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quarta-feira, 1 de maio de 2024

Regionalismo Sul-Americano: uma visão estratégica a partir do Brasil (2007) - Paulo Roberto de Almeida

 Regionalismo Sul-Americano: uma visão estratégica a partir do Brasil

Paulo Roberto de Almeida*

Pontes entre o comércio e o desenvolvimento sustentável

(ICTSD; Direto FGV; vol. 3, nr. 6, dezembro 2007; ISSN: 1813-4378; p. 10-11)

 

Muitas são as variáveis, internas e externas, que influenciam a integração sul-americana. Todas essas variáveis serão inquestionavelmente influenciadas pela posição e pela estratégia que venham a ser adotadas pelo Brasil. A intenção deste texto é a de refletir sobre algumas dessas opções brasileiras no tocante ao regionalismo sul-americano.

 

Uma visão realista sobre a evolução de médio e longo prazo do continente sul-americano não pode tomar como garantida a constituição de um bloco político-econômico próprio à região, a despeito do forte engajamento político, diplomático e econômico dos principais atores, sobretudo do Brasil, nesse esforço.

 

Por um lado, há um conjunto de fatores internos que influenciam a evolução integracionista. Dentre esses fatores, destacam-se questões de fato como um continente caracterizado pelo distanciamento físico, por desigualdades sociais e por assimetrias estruturais. Adicionalmente, há um conjunto de elementos políticos internos, tais como: a conformação das políticas econômicas nacionais (propensas à interdependência ativa ou mais nacionalistas); a baixa dinâmica do crescimento econômico dos países da região; a dominância de forças políticas de inclinação oposta à integração comercial e econômica, que se relacionam com as descontinuidades no próprio projeto voltado para a América do Sul (ora mais econômico ora mais tendente a discutir integração física e energética). 

 

Existem, por outro lado, os fatores externos, dentre os quais destacam-se os representados por políticas de abertura a acordos comerciais, principalmente os propostos pela principal potência hemisférica (e mundial), os Estados Unidos da América (EUA). A possibilidade de acesso consolidado ao grande mercado estadunidense e a perspectiva de investimentos diretos de tal origem nos países dispostos a assinar os acordos de livre comércio tornam-nos atrativos para quase todos os países da América do Sul. As únicas exceções a essa linha são os grandes países da região, Brasil e Argentina – justamente os que sofrem a maior incidência do protecionismo setorial estadunidense. 

 

Elementos estratégicos no contexto do regionalismo sul-americano

 

Dentre os eventos ou processos que podem influenciar o destino de qualquer projeto de integração mais profunda na América do Sul, os seguintes devem ser ressaltados:

 

      1) Diferenciais de crescimento entre os vários países da região. Isso pode aumentar a distância entre eles e as dificuldades de qualquer projeto de integração uniforme, como já demonstrado pela experiência dos países do Cone Sul. 

 

      2) Amplitude e extensão de uma futura rede de acordos comerciais (em substituição à frustrada Área de Livre Comércio das Américas-ALCA), patrocinada pelos EUA, mas praticamente abandonada, atualmente. 

 

      3) Tensões ou mesmo conflitos entre países vizinhos, por razões de ordem histórica (como nos casos Chile, Bolívia e Peru; Colômbia e Venezuela; Venezuela e Guiana) ou pelo surgimento de pendências ligadas aos eventuais efeitos externos de instabilidades internas (no caso da Colômbia, por exemplo). Isso pode ser igualmente vinculado aos deslocamentos de populações, acesso a recursos estratégicos, como água e fontes de energia.

 

      4) Capacidade brasileira de conceder acesso não recíproco a seu mercado, prestar cooperação em escala ampliada, mediar conflitos entre os países da região ou mesmo ter capacidade para alguma projeção militar. 

 

      5) Disponibilidade de fontes de financiamento para viabilizar a integração da infra-estrutura física e energética da América do Sul.

      

      6) Necessários fortalecimento e consolidação do Mercosul, que deve ser a base de qualquer projeto de integração mais amplo na região.

 

      7) Ampliação da capacidade de exportação de capitais por parte do Brasil, em especial pela via da internacionalização de suas grandes empresas.

 

Ademais, se a orientação for no sentido de uma integração física e energética, deve-se ainda considerar que: um esforço de planejamento estratégico que envolva os atuais processos sub-regionais de integração, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), não parece ser facilmente administrável pela pluralidade de arranjos já existentes; as iniciativas de integração física podem ter dificuldades de financiamento dos projetos e complicações para sua implementação, que passarão agora a ser administrados pela Unasul, com o possível complemento financeiro do novo Banco do Sul; a implementação de projetos nas áreas de transportes, energia e comunicações deve ser vista no médio e no longo prazo, uma vez que a concepção, o desenho e a efetivação de cada um desses projetos envolve não apenas a obra de engenharia em si, mas igualmente uma complexa arquitetura financeira, quando não um delongado processo de decisão política. 

 

A visão brasileira

 

O objetivo básico da integração sul-americana, na visão brasileira, é a conformação de um imenso espaço integrado nos planos econômico-comercial e físico-logístico. Isso comporia as bases indispensáveis para exercícios mais ambiciosos nos terrenos da integração cultural e da “permeabilidade” social e financeira e, até mesmo, em direção de objetivos mais amplos nos terrenos político e diplomático, como a coordenação de posições em matéria de política externa e de segurança estratégica. Não se trata, em princípio, de constituir um “bloco” para contrapor-se a outros poderes, mas tão simplesmente de conformar um espaço integrado para o desenvolvimento integral dos povos da região.

 

O Brasil, por sua dotação favorável de certos fatores, como geografia “estendida” e regime político aparentemente mais estável do que outros países da região, tem todas as condições de exercer a liderança nesse processo. Essa posição, entretanto, precisa emergir naturalmente, como sendo uma demanda dos países interessados em nossa capacidade de iniciativa nos mais diversos setores, não como um oferecimento feito de forma isolada e muito menos como uma imposição unilateral, o que de toda forma não seria aceito pelos vizinhos. 

 

Possíveis componentes de uma visão estratégica brasileira

 

Dentre as metas e linhas de ação que podem sustentar o objetivo estratégico do Brasil estão: (a) a continuidade do processo de acumulação de pequenos avanços institucionais, com a ampliação da rede de acordos de integração no contexto da América do Sul, tanto para completar a cobertura dos acordos econômicos e comerciais como para avançar em novas áreas de interesse social e cultural; e (b) o avanço decisivo no terreno da integração física, para, de fato, dar suporte logístico à integração que se pensa promover no campo dos sistemas produtivos e dos intercâmbios financeiros e tecnológicos.

 

O Brasil não deve proclamar sua vocação de ser o centro desse espaço integrado, pois isso ocorrerá naturalmente. Qualquer intenção anunciada pode gerar movimentos contrários que poderão retardar o processo de conformação desse espaço. 

 

Uma visão estratégica recomendaria, ainda, dispor de ampla flexibilidade organizacional e política na definição e escolha dos objetivos e instrumentos capazes de lograr a consolidação do espaço integrado sul-americano, o que significa não privilegiar, nem descartar, nenhum dos mecanismos existentes e porventura em formação que facilitem a obra de integração. Em algumas tarefas, a cooperação poderá estender-se a parceiros fora do alcance geográfico imediato do espaço em formação, como podem ser o caso dos países caribenhos, dos centro-americanos, do México, do Canadá e, até mesmo, dos EUA. Esses continuarão a ser, no futuro previsível, grandes mercados e provedores de bens e serviços, nas áreas financeira, cultural, educacional e, sobretudo tecnológica, para a região. Um projeto hemisférico não deve necessariamente ser visto como contraditório ou oposto a esses objetivos de integração sul-americana, até porque a maior parte dos países vizinhos tem desse projeto uma visão positiva, tanto em termos de acesso ao mercado dos EUA, como fonte possível de recursos financeiros e de investimentos diretos.

 

Outra modalidade de ação implicaria acelerar de modo decisivo o processo de integração física, econômica e social no contexto sul-americano. Dessa forma, o Brasil teria de assumir os custos iniciais (ou permanentes) desse tipo de investimento, sem que estejam muito claras as condições políticas e financeiras sob as quais o país desempenharia esse papel protagônico (de resto, unilateral e, portanto, sob risco de rejeição por parte dos vizinhos). A “fuga para a frente”, em todo caso, a supor que ela seja aceita pelos vizinhos, teria de comportar, igualmente, uma “solução financeira” para os intercâmbios regionais. Neste caso, a moeda brasileira deve desempenhar um papel complementar ao do dólar nos financiamentos, transferências e créditos dos mais diversos tipos. Em outros termos, o Brasil precisaria estar disposto e em condições de passar a assumir um papel de provedor generoso de ajuda técnica e assistência ao desenvolvimento, de “exportador de capitais” e de “aberturista não-recíproco” aos produtos e serviços dos países vizinhos.  

 

Acelerar, relativamente, e consolidar, absolutamente, o processo de integração física e econômica dos países da América do Sul representa grandes empreendimentos econômicos e diplomáticos do ponto de vista do Brasil. Da mesma forma, implementar e garantir o funcionamento ampliado de uma rede de acordos políticos, econômicos e de outra natureza, que diminuam as barreiras existentes entre os países, constituem outros grandes desafios estratégicos para a diplomacia brasileira. Um outro objetivo de, mais longo prazo, para essa diplomacia, seria tornar a América do Sul um ator, se não global, pelo menos dotado de importância relativa nos cenário hemisférico e nas relações com outros grandes atores do sistema internacional. Adicionalmente, seria importante, no plano setorial, institucionalizar uma rede de acordos plurilaterais relativos à integração física, eventualmente – mas não necessariamente – pelo reforço da Unasul. E recomendável, também, que se conserve um grau relativo de liberdade e de flexibilidade para alcançar metas variadas e objetivos diversificados nos diversos planos da integração regional. No caso do Brasil, essa liberdade tem de ser confrontada às suas obrigações no âmbito do Mercosul.

 

A América do Sul é o “terreno natural” de atuação da diplomacia e da economia do Brasil, tanto quanto o é o Mercosul, ainda que seu processo de consolidação demande bem mais tempo e maiores esforços do que o projeto de plena conformação do mercado comum no âmbito sub-regional. Não se deve, no entanto, fixar metas irrealistas de mercado plenamente unificado em escala sul-americana, no futuro previsível; mas sim um cenário de criação de redes comerciais e de esquemas econômicos complementares, inclusive e principalmente na área financeira, com a utilização de mecanismos e instrumentos crescentemente mais sofisticados, como podem vir a ser os da Unasul.

 

O Brasil deve estar consciente de que as principais iniciativas e os maiores esforços de cooperação devem partir dele mesmo, o que demandará, obviamente, um investimento inicial sem retorno aparente garantido. No plano da organização estatal interna, o objetivo estratégico deveria tornar a área “doméstica” da integração sul-americana não apenas prioritária do ponto de vista diplomático, mas igualmente no que se refere à ação setorial de todos os demais ministérios, que devem passar a encarar os desafios à integração sul-americana como extensão e parte constitutiva de suas próprias políticas setoriais.



* Doutor em Ciências Sociais, diplomata, professor no mestrado em Direito do Uniceub (Brasília).

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