Brevíssimo
Tratado da Subserviência
Paulo
Roberto de Almeida
(um raro
escrito dedicado a terceiros)
O
subserviente é aquele que se dobra às conveniências de uma autoridade superior,
mesmo quando essa autoridade atua manifestamente em detrimento de seus próprios
interesses pessoais; o subserviente prefere submeter-se às inconveniências
cometidas por aquela autoridade, e o faz de livre e espontânea vontade, ainda
que de modo vergonhoso, a ter de corrigir, mesmo gentilmente, essa mesma autoridade.
O subserviente, que também pode ser considerado um sabujo, no sentido estrito,
não hesita em desmentir-se, a posteriori,
negar declarações suas, previamente tornadas públicas, ou em afastar-se de
posições anteriormente assumidas, ou defendidas historicamente, apenas para se
conformar à vontade, muitas vezes irracional e inexplicável, dessa mesma
autoridade superior. Obviamente, ele não seria subserviente sem essa degradação
moral.
O
subserviente profissional considera que sua própria sorte, sua sobrevivência funcional,
assim como seu futuro destino estão indissoluvelmente ligados ao grau de
subserviência máximo que ele conseguir expressar em favor de sua autoridade
oficial. Ele pertence, de corpo e alma, quando não de coração e mente, a essa
autoridade, à qual ele devota fidelidade canina e pela qual ele está disposto a
sacrificar seu conforto pessoal, sua coerência moral (se é que dispõe de
alguma) e até sua ética profissional, quando não sua consciência mais íntima
(se existir, claro) em favor do bem estar de sua autoridade, tudo isso por
escolha própria, não por imposição daquela autoridade. Sua sabujice dedicada é,
assim, introjetada, a ponto que ele não mais distingue entre o que humanamente
aceitável, e socialmente respeitável, e o que é subserviência pura, sem
qualquer hesitação ou exame de consciência. Ele não seria um subserviente
perfeito sem essa diminuição intelectual (se o termo se aplica).
O
subserviente completo se antecipa, de certa forma, aos problemas que poderiam
advir de alguma frase mal posta de sua autoridade. Em consequência de uma circunstância
do gênero, ele constrói toda uma teoria justificadora das bobagens superiores
com base numa suposta má compreensão por parte dos ouvintes ou interlocutores,
imputando aos demais as legítimas dúvidas que estes possam ter em relação às
inconveniências do chefe, o que o faz atribuir os equívocos de entendimento aos
próprios questionadores. Um subserviente assim tão bem construído é algo raro,
mas especialmente valorizado nas situações em que é preciso conter a autoridade
numa gaiola de ferro, compatível com a dimensão das bobagens produzidas.
Não é
fácil encontrar um subserviente perfeito. Existem muitos, claro, por propensão
inata de caráter, mas nem sempre eles são selecionados para servir diretamente uma
autoridade, embora alguns se esforcem bastante para conseguir uma tal distinção
(se o termo se aplica). Geralmente, um subserviente é construído aos poucos,
com a degradação gradual de caráter acompanhando os progressos da carreira, até
o ponto em que a subserviência se converte em segunda natureza, algo assim
indistinguível das características originais, ou construídas, do personagem em
questão. Essa promiscuidade entre o Dr. Jeckyll e Mister Hyde passa então a não
mais ser considerada uma alternância de personalidades, mas constitui-se em
algo sólido, um bloco unificado que acompanha o novo personagem em toda e
qualquer situação de subserviência prática (e as oportunidades são muitas,
posto que o subserviente existe sempre em função de uma autoridade medíocre,
cuja quantidade, infelizmente, parece se multiplicar ao ritmo da erosão de
qualidade das autoridades públicas).
Talvez
exista algum manual da subserviência, assim como existem muitos “Idiot’s Guide”
para qualquer coisa humanamente concebível, mas não foi possível encontrar
algum disponível no mercado, com essa abrangência teórica e essas pretensões
práticas. Talvez algum subserviente despertado de sua letargia intelectual
possa vir a conceber algum, o que seria útil para todo e qualquer candidato à carreira
de sabujo profissional. Não se espera que ele o subscreva em seu próprio nome,
a menos que suas deficiências morais e sua total falta de caráter o autorizem a
continuar a defender as bobagens de “sua” autoridade, mesmo quando esta deixou
de representar poder e prepotência. Afinal de contas, um bom subserviente tem
um currículo a defender, mesmo quando este não é o que parece, ou aquele que é
proclamado.
Shanghai,
12.03.2010
2 comentários:
Um subserviente nada mais faz que carregar ao longos de sua existência "tigres" nas costas!
Vale!
Caro
Existe sim um tratado, já muito antigo mas até hoje atual.
Etienne De La Boétie. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução: Laymert Garcia dos Santos. Editora Brasiliense. São Paulo, 1982
O original está, em parte, no Google:
http://books.google.com.br/books?id=4ZMGAAAAQAAJ&printsec=titlepage&source=gbs_v2_summary_r&cad=0
“O que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento de sua integridade. Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma sociedade; eles não se entre-apoiam mas se entre-temem. São cúmplices”. (Étienne De La Boétie)
São três os caminhos que nos conduzem à servidão voluntária: o do hábito, o da covardia e o do conluio.
HÁBITO
Somos ensinados a servir por hábito. Com o tempo, não só nos acostumamos pacientemente com o gosto ruim das peçonhas venenosas que engolimos, mas passamos a desejá-las.
COVARDIA
De viver pelo hábito em servidão decorre a segunda razão: a covardia.
“Os escravos, inteiramente sem coragem e vivacidade, têm o coração baixo e mole, e são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem sabem os tiranos; assim, fazem todo o possível para torná-los sempre mais fracos e covardes. Artimanha dos tiranos: bestializar seus súditos!”. [...]
“Os tiranos romanos foram longe [panis et circenses], [...], empanturrando essa gente embrutecida e adulando-a por onde é mais fácil de prender, pelo prazer da boca. Por isso, o mais instruído dentre eles não teria largado sua tigela de sopa para recobrar a liberdade da República de Platão. Os tiranos distribuíam amplamente o quarto de trigo, o sesteiro de vinho, o sestércio; e então dava pena ouvir gritar: Viva o Rei!”.
CONLUIO
A terceira razão decorre da covardia dos que se deixam seduzir pelos tesouros sob a guarda do tirano.
“São sempre quatro ou cinco homens que o apoiam e que para ele sujeitam o país inteiro. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e por si mesmos dele se aproximaram ou então, foram chamados para serem os cúmplices de suas crueldades, os companheiros de seus prazeres, os complacentes para com suas volúpias sujas e os sócios de suas rapinas. Tão bem esses seis domam seu chefe que este se torna mau para com a sociedade, não só com suas próprias maldades, mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que debaixo deles domam e corrompem, como corromperam o tirano. Esses seiscentos mantêm sob sua dependência seis mil, que dignificam, aos quais fazem dar o governo das províncias ou o manejo dos dinheiros públicos, para que favoreçam sua avareza e crueldade, que as mantenham ou as exerçam no momento oportuno e, aliás, façam tanto mal que só possam se manter sob sua própria tutela e instar-se das leis e de suas penas através de sua proteção. Grande é a série que vêm depois deles. E quem quiser seguir o rastro não verá os seis mil mas cem mil, milhões que por essa via se agarram ao tirano, formando uma corrente ininterrupta que sobe até ele. Daí procedia o aumento do poder do senado sob Júlio César, o estabelecimento de novas funções, a escolha para os cargos – não para reorganizar a justiça, mas sim para dar novos sustentáculos à tirania. Em suma, pelos ganhos e parcelas de ganhos que se obtêm com os tiranos chega-se ao ponto em que, afinal, aqueles a quem a tirania é proveitosa são em número quase tão grande quanto aqueles para quem a liberdade seria útil. Que condição é mais miserável que a de viver assim, nada tendo de seu e recebendo de um outro sua satisfação, sua liberdade, seu corpo e sua vida! Mas eles querem servir para amealhar bens”.
Nessa passagem, La Boétie mostra que a servidão voluntária organiza-se em hierarquia.
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