O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Enrique Krauze. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Enrique Krauze. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Across the whale in (less than) a month (19): um bom final de férias, com livros e entre intelectuais...

Como relatado no post anterior, resolvemos acelerar a viagem, atravessando a caipirolândia sem novas incursões citadinas (Nashville passou batida, sob uma chuva torrencial) por um único motivo. Este:

Latin American Series Lecture
Mario Vargas Llosa in Conversation with Enrique Krauze on 'Politics and Culture in Latin America'
McCosh 50
Mario Vargas Llosa (PLAS Visiting Scholar and Recipient of the 2010 Nobel Prize for Literature)
Enrique Krauze (PLAS Visiting Scholar and Historian)
Cross-sponsored with the Spencer Trask Lecture Series
Program in Latin American Studies
Princeton University
309-316 Burr Hall
Princeton, NJ 08544 USA
(tel.) 609.258.4148 (fax) 609.258.0113
www.princeton.edu/plas

Valeu os 900 kms feitos numa segunda-feira sem outros atrativos do que a rápida visita a Charleston, capital de West Virginia, um pequeno estado corajoso, encravado entre o Kentucky, Ohio, Maryland e, sobretudo, a Virginia, da qual ele se separou corajosamente em meados do século 19, pois não queria compartilhar do escravismo renitente naquele estado vizinho que funcionou como capital da Confederação (em Richmond) durante a guerra civil, ou seja, a poucas centenas de quilômetros de Washington. West Virginia é um estado muito bonito, montanhas, vegetação, paisagens que lembram a Europa alpina, a Suíça, em certos trechos.
Como disse, também, aproveitei para comprar o mais recente livro de Niall Ferguson, The Great Degeneration, que fiquei lendo no auditório da universidade de Princeton, esperando a conferência começar.
Mas o dia foi ocupado por visitas a Princeton, que já conhecíamos de anteriores visitas, inclusive uma recente para o lançamento da biografia de Albert Hirschman por Jeremy Adelman (The Wordly Philosopher), que estou lendo ainda (tem mais de 800 páginas, mas já saiu de Berlim, e da Europa, já passei pela Segunda Guerra Mundial, pela Califórnia e por Washington, e atualmente estou seguindo o Hirschman na Colômbia).
Visitamos uma excelente livraria, a Labyrinth Books, na Nassau Street a principal de Princeton, onde Carmen Lícia comprou mais a sua pequena dezena de livros.

Eu me contentei com este aqui:
François Rachline,
De zéro à epsilon: L'Économie de la Capture
(Paris: Archipel First, 1991)

Um livro antigo mas que eu absolutamente não conhecia, mesmo tendo estudado em francês boa parte da vida, e sempre acompanhar os lançamentos da minha área. Em 1991, porém, estava em Montevidéu, e depois em Brasília. Passou-me, pois.
Quando cheguei em Paris, em 1993, já não encontrei mais o livro em destaque, e ele me escapou, impune, se ouso dizer, durante todo este tempo. Uma pena.
Trata-se de um estudo original, que rompe com o modelo usual de análise econômica, baseada no conceito de equilíbrio. O autor busca justamente explicá-la em termos de desequilíbrios e assimetrias, situando a abordagem econômica no contexto histórico, filosófico, epistemológico e cultural de cada época: uma maneira nova de abordar a economia. Vou ler...


Bem, volto à Lecture de Mario Vargas Llosa e de Enrique Krauze, dois grandes intelectuais latino-americanos, reunidos para falar de política, de literatura, de cultura, da América Latina de modo geral.

Confesso que não me acrescentou grande coisa, embora nunca tivesse visto pessoalmente o mexicano; já Vargas Llosa devo tê-lo visto pelo menos uma vez em Washington, no Cato Institute, e recentemente, por video, num programa Roda Viva da TV Cultura, quando ele deu um show de inteligência e bom humor. Eis uma foto tirada por Carmen Lícia ao início da palestra conjunta, os dois sentados democraticamente com suas garrafinhas de água de plástico, sem sequer um copo... Esses americanos são muito democráticos, sem dúvida.

A conversa dos dois, para quem acompanha a realidade latino-americana de perto, como eu, não apresentou grandes novidades, e o que ambos disseram, com exceção de alguns detalhes pessoais -- contatos com líderes políticos de seus respectivos países, leituras, observações de cunho direto -- já me era amplamente conhecido, da realidade política e econômica do Peru, do México, da Venezuela e de outros países. O Brasil foi abordado, basicamente pelo lado da corrupção, que parece que é o que nos distingue mundialmente, processo amplamente ampliado, se me permitem a redundância, pelos companheiros no poder.
Aliás, Vargas Llosa se enganou, ou foi enganado pelo STF, pois se referiu a "ministros do Lula" que "foram para a cadeia". Ele gostaria que fosse assim, nós também, mas infelizmente não é verdade, e os companheiros podem se safar, graças a juízes encomendados pelos companheiros.
Para Vargas Llosa, Humala foi uma "good surprise", e ele não se arrepende de tê-lo apoiado. Confesso que quando ele apoiou o candidato ex-chavista, em sua segunda tentativa, eu o considerei maluco, e achava que deveria ter ficado neutro. Mas ele justificou o gesto, considerando que Humala era o mal menor. Continuo achando que ele foi afetado pela sua derrota frente a Fujimori, ainda nos anos 1990, e nunca se recuperou. Provavelmente considerava que sua filha Keiko fosse libertar o ditador (que de certa forma derrotou os gueriilheiros malucos do Sendero Luminoso, e colocou o Peru no caminho da estabilidade econômica).
Krauze lamentou que a esquerda mexicana ainda não tivesse se modernizado, como suas congêneres do Chile, do Uruguai, de Peru (não citou a esquerda brasileira, pois deve saber que os companheiros adoram ditadores decadentes). Acha que o PRI que retornou ao México é diferente no plano federal, mas que a nível local (governadores e prefeitos), continua o velho PRI oligárquico e corrupto de sempre.
Ambos concordam em que o modelo chavista não tem nenhum futuro, e que a Venezuela só pode afundar de modo catastrófico, o que também acho.
Vargas Llosa foi especialmente crítico em relação aos intelectuais latino-americanos. Disse que sua influência na vida latino-americana, cultural e política, foi essencialmente negativa, pois sempre sustentaram causas erradas: socialismos soviético, maoista, e as piores ditaduras do continente e alhures. Agora ninguém mais os escuta, pois a classe média se tornou pragmática.
Krauze atalhou, para dizer que iria defender Vargas Llosa contra ele mesmo, ao dizer que como intelectual, ele tinha navegado contra a corrente, na boa direção.
Na parte das questões, a maior parte foi genérica demais, mas Vargas Llosa aproveitou para fazer uma defesa do livro, para ele ameaçado pelas novas tecnologias digitais.
Ele acha que o livro pode desaparecer. Pois eu acabo de ler uma matéria de imprensa, que informa que, graças a essas novas tecnologias, os e-books, os readers em tablets, os jovens estão lendo mais do que o faziam na era do livro apenas impresso.
Mas Vargas Llosa também tem razão quando diz que a escrita, na era digital, tornou-se mais medíocre, e que a única salvação da boa literatura continua sendo sob a forma de livros tradicionais.
Pode ser que ele esteja certo, mas não há impedimento que grandes escritores publiquem grandes obras da literatura em formato digital, já que o livro impresso vai continuar sendo relativamente mais caro...
Enfim, ele terminou com previsões sombrias, de um desaparecimento do pensamento crítico sob um mundo orwelliano de tecnologias digitais.
Ao fim e ao cabo, se disse otimista quanto ao futuro da América Latina, para ele cada vez mais democrática, mas não era nada otimista quanto ao futuro da humanidade (no plano do conhecimento e da grande literatura, se entende).

Foi um bom final de viagem.
Amanhã, vamos para a etapa final da viagem, de Princeton até Hartford, numa tacada só...

Paulo Roberto de Almeida
Princeton, 8 de outubro de 2013

domingo, 10 de março de 2013

Heranca maldita (bolivariana) - Enrique Krauze

Chaga histórica

Para historiador, o principal ônus da era Chávez foi o ódio dos microfones do poder contra os que divergiam desse mesmo poder

09 de março de 2013 | 16h 00
Enrique Krauze
 
Ele tinha uma concepção polarizada do mundo. Via o mundo dividido entre amigos e inimigos, entre chavistas e pitiyanquis(simpatizantes dos americanos), entre patriotas e traidores. Descobri sua vocação social em livros e ensaios. Mas uma coisa é a vocação social, outra a forma na qual essa vocação é praticada. Obcecado por uma admiração anacrônica pelo modelo cubano, Hugo Chávez tumultuou as instituições públicas venezuelanas, corrompeu a companhia estatal Petróleos de Venezuela SA e foi protagonista do que poderá se revelar o maior desperdício de riquezas públicas de toda a história latino-americana. Mas embora os seus erros econômicos sejam de tão grande magnitude, empalidecem diante das chagas políticas e morais que infligiu ao país.
Chávez magnetiza a massa na Plaza Caracas em fevereiro de 1998: legado polêmico - Jorge Santo/AP
Jorge Santo/AP
Chávez magnetiza a massa na Plaza Caracas em fevereiro de 1998: legado polêmico
Chávez não só concentrou o poder: ele confundiu, ou melhor, fundiu sua biografia pessoal com a história venezuelana. Nenhuma democracia prospera onde um homem supostamente "necessário", único e providencial reivindica a propriedade privada dos recursos públicos, das instituições públicas, do discurso público, da verdade pública. O povo que tolera ou aplaude essa delegação absoluta de poder numa só pessoa abdica de sua liberdade e condena a si mesmo à adolescência cívica, pois essa delegação supõe a renúncia à responsabilidade sobre seu destino.
O principal prejuízo é a discórdia no interior da família venezuelana. Nada me entristeceu mais nas visitas a Caracas (nem sequer a escalada da criminalidade ou a visível deterioração da cidade) do que o ódio dos microfones do poder contra o amplo setor da população que divergia desse poder. O ódio dos discursos, dos cartazes, dos punhos fechados, dos arrogantes porta-vozes do regime em programas de rádio e TV, das redes sociais infestadas de insultos, mentiras, teorias conspiratórias, desqualificações, preconceitos. O ódio do fanatismo ideológico e do rancor social. O ódio surdo à razão e impermeável à tolerância. Essa é a chaga histórica que o chavismo deixa. Quanto tempo levará para sanar? E poderá sanar? É um milagre que a Venezuela não tenha desembocado na violência partidária e política.
Há algumas semanas, com o agravamento da doença de Chávez, antecipei sua imediata santificação, como ocorreu com Evita Perón na, mas, dada a tradição caudilhista da Venezuela, a sacralização de sua figura será mais profunda e permanente. Hugo Chávez conseguiu a imortalidade com que sempre sonhou. Na alma de muitos dos seus compatriotas (e de não poucos simpatizantes na América Latina), ele compartilhará das glórias do Libertador. Até o comandante Fidel Castro poderia sentir-se relegado, vítima de um suave, porém implacável parricídio.
O que acontecerá agora, depois de sua morte? Tudo pode ocorrer, até a divisão interna do chavismo em uma ala ideológica e uma militar ou a vitória da oposição. Contudo, é provável que o sentimento de pesar, somado à gratidão que um amplo setor da população sente por Chávez, facilitem o triunfo de um candidato oficial nas eventuais eleições. Para isso contribuirão os órgãos eleitorais, fiscais, judiciais e - em parte - os legislativos, que continuarão nas mãos do chavismo. Seu retrato, sua cadeira vazia, sua imagem retransmitida interminavelmente acompanharão por algum tempo o novo presidente. Mas todo sofrimento tem um fim. E, neste momento, chavistas não chavistas deverão enfrentar a gravíssima realidade econômica.
Os indicadores de alarme são de domínio público. O déficit fiscal corresponde a 20% do PIB, cerca de US$ 70 bilhões. O dólar, cotado a pouco mais de 6 bolívares, triplica no mercado negro. A inflação vem sendo há anos, a mais elevada da região. A escassez (decorrente do desmantelamento do parque industrial, do êxodo da classe média profissional e da falta crônica de investimentos) virou quase uma tradição venezuelana. Há uma aguda carestia de divisas. Como explicar que um país, que na era de Chávez auferiu mais de US$ 800 bilhões em receitas petrolíferas, apresente contas tão alarmantes?
Boa parte da explicação está no petróleo. Em 1998, a Venezuela produzia 3,3 milhões de barris diários e exportava (e cobrava) 2,7 milhões. Agora, a produção despencou para 2,4 milhões de barris diários, pelos quais cobra apenas 900 mil (os que vende aos EUA, o império odiado). O restante, que ele não cobra, divide-se assim: 800 mil vão para o consumo interno, praticamente gratuito (e que gera um polpudo negócio de exportação ilegal); 300 mil destinam-se a pagar créditos e produtos adquiridos na China; 100 mil são gastos com a importação de gasolina; e 300 mil vão a países do Caribe que pagam (quando pagam) com descontos e prazos enormes ou simbolicamente, como Cuba, que "paga" seus 100 mil barris com o envio de médicos, professores e policiais (e se beneficia do petróleo venezuelano a ponto de reexportá-lo).
Um presidente chavista deverá enfrentar essa realidade e encarar o público. Mas esse mandatário já não será Chávez o hipnótico, Chávez o taumaturgo, o líder que explicava tudo, justificava tudo, minimizava tudo. As pessoas culparão os chavistas por não estarem à altura do seu legado. Dirão: "Chávez não teria permitido isto", "Chávez teria resolvido isto". Chegado a este ponto, o próprio regime chavista talvez se convencesse da necessidade de um diálogo de conciliação que agora parece utópico. E aí se poderia abrir uma oportunidade concreta para a oposição.
Depois dos longos anos de inconsistências, omissões e erros, a oposição venezuelana mostrou-se unida, escolheu um líder inteligente e determinado (Henrique Capriles) e teve bom desempenho nas eleições: recebeu quase 7 milhões de votos. Durante a agonia de Chávez, sem deixar de levantar a voz de protesto, mostrou uma notável prudência que deve confirmar nestes dias de dor e de comoção. Se a oposição - que esperou tanto - conservar a coesão e a presença de espírito, poderá avançar nas eleições legislativas, regionais e presidenciais e recuperar as posições que perdeu. Uma força latente também deverá despertar: os estudantes. Eles exerceram papel fundamental no referendo de 2007 (que impediu a conversão aberta da Venezuela ao modelo cubano) e talvez voltem a exercê-lo.
Acredito que, com a morte do grande caudilho messiânico ("Redentor", como o chamou abertamente o próprio Maduro), a Venezuela encontrará, cedo ou tarde, o caminho da concórdia: se nos quinze anos de Chávez a violência verbal não transbordou para a violência física, é razoável esperar que não explodirá agora. E a mudança poderá ser contagiosa. Cuba, a Meca do redentorismo histórico, o único Estado totalitário da América, poderá reformar-se como a Rússia e a China. Toda a região poderá oscilar então entre regimes de esquerda social-democrática e governos de economia mais aberta e liberal. E para que o trânsito seja menos acidentado, os EUA também deveriam dar sinais inéditos de sensatez, cancelando o embargo a Cuba e fechando a prisão de Guantánamo.
O século 19 latino-americano foi o século do caudilhismo militarista. O século 20 sofreu o redentorismo iluminado. Ambos os séculos padeceram com os homens "necessários". Talvez no século 21 desponte um novo amanhecer, um amanhecer plenamente democrático.
TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA
ENRIQUE KRAUZE, ESCRITOR E HISTORIADOR MEXICANO, É AUTOR DE OS REDENTORES - IDEIAS E PODER NA AMÉRICA LATINA (BENVIRÁ).

sábado, 30 de junho de 2012

Enrique Krauze: a dificil democracia latino-americana


Aspirações democráticas
Ivan Marsiglia
O Estado de S. Paulo30 de junho de 2012

A 43ª Cúpula de Presidentes do Mercosul, em Mendoza, na Argentina, ocorreu essa semana em clima de Família Trapo: reinou a confusão entre os países irmãos. Tudo por conta do drama político que se desenrolou no Paraguai, com seu presidente, o ex-bispo católico Fernando Lugo, destituído do cargo em tempo recorde pelo Senado, em favor do vice, Federico Franco. Golpe ou devido processo legal? Esse foi o debate que monopolizou a semana. Na quinta-feira, evocando a chamada "cláusula democrática" do Mercosul, os chanceleres do Brasil, Argentina e Uruguai decidiram suspender o novo governo de Assunção das reuniões e decisões do bloco até a realização das eleições presidenciais naquele país, previstas para abril do ano que vem.
No dia seguinte, a presidente argentina, Cristina Kirchner, que enfrentara greve e manifestação de sindicatos em frente à Casa Rosada na quarta, escancarou sua preocupação: evitar novos "golpes suaves" no continente. E resumiu o estado de espírito latino-americano por esses dias, parafraseando o escritor Jorge Luis Borges: "Não nos une tanto o amor, mas sim o espanto". Dilma Rousseff, que assumiu na ocasião a presidência temporária do Mercosul e elogiou a decisão de punir politicamente o Paraguai, atuou nos bastidores para impedir sanções econômicas ao vizinho. E ambas as presidentes anunciaram, braços dados com o colega uruguaio José Mujica, a adesão da Venezuela de Hugo Chávez como membro pleno do bloco.
Nada disso espanta o ensaísta, jornalista e historiador mexicano Enrique Krauze, um dos mais argutos observadores da coreografia política de nosso continente - para quem os movimentos acima são parte corriqueira do desengonçado balé democrático latino-americano.
"A democracia em nossos países é tão jovem e frágil que a continuidade é vista como um valor, enquanto a interrupção de um governo é admitida apenas como exceção", explica o autor de livros como O Poder e o Delírio, biografia demolidora de Chávez ainda sem edição brasileira, e Os Redentores - Ideias e Poder na América Latina, uma galeria das lideranças messiânicas que tingiram e ainda tingem a política do continente com as cores do populismo, lançado em 2011 pela Benvirá. Para o historiador, a despeito do rito constitucional sumário em que se deu o impeachment de Lugo, a soberania do Paraguai deve ser respeitada. Entretanto, afirma, citando um antigo dito espanhol, que o país sul-americano terá de se haver com as consequências de ter feito "coisas boas que parecem más".
Na entrevista a seguir, Enrique Krauze analisa a nova cena político latino-americana que se desenha anos após a "onda vermelha" que elegeu governos de diferentes matizes de esquerda no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Venezuela e Equador. E, embora não acredite na chegada de uma ola conservadora a apeá-los em dominó do poder, desconfia que talvez estejamos assistindo ao último adeus do populismo no continente.
"As novas gerações estão se dando conta de que a via proposta por Chávez e Fidel não é viável nem conveniente", diz Krauze. Uma tomada de consciência proporcionada em grande medida, segundo ele, pelo exemplo brasileiro. "O Brasil teve, consecutivamente, três presidentes oriundos da esquerda - a esquerda acadêmica, a sindical e até a guerrilheira. Todos comprometidos com a democracia e a modernização." E ressalta, criticando a virulência dos ataques de Álvaro Uribe a seu sucessor, Juan Manuel Santos, na Colômbia, que o populismo também pode se vestir com a farda da direita. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Aliás de sua casa na Cidade do México, às vésperas das eleições em seu país.
Com o passar dos dias, qual é sua avaliação e que impressão ficará da reviravolta política no Paraguai?
A destituição de Lugo é menos polêmica que a que ocorreu em Honduras, pois temos a impressão que ao menos ela se deu nos termos das cláusulas constitucionais do país. O que acontece é que a democracia em nossos países é tão jovem e frágil que qualquer coisa que pareça ruim resulta ruim. Em um contexto de fragilidade democrática, a estabilidade e a continuidade são vistas como um valor, enquanto a interrupção de um governo é admitida apenas como exceção. Pessoalmente, faço votos de que a marcha institucional do Paraguai termine por demonstrar que o processo como se deu, que de fato não parece tão bom, tenha sido um recurso necessário.
Recém-empossado, o novo presidente Federico Franco logo tratou de receber o núncio apostólico do Vaticano. Nos dias que antecederam o golpe, autoridades da Igreja local espalhavam que Lugo ‘não fazia bem à família paraguaia’, em alusão aos filhos de um homem comprometido com o celibato. O papel da Igreja foi decisivo em sua queda?
A mim me parece deplorável que a Igreja, a essas alturas da história, siga tendo um peso político tão grande em alguns países. Eu não sou jacobino, mas penso que esse não é um signo de modernidade. A mim tampouco me parece que os costumes estritamente privados dos governantes tenham que ter mais importância que seu desempenho público. Entretanto, essa já é uma situação mundial - vide o que se constata nos Estados Unidos até hoje, quase uma intolerância puritana em relação aos hábitos dos candidatos, algo lamentável. Mas trata-se de um vício quase universal da democracia.
Quinta-feira, o Mercosul decidiu suspender o novo governo do Paraguai das reuniões e decisões do bloco até as eleições presidenciais do ano que vem. Jornais paraguaios chegaram a aludir à Tríplice Aliança, que uniu Brasil, Argentina e Uruguai contra o país vizinho em 1864, na Guerra do Paraguai. Foi uma reação desproporcional?
Eu não conheço a Constituição do Paraguai, mas o país é soberano em suas próprias decisões e é preciso respeitá-las. Ainda assim, não podemos fechar os olhos diante da realidade política de que o prestígio democrático da América Latina não é o mais alto. E é preciso ser muito cuidadoso em relação à forma como certas decisões são tomadas. De novo, evoco um velho ditado espanhol que não sei se tem correspondente em português: No hagas cosas buenas que parescan malas (não faça coisas boas que pareçam más). Eu acredito que no Paraguai se fizeram coisas que podem até estar corretas, mas de uma forma que não parece correta. Por isso, os paraguaios vão padecer até que esse capítulo se encerre. Em política, as aparências são tão importantes quanto a realidade.
A Argentina de Cristina Kirchner assistiu essa semana a uma greve de caminhoneiros que reuniu milhares de pessoas em frente à Casa Rosada, e a Bolívia de Evo Morales enfrenta há meses uma greve de policiais. Há sinais de instabilidade no continente ou é apenas rotina?
Essa instabilidade é rotineira, mas é uma boa notícia que os governos populistas estejam enfrentando as consequências de suas promessas. Ainda que nossas jovens democracias muitas vezes não entendam a importância da responsabilidade, na vida não é possível receber sem dar, nem dar sem receber. Se não se tem consciência de que todas as liberdades vêm acompanhadas de responsabilidades, o tecido social se desvirtua. Quem planta por todos os lados promessas de riqueza infinitas, uma hora vai encontrar os destinatários a cobrá-las. Agora vamos ver como esses governos populistas sairão dessa.
Outra situação que causa perplexidade é a da Colômbia: encastelado em um quartel militar, o ex-presidente Álvaro Uribe subiu o tom das críticas à política do sucessor que ele próprio escolheu, Juan Manuel Santos. Como entender isso?
Eu considero que, assim como há "redentores" de esquerda, também existem os de direita. E Álvaro Uribe está se aproximando perigosamente de tal perfil, começando a pensar que a história da Colômbia não pode caminhar nem avançar sem sua presidência. Esse enfrentamento direto que ele tem feito a Santos me parece muito perigoso. Porque a Colômbia, com todos os problemas que conhecemos, sempre foi um país exemplar em sua marcha democrática. Quero dizer uma coisa: não creio em "homens indispensáveis". A ideia de que certos líderes são necessários e indispensáveis é muito ruim. A postura de Uribe hoje é tremendamente criticável.
Seu país, o México, também vive um momento delicado, com as eleições ocorrendo em meio à guerra declarada do Estado contra grupos narcotraficantes. Como o sr. vê esse cenário?
O México enfrenta neste domingo um novo desafio em sua vida democrática. Irão às urnas mais de 40 milhões de pessoas. O país hoje tem instituições eleitorais autônomas que manejam o pleito de maneira confiável e a vitória, segundo os institutos de pesquisa, deverá ser do PRI (Partido Revolucionário Institucional, hoje na oposição). O PRI conserva muito dos aspectos que nos levaram a chamá-lo de "partido dos dinossauros", mas também tem uma ala jovem que pode vir a modernizar o partido. Isso nós ainda vamos saber. Ainda que o partido tenha o hábito de grande corrupção política e econômica, também é verdade que o México mudou tanto nos últimos anos que uma restauração pura e simples do velho sistema será impossível. Acredito que, muito mais que o PRI, vai triunfar hoje a democracia do nosso país, que não tem mais que 14 anos de vida, mas tem avançado substancialmente.
Um ano atrás, quando o sr. concedeu uma entrevista ao Aliás, a América Latina vivia a plenitude da chamada ‘onda vermelha’, com governos de esquerda instalados em quase todo o continente. Estaríamos assistindo agora a uma nova onda, conservadora, e ao enfraquecimento de governos populistas?
Não costumo pensar em termos de ondas. O que vejo ocorrer é um fortalecimento da democracia no continente. Sou um otimista. E creio que as novas gerações na América Latina estão se dando conta de que a via proposta por Chávez e Fidel é ruim, que a saída de "esquerda radical revolucionária socialista", todo esse delírio, não é viável nem conveniente. E os países da região estão agora flutuando entre governos ora mais conservadores, ora mais liberais, inclusive social-democratas. Nisso, o Brasil, por seu exemplo, jogou um papel fundamental.
Qual foi a contribuição brasileira à democracia no continente?
O Brasil teve, consecutivamente, três presidentes oriundos da esquerda - a acadêmica, a sindical e até a guerrilheira. Todos, no entanto, comprometidos com a democracia e a modernização. Conhecemos Fernando Henrique Cardoso nos anos 1960 e 70 como um teórico marxista e foi esse mesmo homem que logrou fazer as reformas liberalizantes no país. Lula também conseguiu se livrar de seu passado no sindicalismo radical e modernizar o Brasil. E Dilma, que cerrou fileiras com um grupo armado, mostra-se hoje um exemplo de racionalidade política. Diante do exemplo brasileiro, ficou evidenciado o absurdo de uma via populista para a América Latina. Não quero cantar nada em definitivo, mas talvez estejamos assistindo ao último adeus do populismo no continente. As exceções seguem sendo Venezuela e Argentina, esta última aprisionada por um peronismo que virou uma espécie de religião lá.
Com a saúde de Chávez comprometida, o sr. acredita que Rafael Correa, o jovem presidente equatoriano que estuda conceder asilo político a um ativista com cidadania britânica, Julian Assange, pode se tornar a nova liderança populista no continente?
Correa ganhou certo destaque, mas o Equador jamais terá o peso geopolítico de uma Venezuela, com suas imensas jazidas de petróleo. E o destino de Chávez será jogado nas eleições venezuelanas de outubro, que serão verdadeiramente históricas.
Nesse contexto de democracias promissoras, porém ainda frágeis, que o sr. identifica na região, que peso têm os avanços nos direitos civis e de minorias verificados nos últimos anos, como a aprovação do casamento gay na Argentina, a união civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil e a legalização da maconha no Uruguai? 
A construção de uma cidadania moderna ainda levará muito tempo na América Latina. Isso porque nossos países herdaram uma cultura política oriunda de outras tradições. A tradição ibérica, tanto no Brasil quanto na América Hispânica, é bastante distinta do ideário moderno que ensejou a noção de indivíduo com direitos salvaguardados da ingerência do Estado. A ideia de um Estado central muito forte e determinante na vida das pessoas permanece firme na cultura política de nosso continente. Mas as lutas vão ocorrendo e as liberdades vão se ampliando entre nós. A verdade é que a democracia é um edifício que leva séculos para ser construído, pouco a pouco. E assim estamos fazendo. Penso que a América Latina está no bom caminho da democracia, a região está enfrentando seus problemas e ela avança.