa tudo isso.
Se você e o Rezek acham que não, que tudo é a mesma coisa, sinto muito dizer: vocês estão redondamente enganados.
Quanto ao ato em questão, não se reveste da formalidade de um acordo, como se pode constatar pelo que escrevi acima.
Quem quiser dizer o contrário, vai ter de provar...
Paulo Roberto de Almeida

paulo araújo disse...

Caro José Marcos

Sobre o trabalho da historiadora Heloísa L. Belloto

Ela é sem dúvida uma profissional de alto gabarito em questões relativas à preservação de documentos nos Arquivos Públicos e Privados. Tem vasta experiência profissional e muitos trabalhos publicados na área.

Quando escrevi “análise diplomática” não estava me referindo à diplomacia ou estritamente a documentos oriundos do ministério do exterior. Diplomática é um tipo de conhecimento (uns falam em ciência diplomática, mas eu não concordo com essa amplidão do conceito) que tem origem no século XVI e que foi aplicado inicialmente aos documentos eclesiástico, legal e administrativo com objetivo de conferir aos mesmos os elementos de prova de autenticidade. A paleografia surge também nesse período como um recurso auxiliar da Diplomática. Nos dias de hoje, o problema da autenticidade refluiu e a Diplomática é ativada por pesquisadores e arquivistas como ponto de partida da análise documental (as espécies documentais na constituição de um corpus de pesquisa do historiador) e da identificação e ordenação documental (arquivística) nos Arquivos permanentes com base em uma certa racionalidade e o fins dessas instituições .

Nesse sentido, Helena L. Belloto não inventa estruturas formais das várias espécies documentais glosadas. Partindo da Diplomática, ela somente as coligiu e as ordenou. Isto é, as estruturas formais Declaração e Acordo não foram inventadas por ela, foram apenas identificadas e separadas para, entre outros propósitos, facilitar o trabalho de ordenação arquivística racional das massas documentais depositadas nos Arquivos.

Ressalvando a parcela sob a nefasta influência do maldito relativismo, historiadores não costumam inventar nada. Escrevem sim narrativas racionais dos fatos passados com base em elementos empíricos e lógicos encontrados em suas fontes de pesquisa.

paulo araújo disse...

Sobre diferenças entre as palavras e as coisas.

Minhas dúvidas estão esclarecidas pelo comentário do Paulo Roberto Almeida. Isto é, há sim uma distinção entre Acordo e Declaração. Ficou mais claro ainda que não foi por acaso que os países escolheram a estrutura formal (Declaração) mais adequada para colocar no papel a intenção explícita do governo iraniano em abrir uma negociação de troca dos 1200 quilos de urânio sob condição determinadas condições.

O problema na Declaração está, portanto, localizado nas intenções não explicitadas pelos iranianos no documento.

Olhada à luz dos fatos que a antecederam, a Declaração conjunta contempla somente um dos aspectos da negociação que a AIEA a bastante tempo tentava levar adiante com os aiatolás. Para a AIEA, a troca de urânio era somente a contrapartida com a qual a agência se compromissava sob a condição do Irã cumprir o acordo de salvaguardas (inspeções livres e não ocultamente de atividades de pesquisa nuclear e produção de urânio enriquecido) com a AIEA, previstos no TNP.

Olhada à luz dos fatos que a antecederam, estamos diante de uma situação que beira o nonsense: o governo brasileiro gestiona diplomaticamente a favor de um novo acordo para fazer o Irã cumprir os antigos acordos do TNP.

Se não estou enganado, quem recomendou que o CS da ONU imponha sanções ao Irã foi a AIEA, após o governo iraniano ter dado várias demonstrações de fato de que não pretende submeter-se ao controle da AIEA, o que está previsto no TNP.

Enfim, os próprio iranianos encarregaram-se de esclarecer as intenções não explicitadas na Declaração com as reiteradas manifestações de que não haveria qualquer relação entre o documento que explicita as condições da troca de urânio e a continuidade do programa de enriquecimento à margem ou acima das salvaguardas previstas no TNP:

"There is no relation between the swap deal and our enrichment activities ... We will continue our 20 percent uranium enrichment work," (Ali Akbar Salehi, chefe da agência atômica iraniana).

"We are not planning on stopping our legal right to enrich uranium," Iran's Foreign Ministry spokesman Ramin Mehmanparast told CNN by telephone.

É da lógica elementar a dedução de que o Irã possui mais urânio do que a quantidade que se propõe trocar. Os 1200 quilos de urânio enriquecido apresentados para troca eram uma quantidade estimada há 8 meses. Difícil acreditar que desde então os aiatolás mandaram parar o enriquecimento. Se você fosse um deles, mandaria parar?

Em poucas palavras, jogaram no lixo toda a retórica pacifista e conciliatória doas atuais chefes do Itamaraty. Em minha opinião, foram essas declarações dadas à imprensa as parteiras da resposta imediata dos países do 5+1.

José Marcos disse...

PALAVRAS SÃO PALAVRAS NADA MAIS QUE PALAVRAS

Prezado professor Paulo Roberto de Almeida,
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 – ratificada 40 anos depois no Brasil - define no artigo 2º, parágrafo 1º, que tratado “significa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica”. Consultando o livro “Direito Internacional Público” de Nguyen Quoc Dinh et alii, os autores afirmam que ao dispor “que o termo “tratado” refere-se a um acordo internacional qualquer que seja sua denominação particular, a Convenção confirma a existência de uma pluralidade de denominações equivalentes” (Nguyen Quoc Dinh, pág 123). Rezek, no livro que citei no primeiro comentário, define tratado como “todo acordo formal concluído entre pessoas jurídicas de direito internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos.” A partir dessas definições amplas de tratados, pode-se dizer que a tal “declaração tripartite” é um acordo internacional e, por conseguinte, um tratado. Ressalte-se, contudo, que há outras definições mais específicas para “declarações”, “acordos” e “tratados”, como as que o senhor forneceu. Tais definições, porém, não constam na Convenção de Viena de 1969. É importante deixar claro que não há uma classificação terminológica definitiva, com aceitação universal. O uso reiterado de algumas nomenclaturas acaba sendo o fator primordial da aplicabilidade de uma expressão em relação a outra. Em resumo, trata-se de um problema de definição. Partindo de definições diferentes, chega-se a conclusões diferentes também. Não vejo motivo, porém, para censurar o ministro Celso Amorim por usar indistintamente os termos “declaração” e “acordo”.

PS. Para quem quiser consultar, o livro que citei é: “Direito Internacional Público” de Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet, 2ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.