Entrevistas
"Lições de Resistência"
Obra de Luiz Gama é tão fascinante quanto a vida do abolicionista, diz pesquisadora
Nascido em 1830, de pai branco e mãe livre, foi vendido como escravo aos 10 anos de idade. Depois de se alforriar, aos 17 anos, aprendeu a ler e passou a estudar Direito por conta própria, frequentando a biblioteca e assistindo aulas no Largo São Francisco como ouvinte. Advogou pela libertação de mais de 500 escravos, sem cobrar honorários. Se sustentava trabalhando como jornalista. Aos 29, já era considerado "o maior abolicionista do Brasil", mas só recebeu o título de advogado 130 anos após sua morte.
A biografia de Luiz Gama, resumida acima, é conhecida. Mas um aspecto essencial da contribuição do intelectual parece ter sido relegado, injustamente, ao esquecimento: seu legado, a obra escrita que produziu em vida. É essa inquietação que motiva Ligia Fonseca Ferreira, professora de letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
"Sabemos que Luiz Gama foi escravizado menino em Salvador, chegou em Santos, subiu a Serra do Mar até um mercado de escravos em Campinas e de lá foi para São Paulo. Ele mesmo contou, outros repetiram. Nos livros que organizei, procuro mostrar que a obra de Luiz Gama é tão importante quanto a sua vida. Ele foi um grande ativista, escritor e pensador, mas não teve seu devido registro na história da literatura, do abolicionismo, das ideias jurídicas e da imprensa."
Figura notável no século XIX e único intelectual negro brasileiro a ter sofrido a escravidão, o advogado, abolicionista e escritor, nascido em Salvador em 21/7/1830, valeu-se da imprensa como principal meio para difundir suas ideias. Publicou, com uma constância surpreendente, em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, tais como o Correio Paulistano, O Ipiranga, Radical Paulistano, A República, Gazeta da Tarde, Gazeta do Povo, entre outros.
Ainda assim, diz Ligia, os escritos de Gama acabaram caindo no esquecimento. Pensando nisso, ela organizou o recém lançado Lições de resistência — Artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições Sesc, 2020).
"O que eu proponho é que o Luiz Gama seja lembrado como um ator importante do jornalismo. Em sua morte, foi saudado por seus pares como um 'trabalhador incansável do jornalismo'. Mas isso ficou apagado. Ele tem uma ampla produção, a escrita é algo de extrema relevância e está no cerne de sua vida profissional e atuação política. Sua atividade jornalística não era esporádica. O livro Lições de resistência pretende resgatar essa dimensão, além de trazer o pensamento do advogado apaixonado pela ciência do Direito", afirmou Ligia em entrevista concedida à ConJur por telefone.
A obra é vendida pela Livraria ConJur (adquira clicando aqui). São mais de 40 textos inéditos, publicados entre 1864 e 1882, tendo como eixos temáticos a escravidão, a abolição, as ideias republicanas e os direitos humanos.
O livro dá continuidade a uma outra empreitada da professora. Em 2011 ela já havia organizado o Com a Palavra, Luiz Gama — Poemas, artigos, cartas, máximas (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, R$ 55), obra que reúne vários textos e ilustrações inéditas.
Confira os principais trechos da entrevista:
ConJur — Luiz Gama é geralmente lembrado pela pauta abolicionista. Como o tema aparece em sua obra e o que mais ele defendia?
Ligia Fonseca Ferreira — O abolicionismo era uma tema crucial e, no contexto daquela época, ser abolicionista para ele significava também ser republicano. Ou seja, para Luiz Gama, a pauta abolicionista acompanhava-se do combate ao regime imperial vigente na época. É preciso lembrar que ele foi uma figura proeminente das ideias republicanas. Naquele momento, o Brasil tinha uma posição singular como o único país das Américas que conservava uma monarquia e era escravocrata. A maioria dos países do continente, depois de independentes, proclamaram a república, sem necessariamente abolir a escravidão.
Luiz Gama definia-se, nos jornais, como "extremo democrata", palavra que, naquele momento, era quase um sinônimo de republicano. Ele dizia ter "um sonho sublime" de um país "sem reis e sem escravos", que se chamasse Estados Unidos do Brasil, olhando para o modelo federativo do país norte-americano. A nação deveria se organizar politicamente, com estados federados, o que nós, bem ou mal, somos hoje. E o primeiro nome do nosso país, durante o regime republicano, foi "Estados Unidos do Brasil". Muitos historiadores afirmam ter sido Luiz Gama um dos primeiros a empregar essa expressão.
ConJur — Essas ideias eram bem aceitas?
Ligia Fonseca Ferreira — Essas ideias não eram só dele, mas sim de todo um grupo de abolicionistas e republicanos maçons de São Paulo. Um evento vai desferir um golpe fatal na monarquia e disseminar a ideia abolicionista: a Guerra do Paraguai [1864 a 1870] e o seu desfecho, que evidenciaram os limites do trabalho escravo e da condição dos africanos. A partir desse ponto começa a crise do regime imperial e do sistema escravista, que perdurariam por cerca de vinte anos até a Abolição e Proclamação da República.
Enquanto isso, Luiz Gama desenterra uma lei de 7 de novembro de 1831, que declara livre todos os escravos vindos de fora do império e, teoricamente, impõe penas severas aos traficantes. Quando Gama relembra a vigência dessa lei, querendo fazer a previsão valer, ele balança as instituições do país e igualmente a moral pública. É preciso lembrar que, depois da lei de 1831, cerca de 700 mil africanos foram contrabandeados para Brasil. Basta fazer as contas de quantos, além destes e dos seus descendentes, sofreram, como diria Luiz Gama, "escravidão indébita".
ConJur — Há algo de curioso e de atual nos textos. Os artigos sobre liberdade de imprensa, por exemplo, poderiam facilmente ser publicados hoje. Luiz Gama também citava nominalmente os juízes que tentavam censurar jornais ou que proferiam decisões para ele ilegais. Isso gerava discussões nos jornais e no Judiciário e fazia com que Gama tivesse muitos inimigos?
Ligia Fonseca Ferreira — Gerava muito mais que discussões. Ele colocava o dedo em uma ferida imensa e chegou a ser processado e ameaçado. Não só tinha muitos inimigos como os nomeava, confrontava-se com eles por meio da imprensa. Teve, inclusive, uma briga pública com Rafael Tobias de Aguiar, filho da marquesa de Santos e de um dos homens mais ricos de São Paulo, o brigadeiro Tobias de Aguiar, que hoje dá nome à Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar).
Luiz Gama expunha sentenças de que discordava, apontando erros cometidos por juízes. Em alguns casos, convidava seus leitores a se dirigirem à redação do Correio Paulistano, um dos principais jornais paulistanos no qual era colaborador assíduo, para verificarem com seus próprios olhos os despachos que, segundo ele, demonstravam a "maneira extravagante como se administra a justiça no Brasil".
Ele também denunciou em artigos as ameaças que recebia. No texto "Ao Público" (Correio Paulistano, 24 de setembro de 1870), diz: "Mais de uma vez amigos íntimos e importantes, residentes no interior da província, hão me dado aviso para acautelar-me, com segurança, contra planos de atentados sérios, projetados contra minha humilde pessoa". Há uma grande ironia no que ele escreve, algo que ainda hoje nos faz rir. Por que ameaçar uma "humilde" pessoa, que não faz nada de mais, a não ser atacar poderosos fazendeiros e proprietários de escravos? Ele também era muito corajoso, chamando os escravagistas de "salteadores" [assaltantes]. O que eles assaltavam? A liberdade de milhares de pessoas, os africanos e seus descendentes, que eram escravizadas ao arrepio da lei.
ConJur — A senhora costuma dizer que enquanto jornalista, enquanto pensador que difundia suas ideias em jornais, Luiz Gama é mais reconhecido do que lembrado. O que isso significa?
Ligia Fonseca Ferreira — Que ele é muito citado, mas a sua obra é pouco conhecida. Sabemos que o abolicionista e ativista foi presença constante em importante órgãos de imprensa de sua época. Portanto, o que eu proponho é que o Luiz Gama seja igualmente lembrado como um ator importante do jornalismo. Ele se fez presente como colaborador do jornalismo e como notícia. Em sua morte, foi saudado por seus pares como um "trabalhador incansável do jornalismo". Mas isso ficou apagado. Ele tem uma ampla produção, a escrita é algo de extrema relevância e está no cerne de sua vida profissional e atuação política. Sua atividade jornalística não era esporádica. O livro Lições de resistência pretende resgatar essa dimensão, além de trazer o pensamento do advogado apaixonado pela ciência do Direito.
ConJur — Luiz Gama, enquanto personagem, teve uma vida muito particular. Isso acabou por esconder sua obra?
Ligia Fonseca Ferreira — Luiz Gama teve uma vida fabulosa. Ele foi escravizado, mas se tornou letrado, poeta, advogado e jornalista. Foi um abolicionista grandioso. Quase nunca perdia suas causas. Teve uma voz muito atuante e foi ouvido. Ele é filho da "africana livre" Luiza Mahin, hoje um ícone do feminismo negro no Brasil. Foi vendido pelo próprio pai, mas conseguiu libertar-se e, mais do que isso, ter as "provas" judiciais, seguramente, de ter nascido livre. Isso tudo é grandioso.
No entanto, não devemos nos fascinar pela biografia de Luiz Gama a ponto de esquecermos a sua obra, o que ele escreveu, como, com que intenção. O Luiz Gama era sobretudo um advogado, se anunciava na imprensa. Em paralelo, o ativismo abolicionista e republicano se dá nas páginas dos jornais, o que colaborou para que se tornasse uma figura popularíssima na capital paulista.
O que as pessoas sabem, por exemplo, sobre a vida do Machado de Assis? Ele teve filhos, teve esposa? Quem eram seus pais? Não se sabe muito sobre ele. O que a gente conhece do Machado de Assis é a sua obra.
No caso do Luiz Gama é o inverso. Todo mundo diz que a vida dele daria um filme, uma minissérie. E daria, até levando em conta todos esses fatos incríveis que mencionamos, da mãe africana que participou de insurreições de escravizados em Salvador, foi presa, possivelmente deportada; do pai, um homem branco que o vendeu, e também teria participado da Sabinada, revolta importante na Bahia em 1837. Sabemos que Luiz Gama foi escravizado menino em Salvador, chegou em Santos, subiu a Serra do Mar até um mercado de escravos em Campinas e de lá para São Paulo. Ele mesmo contou, outros repetiram. Nos livros que organizei, procuro mostrar que a obra do Luiz Gama é tão importante quanto a sua vida. Ele foi um grande ativista, escritor e pensador, mas não teve seu devido registro na história da literatura, do abolicionismo, das ideias jurídicas e da imprensa.
Luiz Gama tinha um projeto de vida, de cunho humanista, voltado para a defesa do direito dos escravizados e pelas liberdades democráticas. O título do livro foi retirado de um de seus artigos e bem resume sua dedicação à causa dos escravizados e a obsessão por uma justiça que atuasse de forma idônea: "Se algum dia [...] os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a 'resistência', que é uma virtude cívica."
Prêmios, homenagens nos aniversários de nascimento e de morte, medalhas com seu nome são importantes, mas apenas reforçam a necessidade de ser lido e estudado por profissionais e estudantes de direito, de letras, de história, de jornalismo.
ConJur — Antes de seus livros, quase todo o pensamento de Luiz Gama estava em jornais. Isso explica o desconhecimento a respeito da obra?
Ligia Fonseca Ferreira — Talvez a dificuldade para se ter acesso aos jornais explique um pouco esse desconhecimento. Mas também não houve muita preocupação em se resolver isso.
ConJur - A senhora organizou, em 2011, um outro livro, o Com a palavra Luiz Gama, uma antologia contendo, entre outros, cerca de 19 artigos jornalísticos inéditos. Agora, com Lições da resistência, são mais de 40 artigos inéditos publicados na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, além de outros tantos pouco conhecidos. Como foi o trabalho para encontrar esse material?
Ligia Fonseca Ferreira — Boa parte da consulta foi feita na hemeroteca [acervo de periódicos] digital da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Esse material só ficou disponível em 2012. Antes disso, para o livro de 2011, eu buscava documentos em arquivos físicos, o que gerava um problema: às vezes você encontra o jornal, outras não, as coleções nem sempre eram completas. Às vezes o jornal está lá, mas ele não pode ser manipulado. Isso aconteceu, por exemplo, com a Gazeta do Povo, jornal que publicou muitos textos de Luiz Gama. Uma coisa que eu não tinha visualizado inicialmente era que grande parte do que saía na Gazeta do Povo, a partir de 1880, era posteriormente publicado na Gazeta da Tarde, importante folha abolicionista do Rio de Janeiro. Foi, portanto, mais fácil agora localizar os textos publicados no Rio com a busca na hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Mas, saindo um pouco da pergunta, descobri algo interessante. Havia anúncios frequentes do Luiz Gama advogado, oferecendo seus préstimos, dando o endereço de sua banca. Ele anunciava os seus serviços na Gazeta do Povo, em geral na primeira página e na primeira coluna, onde também anunciavam outros advogados. Então, é curioso observar que sua presença — como colaborador, como notícia, e também como anunciante — era constante nas páginas de diversos órgãos da imprensa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário