Um diplomata pranteado por todos: José Augusto Lindgren Alves
Escrevi, ainda no calor da emoção, uma nota sobre o Lindgren dirigida a jovens diplomatas em grupo de whatsapp de que que participo. Nenhum deles, creio, o havia conhecido pessoalmente. Felizmente, os que fazem parte deste grupo da ADB, puderam ler os lindos depoimentos dos Embaixadores Saboia e Benoni, além do de vários outros colegas.
Compartilhei, em mensagem privada, mais cedo o texto abaixo com o Benoni, o Tadeu Valadares e outros amigos queridos. Aqui vai meu testemunho, levemente modificado, para os colegas que o conheceram e para os que não tiveram essa sorte:
Lindgren teve o cuidado de registrar em obras históricas toda a evolução da diplomacia multilateral em DH, que ele ajudou a construir. São livros essenciais. Há ali relatos do mundo que desbravaram dentro do Itamaraty ele e outros colegas no início da redemocratização do Brasil, em meados dos anos 80. São testemunhos de um tempo que se foi, de uma certa embriaguês com os direitos humanos que se concretizavam e transformavam ideais traçados na fundação da ONU em instrumentos de ação para as vítimas de violação. Os anos 80 e 90 foram anos mágicos de exaltação do multilateralismo e construção dos “andares de cima” do mundo com que meu avô sonhou e também ajudou a construir em outro espaço social como militante antirracista e parlamentar nos anos do pós-guerra.
Lindgren viveu isso no auge da maturidade profissional. Eu o conheci ali, começando a dar meus primeiros passos na carreira. Foi sempre generoso, leve, por vezes incisivo quando necessário na defesa de suas ideias. Era respeitado e querido pelas representantes das mais respeitadas ONGs mundiais de direitos humanos. Tinha erudição e charme.
Mas havia algo mais. Era transparente e admitia sem pestanejar os muitos problemas que enfrentávamos na promoção dos DH no plano doméstico. Esse “dedo na ferida”, essa admissão do muito a ser feito no Brasil traduzia transparência, tudo que um interlocutor da sociedade civil pode esperar de um diplomata, sobretudo os que atuam com DH.
No plano pessoal, tinha a graça e a musicalidade típicas de um bom brasileiro produto da classe média de Niterói, nossa querida cidade natal.
Ele, Gilberto Saboia, Tadeu Valadares, Toninho Salgado, Marcos Pinta Gama, Abelardo Arantes, Marcela Nicodemos e outros colegas serviram de inspiração para mim e alguns outros diplomatas que nos entregamos ainda hoje à diplomacia multilateral dos DH, ao sonho utópico, para alguns, dos direitos humanos. Neste momento da história brasileira e do Itamaraty, um diplomata e uma figura humana como Lindgren fará muita falta.
Considero o Embaixador Saboia a grande referência em diplomacia de DH que o Itamaraty gerou na segunda metade do século XX. JALA foi um colaborador fiel e brilhante do Emb. Saboia em momentos cruciais da construção da Declaração e Plano de Ação de Viena, instrumento que de fato universalizou e ampliou os princípios consagrados na Declaração Universal de 48. Na histórica Conferência Mundial de Durban contra o Racismo, em 2001, lá estavam os dois novamente, desta vez ao lado de uma das maiores e mais representativas delegações oficiais do Brasil em conferências da ONU sobre DH. Além de habilidoso negociador (virtude reconhecida por respeitados especialistas estrangeiros em DH, como Marc Bossuyt, ex-membro do CERD e ex-juiz da Corte Constitucional da Bélgica), Lindgren foi de longe o mais brilhante diplomata brasileiro teórico da arte da diplomacia multilateral dos direitos humanos.
Num tema que me interessa particularmente, o combate ao racismo e à discriminação racial, ele deixou sua marca na atuação no sistema das Nações Unidas como perito independente em vários comitês, especialmente o CERD. Sua trajetória ali também está registrada em livros. E nos anais do secretariado do CERD. Como seu orgulhoso sucessor no CERD, testemunhei pessoalmente o apreço dos colegas peritos que com ele conviveram em Genebra.
Há tanto a dizer do Lindgren. Mas tenho muita resistência a obituários.
Quero lembrar da vida do Lindgren, e não falar da sua morte. Importa lembrar o seu sorriso maroto, sua inteligência fina, sua leveza e sua coragem moral de desafiar convenções. Era apaixonado pela vida, pela música, pela literatura, pelo bom papo, pela sua filha Juliana, de quem falava sempre.
Partiu cedo.
Lindgren não veio ao mundo a passeio. Viveu intensamente. Deixou sua marca. Lutou contra a corrente numa instituição que nem sempre atribuiu o devido valor a temas diplomáticos no campo dos direitos humanos.
Semeou o terreno, no qual cresceram árvores que geraram frutos, na vida pessoal (o que de fato importa) e no Itamaraty. Lutou pelas boas causas. E curtiu a vida.
Isso não é pouca coisa.
Silvio José Albuquerque
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