As grandes linhas da política externa brasileira
Paulo
Roberto de Almeida *
Publicado, sob o título “Trajetória
Coerente”, no suplemento “Pensar Brasil”, caderno especial “De
Igual para Igual”, do jornal Estado de Minas (Belo Horizonte, Sábado, 9 de
abril de 2011, p. 17-19).
A diplomacia brasileira seguiu, ao longo do último meio século, uma
trajetória relativamente uniforme e coerente, embora marcada por alguns desvios
momentâneos e por orientações políticas contrastantes, segundo as conjunturas
políticas e os grandes alinhamentos observados em cada uma das grandes etapas do
cenário internacional. Com algumas poucas exceções – possivelmente no imediato
seguimento do golpe militar de 1964 e agora, recentemente, durante o governo
Lula – ela seguiu invariavelmente algumas orientações básicas, ainda que animadas
por preocupações diversas, todas elas comprometidas com o desenvolvimento
nacional, a defesa da soberania e o comprometimento com o direito
internacional, consubstanciado na Carta da ONU e em alguns outros instrumentos básicos
das relações internacionais.
A política externa foi, pode-se dizer com total segurança,
persistentemente “desenvolvimentista”. A exemplo da tendência dominante na
política econômica, ela esteve engajada no processo de industrialização
brasileira, embora atuando bem mais na política comercial (na qual o Itamaraty
sempre conservou o “monopólio” negociador) do que na política industrial, onde ele
foi ator coadjuvante. Essa foi a linha básica da diplomacia econômica
brasileira desde a era Vargas até a atualidade: fazer com que as negociações
comerciais externas – multilaterais ou regionais – não dificultassem o processo
de industrialização, consumado com base em velhas receitas de substituição de
importações e em forte protecionismo tarifário (que o Itamaraty se encarregou
de defender junto ao Gatt, ao longo dos anos).
A outra grande vertente de atuação da diplomacia econômica consistiu
na sustentação das dificuldades cambiais e de balanço de pagamentos, o que
exigia do Itamaraty um bom trabalho junto aos principais credores, todos eles
situados na América do Norte e na Europa ocidental. Empréstimos externos e
atração de investimentos estrangeiros foram os dois elementos básicos nessa
frente e pode-se dizer que o desempenho foi relativamente satisfatório, a
despeito de crises desafiadoras no último terço do século XX (petróleo, dívida
externa, crises financeiras nos mercados emergentes nos anos 1990). Mas esse
tipo de negociação financeira estava mais bem afeta aos responsáveis econômicos
e monetários do que aos funcionários do Itamaraty, que ainda assim ofereciam
todo apoio nesse tipo de missão, quando não assumiram eles mesmos a
responsabilidade pela condução do processo.
Outra área, entretanto, teve a colaboração crucial dos diplomatas
para que ela pudesse se desenvolver, pelo menos até certo ponto: a capacitação
do Brasil em matéria de enriquecimento nuclear e de domínio das tecnologias
industriais ligadas à indústria nuclear para fins civis (energia), o que foi
materializado no célebre acordo nuclear Brasil-Alemanha, de 1975 (depois
descontinuado, a partir da crise dos anos 1980 e também por causa de fortes
pressões contrárias dos Estados Unidos). Ocorreu, nesse setor, durante o
governo militar, notável cooperação entre os militares e os diplomatas, inclusive
porque ambas as corporações recusavam a adesão do Brasil ao Tratado de
Não-Proliferação Nuclear (oferecido em 1968 à comunidade internacional pelas
três potências nucleares signatárias, EUA, Reino Unido e União Soviética). Foi
o momento de maior independência brasileira em relação aos EUA, depois de
algumas décadas de alinhamento, no geral, coincidente com os grandes objetivos
da maior potência ocidental, durante os anos da Guerra Fria.
De fato, o Brasil exibiu uma política externa razoavelmente alinhada
com os EUA desde antes da Segunda Guerra Mundial, a começar pela renegociação
das dívidas contraídas nos anos de entre-guerras e pela própria participação
brasileira no conflito, a partir da qual os dirigentes diplomáticos e os
líderes políticos brasileiros esperavam uma retribuição à altura, em especial a
inclusão do País no seleto clube de grandes potências, experiência logo
frustrada pela intransigência do Reino Unido e da União Soviética. Ainda assim,
os anos do pós-guerra foram de colaboração e de quase pleno entendimento
político, com a compreensão dos militares brasileiros e da grande maioria dos
diplomatas em relação às prioridades e à grande estratégia dos EUA na era da
Guerra Fria: a contenção da União Soviética e a luta contra a penetração e a
influência comunistas em diversos países da periferia ou da própria Europa
ocidental.
Os únicos pontos de desacordo se situavam justamente na cooperação
econômica, com o Brasil e a maioria dos latino-americanos pedindo uma extensão
ao continente da generosa ajuda para recuperação e reconstrução que os
americanos prestavam à Europa no quadro do Plano Marshall. Os EUA nunca
consentiram nessa extensão, inclusive porque consideravam, não sem razão, que
os problemas da América Latina não eram exatamente de reconstrução, e sim de
desenvolvimento, para o que recomendavam não ajuda estatal, mas reformas
econômicas e abertura aos investimentos estrangeiros. A questão do
financiamento ao desenvolvimento latino-americano foi resolvida mais adiante,
com a criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento, apenas depois de
intensa pressão brasileira, notadamente através da Operação Pan-Americana,
proposta pelo presidente Juscelino Kubitschek: tratou-se da primeira grande
iniciativa brasileira em termos de liderança regional e de diplomacia
multilateral, mesmo se limitada ao hemisfério americano.
Ainda assim, ela serviu para formar os diplomatas brasileiros nos
novos temas da diplomacia do desenvolvimento e do multilateralismo econômico,
bem como nos seus procedimentos específicos (em relação, por exemplo, à velha
escolha da diplomacia bilateral, de caráter essencialmente político), o que
iria ser extremamente útil nas negociações do Gatt, com a nascente Comunidade
Econômica Europeia e nos novos acordos em torno dos produtos de base (café,
cacau, açúcar, etc.). O Brasil tornou-se um dos principais promotores do
movimento em favor da reforma do Gatt desde o final dos anos 1950, num sentido
de não-reciprocidade e de concessões sem contrapartida, assim como participou
ativamente do processo que conduziu à criação da Unctad (Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), tornando-se um dos líderes do grupo
dos países em desenvolvimento (que veio a ficar conhecido como G77, do número
de membros no momento de sua criação, em 1964).
O ponto alto dessa fase foi, evidentemente, a chamada “política
externa independente”, quando o Brasil se liberta do estrito alinhamento aos
cânones da Guerra Fria e passa a buscar oportunidades comerciais e de
relacionamento político com os países socialistas e com as nações periféricas
de modo geral. Entre os grandes temas debatidos nessa época esteve o de Cuba,
cujo regime socialista foi considerado pela OEA como “incompatível com o
sistema interamericano”, tese americana a que o Brasil se opôs por não haver,
na Carta da OEA, nenhum caracterização quanto a regimes políticos. O Brasil, em
todo caso, se absteve, quando a decisão foi votada, apoiado em argumentos
essencialmente jurídicos esgrimidos pelo chanceler Santiago Dantas.
Ocorreu, então, a primeira ruptura, embora relativamente breve, nas
linhas tradicionais da política externa brasileira, quando os militares, talvez
para “agradecer” aos EUA a ajuda preventiva dada durante o golpe, concordam em
sustentar a postura americana na região, participando da invasão da República
Dominicana, contra uma revolução democrática em 1965. Foi, porém, um breve
interlúdio, já que a partir de 1967, a diplomacia retomou sua postura
desenvolvimentista e pela autonomia tecnológica (já dando início a um programa
nuclear independente, que sofreria as referidas sanções americanas). Pelo resto
do regime militar e também durante a fase de redemocratização, a diplomacia
brasileira atuou com plena independência e profissionalismo, assumindo uma
postura moderadamente terceiro-mundista e, certamente, desenvolvimentista.
Conflitos pontuais se manifestam nas relações com os EUA, tanto no plano
bilateral – fricções comerciais, política nuclear, justamente – como no plano
multilateral – resoluções da ONU e temas da agenda do desenvolvimento nos quais
os EUA geralmente se singularizavam pela postura oposicionista.
Desde essa época, e praticamente até hoje, a diplomacia brasileira
vem construindo seu espaço próprio nos contextos regional e internacional,
estimulando parcerias seletivas com alguns grandes países em desenvolvimento –
em especial com a Índia, com a qual havia uma grande interface negociadora em
temas comerciais – e colocando as bases de um grande espaço de integração
econômica na América do Sul, primeiro via Alalc e Aladi, depois via Mercosul e
outros esquemas sub-regionais. Ao promover a integração regional, a diplomacia
brasileira sempre foi extremamente cautelosa em não proclamar qualquer
veleidade de liderança brasileira no continente, muito facilmente confundida
com pretensões hegemônicas e, portanto, recusada peremptoriamente pela maior
parte dos vizinhos (com a possível exceção dos menores, interessados em algum
tipo de barganha preferencial). Essa postura cuidadosa foi no entanto descurada
pelo governo Lula, gerando resistências e contrariedades nos vizinhos mais
importantes, que inclusive se mobilizaram contrariamente a um dos objetivos de alguns governos brasileiros: a
conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
O governo Lula, justamente, representou uma ruptura nos antigos
padrões profissionais da diplomacia, introduzindo uma agenda partidária e
ideológica que redundou, em diversos casos, em um infeliz alinhamento com
ditaduras e violadores dos direitos humanos em diversos continentes, numa
demonstração de anti-americanismo infantil e, em última instância, prejudicial
à credibilidade da política externa brasileira. Felizmente, o novo governo
Dilma restabeleceu padrões de comportamento e de votação nos foros
multilaterais bem mais conformes à tradição diplomática brasileira, condizentes
inclusive com princípios constitucionais sobre valores democráticos e a defesa
dos direitos humanos e com o espírito verdadeiro da Carta da ONU.
* Diplomata de carreira e professor universitário;
autor de diversos livros de relações internacionais (www.pralmeida.org).
Chamada: Diplomacia brasileira sempre se caracterizou pelo profissionalismo
e por uma diplomacia de caráter nacional; regime militar e governo Lula
representaram exceções nessa linha cautelosa e guiada por interesses nacionais,
não partidários.
[2554;
Brasília, 11 de março de 2011; rev. 12/03/2011]
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