Vou dar início a uma série de dez artigos sobre o regime militar inaugurado em 1964 e sobre a luta armada que se desenvolveu na sua sequência, segundo o esquema abaixo.
O regime militar e a
oposição armada:
um retrospecto histórico, por
um observador engajado
Paulo Roberto de Almeida
Sumário:
1. Antecedentes e contexto do golpe militar de 1964
(ver neste link)
2. A reação dos perdedores: resistência política e luta armada
(ver neste link)
3. A passagem à luta armada: a insensatez em ação
(ver neste link)
4. A derrota da luta armada e suas consequências: uma história a ser escrita
(ver neste link)
5. O que foi a luta armada no Brasil: uma interpretação pessoal
(ver neste link)
6. Quando a luta armada se desenvolveu no Brasil?
(ver neste link)
7. Onde a luta armada se desenvolveu no Brasil?
(ver neste link)
8. Como a luta armada se desenvolveu?
(ver neste link)
9. Por que houve luta armada no Brasil?
(ver neste link)
10. Uma avaliação pessoal da luta armada e suas consequências atuais
1. Antecedentes
e contexto do golpe militar de 1964
O Brasil do início dos
anos 1960 enfrentava uma típica crise de instabilidade do sistema político, não
muito diferente de dezenas de outras, que surgem, se desenvolvem e desaparecem
em quaisquer outros sistemas políticos, especialmente na América Latina. Desde
meados dos anos 1950, a classe política, extremamente dividida quanto a
soluções consensuais típicas de países em crescimento – inflação, gastos do
governo, tributação, reformas estruturais e administrativas, etc. – não
conseguia encontrar mecanismos democráticos para encaminhar as pressões do
crescimento e das demandas por participação popular. Daí o velho recurso e o
apelo dos políticos aos militares, como “pesos decisivos” na balança política,
para “corrigir os problemas”.
De fato, os militares tinham
uma longa tradição de intervenção nos assuntos políticos, desde o próprio golpe
de derrocada da monarquia e de proclamação da República, até as crises
político-militares dos governos JK e Jânio Quadros, passando pelas revoltas
tenentistas dos anos 1920, pela revolução que derrubou a Velha República, pelo
golpe que instaurou a ditadura do Estado Novo, em 1937, e também pelo que
determinou sua extinção, em outubro de 1945. Depois, eles foram ativos
participantes dos diversos episódios de turbulência da República de 1946, em
especial em meados dos anos 1950, até culminar na implantação do
parlamentarismo, em 1961, no bojo de nova crise, e na derrubada dessa República,
menos de três anos depois.
Desde meados da década
anterior, nos estertores do segundo governo Vargas, o Brasil vivia em
permanente crise político-militar, agravando-se as turbulências no início dos
anos 1960 em função do comportamento bizarro do presidente eleito Jânio Quadros
e da momentosa posse do vice-presidente (eleito pela chapa concorrente) João
Goulart. A situação, durante os seus três anos de mandato (primeiro em regime
parlamentarista, depois no retorno ao presidencialismo), se caracterizava por
constantes greves, inflação crescente, quebra de autoridade em diversas
instâncias do poder estatal, inclusive no âmbito das Forças Armadas, e intensa
radicalização política por parte dos movimentos que pretendiam para o Brasil
opção semelhante à dos países comunistas, indo até, em certos meios, à
preparação para a guerrilha rural, em moldes cubanos ou chineses.
O movimento civil-militar
– não lhe cabe o nome de golpe, nem de revolução – que derrocou o regime da
República de 1946 representou apenas o ponto culminante dessa fase de crise
aguda, não sendo nem o resultado de uma conspiração organizada pela direita e
pelas elites – como pretende a esquerda – nem o acabamento de algum desígnio
imperial no contexto da Guerra Fria – como pretendem os paranoicos
anti-imperialistas e antiamericanos das mesmas correntes. Ele ocorreu porque
grande parte da sociedade, representada majoritariamente pela classe média,
demandava uma solução aos descalabros administrativos, à corrosão do poder de
compra, ao clima de desordem política, à percepção do aumento da corrupção que
caracterizavam o governo Goulart.
Talvez os militares
devessem ter aguardado as eleições do ano seguinte, e ter apostado numa solução
democrática em face desse quadro turbulento, mas o fato é que o agravamento da
situação induziu algumas lideranças civis e militares a atuarem de imediato
contra o governo, sem que a necessária coordenação de todas as forças políticas
se fizesse num sentido mais consentâneo com a legalidade constitucional.
Existem momentos na história de um país nos quais a população decide assumir
ela mesma as atribuições de um poder constituinte originário; foi o que parece
ter ocorrido em março de 1964, quando a grande maioria da população brasileira
secundou e se solidarizou com as Forças Armadas que assumiram o comando
involuntário daquele movimento. A história poderia ter sido outra, mas ela é o
que é: incontrolável.
A historiografia
brasileira ainda se divide quanto à natureza do golpe, suas origens políticas,
suas raízes sociais, suas justificativas econômicas ou geopolíticas, sobre o
envolvimento dos Estados Unidos no evento, segundo se é contra ou a favor em
relação a esse evento decisivo no Brasil moderno. A esquerda, obviamente,
interpreta o golpe militar como o avanço das forças reacionárias, alinhadas ao
imperialismo, contra a ascensão dos “movimentos populares”, em favor de
reformas democráticas; ela nunca mudou de opinião a esse respeito, o que denota
certa incapacidade a revisar suas próprias concepções e caminhar em direção de
uma interpretação mais objetiva.
Os que apoiaram e comandaram o golpe, o veem
como uma reação às forças comunistas que ameaçavam tomar o poder para colocar o
país na esfera do movimento comunista internacional, liderado pela URSS. No
caso do Brasil, curiosamente, as forças de “direita” ganharam, mas a História
foi escrita pela “esquerda”, no sentido em que todo o processo político que
levou às crises político-militares dos anos 1954-1964 e ao próprio golpe e seus
efeitos mediatos e imediatos foram e são interpretados segundo a ótica dos
“perdedores”, que, aliás, ascenderiam ao poder em 2003. De fato, o Brasil
constitui um caso único de construção de um discurso histórico – e de vários
outros padrões culturais – no qual a linha condutora veio a ser quase
inteiramente dominada e controlada pelas forças, basicamente socialistas, que
não tiveram o apoio da sociedade, seja nos momentos de crise política aguda, ou
como projeto de organização econômica e social suscetível de recolher o apoio
eleitoral da grande massa da população.
(continua...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário