Alberto da Costa e Silva – 1931-2023
Revista do CEBRI, ANO 3 / Nº 9 / JAN-MAR 2024
Resumo
Texto de Celso Lafer em memória a Alberto da Costa e Silva (1931-2023), diplomata, poeta, historiador, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras.
Palavras-chave:
Alberto da Costa e Silva; memória; história; diplomacia; obra de vida.Aperspectiva é um dos componentes organizadores da realidade, indicativa da circunstância do lugar em que estamos e nele nos localizamos para adquirir a mobilidade transformadora da razão e da sensibilidade. Recordo essa lição de Ortega y Gasset (1994), porque ela tem grande pertinência para pensar a política externa concebida como um ponto de vista sobre o funcionamento do mundo e a sua incidência em um país. Um país operacionaliza seu ponto de vista no trato oficial com outros países por meio de seu corpo diplomático.
Alberto da Costa e Silva integrou o corpo diplomático brasileiro, nele ingressando depois de concluir o seu período de estudo no Instituto Rio Branco. Serviu na Secretaria do Estado e nas embaixadas em Lisboa, Caracas, Washington, Madri e Roma. Foi embaixador na Nigéria, em Portugal, na Colômbia e no Paraguai. Na operacionalização do ponto de vista do Brasil, no abrangente exercício do ofício diplomático, Alberto tornou-se um paradigma de tato, inteligência e zelo, que dele fizeram um dos grandes quadros do Itamaraty. Foi no período de sua vita activa diplomática que o conheci, dele me aproximei e tive a oportunidade de apreciar as suas altas qualidades.
Na operacionalização do ponto de vista do Brasil, no abrangente exercício do ofício diplomático, Alberto tornou-se um paradigma de tato, inteligência e zelo, que dele fizeram um dos grandes quadros do Itamaraty.
Alberto foi, ao mesmo tempo, um intelectual de grande envergadura, e o que singularizou o seu percurso foi a fecunda convergência de sua vocação para a diplomacia com a sua vocação de grande intelectual. Em Alberto, essas duplas e constitutivas circunstâncias de seus caminhos apuradamente confluíram. O olhar do diplomata abriu oportunidades para observar o mundo a partir do Brasil e, numa dialética de complementaridade, observar o Brasil a partir do mundo.
Alberto observou que “o diplomata, como o poeta, trabalha com as palavras” (Costa e Silva 2002, 26). São palavras distintas cuja especificidade Alberto soube bem elaborar no seu percurso. Octavio Paz, que foi um grande poeta, um grande pensador e também um diplomata, cuja experiência do ofício alentou a sua obra, apontou em entrevista a Enrico Mario Santi (1994) que poesia e pensamento vivem em duas casas contíguas, mas entre elas existe um corredor que favorece a passagem de uma para a outra. Assim, os bons poetas frequentam o pensamento porque a boa poesia é lucidez. De maneira similar, o pensamento se alimenta da lucidez da boa poesia.
Foi o que ocorreu com o Alberto na especificidade do seu trânsito no qualificado uso da palavra. Daí o alcance que soube dar à diplomacia cultural como uma dimensão da política exterior brasileira, para a qual deu relevante contribuição na sua dupla condição de diplomata e pensador. Exemplificava como a cultura pode ser apreciada como convergência de influências e caminho para o entendimento.
Alberto organizou o volume O Itamaraty na Cultura Brasileira, publicado em 2001 na minha gestão no Ministério das Relações Exteriores. Os diplomatas lá analisados dedicaram-se, na diversidade de suas obras e na especificidade dos seus interesses, à ampliação da dimensão fundacional da diplomacia brasileira no plano cultural. Trata-se de uma dimensão, como destaquei no meu prefácio, permeada pelo desafiante tema da identidade nacional e da projeção internacional do que é o Brasil. Como diz Alberto na apresentação do volume, na prática do ofício o diplomata “é o que se representa”.
A representação é uma dimensão constitutiva da atividade de um diplomata, e Alberto inicia as suas considerações sobre o desafio da representação no teatro do mundo através da exegese do quadro de Hans Holbein Os Embaixadores. Destaca o pano de fundo do quadro, inter alia, grossos livros, cartas geográficas, um globo terrestre, uma luneta, um astrolábio, indicando assim que um diplomata deve olhar os astros e identificar os rumos do mundo para saber a que se ater, orteguianamente, no exercício de seu ofício.
A representação vai além da articulação e da negociação de interesses. Tem um componente de exprimir o potencial e a vis atractiva do que um país pode significar para os demais numa dada conjuntura histórica. Por isso, um diplomata deve conhecer bem o seu país para poder bem representá-lo. Essa foi uma característica da qualidade de Alberto no exercício do ofício de diplomata.
Cabe também a um diplomata, para valer-me da terminologia da Convenção de Viena, promover relações amistosas com o país no qual está acreditado e assim, na medida do possível, transformar fronteiras-separação em fronteiras-cooperação. Foi o que fez Alberto com gosto e dedicação nos países em que serviu.
Alberto foi um paradigma de diplomata que elaborou, na sua prática e na sua reflexão, com saber, competência e originalidade, uma diplomacia da cultura e do conhecimento, que alargou os horizontes da política externa brasileira.
Em síntese, Alberto foi um paradigma de diplomata que elaborou, na sua prática e na sua reflexão, com saber, competência e originalidade, uma diplomacia da cultura e do conhecimento, que alargou os horizontes da política externa brasileira. Faço estas considerações preliminares na perspectiva de um ex-ministro das Relações Exteriores para realçar o seu papel na diplomacia brasileira. É um ponto de partida para, como seu confrade na Academia Brasileira de Letras (ABL), ir além do que foi o seu gosto pelo ofício a que se dedicou por muitos anos e, desse modo, destacar o seu papel de grande intelectual e abrangente contribuição à cultura brasileira, que se alimentou da sua experiência de diplomata.
Como é sabido, a dedicação à África foi um tema recorrente do seu percurso de diplomata, que se adensou subsequentemente na sua condição de grande historiador, cabendo registrar que a abertura à África da política externa brasileira, iniciada na gestão do chanceler Mario Gibson Barbosa, muito deve à sua instigante inspiração.
A experiência do embaixador na Nigéria e no Benin, de 1979 a 1983, da qual guardou, como dizia, “gratidão enternecida”, foi um estímulo para aprofundar o seu interesse pela África e o seu entendimento de que “era necessário entender os africanos para melhor entender o Brasil”, nas palavras de Marina de Mello e Souza (2023) em recente artigo publicado na CEBRI-Revista.
A enorme erudição de Alberto sobre a África vivificou-se na Nigéria pela combinação da palavra escrita com o dia vivido. “Tornaram-se menos imprecisos os significados de certas palavras, de certos gestos, de certas festas, de certos costumes e de determinadas instituições e mais perceptíveis os seus ecos no Brasil e o ir e vir das ressonâncias por sobre as águas do Atlântico” (Silva 1992, 2), como disse com vocação fenomenológica no seu livro A enxada e a lança: a África antes dos portugueses.
Do que ele chamou “o vício da África” resultou uma excepcional obra de historiador que descortinou, com rigor e paixão, a História da África, a África no Brasil, o Brasil na África e a dinâmica do circuito da escravidão. Alberto, com seus generosos ensinamentos, trouxe a África como campo próprio de estudo em nosso país. A sua obra abre a nossa sensibilidade às memórias provenientes da África, que se somam, como ele diz, a outros enredos da vida brasileira – aos europeus, que sempre estiveram nos currículos de nossas escolas, e aos ameríndios, que neles deveriam estar. Desnecessário realçar a pertinência da obra de Alberto e sua visão para a agenda brasileira contemporânea.
Alberto, com seus generosos ensinamentos, trouxe a África como campo próprio de estudo em nosso país. A sua obra abre a nossa sensibilidade às memórias provenientes da África, que se somam, como ele diz, a outros enredos da vida brasileira…
Alberto dominava igualmente o papel do enredo europeu na vida brasileira. Portugal, de minha varanda (1999) é um admirável ensaio de Alberto, representativo de como sua perspectiva é a expressão do melhor da janela de um diplomata de cultura e de conhecimento. Portugal, onde serviu como jovem diplomata e depois como embaixador, foi um posto no qual a sua naturalidade na interação, tanto com os artistas e escritores portugueses, quanto com as muitas vertentes do seu universo político, lastreou-se no seu domínio do mundo lusitano – o de um país que “de certa forma e ao seu jeito inventou para a Europa os oceanos” (1999, 24).
As rotinas do dia a dia enquanto diplomata e da inserção de Portugal no mundo alimentou-se da aventura da sua sensibilidade cultural e política para intensificar e ampliar o diálogo Portugal-Brasil. Iluminou, com larga visada, as características da herança e da presença de Portugal no Brasil e do significado dos fluxos migratórios lusitanos para a construção da múltipla identidade do nosso país. Soube destacar, como grande intelectual, a relevância do idioma comum e do papel da língua portuguesa em Portugal e no Brasil, que nos singulariza e aproxima. Alargou esse horizonte para alcançar cinco países africanos que vivem as realidades das suas especificidades, para descortinar o potencial de concertação diplomático-cultural que amplia, com um toque próprio, o espaço do Brasil e de Portugal no mundo.
O espaço não me permite aflorar a amplitude dos caminhos intelectuais de Alberto, mas cabe destacar que tiveram um impacto irradiador com sua eleição para a Academia Brasileira de Letras e sua integração nas atividades da Casa de Machado de Assis, que presidiu com destaque. A presença de Alberto na ABL e as características agregadoras dos seus talentos e conhecimentos, do seu zelo pela instituição e da inteireza de sua personalidade, dele fizeram uma grande referência da Casa – um dos seus notáveis quadros – à semelhança do que ocorreu no Itamaraty. Com a eficaz sutileza de sua inspiração, a ABL, para falar com Bobbio, adquiriu a dimensão de um locus da política da cultura.
Permito-me finalizar, como seu confrade e admirador, realçando que as suas memórias são um dos pontos mais altos da memorialística brasileira. Espelho do Príncipe (1994), cujo subtítulo é ficções de memória, não é propriamente uma autobiografia. Refaz liricamente as vivas lembranças do seu passado de criança. É, como o qualificou Da. Gilda de Mello e Souza, “um solilóquio da infância”, que ela toma como um ritual de passagem, uma travessia da infância à idade adulta, na qual Alberto, com pequenos toques, de maneira única, vai “impondo uma visão nova das coisas, da sensibilidade da relação com as pessoas, do escoar do tempo.” Corresponde, para lembrar a sua condição de poeta, ao que disse com a virtude da simplicidade na abertura de seu poema Hoje: gaiola sem paisagem: “Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora menino.”
Lafer, Celso. 2023. “Alberto da Costa e Silva (1931-2023)”. O Estado de S. Paulo, 17 de dezembro de 2023. https://www.estadao.com.br/opiniao/celso-lafer/alberto-da-costa-e-silva-1931-2023/.
Ortega Y Gasset, José. 1994. “El tema de nuestro tiempo”. In Obras Completas, de José Ortega Y Gasset, v. 3. Madrid: Alianza.
Santi, Enrico Mario. 1994. “Conversar es humano, entrevista a Enrico Mario Santi, Miscelanea III – Entrevistas”. In Obras Completas, de Enrico Mario Santi, vol. 15; México: Fondo de Cultura Económica.
Silva, Alberto da Costa e. 1962. Carda, fia, doba e tece. 1ª edição. Lisboa.
Silva, Alberto da Costa e. 1992. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Silva, Alberto da Costa e. 1994. Espelho do príncipe: ficções da memória. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Silva, Alberto da Costa e. 1999. “Portugal, de minha varanda”. Via Atlântica 2 (1): 20-40. https://doi.org/10.11606/va.v0i2.48731.
Silva, Alberto da Costa e. 2002. “Diplomacia e cultura”. In O Itamaraty na cultura brasileira, de Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora.
Souza, Marina de Mello e. 2023. “Os benefícios de um vício: Alberto da Costa e Silva e a África”. CEBRI-Revista 2 (6): 192-199. https://doi.org/10.54827/issn2764-7897.cebri2023.06.03.08.192-199.pt.
Recebido: 29 de fevereiro de 2024
Aceito para publicação: 1 de março de 2024
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