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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Pedro Teixeira, a Amazônia e o Tratado de Madri - livro da Funag

A Fundação Alexandre de Gusmão, FUNAG, lançou a edição ampliada da obra "Pedro Teixeira, a Amazônia e o Tratado de Madri"

A FUNAG lançou em 24 de novembro a edição ampliada do livro "Pedro Teixeira, a Amazônia e o Tratado de Madri", organizada por Sérgio Eduardo Moreira Lima e Maria do Carmo Strozzi Coutinho. Nela, foram incorporadas as transcrições paleográficas dos documentos levantados durante as pesquisas conduzidas no processo de elaboração da obra, sobretudo no Arquivo Histórico Ultramarino, na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, bem como na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Para avaliar a dimensão do acréscimo, a primeira edição continha 309 páginas, enquanto a nova edição possui 508 páginas. Trata-se de valiosa fonte de informação para estudiosos da História, da Geografia, da Cartografia, das Relações Internacionais do Brasil e, também, da gênese do Direito Internacional moderno aplicado à formação territorial brasileira.

A obra está disponível gratuitamente para download na Biblioteca Digital da FUNAG.

Um Tocqueville avant la lettre: Hipolito da Costa em Filadelfia - Paulo Roberto de Almeida

Acaba de ser publicada mais uma edição do famoso (mas durante muito tempo desconhecido) diário da viagem do jovem Hipólito da Costa aos Estados Unidos, no final do século 18, para uma missão de prospecção econômica que também poderia ser chamada, na linguagem atual, de "espionagem industrial".
Tendo lido esse diário em sua primeiríssima edição, a da Academia Brasileira de Letras de 1955, preparei uma análise, muitos anos atrás, que reproduzo abaixo, para conhecimento dos interessados.
Existe uma edição mais recente, anotada, esta aqui (mas ainda não tive acesso):


Diário da minha viagem para Filadélfia, de Hipólito da Costa
Edição crítica: Tânia Dias
(Fundação Casa de Rui Barbosa, Editora UFMG, Edições Sesc SP e Ubu Editora, 2016)

Meu texto foi publicado originalmente na revista eletrônica Achegas, onde ainda se encontra, neste link: http://www.achegas.net/numero/nove/paulo_almeida_09.htm
Paulo Roberto de Almeida

UM TOCQUEVILLE AVANT LA LETTRE:
Hipólito da Costa como founding father do americanismo

Paulo Roberto de Almeida *

O francês Alexis de Tocqueville é geralmente considerado como um dos founding fathers da moderna ciência política, assim como dessa vertente especial das ciências sociais (que usualmente adota o método comparativo, mesmo se de forma inconsciente), voltada para o estudo das formações nacionais, no seu caso o “americanismo”. Com efeito, seu De la démocratie en Amérique tornou-se um clássico praticamente desde a publicação de sua primeira parte, poucos anos depois de sua viagem exploratória ao novo mundo, em 1831-32, a ponto de suscitar as maiores expectativas quanto à divulgação da segunda parte, vários anos depois. Esse trabalho sobre os fundamentos sociais da igualdade na jovem nação americana granjeou-lhe uma reputação de primeira grandeza, não apenas em sua França natal (onde ele logo galgou os degraus da Academia), mas igualmente nos países anglo-saxônicos.
Poucos sabem, no entanto, que uma geração antes de Tocqueville, Hipólito José da Costa, muito antes de se estabelecer na Inglaterra, fugindo da Inquisição portuguesa, e de ali editar seu Correio Braziliense, viajou pela costa leste dos Estados Unidos, tendo deixado um pouco conhecido Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799, encontrado inédito na Biblioteca de Évora por Alceu Amoroso Lima e publicado pela Academia Brasileira de Letras em 1955. Não se tratou, propriamente, de um estudo de especialista, uma vez que o jovem (24 anos) português nascido na Colônia do Sacramento, criado no território do Rio Grande do Sul e formado em Coimbra, viajou a serviço do cortesão dom Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares, futuro ministro dos negócios estrangeiros, tendo produzido um relatório específico e detalhado sobre suas observações agrícolas, industriais e botânicas nos Estados Unidos.
Tratou-se, contudo, da primeira obra sobre os Estados Unidos escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia lusitana da América as espécies vegetais e animais e aqueles melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o engrandecimento de sua pátria de fato. Não destinado à publicação, mas sumamente adaptado ao formato do ensaismo bem informado, seu Diário poderia ser comparado, sem nenhum deslustro, a uma espécie de Baedecker de alto vôo, um ensaio intelectual que ainda hoje surpreende pela pertinência e acuidade das observações sociológicas, bem como pela atualidade dos seus julgamentos certeiros, a começar pelos hábitos e características da população, pela proliferação de sua “indústria religiosa” e por uma certa “rusticidade” de sua classe dirigente.
Recém formado em direito por Coimbra em meados de 1798, Hipólito José da Costa recebe do conde de Linhares, menos de três meses depois, o encargo de fazer no território da América do Norte (Estados Unidos e México) o que se poderia designar, na moderna linguagem dos negócios, de comissão de prospecção econômica. Grande estadista português da transição para o século XIX, dom Rodrigo de Souza Coutinho ostentava uma concepção essencialmente econômica da administração pública, preocupando-se com a agricultura, o comércio, a gestão financeira e as novas práticas industriais. Foi provavelmente Linhares quem inculcou em Hipólito o gosto pelas questões econômicas, inclinação que ele manteve durante toda a sua vida, aliás revelada de maneira cabal nas páginas do seu “armazém literário”. Com efeito, a rubrica “commercio” (geralmente acompanhada das “artes”) vinha logo após a importante seção inaugural dedicada à política. Tão pronunciada era a tendência de Hipólito pelo estudo das questões econômicas que, em 1819, já no auge de sua carreira jornalística, ele protestava solenemente contra a velha proibição dos estudos de economia política na Universidade de Coimbra (“Os estudos de Economia Política são proibidos na Universidade de Coimbra e não sabemos que haja no Reino escolas em que se aprendam”; cf. Correio Braziliense, janeiro de 1819, vol. XXII, p. 84, citado por Mecenas Dourado, Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense”, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1957, tomo I, p. 44).
Na verdade, a missão nos Estados Unidos comportava um caráter sobretudo técnico, mais do que de prospecção de mercados ou de incentivo ao comércio. Tratava-se de levantar os recursos naturais e apreciar os conhecimentos científicos que a jovem nação independente da América do Norte mobilizava em sua marcha ascensional para o progresso econômico. Em outros termos, o encargo comportava também aspectos que hoje em dia poderiam ser equiparados à “espionagem industrial ou tecnológica”, numa etapa histórica na qual os direitos de propriedade intelectual não desfrutavam da mesma proteção absoluta como na atualidade. O futuro “pai da imprensa” brasileira estava amplamente habilitado para fazê-lo, uma vez que, ademais dos conhecimentos práticos aprendidos em sua vida de fazenda no Rio Grande, ele tinha sido formado em outras matérias que simplesmente filosofia e direito. Os estudos de filosofia em Coimbra comportavam, precisamente, o ensino de botânica, agricultura, zoologia, mineralogia, física, química e mineralogia, artes e disciplinas nas quais também se destacava o futuro “pai da independência”, José Bonifácio, freqüentador das academias européias.
Quando Hipólito partiu para os Estados Unidos e o México, no final de 1798, ele era, portanto, nada mais do que um recém formado, alguém que de certa forma completou seu “mestrado” numa missão de trabalho, mais do que na forma de estudos suplementares, virtualmente inexistentes aliás. As instruções de Linhares eram no sentido de se obter informações as mais detalhadas possíveis sobre todos os progressos havidos na América do Norte nos terrenos das artes práticas, das culturas agrícolas e dos ofícios ligados ao fabrico e manufatura de bens em geral, complementando a missão pelo encargo de recolher as espécimes e variedades de plantas e cultivos que se pudessem aproveitar em Portugal e na colônia brasileira. Nos Estados Unidos atenção especial deveria ser dada ao cultivo do tabaco, então concentrado em Maryland e na Virgínia, ao passo que no México, ademais de observar as minas de ouro e prata, a instrução essencial era a de lograr subtrair o inseto e a planta da cochinilha, iludindo a vigilância rigorosa das alfândegas espanholas. De tudo, Hipólito deveria mandar relatórios circunstanciados, o que ele obviamente fez de maneira rigorosa, ao despachar notícias teóricas e comentários práticos sobre tudo o que viu e ouviu em sua longa estada naquelas partes, nos anos finais do século XVIII.
Nos Estados Unidos, Hipólito teve de, algumas vezes, fazer-se de diplomata, mesmo sem autorização para tanto ou diploma legal, por motivo da ausência do representante português, ministro Cipriano Ribeiro Freire. Mais importante do que esse exercício episódico de diplomacia, de fato mais bem em encargos consulares, foi a provável adesão de Hipólito, nessa estada, à maçonaria, possivelmente mais relevante na determinação de seu futuro destino político do que a missão de “espionagem industrial” pela qual iniciava sua vida profissional. Em todo caso, sua prospecção técnico-científica na América do Norte poderia ser também aproximada de uma missão de diplomacia econômica, não no sentido negocial, mas no de uma “embaixada” voltada para a informação a mais ampla possível sobre as capacidades naturais e os atributos humanos de uma potência amiga, como forma de habilitar a sua pátria (e a sua terra de formação) a competirem em melhores condições no grande jogo econômico das indústrias e do comércio que Linhares adivinha formavam a base da potência das nações.
Nessa missão Hipólito conheceu artesãos, cientistas e agricultores, ademais do futuro, Thomas Jefferson, e do então presidente dos Estados Unidos, John Adams, cuja informalidade e falta de protocolo surpreenderam um pouco o súdito de uma monarquia absoluta, rigorosa com o cerimonial. Seu “diário de viagem” não é uma simples coleção de observações naturalistas e agrícolas, pois que Hipólito tece considerações extensas sobre as religiões dos americanos e, mais importante, sobre questões econômicas e monetárias. Não deixou de notar a preferência dos americanos pelo comércio, mais que pela agricultura, e o seu gosto acentuado pela especulação, sendo o dinheiro um valor absoluto naquela sociedade. Já naquela época, os bancos emprestavam facilmente, acima das posses reais, animando os empreendimentos e facilitando as especulações mercantis, muito embora no interior do país a falta de dinheiro condenasse os produtores muitas vezes ao escambo. Ele observou, também, as tendências a falências abruptas e a uma mobilidade excepcional nos negócios, traços que ainda hoje marcam a modalidade peculiar do capitalismo americano. Como se vê, nada de muito novo em termos de funcionamento do sistema econômico, particularmente no que toca a “infectious greed” (apud e copyrightAlan Greenspan) que não parece ter contaminado apenas recentemente os executivos das empresas americanos.
Os Estados Unidos do final do século XVIII estavam obviamente longe de se constituírem em uma sociedade industrial e, de fato, eles se tornaram a primeira potência econômica do planeta apenas no final do século XIX, quando ultrapassaram o volume da produção industrial combinada da Grã-Bretanha e da Alemanha. Naquela conjuntura, os fluxos de comércio, as inovações técnicas e as finanças internacionais ainda eram dominados pelos países mais avançados da Europa, mas o “modo inventivo” americano já exibia todas as características sociais e financeiras que converteriam o país de uma sociedade agrária em potência industrial. Ainda que não descritas com tal estilo “sociológico” em seu diário de viagem, essas características empíricas da sociedade americana – mais do que qualquer teoria econômica ou doutrina comercial, das quais os EUA continuariam, aliás, sendo importadores líquidos pelo resto do século XIX – devem ter impressionado a mente do jovem Hipólito, determinando muito de suas reflexões pragmáticas posteriores sobre os problemas econômicos, comerciais e monetários “brazilienses”.
Lido à distância de mais de dois séculos, não tanto pela sua forma, mas pelo conteúdo efetivo, o Diário de Viagem de Hipólito sustenta muito bem a comparação com o bem mais cuidadosamente elaborado ensaio de Tocqueville, este sim feito para expor aos franceses os contornos sociais e políticos do imenso laboratório humano e societal que então constituía a América do Norte. Justamente por não pretender, primariamente, à divulgação, as anotações e observações de Hipólito adquirem um caráter de ensaísmo sociológico avant la lettre, possuindo todos os requisitos literários para figurar como obra fundadora do americanismo brasileiro, e quiçá universal. Seu diário é uma mina de boas trouvailles e de desconcertantes antecipações da sociedade americana, numa espécie de “planejamento utópico do futuro” (a expressão pertence ao filósofo da história Reinhart Koselleck) que confirma, também por antecipação, a densidade analítica e o gênio de “escrevinhador” do futuro jornalista (aliás único) do Correio Braziliense.

Recomendação de leitura:

Hipólito José Costa, Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799. Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955. O livro possui uma segunda edição (Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1974), mas mereceria, de todo modo, ser traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos. Como a Embaixada do Brasil criou, juntamente com as editoras das universidades de Duke e Carolina do Norte, uma coleção Brasiliana, destinada a facilitar a tradução e a publicação de títulos brasileiros naquele país, trata-se de uma mais que bem-vinda sugestão para inclusão nesse empreendimento editorial conjunto.

Resumo:
Ensaio sobre o "Diário de Minha Viagem para a Filadélfia, 1798-1799", de Hipólito José da Costa, mostrando suas características pioneiras de primeira obra representativa do americanismo brasileiro.

Palavras-chave: Imprensa, pioneirismo, americanismo.

* O autor é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas. Mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia. Diplomata, Professor do Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores. Autor de Formação da Diplomacia Econômica no Brasil (Senac, 2001) e diversas outras obras de relações internacionais e política externa do Brasil.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Marx e o fetiche do capital: alguem ainda ousa ler o catatau? - Paulo Roberto de Almeida

Em 2018, muita gente vai comemorar os 200 anos do nascimento, em Trier, de um dos maiores intelectuais do século XIX (mas virtualmente desconhecido em seu próprio século) e um dos filósofos sociais que mais influenciaram sindicalistas, líderes políticos, militantes de movimentos revolucionários e acadêmicos em geral, no século XX, podendo ser considerado um dos mais importantes inspiradores de revoluções, lutas políticas e medidas econômicas tomadas por seus seguidores ao longo desse século, desde Lênin, em especial, passando por Trotsky, Stalin, Mao e outros tantos, que todos eles produziram catástrofes e mortandades inimagináveis, até mesmo para seus piores inimigos, como podem ter sido os líderes de movimentos fascistas na mesma época (como podem ter sido Mussolini, Hitler, e alguns outros de menor importância).
Karl Marx foi o mais poderoso filósofo social do século XX, embora tenha sido um péssimo economista, pois conseguiu formular as bases (muito vagas, por sinal) de um sistema que fracassou sob todos os critérios, e que só produziu fracassos produtivos, miséria, desigualdades sociais (tudo ao contrário do que os marxistas prometiam), terminando por provocar a derrocada econômica de todos os países que pretenderam seguir suas "recomendações econômicas" (sem mencionar a opressão, a repressão e o regime de escravidão moderna criada por esses regimes socialistas).
Tendo sido marxista em minha juventude -- e posso assegurar que li quase toda a obra do barbudo de Trier -- mas retificado minhas concepções econômicas, políticas e sociais ao aprofundar leituras e, sobretudo, ao visitar TODOS os socialismos existentes, dos reais aos surreais e aos mais esquizofrênicos, comecei a analisar a obra marxiana e formular minhas sínteses interpretativas, de maneira a poupar esforço e equívocos a muitos jovens que são literalmente seduzidos por professores ignorantes ou desonestos, que ou não leram a obra de Marx, ou leram vulgatas e não sabem sequer analisá-la criticamente.
O trabalho abaixo, escrito vários anos atrás, permanece válido, uma vez que se trata de uma análise da principal obra do grande revolucionário equivocado.
Paulo Roberto de Almeida

Revista Espaço Acadêmico n. 83, Abril de 2008
ink: http://www.espacoacademico.com.br/083/83pra.htm

O fetiche do Capital

por Paulo Roberto de Almeida

Alerto, desde o inicio, que o Capital a que me refiro no título (em itálico, por favor) é mesmo a obra preferida de marxistas e marxianos, o magnum opus de Karl Marx, tão cultuado quanto pouco lido desde sua edição original (em 1863). A pergunta se coloca: por que voltar agora a essa obra vetusta, quase gótica, stricto et lato sensi, objeto de controvérsias desde sua primeira versão, que coroa e anuncia as teorias da mais-valia, sobre as quais Marx trabalhou durante anos seguidos, sem jamais dar forma final à obra que ele estimava – como seus seguidores e admiradores – como o desvendamento definitivo do funcionamento do modo de produção capitalista?
Existiriam muitas razões, nenhuma delas voltada para a explicação própria dessa obra, o que  já foi feito e que continua a ser feito pelos já referidos apreciadores do seu autor. Pretendo, de meu lado, dirigir-me a uns poucos leitores, provavelmente estudantes universitários em sua maior parte, alguns professores idem, e talvez um ou outro dos curiosos que circulam em sites e revistas digitais. Minha razão de voltar a escrever sobre esse tema recorrente tem a ver com o que poderia ser chamado de “economia política” da formação intelectual, ou, mais prosaicamente, com a simples economia do estudo acadêmico. Gostaria de livrar uns e outros de um fetiche que se tornou regular e inseparável de certa cultura universitária, que normalmente se pretende séria e respeitável.
Tenho reparado, pela minha freqüentação de listas de discussões e pela leitura de sites acadêmicos que professores universitários brasileiros continuam a insistir com seus alunos na leitura do Capital, leitura que é feita sempre parcial e truncadamente, pois que não concebo um estudante “normal” de nossas instituições de ensino superior mergulhando na leitura sistemática dos três livros do Capital (e mais quatro sobre a Teoria da Mais-Valia), sem correr seriamente o risco de ser reprovado nas demais matérias por falta de estudo, o que seria a suprema ironia.
Alerto, também desde o início, que não tenho nada contra a leitura do Capital, sempre bem-vinda e interessante quando se dispõe de tempo e do lazer necessários a um mergulho na história das idéias econômicas do século XIX. A questão é que raramente esse estudo é feito nas disciplinas de história do pensamento econômico ou de história das idéias, como deveria ocorrer. Ele é mais freqüentemente conduzido nas aulas de sociologia ou de teoria social, quando não nas de história contemporânea. Mais usualmente ainda, esse estudo é empreendido como atividade paralela aos programas oficiais e à margem das disciplinas nas quais se encontram engajados seus promotores e coordenadores. Tudo, ao que parece, com o objetivo de unir filosofia e praxis (apud Feuerbach).
Seria excelente se esse exercício fosse feito com o espírito crítico que se espera de todo e qualquer professor universitário, comparando teorias de autores diversos, confrontando explicações sobre o mesmo objeto e avançando o conhecimento até o estado recente da literatura em torno da problemática em questão, qual seja, a história do surgimento e do desenvolvimento do modo de produção capitalista e seus efeitos sociais de mais amplo escopo. É menos louvável quando esse estudo tende a se aproximar de equivalentes universitários de cultos esotéricos, nos quais o respeito pela palavra do profeta acompanha uma admiração beata pelas suas revelações geniais e a virtual impossibilidade, daí decorrente, de contestar o conteúdo e a forma do “livro sagrado”.
Tenho observado, em meus contatos, que alguns professores, que certamente recomendam a leitura do Capital aos seus alunos, continuam a manter uma deferência quase religiosa em relação à obra considerada máxima de Marx, atribuindo-lhe poderes extraordinários de não apenas explicar o modo de funcionamento do capitalismo do século XIX, mas praticamente o dos nossos dias, numa admiração acrítica que beira a ingenuidade. Raros, no entanto, são aqueles que ultrapassam as primeiras cem páginas do Capital, dedicada à análise da mercadoria, considerada o símbolo do dito modo de produção. A razão me parece ser simplesmente esta: o Capital é uma obra pesada, gótica, rebuscada, dotada de enorme dispersão analítica e inúmeras regressões históricas, em meio a seus objetivos pretendidamente sistemáticos.
Essa constatação já tinha sido feita mais de um século atrás por um estudioso dos sistemas socialistas: “A falta de unidade [do Capital] é evidente: o autor vê claramente o objetivo que ele quer atingir, mas não consegue ver tão claramente o caminho que o conduz a esse objetivo; ele tenta vários e quando vê que um desses o conduz a resultados fora da realidade, ele toma outros, muitas vezes oposto ao primeiro, sem ao menos se preocupar com as contradições que dai resultam. Como os fiéis de Marx não admitem que o autor possa carecer de lógica ou de conhecimentos científicos, essas contradições não os chocam absolutamente; ao contrário, eles admiram os mistérios profundos e sublimes que o sistema certamente contém” (Vilfredo Pareto, Les Systèmes Socialistes; 2a. ed.; Paris: Marcel Giard, 1926, tomo II, p. 342). Pareto confirma que Marx inovou a antiga economia política bem mais quanto à forma, do que em relação ao conteúdo: “É claro que não pretendemos acusar Marx de ter voluntariamente alterado a realidade; mas, como outros autores que defendem passionalmente uma tese, ele foi levado, provavelmente sem ter consciência disso, a escolher seus argumentos não em virtude, exclusivamente, da dose de verdade intrínseca que eles poderiam conter, mas em virtude das vantagens que deles poderia extrair para a sua tese” (idem, p. 351).
Esta pode ser uma razão simplesmente formal, ou estilística, mas que deve contribuir para o alto grau de “desistência” na continuidade de sua leitura. (Parênteses: gostaria de conhecer, por favor, o grupo ou um simples aluno que conduziu esse exercício até o fim, isto é, a leitura completa, do primeiro volume ao menos, do Capital.) As razões mais importantes da descontinuidade e da pouca relevância desse tipo de empreendimento se situam, porém, na estrutura interna da obra e sua organização quase “literária”, quando pretende ser uma obra de economia política, ou melhor, de crítica à economia política de seu tempo. Ao empreender a confecção dessa obra, que consumiu, conforme ele mesmo, quarenta anos de uma vida de estudos, Marx pretendia elevar a economia política do seu tempo à categoria de análise “científica”, armado metodologicamente de seu instrumental dialético que ele pretendia pós-hegeliano, ou seja, não idealista. Todos aqueles que já penetraram nos arcanos do Capital – e do capital – sabem que muito de sua argumentação se desenvolve em torno das “contradições” da produção capitalista, da oposição das “relações de produção”, do caráter inconciliável entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação do produto. O capital, em Marx, é o deus ex machina da sociedade burguesa moderna.
Mais importante ainda, Marx pretende explicar o “segredo” do modo de produção capitalista pelo processo de extração de mais-valia, que para ele resume o essencial das contradições que presidem à realização histórica do capital. Todos aqueles que já leram o Capital sabem que, para Marx, o trabalhador – sinônimo de operário de fábrica, o que já é um reducionismo inaceitável levando-se em contra a complexidade e a diversidade das formas concretas de organização social da produção – produz o valor de sua força de trabalho em uma parte, apenas, de sua jornada de trabalho, sendo o trabalho restante apropriado pelo capitalista, em proporções variáveis segundo a composição do capital (fixo, ou constante, e variável, sendo este o determinante da taxa de extração da mais-valia). Trabalho necessário e trabalho excedente (ou sobre-trabalho) representam, para Marx, a explicação-chave e a expressão exata do grau de exploração da força de trabalho pelo capital (ou do trabalhador pelo capitalista). Os já convencidos exultam com essa “explicação”.
Este é, em resumo, o ciclo do capital, todo o resto da economia política marxista sendo uma derivação – histórica ou funcional – dessa relação fundamental. Pela adesão incondicional à teoria do valor trabalho, Marx filia-se à corrente clássica da economia política, mais especificamente a David Ricardo, de quem é o herdeiro direto, ainda que renegando o caráter “não científico” de suas idéias. Marx apoiava sua análise numa rica exposição de fatos – muitos deles tirados de relatórios oficiais do governo britânico – mas os generalizava, para deles extrair conclusões esquemáticas, pré-determinadas, segundo as quais o capitalismo, pelas contradições internas, inevitáveis, seria inapelavelmente suplantado e substituído pelo socialismo, um modo de produção superior, capaz de reconciliar o caráter social da produção e extração de mais-valia com sua distribuição “eqüitativa”. Como ele diria mais tarde, na crítica ao programa de Gotha da social-democracia alemã, “de cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades”, uma frase tão tautológica do ponto de vista das premissas socialistas sobre as quais se apóia, quanto praticamente inaplicável no plano da economia real. (Novo parênteses: antes de alguém pretender criticar a minha crítica, desafio qualquer um a definir o que são necessidades humanas e como quantificar sua exata necessidade na esfera individual.)
Não é preciso, neste momento, desmontar os equívocos do profetismo marxiano sobre a crise e auto-destruição final do capitalismo, uma visão messiânica que transforma seu socialismo pretendidamente científico em algo semelhante a uma teleologia social, isto é, uma história com um curso pré-determinado (conduzindo inevitavelmente à derrocada do capitalismo e sua substituição pelo socialismo). Quando da publicação da Origem das Espécies, de Darwin, no final dos anos 1860, Marx chegou a acreditar, durante um momento, que a teoria darwiniana da seleção natural poderia oferecer um suporte biológico para sua visão determinista sobre o curso da história como o desenvolvimento da luta de classes, mas, em vista da natureza aberta da teoria de Darwin – com os impulsos aleatórios do ambiente externo, como mudança climática ou migração de espécies – ele se decepcionou com o “parentesco” e veio a apoiar outras teorias (equivocadas) que viam no itinerário da raça humana a marca inelutável do progresso linear em direção ao futuro.
No que se refere especificamente ao método de Marx, basta indicar as contradições do seu próprio raciocínio “econômico”, incapaz de conciliar os dados da realidade com sua fórmula sobre a origem do valor e a extração de mais-valia. A teoria do valor-trabalho é um verdadeiro axioma no pensamento econômico marxista, que no entanto não consegue fundamentar o valor do trabalho na velha lei da oferta e da procura, como sempre feito na teoria econômica. Todo o desenvolvimento ulterior da economia dispensou facilmente as esquemáticas construções marxistas, em prol da realidade da “lei do valor burguesa”, ou seja, o equilíbrio entre oferta e demanda. Pareto ironizou: “Assim, abandonando a lei da oferta e da demanda, nós [isto é, Marx] tínhamos começado por afirmar que o valor era apenas trabalho cristalizado; mas, depois de muitos zigzags nós voltamos a essa lei, e nossa [de Marx] teoria se resume a dizer que o valor é medido pelo trabalho, à condição que as condições colocadas pela lei da oferta e da procura sejam satisfeitas” (idem, p. 358).
Tampouco seria preciso tecer considerações muito longas sobre suas “leis da concentração da produção”, que Marx confundia com a expansão do patrimônio da burguesia, que para ele estaria na origem da derrocada final de todo o sistema. Não é que a história se desenvolveu de modo diverso ao previsto por Marx: é que em sua própria época, o sistema não funcionava segundo o seu modo de análise, indiferente que era à diversidade dos “modos de produção” mercantis, e a toda uma série de atividade intermediárias que Marx considerava simplesmente improdutivas. As falhas propriamente econômicas da análise marxiana do capitalismo são ainda mais significativas do que seus equívocos de previsão quanto ao desenvolvimento futuro do sistema. Enfim, basta com dizer que a validade de sua “economia política” para a economia atual – e mesmo aquela de sua época – é propriamente marginal, senão próxima de zero, tendo apenas validade relativa para uma descrição (em tons apopléticos) da miséria humana sob as condições do capitalismo manchesteriano de sua época (que ele conheceu, aliás, bem mais pela obra de seu amigo Engels do que diretamente).
Em vista do que precede, tendo a considerar esses convites feitos a alunos das humanidades para integrar grupos de leitura do Capital como uma incitação à auto-flagelação, ou como uma forma atenuada de tortura intelectual. Não que eles não possam tirar benefícios intelectuais desse tipo de exercício, uma vez que a leitura de Marx é sempre estimulante (embora, para alguns, ela é mais bem “embriagadora”). O lado menos interessante da história se deve ao fato de que a leitura não está propriamente sendo feita para o enriquecimento do conhecimento histórico sobre as idéias e teorias em curso no momento da transição entre a economia política clássica e a neoclássica, mas em completo isolamento dessas correntes de pensamento, numa espécie de “ilha marxista” que tenta   preservar a pureza dos argumentos originais, uma conservação em formol de um conjunto de análises ultrapassadas – quando elas já não eram defasadas em sua própria época – quando não completamente equivocadas quanto à natureza do sistema capitalista e seu modo de funcionamento.
O Capital, desse ponto de vista, assemelha-se a outro ícone do socialismo redivivo, um cadáver de Lênin em seu mausoléu kitsch, aguardando um julgamento menos religioso por parte de seus cronistas e historiadores. O fetiche da leitura do Capital aparece, assim, como um produto típico da cultura universitária, que, tomada nesse tipo de dimensão mística de seus desdobramentos modernos, se converte rapidamente em mecanismo de alienação coletiva, aliás um conceito típico do marxismo universitário derivado da Escola de Frankfurt, a partir da leitura da Ideologia Alemã e dos Manuscritos Econômico-Filosóficos.
Os professores que pretendem dar “aulas” – ou até cursos inteiros – sobre esses textos sagrados do marxismo fossilizado não estão de fato participando de um grande esforço intelectual inserido num estudo de história das idéias, mas, sim, isolando os demiurgos numa torre de marfim reconstruída para suas necessidades políticas imediatas e, a partir de suas preleções vitriólicas sobre  o caráter iníquo do capitalismo, pretendendo fundar uma ação política contemporânea na qual o que menos se requisita é pensamento crítico, e sim a fé inquestionável nos escritos fundadores. Desse ponto de vista, eles não são propriamente professores, e sim sacerdotes de uma religião laica, que pode até não ostentar diferenças notáveis, no plano conceitual, com suas expressões correntes no mundo litúrgico. Como anuncia o panfleto de um desses cursos de leitura das obras sagradas, “o pensamento dos dois grandes filósofos, Marx e Engels, se mantém vivo e atual”. Ou seja, não se trata de inseri-los nas correntes de sua época e confrontar o que, de fato se mantém vivo, na obra de dois demiurgos da catástrofe capitalista, mas sim de repetir, como num catecismo, os trechos mais eloqüentes de uma verborréia barroca, que encanta até hoje os inimigos do capital (e amigos do Capital, embora a leitura desta obra não esteja contemplada no curso).
O patético nessa história toda não é exatamente a leitura do Capital ou de qualquer outra obra do repertório sagrado do marxismo clássico; o triste, ou lamentável, é fazê-lo encerrado numa camisa-de-força intelectual que comanda ao leitor não ir além da própria obra e do autor estudado, eventualmente recorrendo a outras obras, de outros estudiosos, que poderiam estar em contradição com as idéias de um pensador que afirmava, justamente, ser a favor do movimento constante de idéias, como recomendado em seu método “ dialético”. Nesse sentido, a leitura do Capital deixou de ser um convite ao diálogo com todos os autores citados, comentados ou criticados por Marx, e limita-se a ser uma admiração beata de uma obra tomada isoladamente. Não há melhor definição para a palavra fetiche.