Feijão capitalista
O Estado de S. Paulo, terça-feira, 22 de janeiro de 2013
Boa
parcela da opinião pública acredita que a comida do povo vem do
agricultor familiar, enquanto o agronegócio capitalista serve ao
comércio exterior. Ledo engano. O equívoco nasce de uma ideia antiga,
superada. Hoje manda a integração produtiva no campo.
A
começar do ciclo açucareiro colonial, no Nordeste, a historiografia
consagrou distintas funções, e certa oposição, entre a grande
propriedade rural, dominante, e a agricultura de subsistência, que vivia
em suas beiradas. Existia, realmente, um dualismo. Escritores famosos,
como Caio Prado Jr., sempre descreveram a grande lavoura - o latifúndio
ou a plantation - como aquela destinada à exportação, de açúcar, cacau
ou borracha. Produzir alimento básico era coisa de pobre.
Quando
chegou o ciclo da mineração, no século 18, o deslocamento da população -
a maioria escrava - rumo ao Sudeste, exigiu fortalecer a produção de
alimentos. Desde os pampas gaúchos, dedicado à pecuária e ao seu valioso
charque de carne, por todo o Centro-Sul surgiram novos agricultores,
animados por atenderem o consumo interno criado nas atividades auríferas
das Minas Gerais.
Mais tarde, na economia
cafeeira de São Paulo, já livre da escravidão, o colonato favoreceu o
cultivo de gêneros alimentícios, seja entre as ruas do cafezal novo,
seja em áreas destacadas da fazenda. Caminhava a economia livre. Mas a
crescente demanda nas cidades brasileiras trouxe à tona a questão do
abastecimento urbano. Em 1901, relatava Alberto Passos Guimarães - A
Crise Agrária, 1978 -, quase 43% das importações brasileiras, em valor,
representavam produtos básicos, incluindo feijão, fava, milho, arroz,
banha e manteiga. Com escassez os preços elevaram-se, estimulando os
pequenos agricultores. Plantar comida passava a oferecer lucro.
A
partir da grande crise mundial, dos anos 1930, a diversificação da
economia brasileira, na cidade e no campo, aprofundou-se. Décadas
depois, com o forte êxodo rural alargando as metrópoles, a necessidade
do abastecimento nas periferias transformou definitivamente a
agricultura de subsistência em próspero negócio. Além do tradicional
arroz com feijão, os moradores do asfalto exigiam ovos, carnes, verduras
e legumes, frutas, leite; aos roceiros bastava produzir e vender. Daí
surgiram os Ceasas, sacolões, varejões e, claro, os supermercados. Mudou
a distribuição no varejo dos alimentos.
Mudou
também, e muito, o caráter da produção rural. Ela ganhou escala e
tecnologia, cresceu em produtividade, integrou-se às agroindústrias,
aprendeu a comercializar, buscou financiamento. O raciocínio guarda
lógica: as cidades brasileiras jamais teriam sido abastecidas - e bem ou
mal o foram - sem uma grande transformação ocorrida no campo. Que
prossegue acelerada.
Nesse processo histórico,
as análises dualistas sobre a agricultura perderam razão. Sim, existem
ainda os tradicionais agricultores de subsistência, a maioria
empobrecida no semiárido nordestino. Enfraqueceu-se, porém, com a
modernização agrária a antiga oposição entre a grande e a pequena
produção. Ambas, com tecnologia, passaram a ser regidas pela
lucratividade do mercado, seja interno, seja externo. Assim, tornaram-se
complementares, e muitas vezes se confundiram. Vejam alguns exemplos.
Típica
da velha família rural, a banha de porco acabou substituída na cozinha
pelos óleos vegetais. O mais barato, de consumo popular, origina-se do
esmagamento do grão da soja. Pois bem, no Paraná e no Rio Grande do Sul,
grandes plantadores da oleaginosa, 90% da produção advém de
agricultores familiares, ligados às grandes cooperativas exportadoras.
Ou seja, a mesma agricultura que gera divisas garante a fritura na mesa.
Sem distinção.
No café, a maior parte da safra
brota das lavouras mineiras, grandemente ligadas às cooperativas. A
Cooxupé, a maior delas, aglutina 12 mil cafeicultores, sendo 80%
pequenos produtores rurais. Do embarque total de grãos nos pátios da
cooperativa (2011), perto de 15% se destinou às torrefadoras do mercado
interno; a grande parte seguiu exportada. Pequenos, juntos, ficam
grandes.
Em cada ramo da agropecuária nacional
se pode verificar essa junção entre o agronegócio capitalista e a
produção familiar, sendo difícil separar, no destino, o mercado interno
do externo. Na cultura da cana, em que preponderam os grandes usineiros,
cerca de 70% do açúcar se exporta, mas o etanol, que enche o tanque dos
veículos, dos pobres principalmente, fica aqui dentro.
Quem
produz frango, o agricultor familiar ou o agronegócio? Resposta fácil:
ambos. As empresas frigoríficas representam grandes negócios, privados
ou cooperativados; já os avicultores, a elas integrados, são
familiares.
E o feijão? A maioria da produção,
é verdade, advém de pequenos produtores. Estes, entretanto, não se
configuram mais como de subsistência, vendendo apenas o excedente. Que
nada. Espelham agricultores altamente tecnificados.
Nos
Estados Unidos, sabe-se, a mecanização da agricultura provocou, ao
mesmo tempo, o aumento da escala de produção e o fortalecimento da
gestão familiar, preponderante por lá. Tal processo se caracteriza, por
aqui, especialmente em Mato Grosso, onde enormes fazendas produzem soja e
milho, nas lavouras tocadas pelos próprios produtores e seus filhos.
Negócios gigantes, familiares.
Essas histórias
mostram que ser familiar não necessariamente significa ser pequeno. E
comprovam que pequeno agricultor pode, perfeitamente, participar do
agronegócio, quer contribuindo para a exportação, quer alimentando o
povo.
Pode acreditar: inexiste oposição entre agricultura familiar e agronegócio. O feijão virou capitalista.
* XICO GRAZIANO É AGRÔNOMO, FOI SECRETÁRIO DE AGRICULTURA E SECRETÁRIO DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO. E-MAIL:
XICOGRAZIANO@TERRA.COM.BR
Um comentário:
Os pequenos produtores rurais precisam de consumidores capitalizados. Afinal ninguém trabalha pra perder dinheiro. Grande parte do capital brasileiro vem justamente do agronegócio que gera inúmeros empregos indiretos.
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