Sistema multilateral de comércio e esquemas de integração: quão compatíveis?
O sistema multilateral de comércio contemporâneo, teoricamente administrado pela Organização Mundial de Comércio (OMC), convive, na prática, com dezenas, mais exatamente centenas de acordos bilaterais ou plurilaterais de comércio preferencial (estes bem mais numerosos), de zonas de livre comércio (relativamente comuns, atualmente), de uniões aduaneiras (poucas) ou de mercado comum (de fato apenas um, a União Europeia, embora vários outros pretendam sê-lo, sem de verdade conseguir). O Brasil participa, cronologicamente, de uma área de comércio preferencial – a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), criada em 1980 para substituir uma anterior tentativa frustrada de livre comércio, a Alalc, fundada em 1960 – e de uma “união aduaneira em implementação”, o Mercosul, criado em 1991 para tornar-se um mercado comum em quatro anos, mas que não conseguiu completar sua zona de livre comércio e que sequer conseguiu fazer funcionar de modo adequado os requerimentos básicos de sua união aduaneira, que seria a efetiva aplicação da Tarifa Externa Comum e uma atuação conjunta dos membros com sentido convergente em torno de uma política comercial uniforme. O Mercosul integra, teoricamente, a Aladi.
Muitos outros esquemas regionais ou sub-regionais de integração surgiram, sobreviveram ou estagnaram no curso do último meio século, entre os quais o Grupo Andino (1969), oportunamente convertido na Comunidade Andina de Nações (CAN). Ela pode ser, também teoricamente, considerada uma experiência de união aduaneira – na verdade, tentativamente de mercado comum – que tampouco realizou seus objetivos. Existem diversos acordos preferenciais ou de associação que vinculam o Brasil e o Mercosul a países da CAN, a começar por diferentes acordos de alcance parcial (AAPs), ou de complementação econômica (ACEs) contraídos no âmbito da Aladi, embora todos eles tenham um escopo menos ambicioso – pela cobertura aduaneira e pelo grau de liberalização tarifária – do que seria no caso da existência de um único acordo de livre comércio, plenamente operacional, entre os dois blocos de integração.
Em todo caso, a intensidade de comércio entre o Brasil e o Mercosul e os demais países da CAN, enquanto grupo (menos efetivo) ou individualmente, é bem maior, devido a fatores de proximidade geográfica e de laços historicamente consolidados, do que os tênues laços existentes entre o Brasil, de um lado, e países da Comunidade dos Estados do Caribe (Caricom) ou do Sistema de Integração Centro-Americano (Sica), de outro. O Brasil não está presente nesses dois blocos, tanto por razões de distanciamento físico, da penúria de vínculos diretos de transporte, quanto da falta de tradição no estabelecimento de acordos comerciais, inclusive porque o funcionamento do Mercosul demandaria negociações conjuntas entre os dois blocos (e não é seguro de que se poderia contar com perfeita unanimidade de visões e intenções em cada um deles).
A existência desses blocos, ou mesmo de acordos não perfeitamente funcionais, poderia, sempre teoricamente, ser positiva para o Brasil, para o Mercosul, e para o próprio sistema multilateral de comércio regido da OMC, desde que todos eles fossem guiados pelo espírito do chamado “regionalismo aberto”, ou seja, de acordos de tipo preferencial mas que ainda assim preservem os princípios básicos dos entendimentos relativos às zonas de livre comércio ou união aduaneiras consagrados nos textos fundacionais (Artigo 24 do Gatt-1947), nos entendimentos posteriores (Parte IV do Gatt, de 1964, cláusula de habilitação da Rodada Tóquio, de 1979) e no memorando de entendimento sobre o Artigo 24 resultante da Rodada Uruguai (de 1993). Cabe, de fato, a expressão teoricamente, uma vez que muitos desses acordos, mesmo os simples esquemas de comércio preferencial podem ser discriminatórios em relação a terceiras partes, ou seja, países e territórios aduaneiros não membros.
A tensão inerente aos princípios potencialmente liberais do sistema multilateral de comércio e a seus próprios dispositivos de exceção (artigo 24 e subsequentes), que permitem fazer discriminação contra os não membros de acordos preferenciais, está presente desde o início do Gatt, e de fato, historicamente, desde os primeiros acordos consagrando versões limitadas da velha cláusula de nação mais favorecida. Com o surgimento do Gatt, e a versão ilimitada e incondicional de nação mais favorecida, diminuíram as chances de tratamentos especialmente discriminatórios, mas não resta dúvida de que a possibilidade permanece, senão sobre a base de princípios e regras consolidados nos instrumentos existentes, pelo menos na prática, dada a existência de dispositivos especiais que abrem espaço algum tipo de discriminação comercial.
Em que medida os esquemas sub-regionais de integração afetam o Brasil?
O Brasil, ou o Mercosul, não é tão afetado pela existência de acordos como os do Caricom, do Sica ou da CAN, quanto pela existência em paralelo de acordos bilaterais ou plurilaterais que estes blocos, ou seus países individualmente, possam ter contraído ou manter com parceiros mais poderosos, como os Estados Unidos e a União Europeia. O comércio interno aos blocos regionais pode ser, ou não, importante em termos de volume, o que depende mais do grau de complementaridade entre as economias nacionais do que propriamente dos acordos formais existentes: esquemas de livre comércio bilaterais (mantidos com aqueles dois grandes parceiros) ou plurilaterais (como o Nafta, por exemplo) conseguem ser mais abrangentes do que os esquemas puramente intrarregionais.
Com efeito, o comércio recíproco entre os países membros desses blocos não é provavelmente tão importante – com algumas exceções – quanto os intercâmbios, regulados ou não por algum acordo comercial, mantidos com parceiros mais poderosos. Todos esses países, ou quase todos – no caso do Caricom, todos eles; nos casos do Sica e da CAN, existem exclusões – mantém acordos preferenciais, de associação ou de livre comércio com os Estados Unidos e com a União Europeia, com dispositivos especiais e profundidades diversas em cada um deles. Existe, assim, um mosaico de situações que pode tanto facilitar quanto dificultar o acesso de terceiras partes a seus mercados respectivos, tanto quanto os fluxos de comércio mantidos ao exterior desses acordos podem ser afetados por algumas das preferências trocadas entre os primeiros.
Tanto é assim que empresas brasileiras procuraram contornar a não existência de acordos diretos com esses grandes mercados – o que foi provocado, por exemplo, pela implosão deliberada das negociações do projeto da Alca, proposto pelos Estados Unidos, pela ação conjunta dos governos Lula, Kirchner e Chávez – mediante sua implantação física no território de alguns desses países, no Caribe ou na América Central, para a partir daí poder vender ao mercado dos Estados Unidos produtos já beneficiados com acesso preferencial. As politicas comerciais protecionistas ou defensivas adotadas por Brasil e Argentina (e por extensão pelo Mercosul) fazem mais mal ao comércio exterior brasileiro do que a existência desses blocos preferenciais.
Criação e desvio de comércio são dois velhos fenômenos vinculados aos esquemas regionais de integração, plenamente identificados desde antes da existência do Gatt por estudiosos como Jacob Viner, que estudou o potencial discriminatório suscetível de ser produzido pelos blocos comerciais com base nos acordos pioneiros efetuados na Europa ou pela Comunidade Britânica de nações (por meio daImperial Preference adotada na conferência de Ottawa de 1932, por exemplo). O Mercosul já foi acusado de provocar mais desvio do que criação de comércio, mas atualmente parece ser bem mais afetado pelo segundo processo, uma vez que não conseguiu efetivar praticamente nenhum acordo comercial significativo com outros blocos ou países desde que foi teoricamente consolidado como união aduaneira. A relutância da Argentina, e do próprio Brasil, em abrir-se em esquemas mais profundos de liberalização comercial explica essa frustração, o que tem preocupado a comunidade empresarial brasileira, ciente das perdas implícitas a qualquer isolamento das grandes correntes de comércio.
Existe superposição de funções entre os diversos esquemas de integração?
Dos três esquemas aos quais o Brasil está associado atualmente, a Aladi, o Mercosul e a Unasul, é praticamente inevitável alguma superposição de funções, entre eles. Mas os três órgãos não podem ser colocados no mesmo plano institucional e, sobretudo, não possuem os mesmos papeis, sequer funções similares, no quadro dos órgãos de integração regional da América Latina. O fato de haver temas comuns não significa que eles tenham surgido com os mesmos objetivos ou se destinam a preencher funções similares, ou semelhantes, a não ser pela designação genérica, em alguns casos equivocada, de “integração”. Essa aparente unidade conceitual em torno do objetivo da integração regional – no caso do Mercosul sub-regional – não pode descurar a realidade de que eles são muito diferentes, e possivelmente vão continuar existindo em paralelo, com alguma superposição de funções, mas não vão se fundir, não vão desaparecer, e tampouco coordenar-se para uma cooperação ideal visando alcançar objetivos semelhantes. Vejamos por que é assim.
A Aladi é o mais antigo de todos: ela tem origem na frustrada Alalc (1960), que procurou criar uma zona de livre comércio na América Latina sem que os países estivessem de verdade preparados para atender todos os compromissos do mandato original e sem, provavelmente, possuir a intenção real de cumprir as etapas e condições requeridas para o atingimento do objetivo final. Ela foi, assim, substituída, pela Aladi que, a despeito do nome mais ambicioso, representou de fato um recuo em relação ao livre comércio, para aspirar tão somente a acordos preferenciais de comércio de alcance parcial e limitado (em consonância com as novas disposições da chamada “cláusula de habilitação”, pela qual partes contratantes ao Gatt menos desenvolvidas estavam autorizadas a contrair entre si acordos preferenciais sem infringir disposições do Artigo 24 do Gatt original). Em outros termos, a Aladi possui objetivos bem delimitados que, mesmo considerando as metas de longo prazo de um espaço ampliado de liberalização comercial, dificilmente transformará a região numa área de livre comércio efetiva. Os países a utilizam – talvez fosse o caso de dizer as empresas, em especial as multinacionais – para objetivos delimitados de acessos recíprocos em setores definidos, de acordo com estratégias de alocação ótima de investimentos e de divisão de mercados, de acordo com um planejamento de tipo microeconômico.
O Mercosul, por sua vez, nasceu de uma percepção de que os dois grandes parceiros do Cone Sul não poderiam ficar indiferentes à onda de acordos minilaterais que estavam sendo negociados a partir dos anos 1980, quando o sistema multilateral de comércio perdeu o grande impulso liberalizador do imediato pós-Segunda Guerra. Naquela época, a então Comunidade Econômica Europeia estava concretizando seu projeto de mercado unificado, com a ameaça de converter-se em uma fortaleza comerciais, ao passo que os Estados Unidos e o Canadá negociavam uma extensão geral do seu acordo de livre comércio automotivo dos anos 1960, no sentido de estabelecer uma zona de livre comércio, abrangendo temas e objetivos não cobertos, então, pelos dispositivos relativamente limitados do Gatt-1947 e alguns dos protocolos setoriais.
O Mercosul avançou relativamente bem nos primeiros anos, mas logo deparou-se com tarefas mais exigentes em liberalização e, sobretudo, em coordenação das políticas econômicas e setoriais dos países membros, com o que diminuiu o ímpeto original de caminhar rapidamente para um mercado comum. A bem da verdade, nem o livre comércio tornou-se efetivamente universal, nem a Tarifa Externa Comum foi implementada de maneira uniforme e abrangente para cobrir toda a pauta aduaneira comum dos países membros. Exceções nacionais persistiram nos dois âmbitos, e dinâmicas diferenciadas de estabilização econômica nos dois grandes países fizeram com a coordenação de políticas macroeconômicas – em especial a cambial, mas também a fiscal e a monetária – fosse impossível de ser realizada na prática, a despeito de solenes proclamações em contrário. No meio do caminho, o Mercosul enfrentou alguns percalços, mas poderia ter continuado a avançar, se não fossem orientações totalmente contrárias ao espírito original do Tratado de Assunção, que passaram a guiar as ações desses dois países, a partir das administrações de Lula no Brasil e de Kirchner na Argentina, ambas inauguradas em 2003. Desde então, o Mercosul só fez recuar no plano do comércio e da abertura econômica, ainda que criando novos dispositivos de caráter político e social, que não estavam contemplados no tratado original, a não ser de modo muito vago e indireto.
A Unasul, finalmente, a despeito de uma retórica ainda mais ambiciosa quanto aos objetivos da integração na América do Sul, não pretende (de fato não poderá) realizar esse objetivo, a não ser de forma totalmente vaga e sem dispor de qualquer meta precisa quanto aos meios e instrumentos pelos quais esse objetivo poderia ser alcançado. A Unasul deriva de uma iniciativa do governo Lula no sentido de criar uma espécie de “linha auxiliar” para o Mercosul, no terreno político e da coordenação dos países sul-americanos, podendo também servir de cobertura para projetos de integração física na região, sem precisar retomar a Iniciativa de Integração Sul-Americana que tinha sido iniciada no governo Fernando Henrique Cardoso, e sem precisar abrigar os objetivos mais comercialmente abrangentes com os quais o México já estava comprometido no âmbito dos seus outros compromissos de livre comércio na América do Norte e alhures. A estratégia brasileira não resultou totalmente satisfatória, uma vez que o projeto original – a Comunidade Sul-Americana de Nações – foi, ainda na fase constitutiva, parcialmente sabotado por outros países sul-americanos e, pouco depois, deliberadamente desviado de seu curso inicial pelo caudilho venezuelano Hugo Chávez, que fez aprovar o tratado da Unasul na Isla Margarita, em 2008, e colocou o seu secretariado na capital de um aliado, o Equador de Rafael Correa.
Do ponto de vista prático, não há nenhuma possibilidade de que a Unasul realize a integração econômica sul-americana, inclusive porque ela serve apenas de tribuna retórica para os presidentes da região, e vem sendo utilizada, e abusada, de forma totalmente enviesada pelos chamados países bolivarianos, que se servem de uma suspeita legitimidade para justamente legitimar uma erosão sensível dos princípios democráticos em seus próprios países. Suas reuniões têm sido consistentemente políticas, e apenas políticas, sem qualquer conteúdo visível de liberalização comercial, e muito menos de abertura econômica, inclusive porque os ditos bolivarianos operam um retrocesso notável para fases ultrapassadas da história econômica latino-americana, ao promoverem exercícios controversos de nacionalismo econômico, de intervencionismo estatal, de dirigismo comercial introvertido e defensivo, ademais de todas as demais ofensas contra direitos proprietários e o desrespeito a normas contratuais, inclusive no que respeita a proteção do investimentos estrangeiros (ações de que o próprio Brasil foi vítima, na Bolívia, por exemplo).
Em resumo, a Aladi vai permanecer como um cartório de registro de acordos parciais e limitados de abertura mercantilista na área comercial, o Mercosul continuará como uma tribuna mais política do que efetivamente econômica pelos tempos que correm, e a Unasul seguirá sendo utilizada para outros objetivos políticos, e manipulada por países que pouco compromisso mantêm com um projeto realista e ordenado de integração econômica ou comercial. Não estranha que a região esteja sendo fragmentada em blocos diversos, e que a Aliança do Pacífico tenha sido criada por quatro países – Chile, Peru, Colômbia e México – bem mais voltados para objetivos pragmáticos de natureza econômica do que para a retórica gasta de uma integração ilusória.
O Mercosul está condenado ao desaparecimento ou poderá sobreviver?
Nunca ocorreu, a propriamente dizer, a realização dos objetivos estatutários do Mercosul, a despeito de alguns visualizarem uma “época áurea” nos primeiros nove anos de existência do bloco. Antes de 2003, ou mais exatamente antes de 1999, os países membros pareciam sinceramente comprometidos em alcançar os objetivos originais, procurando resolver as diferenças quanto aos ritmos da integração por meio de projetos concretos para superar as dificuldades, envidando esforços reais para continuar a liberalização do comércio recíproco e realizar a coordenação tentativa de suas políticas econômicas nacionais.
A partir da crise cambial de 1999 no Brasil, e do aprofundamento da crise do regime de conversibilidade na Argentina, na mesma época, as divergências quanto às medidas a serem adotadas, nacionalmente ou de modo coordenado no bloco, foram aprofundadas. As administrações seguintes, de Lula no Brasil, e de Nestor Kirchner na Argentina, se desvincularam de modo claro dos objetivos originais do Mercosul, para impulsionar em seu lugar agendas políticas de reduzido, ou praticamente nenhum, conteúdo econômico ou comercial. Não cabe, no entanto, nenhuma culpa ao Mercosul, enquanto bloco, nem pelo lado institucional, nem pelo seu funcionamento, uma vez que a responsabilidade pelos fracassos e retrocessos continuados incumbe inteiramente aos países membros, em especial aos dois maiores.
Da mesma forma, não se pode atribuir à diplomacia profissional brasileira qualquer responsabilidade pelas turbulências surgidas nos últimos dez anos, uma vez que as principais decisões quanto ao curso adotado pelo Mercosul foram todas tomadas no âmbito do poder executivo, ou seja, em nível presidencial. A orientação seguida pela diplomacia presidencial foi a de tentar fazer do Mercosul um instrumento a serviço de uma pretensa vontade de liderança brasileira na região, que jamais foi impulsionada pela diplomacia profissional, pelo fato desta conhecer exatamente os limites desse tipo de exercício numa região fragmentada por visões divergentes sobre sua união política.
O Mercosul sempre foi, desde a origem, um projeto prioritário da diplomacia profissional e das políticas presidenciais no âmbito externo, mas essas percepções podem ter variado tanto em função da dinâmica econômica em curso no Brasil e nos demais países, quanto em função de objetivos políticos dos diversos presidentes ao longo do tempo. Pode-se dizer que José Sarney e Fernando Henrique Cardoso tinham uma noção pragmática da integração sub-regional, de seus limites e possibilidades, ao passo que Lula esteve animado por objetivos que pouca relação mantinham com os objetivos originais do bloco, em especial sem conexões mais afirmadas com a abertura econômica e a liberalização comercial.
O objetivo de um espaço econômico integrado no Cone Sul, e progressivamente na América do Sul, é de fato prioritário, não apenas para a diplomacia brasileira, mas sobretudo para o Brasil, enquanto economia e na condição de um ator regional de certa importância geopolítica. Os governos Sarney e FHC procuraram, de modo bastante engajado, impulsionar o bloco pela vertente de seus objetivos originais, mas a partir do governo Lula pode-se dizer que o Mercosul passou a ser utilizado para cumprir finalidades que pouca relação mantinham com suas metas econômicas e comerciais. Mas, mesmo esses objetivos não foram satisfatoriamente cumpridos, uma vez que a Argentina, a partir do governo Kirchner, desvinculou-se completamente do espírito do bloco para impulsionar seus próprios projetos de “reindustrialização” do país.
Desde 2003, de modo sistemático, a Argentina adotou uma postura abertamente protecionista, inclusive e principalmente contra os demais membros do Mercosul, o Brasil em especial, cujo governo tolerou, e de certa forma foi conivente, com as medidas ilegais, arbitrárias e totalmente contrárias ao espírito e à letra do tratado de Assunção, e até contra normas do sistema multilateral de comércio. Em consequência, o comércio intra-Mercosul recuou, tanto para dentro, quanto no que se refere a processos de negociações comerciais com terceiras partes, no âmbito multilateral e na interface inter-regional (com a UE, entre outros).
Mais uma vez, não existe nada de errado com o Mercosul em si, mas ele não conseguirá recuperar seu perfil e objetivos originais a menos de uma mudança radical na postura dos seus membros principais. A mudança, na verdade, teria de ser um retorno ao mandato comercial e econômico inscrito no tratado de Assunção, sem mais desvios indevidos pelas áreas política ou pretensamente social. A diplomacia brasileira, pelo seu staff profissional, tem plena consciência de que o bloco foi desviado de suas metas originais, mas a responsabilidade por essa situação incumbe inteiramente às lideranças presidenciais.
O Mercosul pode servir para a integração do Brasil a cadeias produtivas globais?
Teoricamente sim, mas qualquer esquema de integração tem de guardar estreita correspondência com as demais políticas setoriais dos países membros, no sentido de fazê-los aproveitar as economias de escala e as possibilidades de modernização tecnológica e produtiva que normalmente estão associadas às ações em favor da integração, com vistas a realizar o objetivo econômico maior da inserção global. A orientação em favor da integração regional, estrito senso, pode ajudar na coordenação de políticas comuns nas organizações multilaterais, tanto quanto na atração conjunta de investimentos externos, passos essenciais para a inserção produtiva de amplo escopo.
No caso do Mercosul, a articulação de votos nos organismos internacionais só tem valido, no que tange a integração, em relação a temas comerciais e econômicos estritamente vinculados aos objetivos listados no tratado de Assunção, e não para outros objetivos políticos que não respondem ao mandato original. Na prática, o desvio dos objetivos originais do Mercosul afastou o Brasil, e o resto da região, do atingimento dessas finalidades vinculadas a cadeias produtivas e inserção nas cadeias globais da economia mundial. Em outros termos, o Mercosul deixou de ser visto, pelos grandes investidores globais, como uma entidade homogênea, dotada de políticas comuns.
Nos últimos dez anos, a integração na América Latina de fato recuou, o que explica que alguns países decidiram optar por outros esquemas, mais flexíveis, de integração, e avançar no terreno da liberalização comercial, inclusive com objetivos globalizantes. Este é o caso, justamente, da Aliança do Pacífico, menos voltada para o comércio recíproco do que para sua inserção nos grandes arranjos que estão ocorrendo no âmbito da bacia do Pacífico. No caso do Mercosul, ocorreu certa desvinculação da concepção original, o que explica manifestações do empresariado brasileiro em favor de uma caminhada novamente solitária na região e fora dela.
Assim, a despeito dos erros de políticas econômicas, da introversão econômica e do protecionismo comercial, cometidos pelos dois grandes países do bloco, as empresas brasileiras continuaram seu movimento de expansão na região, pois tais movimentos correspondem a necessidades objetivas de sua capacidade de projeção competitiva, podendo contar inclusive com o apoio de alguns órgãos governamentais – como o BNDES – para financiar iniciativas mais ambiciosas. Mas, essas iniciativas podem ser erráticas e descontinuadas, o que explica algum recuo na penetração comercial dos vizinhos pelas empresas nacionais. Na prática, são os Estados Unidos e a China que estão ganhando novos espaços na região – em função de acordos comerciais, ou de ganhos significativos com a exportação de produtos primários para o gigante asiático – em detrimento do Brasil e do Mercosul.
Se o Mercosul estivesse de verdade unido em torno de objetivos comuns as posições dos países estariam alinhadas nas negociações multilaterais da Rodada Doha ou no longuíssimo processo negociador com a União Europeia, o que não ocorre de fato. Para que os objetivos teóricos de um processo de integração sejam plenamente realizados, seria preciso que as políticas econômicos dos membros, em especial as políticas comerciais e industriais, ademais da coordenação macroeconômica entre eles, correspondam aos ideais da abertura econômica e da liberalização comercial. Não parecer ser o caso atualmente, o que não quer dizer que tal situação não possa mudar. Para isso, seria provavelmente necessária a assunção de lideranças políticas com perfil de estadistas nos principais países membros. Não precisaria ser uma condição sine qua, se o processo de construção do Mercosul fosse mais institucionalizado e conduzido de maneira burocrática pelas diplomacias nacionais, mas o fato é que o curso do bloco tem sido mais determinado pelo que decidem politicamente seus presidentes do que comanda a agenda econômica dos tratados firmados pelos Estados membros.
O Mercosul não vai deixar de existir, mas sua relevância política e sua importância econômica para os países membros, para o Brasil em particular, tem diminuído, de maneira provavelmente proporcional, no sentido inverso, à expansão do protecionismo comercial e do intervencionismo econômico nos grandes sócios do bloco. Não é seguro que ele volte a se recuperar plenamente de seu atual estado letárgico, mas a superação da situação atual vai exigir algo mais do que discursos vazios em favor da integração, e ações concretas para se retomar o curso original do processo.
Paulo Roberto de Almeida [Hartford, 18/05/2014]
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor no Centro Universitário de Brasília – Uniceub (pralmeida@mac.com )
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