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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

terça-feira, 12 de julho de 2011

Tocqueville de novo em missao: o Brasil como parada dura... (PRA)

A aula na UnB de mais de um ano atrás, como disse, foi baseada num artigo que eu havia escrito, dentro de minha série dos "clássicos revisitados".
Fui reler agora o texto, e achei-o ainda pertinente.
A única recomendação que eu faria a Monsieur Tocqueville, numa eventual volta em missão ao Brasil (o que ele certamente fará, com este humilde servo atuando como tradutor, assistente e escrevinhador), seria prestar mais atenção ao tema da corrupção, sempre vigorosa, pujante, despudorada, como nunca antes se conheceu nestas terras ou nas do autor francês...
à parte isto, tudo permanece igual (ou pior...).
Paulo Roberto de Almeida

O texto em pdf está aqui.

De la Démocratie au Brésil: Tocqueville de novo em missão
Paulo Roberto de Almeida

Resumo: O francês Alexis de Tocqueville vem ao Brasil, a serviço do Banco Mundial, para examinar a situação do país do ponto de vista do funcionamento das instituições democráticas e da economia de mercado. Tendo chegado bem intencionado, ele constata irregularidades e aspectos disfuncionais em praticamente todas as instituições que visitou e nos mecanismos políticos e econômicos que examinou. Constata a deterioração da democracia e os avanços do estatismo, aliás apreciado e valorizado no Brasil. Parte de volta a Washington frustrado.

Messieurs les Gouverneurs de la Banque Mondiale,
Primeiramente gostaria de agradecer ao Board of Directors e, por meio dele, a todos os governadores dos países membros do Banco Mundial, a demonstração de confiança que me foi dada para desempenhar uma missão de prospecção e de diagnóstico sobre um país da América do Sul, tão grande e tão prometedor, no médio e no longo prazo, quanto aquele, da América do Norte, que analisei na minha primeira viagem de estudos ao Novo Mundo. Sem dúvida foi uma surpresa agradável o poder ocupar dessa forma meu ócio intelectual, quando estou aposentado há tanto tempo que já não tenho o benefício dos direitos autorais de minha obra mais importante, De la Démocratie en Amérique (1835). As diárias e honorários pagos pelo Banco para esta missão ao Brasil foram muito generosos, bem maiores, em todo caso, do que o estipêndio que me foi atribuído pela monarchie de Juillet para investigar e relatar sobre o sistema penitenciário americano, na viagem que acabou resultando na elaboração daquela minha obra mais conhecida.
Em segundo lugar, gostaria de dizer que a oportunidade que me foi dada de analisar o maior país da América do Sul – em nome do Banco, é verdade, mas com total independência intelectual – é tão mais importante agora quanto me parecia sem sentido fazê-lo na primeira metade do século 19, quando analisei a construção da democracia na América do Norte, e quando as perspectivas de desenvolvimento democrático do Brasil não eram, então, muito claras. Naquela oportunidade, o Brasil era uma monarquia escravocrata, cuja elite dirigente não tinha sequer intenção de iniciar um processo de reformas modernizadoras, como recomendava em vão um de seus estadistas mais famosos, José Bonifácio. Atualmente, no confronto com outros emergentes – como a China, a Rússia e a Índia – e visto de longe, o Brasil é, sem dúvida, aquele que parece ostentar os fundamentos mais sólidos em termos de instituições de governabilidade, de economia de mercado e na estabilidade de regras para o investimento estrangeiro. Visto de perto, porém, o quadro se torna menos otimista.
Foi, portanto, com grandes expectativas e fundadas esperanças que parti ao Brasil para atender à demanda do Board. Mas confesso que é com alguma frustração que, ainda antes de retornar de viagem, passei a preparar este relatório, do qual antecipo agora este resumo executivo, como instruído na minha carta de missão. Estou, obviamente, à disposição dos membros do Board, para aprofundar ou explicitar qualquer um dos temas focados no relatório mais amplo e completo, que pretendo entregar tão pronto retorne à sede do Banco.

1. Existe democracia no Brasil? De que tipo? Como funciona ela?
O mandato que me tinha sido atribuído pelos membros do Board – os termos de referência, como são chamados modernamente as cartas de instrução – era o de avaliar o funcionamento (ou não) da democracia de mercado no Brasil, com base no Estado de Direito, ou da Rule of Law, como a designam os adeptos da Common Law, em contraposição ao StaatsRecht da tradição jurídica codificada. Complementarmente, segundo os procedimentos politicamente corretos do Banco Mundial, e suas disposições estatutárias, eu devia examinar a implementação do desenvolvimento sustentável do Brasil, com base nos princípios da equidade e da inclusão social, no quadro de um sistema aberto e interdependente. Esse mandato de trabalhar sobre a governança se explica, provavelmente, pelo fato de que o Brasil é um país dotado de suficiente capital físico e de razoável capital humano – ainda que ambos deficientes e mal distribuídos – e parece enfrentar, de fato, problemas de funcionamento dos órgãos públicos e de corrupção endêmica, justificando esta abordagem político-institucional.
Se ouso resumir a atual situação do Brasil numa única fórmula, no que se refere à sua organização política e seu ordenamento institucional, eu diria que, a despeito de enormes progressos realizados nos últimos vinte anos, o país exibe uma democracia formal bastante superficial, isto é, com imensos problemas de qualidade das instituições e de funcionamento das agências públicas. O Brasil padece, sobretudo, dos mesmos problemas sistêmicos e estruturais que eu já tinha detectado em meu livro L’Ancien Regime et la Révolution (1856) em relação à minha pátria de origem, quais sejam: uma sociedade hierarquizada – ainda que aberta à ascensão social – com imensos privilégios para uma pequena minoria e poucos benefícios sociais para uma imensa maioria (com perdão pela redundância); reduzido respeito aos direitos cívicos ou simplesmente humanos de grande parte da população; baixo grau de articulação associativa para cobrar a responsabilização efetiva – aquilo que os anglo-saxões chamam de accountability – de suas elites privilegiadas.
Essas deficiências de funcionamento de sua democracia formal se refletem nas atividades das principais instituições públicas. Elas deveriam, supostamente, dar sentido concreto às determinações de sua enorme Constituição, um calhamaço retórico que concede amplos direitos a todos e a cada um, mas que não exige o cumprimento de nenhum dever; ela nada diz sobre como deverão ser financiadas todas as benesses e generosas atribuições que os constituintes, de modo irresponsável, prometeram aos cidadãos – alguns ainda súditos – desse grande país. De fato, a Constituição me parece constituir, paradoxalmente, um grande obstáculo ao crescimento sustentado do Brasil e ao desenvolvimento efetivo de sua sociedade. Junto com lideranças em estado de erosão ética e corporações em ascensão na máquina estatal, as perspectivas de desenvolvimento político no Brasil me parecem singularmente reduzidas, contradizendo, portanto, o título mesmo deste relatório.
Antes de tentar explicar, justamente, o que não funciona no plano econômico, permitam-me descrever, sumariamente, as características das entidades de governança em seus diversos níveis.

(a) O Estado central
Por uma simples contagem do número de casos sob responsabilidade do Supremo Tribunal Federal, constatei que o principal violador da Constituição e das leis do país é o próprio Estado, que se apresenta, assim, como um infrator contumaz da legalidade e o grande desrespeitador dos direitos dos cidadãos e das empresas. Talvez uma sugestão a ser feita aos líderes políticos do Brasil – posto que suspeito que o Banco não possa sugerir aos próprios brasileiros que façam reformas constitucionais – seria a de criar um mecanismo preventivo de controle da constitucionalidade das iniciativas legais do Estado central (não apenas do governo federal, mas nas unidades federadas igualmente), para evitar essa triste realidade; na verdade, mecanismos já existem a esse efeito – e eles seriam as comissões legislativas de Constituição e Justiça e o próprio Supremo Tribunal Federal. Mas desconfio que suas decisões sejam tomadas em sua maior parte com base em critérios políticos, e não jurídicos, do contrário não teríamos essa pletora de casos contra o Estado nos tribunais. De fato, um controle preventivo da constitucionalidade das leis já existe em alguns países, cujos mecanismos poderiam servir de inspiração ao Brasil.
Observei, também, que o Estado central é superdimensionado – contei mais de três dezenas de ministérios ou secretarias e incontáveis empresas do próprio Estado e agências diversas que assumem diferentes nomes – e que, a despeito do crescimento do número de funcionários públicos, os serviços do Estado continuam desorganizados e incoerentes, com grande prejuízo para aqueles cidadãos que não conseguem comprar eles mesmos bens e serviços supostamente coletivos no mercado. Pior ainda, seja por deformações corporativas de sua sociedade, seja por miopia dos grandes partidos – mas que tem nisso uma forma de alimentar suas caixas pouco aprovisionadas diretamente pelos próprios cidadãos – a realidade presente é que o tamanho e a presença do Estado vêm aumentando desmedidamente no Brasil, com o que a carga fiscal total imposta aos cidadãos só pode aumentar continuamente. Verdade que alguns corpos do Estado são muito bem organizados – aquele, por exemplo, encarregado de tosquiar os cidadãos, neste caso convertidos em súditos indefesos – sendo tão mais modernos quanto os interesses do próprio Estado (e de seus mandarins) está em jogo.
Minha única recomendação aos senhores membros do Board é a de que, na próxima elaboração do documento estratégico relativo ao Brasil, o Banco possa sugerir que os programas de melhoria da governança, com uma séria redução da máquina pública, tenham precedência sobre todos os demais. Não me parece razoável a um país que pretenda crescer de forma sustentada manter tal nível de despesas com o próprio Estado em detrimento dos investimentos produtivos, seus ou dos agentes privados (pelo efeito da não poupança estatal), gravando, ademais, desproporcionalmente, os cidadãos de menor renda.

(b) O Poder Judiciário
Em sua alta cúpula, é constituído por um microcosmo de tiranetes togados, que atuam leves, livres e soltos, sobretudo em defesa de causas que são mais políticas do que jurídicas, em sua natureza essencial. Quanto ao resto da corporação, se trata de um imenso exército de déspotas setoriais, dedicados principalmente à manutenção de seus muitos privilégios, que são enormes se comparados ao do resto dos funcionários públicos e a enorme distância dos rendimentos da maioria da população.
Todas as instâncias do Judiciário, em todos os níveis, estão sobrecarregadas de processos, o que é o resultado de códigos processuais ultrapassados ou elaborados expressamente para permitir aos defensores de criminosos provados fazê-los escapar das garras da Justiça. Verdade que a Constituição de 1988 ampliou significativamente o acesso do mais humilde cidadão à Justiça, mas de nada vale quando esse acesso na prática se limita àqueles dotados de advogados bem pagos, ou quando os processos se eternizam por anos.
Existe também uma tendência nefasta, nos diversos níveis do Judiciário, segundo a qual juízes podem fazer mais do que simplesmente aplicar a lei, interpretando-a, quando tal se faz necessário, nos estritos limites da jurisprudência e do bom senso: não contentes com essa faculdade, magistrados criam, eles próprios, leis especiais, numa tentativa de fazer justiça segundo suas concepções políticas ou sociais. O resultado é uma anarquia jurídica que acaba lotando as instâncias superiores de casos absolutamente irrelevantes. Segundo me entretive com economistas, o Judiciário impõe ao país um preço econômico expressivo, ao encarecer os custos de transação e prejudicar o ambiente de negócios.
Creio, assim, e aqui fica a minha principal sugestão relativa ao Judiciário, que os projetos de reforma desse poder no Brasil, a serem eventualmente retomados com o financiamento do Banco Mundial, deixem de contemplar unicamente aspectos formais e adjetivos do funcionamento desse poder – como a aquisição de computadores ou reforma das instalações – para adentrar nos mecanismos substantivos de seu funcionamento, que têm a ver com os códigos processuais, a responsabilização de juízes venais ou incompetentes, bem como o estímulo aos mecanismos arbitrais de solução de disputas, tendo em vista a morosidade geral dos processos. Recomendo, também, a total extinção de uma alegada Justiça do Trabalho, pois ela me parece mais feita para estimular conflitos trabalhistas e sua prolongação em todas as instâncias superiores, do que para diminuir o seu número e incidência: seu custo é infinitamente superior ao dos processos que “julga”.

(c) O Poder Legislativo
Pode ser considerado um equivalente do velho bazar de Constantinopla: um grande mercado de compra e venda de projetos setoriais e fragmentados, no qual a formação de maiorias votantes conforma um verdadeiro balcão de negócios, tornando cada vez mais irracional a atribuição e a alocação de recursos públicos. Aos problemas sistêmicos dos regimes eleitoral e partidário do Congresso brasileiro, pode ser agregada a erosão dos costumes dos congressistas, eles mesmos menos representantes de causas nacionais do que de objetivos setoriais e corporativos, o que contribui para a desagregação de qualquer política nacional. Os próprios parlamentares fazem parte do mercado de compra e venda de votos, pois a maioria presidencial não coincide com aquela do Parlamento, em função do que o chefe de Estado – que no Brasil é também de governo – precisa articular (ou comprar) a sua bancada, com um custo (stricto et lato sensi) sempre crescente para o Tesouro do país.
Embora existam diversos projetos de reforma política e eleitoral, nenhum deles, se por acaso aprovados, o que parece difícil, está concebido ou formatado para a melhoria dos procedimentos legislativos e aproximação do eleitor de seus representantes, e sim para aprofundar os comportamentos autistas e autonomistas do próprio corpo legislativo, mantendo de forma indefinida a extração de recursos do conjunto da sociedade para o seu próprio benefício. Não há perspectiva de que esse tipo de comportamento, aparentemente baseado na omertà siciliana, possa ser modificado no futuro previsível, pois as mudanças teriam de ser impostas de fora, já que não existe esperança de que elas sejam auto-induzidas; como esse processo depende da educação política dos cidadãos, pode-se considerar um prazo mínimo de uma geração – talvez duas – para que o ciclo das reformas se complete.
Hélas, messieurs, sinto muito não poder oferecer soluções para esse tipo de problema grave, qual seja o da má qualidade da democracia representativa brasileira. Mas os membros do Board hão de concordar comigo de que é impossível reformar de fora – ainda mais a partir de um órgão técnico como o Banco Mundial – aspectos tão sensíveis da vida de um povo como as formas de sua organização política e as modalidades de representação popular: cabe a esse mesmo povo encontrar os seus caminhos de modernização política, que podem ser longos e talvez frustrantes, mas não existem itinerários simples nesse particular, como, aliás, eu mesmo já tinha constatado ao verificar o quão difícil é reformar um país como a França.

(d) Os sátrapas provinciais
Os governadores são pequenos – ou grandes, dependendo dos estados – barões feudais que impedem, na verdade, que o Brasil constitua um mercado unificado, posto que eles mantem legislações contraditórias entre si – e contrárias a um objetivo nacional – e algumas vezes opostas à própria Constituição federal (que, aliás, não deveria merecer esse nome). A capacidade política própria das províncias é minimizada, precisamente, pela extraordinária concentração de poderes, especialmente os tributários, na União federal, esta extremamente centralizada no que se refere ao controle das fontes de recursos e seus canais de distribuição. Por isso mesmo, há uma chantagem recíproca exercida com as armas de bordo entre a União central e as satrapias regionais, a primeira controlando a liberação de recursos em direção dos entes federados, as segundas mantendo certo controle sobre as bancadas estaduais na votação de matérias que, no que se chama de parlamento, interessa ao poder federal. Isto resulta, não poucas vezes, em impasses completos, como, por exemplo, na discussão sobre a estrutura e a repartição dos impostos, justamente, que são irracionais.
Difícil fazer recomendações neste capítulo, pois como no caso da representação política, as formas de organização federal dependem do próprio povo brasileiro, não de alguma fórmula ‘mágica’ ditada de fora: se a população deseja viver numa federação de verdade – o que o Brasil está longe de ser hoje em dia – os estados precisariam contar com recursos próprios para suas atividades, o que talvez aconselharia a adoção de um sistema de sales tax estadual, como o atualmente existente nessa grande federação que constituem os Estados Unidos, a nação que primeiro analisei em minha viagem juvenil ao Novo Mundo. Se, adotando um modelo alternativo, os brasileiros pretendem começar a viver numa aparência de federação, conviria, talvez, adotar um imposto de consumo federal, a ser distribuído depois com as províncias, segundo uma matriz de insumo-produto, o que induziria os estados a se tornarem mais competitivos por meio de uma sadia concorrência por meio do custo dos fatores, não pela atual concorrência predatória exercida pela guerra fiscal, exacerbada pelas antecipações tributárias que os estados nocivamente impõem às empresas mais produtivas.

(e) Os poderes legislativos locais
As assembléias provinciais e as câmaras de vereadores mais me parecem organizadas para assaltar os cidadãos de suas respectivas jurisdições – e no plano estadual duplamente, portanto, sem contar com o assalto triplo existente no âmbito da federação – do que para cumprir com suas funções precípuas que seriam as de resolver as questões locais nos planos da infra-estrutura, da segurança, da educação, dos cuidados com o meio ambiente e com todos os demais aspectos da vida cotidiana dos pobres brasileiros, que hoje não sabem bem a quem recorrer quando se deparam com algum problema concreto em suas vidas diárias. O fato é que mais da metade dos distritos brasileiros – que eles chamam de municípios – não ostentam condições mínimas para sobreviver às suas próprias custas, devendo continuamente mendigar recursos no plano federal para assegurar a sustentação de suas custosas câmaras de ócio e de gastos autistas. Isto se deve a que eles foram criados por motivação política, não como o resultado de uma autonomia conquistada com base em méritos (econômicos) próprios. Não sei, assim, se o Banco poderia fazer algo a respeito, posto que ele não poderia obrigar o parlamento brasileiro a desconstruir esses arremedos de condados e departamentos (na tradição americana ou francesa). E isso tem a ver com a própria origem da democracia brasileira: ela foi construída do alto, não a partir de bases sadias e auto-sustentáveis.
As assembléias estaduais são, com raras exceções, igualmente custosas, e em grande medida inúteis no que se refere ao poder real, dada a já mencionada centralização tributária no poder central. Elas poderiam contribuir para a construção de uma verdadeira federação no Brasil, desde que suas lideranças políticas se entendessem no sentido de promover uma real reforma tributária, não avançando – como ocorreu em tantas ocasiões anteriores – sobre o bolso dos cidadãos e o caixa das empresas, mas reduzindo a voracidade extraordinária do Estado central por mais taxas e contribuições, que este explora exclusivamente a seu favor. Permito-me sugerir aos membros do Board que o Banco apóie estudos nesse sentido.

Como conclusão geral desta parte política, Messieurs les gouverneurs, eu diria que o Brasil não é um caso sem esperança – como talvez o pessimismo relativo dos parágrafos anteriores possa ter deixado transparecer – mas é um caso muito difícil de reforma política pelas razões que passo agora a expor de forma sucinta. Diferentemente da grande democracia que me foi dado analisar na primeira metade do século 19, o Brasil ostenta uma noção de democracia marcadamente superficial, eu diria até mesmo basicamente super-estrutural, se me permito alugar um conceito muito empregado por outro analista político do meu tempo, o exilado alemão Karl Marx. De fato, assim como o conceito de democracia nos Estados Unidos – como tive a ocasião de registrar no capítulo III, seção (i), do meu livro mais famoso – é essencialmente fundado nos costumes adotados em nível local, sendo um perfeito reflexo do “estado social dos anglo-americanos”, como eu ali me referi, correspondendo, portanto, a uma condição natural de sua formação, no Brasil observa-se o contrário: isto é, quando se fala em democracia, na grande nação sul-americana, se está pensando apenas e tão somente no regime político, na sua forma de organização superior, compreendendo os três poderes e seu relacionamento recíproco, deixando totalmente de lado a organização política do povo em sua base própria, como é o caso ao norte do hemisfério.
Não creio, assim, messieurs, que o Banco possa tomar qualquer iniciativa para mudar esse estado de coisas, posto que não lhe cabe interferir nos assuntos internos dos Estados membros, menos ainda em suas formas de organização política. Se o Brasil pretender ser uma verdadeira federação, caracterizada pela plena responsabilização de seus poderes tradicionais e do seu corpo de representantes eleitos nos diversos níveis dessa federação ainda muito embrionária, além de fazer com o que o Estado sirva à Nação, e não esta àquele, vamos ter de aguardar uma melhoria geral no grau de educação política de sua população, o que reverte a dizer que serão necessários progressos significativos nos níveis de educação formal de seu povo, ainda debatendo-se em meio à má qualidade generalizada de suas escolas e faculdades.

2. O Brasil é uma economia de mercado? O seu pretenso capitalismo é real?
Assim dizem os seus principais líderes políticos e econômicos, senhores membros do Board, e no mesmo sentido insistem alguns movimentos de esquerda anticapitalistas, que continuam a acreditar, em pleno século 21, num conjunto de bobagens econômicas e outros tantos absurdos políticos que tinham sido formulados em meados do século 19 por aquele exilado alemão a que já me referi. Alguns indicadores oficiais, relativos a emprego, renda e fluxos de capitais parecem confirmar esse tipo de assertiva, embora eu tenha fundadas razões para não acreditar nessas afirmações, pelos motivos que exponho a seguir.
Essa pretensa economia de mercado está tão tolhida por tal número de normas e regulamentos estatais que ela me parece se assemelhar em grande medida com minha pátria de origem, nos tempos do roi Louis e seu ministro Colbert, ou seja, um dirigismo exacerbado, complementado por um mercantilismo renitente, no que toca as relações externas. Já foi pior, concordo, quando sob o regime pretoriano dos generais, o Estado central controlava praticamente um terço do produto bruto, por meio de incontáveis empresas e autarquias federais. Subsistem ainda tantas e tão variadas formas de intervenção do Estado na economia que eu chego a duvidar que o Brasil possa, realmente, ser enquadrado na categoria dos países capitalistas e das economias de mercado. Se o for, serão estes de tipos especiais, quase um capitalismo de Estado e um sistema dirigista, com tal fúria legiferante por parte de suas muitas agências especializadas – mormente aquilo que os brasileiros chamam de Receita Federal, não por acaso simbolizado pelo roi des animaux, o leão – que fariam corar o nosso Colbert ou até mesmo provocar inveja no grand Napoléon. Basta considerar o número e a complexidade dos atos tributários (mas não apenas estes), assim como a própria abrangência da legislação que aprofunda a extração fiscal que o Estado impõe contra os pobres contribuintes – simples cidadãos inermes ou empresas indefesas – para confirmar este fato inegável, o que esse capitalismo serve, antes de tudo, ao próprio Estado, nada mais que ao Estado e aos seus inúmeros agentes (et, par Dieu, comme ils sont nombreux!).
O que caracteriza uma sociedade e uma economia de mercado, messieurs les gouverneurs, é precisamente aquilo que eu encontrei na minha primeira missão, à grande nação do Norte: total liberdade de empreendimento, competição aberta em todas as áreas e setores da economia, garantias de acumulação desimpedida para a iniciativa privada, com plenas garantias da Lei e sem a intrusão do Estado, segurança nos contratos e um ambiente de negócios enquadrado por uma regulamentação transparente e estável, com mecanismos fáceis e rápidos de solução de disputas. Enfim, resumindo, mercados livres e disputa aberta entre empresas pelas preferências dos consumidores. Não se pode pretender, messieurs, que normas intrusivas, ausência de transparência e caráter errático da legislação, taxação excessiva, falta de concorrência – e o seu contrário, abundância de cartéis e monopólios –, justiça emperrada e, em certos casos, duvidosa, proteção indevida aos privilegiados locais e crédito facilitado apenas aos que tem acesso aos centros do poder estatal, constituam exemplos de capitalismo ou de uma verdadeira economia de mercado. Non, messieurs, o Brasil ainda tem muito a fazer para que sua retórica capitalista se aproxime um pouco da realidade dos capitalismos realmente existentes no mundo atual.
Ao cabo desta missão de algumas semanas naquele grande país dotado de muitos recursos naturais e um povo trabalhador – mas fracamente instruído, escusado dizer – descobri tantos e tão variados exemplos de anti-capitalismo e de práticas anti-mercado que eu quase seria obrigado a concluir meu relatório dizendo que o Brasil é um dos últimos exemplos de socialismo estatal existentes no planeta. Confesso que nas conversas com alguns dos dirigente atuais tive essa exata impressão, que me foi confirmada, aliás, em vários panfletos universitários – que ainda circulam como se fossem cursos ex-cathedra – e nos mais diversos veículos de sua vibrante imprensa, em artigos de opinião que pediam, não a redução do Estado, mas mais Estado, mais agências públicas, mais normas e regulamentos, enfim, mais do mesmo que já vem sendo servido aos brasileiros desde muito tempo.
Pode ser que o povo brasileiro – ou pelo menos aquela parte que meu colega Machiavelli chamava de popolo minuto, mas, talvez, até mesmo alguns representantes do popolo grosso – queira, efetivamente, mais Estado, que lhe parece a única forma de lhes garantir alguns direitos – eu diria algumas migalhas, do grande banquete estatal – e alguma assistência, num quadro de relativa anomia dos órgãos do Estado e de mau funcionamento de suas muitas agências. Mas os brasileiros não se dão conta de que esse mesmo Estado protetor – que no passado já foi um indutor de desenvolvimento, mas que hoje se tornou seu principal obstrutor – atua agora como um parasita grudado em suas veias produtivas, um sanguessuga de seus recursos próprios, um extrator impiedoso das riquezas obtidas com sua incansável capacidade de trabalho. Os brasileiros gostam do Estado, cultuam o Estado, querem mais Estado, o que eu verdadeiramente não posso compreender, messieurs, senão como demonstração de uma miopia coletiva que um dia vai tornar exaurida toda a nação brasileira.
Minhas recomendações nesse particular, messieurs, que podem ser encontradas em versão mais completa e exaustiva em meu relatório final, são no sentido de que o Banco possa impulsionar a adoção de um conjunto de reformas – tributária, administrativa, fiscal, educacional, sindical e trabalhista. Enfim, reformas basicamente microeconômicas, posto que a parte macroeconômica parece hoje bem encaminhada, à exceção da já referida parte fiscal – com a intenção de aproximar o Brasil de uma verdadeira economia de mercado e de um sistema capitalista digno desse nome, sem mais privilégios para banqueiros e para pretensos ‘capitalistas’ nacionais que vivem amarrados às tetas do Estado. O objetivo seria despertar o imenso potencial de empreendedorismo que atualmente se encontra adormecido no meio social, liberar as imensas forças produtivas capazes de explorar seus gigantescos recursos naturais de forma responsável e sustentável.
Termino em Brasília este resumo de meu diagnóstico, messieurs, prometendo entregar o relatório completo assim que retorne a Washington, que eu conheci ainda cheia de barro e de mosquitos, mas que hoje impressiona como capital de um império, pardon, de uma grande economia de mercado, vibrante e constantemente refeita em seu vigor juvenil. À bientôt.

Pour Monsieur Alexis de Tocquevile, son assistant:
Paulo Roberto de Almeida

Um comentário:

Anônimo disse...

Sugerimos que em uma próxima visita M.Tocqueville venha acompnhado de Virgílio como "guia"!

Vale!