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terça-feira, 28 de outubro de 2014

Educacao no Brasil: como vai essa coisa? - um texto de 2007, Paulo Roberto de Almeida

Um leitor da pré-história -- quero dizer, de textos antigos meus -- mencionou recentemente um texto que, mostrado por ele a alunos de seu curso, provocou em um deles (provavelmente um companheiro convencido de suas boas razões) a mais violenta reação. Talvez por eu desmantelar algumas de suas crenças mais bem fundados no acertado da educação companheira.
Alertado disso, fui buscar o texto em questão para saber se o aluno em questão teria mesmo motivos para se mostrar tão horrorizado.
Confesso que não sei, pois não reli ainda esse texto, que transcrevo abaixo. Vou reler em seguida, mas alerto que ele já SETE anos, e suponho que a situação, desde então, só fez piorar.
Duvidam? Basta conferir notas de ENEM, ENAD, provas do PISA e outros referenciais sobre a qualiadade (ou falta de) da educação brasileira.
A situação é muito pior, mas muito mais pior, como diria alguém, do que sequer poderíamos imaginar.
Paulo Roberto de Almeida

O afundamento da educação no Brasil
(observações angustiadas do ponto de vista dos estudantes)

Paulo Roberto de Almeida

É uma obviedade, quase uma tautologia, aos olhos de qualquer pessoa medianamente bem educada, afirmar-se que a educação constitui um elemento essencial na qualificação produtiva e na prosperidade de qualquer país, avançado ou em desenvolvimento. Ela constitui, também, o principal fator de inserção nos mercados de trabalho, no plano individual, e um elemento chave do perfil distributivo nacional, quando se considera a repartição social da renda.
Parece haver um acordo tácito na sociedade quanto a isso. Mas esse consenso é falso. Não existe terreno comum entre duas abordagens opostas quanto ao papel da educação no processo de desenvolvimento. O Brasil constitui uma prova viva disso. O desentendimento começa no próprio enunciado das finalidades da educação, tal como expresso acima. De um lado, um grupo, mais identificado com os próprios educadores, considera que a educação tem um papel “libertador”, no plano pessoal, e que os indivíduos têm de ser educados numa visão humanista, acima e além das exigências “do mercado”, que no mundo capitalista pretenderia apenas, segundo representantes desse grupo, que a escola seja “produtora” de trabalhadores treinados para as empresas. De outro lado, pesquisadores identificados com o desempenho adequado do processo produtivo pretendem, justamente, que a mão-de-obra seja a mais qualificada possível, não apenas para atender às necessidades das empresas, mas também para melhorar os níveis de produtividade da economia como um todo, pois isto se traduziria em riqueza social e prosperidade para o país e para a sua população, com reflexos na distribuição de renda. Posso estar simplificando a dicotomia, mas ela representa, grosso modo, duas visões do mundo que parecem contrapor-se na atualidade.
Parece evidente, aos olhos de quem observa a realidade presente no Brasil, que os rumos da educação no país vêm sendo determinados pelo primeiro grupo, uma grande comunidade de trabalhadores dos setores público e privado, formada por burocratas do MEC, por pedagogos de várias afiliações, por professores, administradores, sindicalistas, pesquisadores ou por simples curiosos, sem contar os políticos e outros líderes comunitários que “vivem” da educação. Não é tampouco novidade para ninguém que a qualidade da educação no Brasil vem se deteriorando a olhos vistos nos últimos tempos. Pode ser que não exista nenhuma relação de causa a efeito entre essas duas realidades, mas o tema é suficientemente grave para merecer uma reflexão.
Tendo estas realidades em mente, pretendo tratar, neste texto, de alguns problemas atuais da educação no Brasil, com um enfoque ligeiramente negativo, ou razoavelmente pessimista como o próprio título deixa sugerir. Isto não deve causar espanto, uma vez que fazer elogios por algum sucesso não contribui em nada para a melhoria daquilo que está indo bem, apenas fazem com que os seus responsáveis se acomodem nas situações estabelecidas, deixando de introduzir as mudanças necessárias para que um desempenho determinado se dê de maneira ainda mais efetiva (pelo menos, até que alguma surpresa desagradável desponte no horizonte à frente). Apenas aprendemos com erros e fracassos, que nos ajudam a corrigir nossas insuficiências mais gritantes. O que me parece ocorrer atualmente, no caso da educação brasileira, é justamente um quadro de resignação e de acomodação com os péssimos resultados do setor, em vários níveis, evidentes em quaisquer tipos de medidas objetivas que possam ser feitas.
Não pretendo ocupar-me da educação superior, um setor bem conhecido dos leitores, pois todos eles são pessoas bem informadas, aliás, formadas e graduadas, razoavelmente conhecedoras da triste realidade pedagógica e da lamentável situação material que atinge, hoje em dia, a maior parte das IFES, em grande parte por sua própria incapacidade de reformar-se e de justificar repasses de recursos adicionais por parte dos poderes públicos. Tenho apenas uma palavra sobre elas, independentemente de que sejam públicas ou privadas: salvo poucas conhecidas exceções de praxe, a maior parte dessas instituições caminha rapidamente para uma decadência substantiva, digna de nota, visível, por exemplo, na disseminação de cursos de pós-graduação e de extensão, que tentam cobrir a posteriori as lacunas de uma graduação cada vez mais medíocre.
Pretendo tratar de três aspectos, apenas, que atingem os ciclos fundamental e médio do ensino básico no Brasil. Três exemplos de desperdício de recursos, de desorientação quanto aos objetivos fundamentais da escola, de desvio de finalidades educativas, de equívocos cruciais que podem comprometer ainda mais a qualidade do ensino e o funcionamento das instituições do ciclo fundamental, por anos e anos à frente. Esses três aspectos, que poderiam facilmente ser enquadrados naquilo que eu chamo de “teoria da jabuticaba” – para uma versão resumida deste “mal brasileiro”, ver este link: http://institutomillenium.org/2006/07/05/teoria-da-jabuticaba-ii-estudos-de-casos/ –, estão consubstanciados, respectivamente, na obrigatoriedade de ensino de temas afrobrasileiros e de espanhol, no ciclo fundamental, e de filosofia e de sociologia, no médio. Elas foram introduzidas a partir de 2003 e expressam de maneira fiel a “visão do mundo” a que me referi ao início deste ensaio. Esclareço que o meu ponto de vista é o dos estudantes.

1) Estudos afrobrasileiros
Considerando-se que a sociedade brasileira é extremamente diversa em sua composição étnica e em suas manifestações culturais, com intensa osmose entre suas comunidades imigrantes e um processo crescente de “cross-fertilization” – termo que se poderia aproximar de “fundição recíproca” –, qualquer tentativa de separar e apresentar como mais relevante, no plano histórico ou populacional, qualquer um desses componentes sociais equivale, à falta de melhor conceito, a uma tentativa de construção de um “apartheid” cultural e social, quando não diretamente racial.
Não encontro outro equivalente funcional para designar essa tentativa mal concebida, mal inspirada e, sobretudo, terrivelmente mal implementada no sentido de destacar nossas supostas raízes “africanas” no cadinho multicultural e multirracial brasileiro. Tendo já tratado em outro ensaio dos problemas acarretados pelo novo apartheid representado pela ideologia afrobrasileira (ver: http://www.espacoacademico.com.br/040/40pra.htm), não vou aprofundar a discussão de um problema que ultrapassa de muito a dimensão estrita de sua aplicação nas salas de aula do primeiro grau. Gostaria apenas de confirmar que vejo essa iniciativa funesta como uma semente de racismo e de intolerância, gerando possíveis distorções nos conteúdos curriculares, em função da manipulação anti-histórica que esse infeliz conceito é suscetível de receber por parte de seus promotores. Sem entrar em suas especificidades substantivas, é presumível que o conteúdo de tal “disciplina”, num país dotado de raras pesquisas de boa qualidade sobre a história da África ou seu possível legado transatlântico, sofra deformações de tal ordem por parte dos encarregados da matéria que o conteúdo será um arremedo de protesto social, eivado de ideologia antiescravista, com fortes colorações políticas e tênue embasamento histórico. Imagino que toda uma mitologia da resistência negra será igualmente servida a descendentes de colonos europeus, nas escolas do sul do país, sem que estes recebam sequer alguma informação sobre sua cultura “eurobrasileira”.
Os resultados, obviamente, não poderiam ser mais perniciosos do ponto de vista da boa formação escolar de crianças que teriam o direito de se considerar apenas brasileiras, sem outro prefixo falsamente identificador de alguma origem étnica ou geográfica. Não hesito em afirmar que tal iniciativa contribui poderosamente para a construção do racismo em nosso país.

2) Ensino de espanhol
Outro resultado de um equívoco fundamental – o de que o processo de integração será necessariamente beneficiado com o estudo obrigatório da língua espanhola para as crianças do primeiro grau –, essa medida unilateral, sem reciprocidade nos demais países da região (o português é ignorado nos currículos nacionais), vem acarretar apenas despesas adicionais sem que se antevejam resultados práticos, ou sequer “lingüísticos”, para o processo de integração. Este já padece de conhecida tendência à introversão e ao enclausuramento recíproco – quando o correto seria a abertura ao exterior e a utilização das complementaridades existentes para maior inserção no processo de globalização – e esse tipo de medida apenas reforça suas características “hacia adentro”. Como no caso dos estudos brasileiros, ela demandará a formação improvisada de centenas, ou mais provavelmente milhares, de mestres supostamente capacitados em “portunhol”, carregando ainda mais um currículo já penetrado por várias outras inutilidades “disciplinares”.
Supõe-se que um bom ciclo fundamental seja constituído de estudos de boa qualidade na língua pátria, na matemática elementar, nas ciências naturais fundamentais e nos estudos sociais básicos (história e geografia), apenas isto. Se alguma outra língua tiver de ser aprendida, nos primeiros anos de estudo, supõe-se que a escolhida seja a língua franca da ciência moderna e da globalização, isto é, a que mais usualmente é utilizada para pesquisa na internet, ou seja, inglês. A obrigatoriedade do espanhol servirá apenas para desviar recursos humanos e materiais voltados para a formação de primeiro grau, num país tão carente de ambos. Trata-se de um falso espírito integracionista e um equívoco educacional de conseqüências potencialmente danosas para seus supostos beneficiários. A integração regional, aliás, nunca padeceu de “déficit lingüístico”.

3) Sociologia e filosofia no ciclo médio
A aprovação dessa outra obrigatoriedade pelo Conselho Nacional de Educação, em 2006, foi saudada pelos sindicatos de professores e pelas associações profissionais da área como uma indiscutível vitória para a categoria. Pode até ser. O fato é que se trata de uma indiscutível derrota para os estudantes do ciclo médio, desde que se adote o ponto de vista dos próprios estudantes, é claro. Como isso nunca esteve em causa no tratamento da matéria, eles, que obviamente nunca foram ouvidos, verão reduzidos os horários alocados a outras disciplinas fundamentais para a sua formação, para acomodar as duas novas obrigatoriedades oficiais, que já eram facultativas numa infinidade de estabelecimentos escolares em todo o Brasil, segundo suas próprias conveniências.
O Brasil, como é sabido, adora criar obrigatoriedades no papel. O mesmo se dá, por exemplo, no caso da contratação obrigatória de “jornalistas” para qualquer empreendimento que se possa conceber que trate de “comunicação social”, ademais da absurda reserva de mercado, sancionada em lei, para toda e qualquer empresa classificada como de comunicação de massa. O resultado é uma multiplicação de faculdades medíocres dedicadas à fabricação de canudos para pessoas medianamente alfabetizadas que encontram um mercado garantido apenas em virtude do reconhecimento profissional. Não será surpresa, assim, se novos cursos de “sociologia” e de “filosofia” passarem a ser oferecidos pelas conhecidas “indústrias universitárias” apenas como resultado do novo mercado cativo introduzido por uma legislação irracional e dispensável.
Cria-se, assim, uma verdadeira reserva de mercado para sociólogos desempregados e para filósofos em disponibilidade, a um custo inimaginável para as secretarias estaduais de educação e para as escolas privadas. Como as carências já detectadas para professores secundários em física, biologia, matemáticas ou mesmo português são propriamente astronômicas, imagine-se o que tal medida vai acarretar em termos de desorganização ainda maior do ciclo médio de ensino. Isso obviamente não importa para o sindicato dos ideólogos, perdão, sociólogos, que visa apenas garantir a já referida reserva de mercado para a formação dos jovens secundaristas na perspectiva da “escola crítica”. Como já imaginamos o que possa haver de “crítico” nessa escola, o único resultado possível será a extensão do marxismo vulgar que já é ensinado em outras matérias – como geografia e história, quando não em literatura – para as duas novas debutantes do ensino médio. Quando digo marxismo vulgar, o sentido é o mais vulgar possível, pois não conheço mais marxistas universitários ou secundaristas que verdadeiramente tenham lido Marx-Engels, apenas a vulgata que se transmite em nome dos dois profetas e seus epígonos. (Parênteses para os que me pretendem acusar de direitista ou reacionário: como bom marxista, não religioso, eu li Marx e sei exatamente do que estou falando, e lamento que muitos dos que se pretendem hoje seguidores dessa ideologia estejam servindo de correias (inúteis?) de transmissão para novas formas de fascismo educacional, baseado numa visão do mundo ultrapassada, justificando autoritarismos e incentivando confrontos classistas e raciais que já deveriam estar na lata de lixo da história.)

Numa apreciação geral, surpreende-me que os “planejadores educacionais” – supondo-se que eles existam neste país e não só trabalhem como tenham voz no MEC – não tenham avaliado os custos e as dificuldades vinculados às obrigatoriedades para os ciclos de ensino pertinentes. Pergunto-me se as avaliações catastróficas efetuadas a cada ano quanto à qualidade do ensino no Brasil – inclusive e principalmente em escala internacional – não ajudaram ainda os pedagogos oficiais a refletir sobre o que anda errado no ensino brasileiro e o que poderia ser feito para remediar (já não digo melhorar radicalmente) esse estado de coisas. É propriamente estarrecedor constatar que, com tantos problemas já detectados nos módulos mais elementares de educação – vinculados ao ensino correto da língua, ao domínio da matemática simples e das noções mais corriqueiras das ciências físicas e naturais –, os responsáveis pelo setor se permitam ainda fazer novos experimentos com as crianças e os jovens, sobrecarregando os currículos com excrescências tão terríveis como as mencionadas aqui.
É óbvio que os adeptos dessas “inovações curriculares” julgarão o que estou dizendo uma demonstração inequívoca de tradicionalismo, de rejeição à integração ou de aversão ao “espírito multidisciplinar” envolvido nas novas ideologias servidas como menu obrigatório nas escolas de todo o país. Pode ser. Mas apenas porque eles não se colocaram do ponto de vista das crianças e jovens, ou do simples ponto de vista do reforço da qualidade educacional nas disciplinas básicas. Quando pretendem fazê-lo, se equivocam novamente de objetivos e de métodos, como as duas soluções “milagre” que vêm sendo aventadas ultimamente: a “inclusão digital”, via laptop de cem dólares, e o aumento das verbas para educação no orçamento, de 5% para 7% do PIB.
Duas pequenas palavras sobre essas propostas. Computador portátil a cem dólares – que não será conectado e não custará cem dólares – não é garantia de qualidade de ensino, cuja base é, como nunca deixou de ser, a boa formação do próprio corpo docente, algo hoje dificultado pela mentalidade sindical-corporativa da categoria. A ferramenta – ou seja, o hard do computador – jamais poderá substituir o soft do conteúdo ministrado em classe. Quanto à maior participação dos gastos com educação no PIB, ela não é tampouco garantia de melhoria: o Brasil já gasta na média da OCDE, mas gasta mal e administra de forma errada sua distribuição entre os ciclos.
Com essas três “inovações” nos currículos, apenas posso prever novos retrocessos na qualidade do ensino oficial (público e privado) do Brasil. Em outros termos, teremos com elas a garantia segura de que o país continuará andando para trás nos anos à nossa frente. Lamentável que isto ocorra, mas trata-se de uma escolha consciente dos atuais dirigentes dessa área, na mais completa indiferença da sociedade. O preço a pagar será certamente alto, em termos de atrasos e novos desvios na formação de base, na capacitação para o mercado de trabalho e nos ganhos de produtividade para o sistema econômico do país. De certa forma, esse preço já começou a ser descontado, sob a forma de desempenhos cada vez mais desastrosos nos exercícios de avaliação. Infelizmente, não há nada que salve nossas crianças das opções desavisadas dos adultos...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 fevereiro 2007

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