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domingo, 25 de novembro de 2007

811) Para os candidatos à carreira diplomática: clásssicos da cultura brasileira

Série "Folha Explica" de clássicos da cultura brasileira
Esta série de livros da FolhaSP pode ajudar no trabalho de leitura e compreensão dos grandes clássicos do pensamento brasileiro. Como se trata de obras volumosas, por vezes prolixas, um resumo-introdutório, explicando as teses principais do autor, pode ser útil aos que nao têm tempo ou condições de ler toda a série de clássicos em versao integral.
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Guia abre caminho para leitura de "Casa-Grande e Senzala"
Folha Online, 12/03/2007

Escrito em uma linguagem criativa e inovadora, com métodos de pesquisa pouco ortodoxos e idéias anti-racistas que desafiaram os preconceitos da época, "Casa-Grande e Senzala" (1933) é um grande ensaio de interpretação do Brasil. O primeiro capítulo pode ser lido abaixo.

Por sua importância, o livro é tema de um dos volumes da coleção "Folha Explica", que abre caminhos para a leitura da maior obra brasileira, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro, abordando ainda a trajetória controversa e conservadora, irreverente e saudosista do seu autor, Gilberto Freyre (1900-87).

O livro é assinado por Roberto Ventura, que foi professor de teoria literária e literatura comparada na USP (Universidade de São Paulo).

Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país.

"Casa-Grande e Senzala"
Autor: Roberto Ventura
Editora: Publifolha
Páginas: 96
Quanto: R$ 17,90
Onde comprar: nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Publifolha

Um Livro Controverso
"Casa-Grande & Senzala"
Grande livro que fala
Desta nossa leseira
Brasileira.
Manuel Bandeira

Gilberto Freyre é o mais amado e odiado escritor brasileiro. Casa-Grande & Senzala, seu principal livro, é uma das obras mais polêmicas já publicadas no país. Monteiro Lobato comparou o seu lançamento em 1933 com a fulgurante aparição do cometa Halley nos céus. Jorge Amado saudou o livro como uma revolução, que deslumbrava o país, ao falar dele como nunca se falara antes. O ensaio de Freyre foi aclamado como uma ruptura nos estudos históricos e sociais tanto pelo tema --a formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida-- quanto pelas idéias, como a valorização do escravo negro e da cultura afro-brasileira, mas sobretudo pela linguagem, fortemente oral e coloquial, avessa a qualquer ranço acadêmico ou jargão especializado.

Freyre foi endeusado nas décadas de 1930 e 1940 como o descobridor da identidade do país e criador de uma nova auto-imagem do brasileiro, que passava de negativa a positiva, de disfórica a eufórica. Os críticos João Ribeiro e Lúcia Miguel Pereira consideraram o livro definitivo, por alargar os limites da nação e afastar os temores infundados sobre a inferioridade racial de sua população. Para o antropólogo Roquete-Pinto, era uma obra que já nascia clássica, de consulta indispensável para todos aqueles que quisessem entender o país.1

Antes tomado como inferno da depravação sexual e da degeneração étnica, o Brasil se converteu pelas mãos de Gilberto Freyre em paraíso tropical e mestiço, em que se daria a confraternização de raças e culturas oriundas da Europa, África e América. A idéia de uma história em que os conflitos se harmonizam passou a fazer parte do senso comum do brasileiro e da cultura política do país, tendo sido veiculada pelos sucessivos governos a partir dos anos 40. Incorporado por grande parte da população, o mito da "democracia racial" se tornou um obstáculo para o enfrentamento das questões étnicas e sociais e uma barreira para as minorias, como os negros, os índios, as mulheres e os homossexuais, cujos movimentos lutam por identidades diferenciadas e reivindicações específicas.

Freyre se tornou, junto com o romancista Jorge Amado, o escritor brasileiro de maior sucesso internacional, pelo menos até a aparição do esotérico Paulo Coelho no mercado editorial dos anos 90. Tanto Freyre quanto Amado difundiram a imagem do brasileiro bom e sorridente, doce e não-agressivo, que se deixa seduzir pela mulata, cuja sensualidade ardente é glorificada quer em Casa-Grande & Senzala, quer nos romances do escritor baiano, como Gabriela, Cravo e Canela, Tenda dos Milagres, Tereza Batista Cansada de Guerra e Tieta do Agreste, inúmeras vezes reeditados e adaptados para a televisão e o cinema.

Casa-Grande & Senzala é até hoje o ensaio brasileiro mais traduzido, com versões em inglês, francês, espanhol, italiano, alemão e polonês, além de mais de 20 edições no Brasil. Homenageado com colóquios, medalhas e títulos, Freyre é doutor honoris causa pelas universidades de Columbia, Coimbra, Paris, Sussex, Münster, Oxford e Recife. Obteve os prêmios Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, Aspen do Instituto de Estudos Humanísticos dos EUA e La Madonnina da Itália. Foi condecorado pela França, México, Venezuela, Portugal e Espanha e recebeu a Ordem do Império Britânico das mãos da rainha Elizabeth 2ª.

Mas Casa-Grande & Senzala também provocou fortes reações. A obra foi atacada por sua linguagem, tida como vulgar e obscena. Um obscuro escritor mineiro xingou o livro de "pornográfico" devido à referência ao modo brasileiro de defecar. Com o apoio de um colégio religioso do Recife, alguns exemplares foram queimados em praça pública. E o escritor logo provocaria novas controvérsias, ao organizar no Recife, em 1934, o Primeiro Congresso Afro-Brasileiro. Seu interesse pela cultura afro-brasileira lhe valeu a acusação de "subversivo", "comunista" e "soviético", por seus supostos ataques à família brasileira e à moral cristã. Foi hostilizado pela elite pernambucana, à qual era ligado por relações profissionais e políticas e também por laços de parentesco, ao propor à Cooperativa dos Usineiros de Pernambuco o estudo das condições de vida dos trabalhadores rurais. O Dops (Delegacia de Ordem Política e Social) de Pernambuco o fichou em 1935, em companhia dos pintores Di Cavalcanti e Cícero Dias, como "agitador, organizador da Frente Única Sindical, orientadora das greves preparatórias do movimento comunista".

Freyre se opôs ao governo autoritário de Getúlio Vargas e foi presidente da UDN (União Democrática Nacional) em seu estado. Foi preso e espancado em 1942, junto com o pai, devido a um artigo no Diário de Pernambuco em que acusava um beneditino alemão de Olinda de ser racista e pró-nazista. Foi indiciado ao Tribunal de Segurança Nacional em 1945, já no fim do governo Vargas, por ter discursado em manifestação contra a ditadura no Recife, em que a polícia política matou a tiros duas pessoas. Com a redemocratização do país, elegeu-se deputado pela UDN e participou da Assembléia Constituinte e da Câmara dos Deputados, à qual propôs a criação no Recife do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, depois Fundação Joaquim Nabuco, com o objetivo de fazer investigações de caráter rural.

Já sexagenário, assumiu posições polêmicas, que o tornaram maldito por mais de duas décadas para os setores de esquerda. Apoiou o golpe militar de 1964, cujo governo forte via como o restabelecimento de uma ordem patriarcal e hierárquica, destruída pela urbanização e modernização. Conforme observou o jornalista Mario Cesar Carvalho, em artigo na Folha de S.Paulo publicado no centenário de seu nascimento,2 o homem que criou a mitológica imagem de um Brasil tolerante acabou por adotar posições políticas marcadas pela intolerância...

Movido por aquilo que o antropólogo Darcy Ribeiro chamou de "tara direitista", Freyre acusou o reitor da Universidade do Recife de ser conivente com a propaganda comunista e pediu a sua renúncia ao cargo. Tinha exigido antes, em 1963, o afastamento de supostos esquerdistas da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste). E chegou a propor, em 1972, ao senador Filinto Müller, ex-chefe da polícia política de Vargas, um programa para a Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido de sustentação dos militares no poder. Segundo ele, a Arena deveria defender a crescente superação das diferenças raciais no Brasil pela criação de um povo "além-raça". Encantado com a ditadura de Antônio Salazar em Portugal, que ocupou o poder por mais de quatro décadas, de 1928 a 1974, foi conivente com a política colonialista da antiga metrópole na África e na Ásia em nome do "luso-tropicalismo", entendido como a civilização original e maleável criada pelos portugueses em três continentes.

Foi atacado nas décadas de 1960 e 1970 por sociólogos da Universidade de São Paulo, como Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, que criticaram sua visão idílica do passado colonial e a idéia de que se vive em uma "democracia racial", sem conflitos entre brancos e negros. A partir dos anos 80, foi redescoberto por historiadores interessados na história do cotidiano, da sexualidade e da intimidade, que resgataram a sua visão da escravidão.

Voltou a ser valorizado agora como um precursor da virada antropológica e psicológica dos estudos históricos, que se dera a partir da década de 1970 com a terceira geração da escola dos Annales e os representantes da "nova história" francesa, como Fernand Braudel, Georges Duby e Philippe Ariès. Passou a ser elogiado como pioneiro por seu foco nos "novos objetos" e em figuras até então marginais, como o escravo, a mulher, a criança, a arquitetura e os artefatos, os hábitos culturais e as tradições culinárias e alimentares. Os maiores intelectuais do século 20, dentre eles o crítico Roland Barthes e os historiadores Febvre e Braudel, já o tinham aclamado como escritor sensível à matéria palpável e renovador dos estudos históricos e sociais.

Por que Casa-Grande & Senzala e seu autor, Gilberto Freyre, tidos como revolucionários e progressistas nos anos 30 e 40, passaram a ser criticados a partir da década de 1960 como conservadores e reacionários? Como o sociólogo, que os usineiros nordestinos chamaram de "comunista" e de "soviético" nos anos 30, conseguiu se tornar o ideólogo informal do regime militar? De que modo se deu o resgate de sua obra, a partir dos anos 80, como pioneira dos novos rumos da historiografia? São essas as perguntas que este livro procura responder.

1 Os artigos de João Ribeiro, Lúcia Miguel Pereira e Roquete-Pinto se encontram reproduzidos em: Edson Nery da Fonseca (org.), Casa-Grande & Senzala e a Crítica Brasileira de 1933 a 1944. Recife: Ed. de Pernambuco, 1985.
2 Caderno "Mais!", 12 mar. 2000, dossiê "Céu & Inferno de Gilberto Freyre".

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