Um texto antigo, mas aparentemente ainda válido.
Em vista da quebra de velhos links e de algumas imperfeições textuais, decidi incorporá-lo novamente a este blog.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 16 de agosto de 2015
Dez Regras Modernas de Diplomacia
Paulo Roberto de Almeida
Chicago, 22 de julho; São
Paulo-Miami-Washington, 11-12 de agosto de 2001
Passei minhas férias de
verão (setentrional) na companhia de um pequeno livro para o qual minha atenção
tinha sido despertada pelo Embaixador Sérgio Bath, aliás sob recomendação
inicial do Emb. Seixas Corrêa, ambos apreciadores de velhos manuscritos e de
tudo o mais que se refira à história diplomática. Trata-se de um opúsculo hoje démodé
(mas provavelmente um utilíssimo manual para meus antecessores do oitocentos)
cujo autor, um diplomata monárquico português da segunda metade do século XIX,
Frederico Francisco de la Figanière, o intitulou modestamente Quatro regras
de diplomacia (Lisboa: Livraria Ferreira, 1881, 239 p.). Retirei-o da
Biblioteca do Congresso americano, infalível para esse tipo de trouvaille,
e passei bons momentos em sua companhia, 120 anos depois de sua publicação
original (e, ao que parece, única).
O prazer me foi dado não
tanto pelo enunciado, aliás pouco extensivo, das ditas quatro regras de
diplomacia – manifestamente desadaptadas à diplomacia do século XXI – mas mais exatamente pelos seus saborosos anexos
históricos, uma "colecção de modelos das principaes especies de escriptos
diplomaticos", entre elas cartas da época do tratado de Utrecht (1713), um
protesto contra a violação de imunidades no período da Revolução francesa (o
pobre enviado português à corte de Luís XVI jogado à prisão, como um reles
conspirador aristocrata), além de outros "escriptos" do Congresso de
Viena ou relativos ao Brasil imperial. Segundo Figanière, "Dos diversos
ramos do serviço público, o diplomático é sem dúvida aquele em que ao agente é
concedida maior liberdade no modus operandi" (p. 9), o que, se era
correto em sua época de comunicações lentas e precárias, há muito deixou de
corresponder à realidade de uma diplomacia cada vez mais enquadrada de perto,
não apenas pela Secretaria de Estado " com a qual estamos em contato as 24
horas do dia, praticamente " mas seguida com atenção pela imprensa, pelos
grupos de interesse e, agora também, pelas hordas de "antiglobalizadores"
conectados às redes internéticas de uma aldeia decididamente global.
Enfim, quais eram essas
regras que apareciam como um imperativo moral, quase que de ordem kantiana, ao
colega lusitano de mais de um século atrás? Elas eram o objeto de quatro curtos
capítulos de observações e de recomendações a eventuais candidatos à carreira
diplomática:
I. Agradar;
II. Ser leal;
III. Antepor a palavra à pena;
IV. Ter concisão e ordem no redigir.
Como se vê, nada de muito
esclarecedor ou propriamente entusiasmante, para a prática atual, a não ser
talvez a última das regras, que vinha com uma advertência ainda válida para os
tempos que correm: "O estilo prolixo e difuso é um defeito que cumpre
evitar nas composições diplomáticas" (p. 70). Dois pontos para nosso
antecessor português, pois que ele também achava que, de todos os deveres, o
primeiro era o de bem servir a pátria, algo que não custa relembrar atualmente
(e de modo permanente).
Deixo de lado as regras relativas a agradar
e ser leal (ao seu real senhor, ora pois), mais adequadas talvez à "época
das cabeleiras empoadas, dos peitilhos de renda, dos passeios em cadeirinhas,
(ou) da pena de pato, aparada entre boas pitadas de rapé", nas palavras de
outro antecessor meu da belle époque, José Manuel Cardoso de Oliveira
(in A moderna concepção da diplomacia e do comércio, 1925). A terceira
regra, a rigor, também apresenta sua utilidade, uma vez que ainda costumamos
tratar oralmente de algum assunto importante, antes de oficializá-lo mediante
uma nota diplomática ou um aide-mémoire. Em todo caso, inspirado no
exemplo do ilustre representante da diplomacia lusa de tão saudosa memória –
ela foi, com toda a sua habilidade no navegar entre os interesses sempre
divergentes dos principais poderes europeus, a base de nossa diplomacia
imperial, reconhecidamente excelente para os padrões da época, mesmo em escala
comparativa com outros países mais avançados economicamente –, resolvi
arriscar, igualmente, formular minhas próprias regras modernas de diplomacia,
esperando que elas possam ser bem recebidas por meus colegas de profissão mais
jovens. Aqui vão elas, em formato reduzido, geralmente mais pensadas em função
do ambiente multilateral que é o comum na vida atual da diplomacia, do que para
situações de relações bilaterais.
1. Servir a pátria, mais do que aos governos, conhecer
profundamente os interesses permanentes da nação e do povo aos quais serve; ter
absolutamente claros quais são os grandes princípios de atuação do país a
serviço do qual se encontra.
O diplomata é um agente do
Estado e, ainda que ele deva obediência ao governo ao qual serve, deve ter
absoluta consciência de que a nação tem interesses mais permanentes e mais
fundamentais do que, por vezes, orientações momentâneas de uma determinada
administração, que pode estar guiada – mesmo se em política externa isto seja
mais raro – por considerações partidárias de reduzido escopo nacional. Em
resumo, não seja subserviente ao poder político, que, como tudo mais, é
passageiro, mas procure inserir uma determinada ação particular no contexto
mais geral dos interesses nacionais.
2. Ter domínio total de cada assunto, dedicar-se com
afinco ao estudo dos assuntos de que esteja encarregado, aprofundar os temas em
pesquisas paralelas.
Esta é uma regra absoluta,
que deve ser auto-assumida, obviamente: numa secretaria de estado ou num posto
no exterior, o normal é a divisão do trabalho, o que implica não apenas que
você terá o controle dos temas que lhe forem atribuídos, mas que redigirá
igualmente as instruções para posições negociais sobre as quais seu
conhecimento é normalmente maior do que o do próprio ministro de estado ou o
chefe do posto. Mergulhe, pois, nos dossiês, veja antigos maços sobre o assunto
(a poeira dos arquivos é extremamente benéfica ao seu desempenho funcional),
percorra as estantes da biblioteca para livros históricos e gerais sobre a
questão, formule perguntas a quem já se ocupou do tema em conferências
negociadoras anteriores, mantenha correspondência particular com seu contraparte
no posto (ou na secretaria de estado), enfim, prepare-se como se fosse ser
sabatinado no mesmo dia.
3. Adotar uma perspectiva histórica e estrutural de
cada tema, situá-lo no contexto próprio, manter independência de julgamento em
relação às idéias recebidas e às "verdades reveladas".
Em diplomacia, raramente
uma questão surge do nada, de maneira inopinada. Um tema negocial vem
geralmente sendo "amadurecido" há algum tempo, antes de ser inserido
formalmente na agenda bilateral ou multilateral. Estude, portanto, todos os
antecedentes do assunto em pauta, coloque-o no contexto de sua emergência
gradual e no das circunstâncias que presidiram à sua incorporação ao processo
negocial, mas tente dar uma perspectiva nova ao tema em questão. Não hesite em contestar
os fundamentos da antiga posição negociadora ou duvidar de velhos conceitos e
julgamentos (as idées reçues), se você dispuser de novos elementos
analíticos para tanto.
4. Empregar as armas da
crítica ao considerar posições que devam ser adotadas por sua delegação;
praticar um ceticismo sadio sobre prós e contras de determinadas posições;
analisar as posições "adversárias", procurando colocá-las igualmente
no contexto de quem as defende.
Ao receber instruções,
leia-as com o olho crítico de quem já se dedicou ao estudo da questão e procure
colocá-las no contexto negocial efetivo, geralmente mais complexo e matizado do
que a definição de posições in abstracto, feita em ambiente destacado do
foro processual, sem interação com os demais participantes do jogo diplomático.
Considerar os argumentos da parte adversa também contribui para avaliar os
fundamentos de sua própria posição, ajudando a revisar conceitos e afinar seu
próprio discurso. Uma saudável atitude cética " isto é, sem negativismos
inconsequentes " ajuda na melhoria constante da posição negociadora de sua
chancelaria.
5. Dar preferência à substância sobre a forma, ao
conteúdo sobre a roupagem, aos interesses econômicos concretos sobre
disposições jurídico-abstratas.
Os puristas do direito e os
partidários da "razão jurídica" hão de me perdoar a deformação
"economicista", mas os tratados internacionais devem muito pouco aos
sacrossantos princípios do direito internacional, e muito mais a considerações
econômicas concretas, por vezes de reduzido conteúdo "humanitário",
mas dotadas, ao contrário, de um impacto direto sobre os ganhos imediatos de
quem as formula. Como regra geral, não importa quão tortuosa (e torturada) sua
linguagem, um acordo internacional representa exatamente – às vezes de forma
ambígua – aquilo que as partes lograram inserir em defesa de suas posições e
interesses concretos, Portanto, não lamente o estilo "catedral
gótica" de um acordo específico, mas assegure-se de que ele contém
elementos que contemplem os interesses do país.
6. Afastar ideologias ou interesses
político-partidários das considerações relativas à política externa do país.
A política externa tende
geralmente a elevar-se acima dos partidos políticos, bem como a rejeitar
considerações ideológicas, mas sempre somos afetados por nossas próprias
atitudes mentais e algumas "afinidades eletivas" que podem revelar-se
numa opção preferencial por um determinado tipo de discurso, "mais
engajado", em lugar de outro, supostamente mais "neutro". Poucos
acreditam no "caráter de classe" da diplomacia, mas eventualmente
militantes "classistas" gostariam de ajudar na "inflexão"
política ou social de determinadas posições assumidas pelo país
internacionalmente, sobretudo quando os temas da agenda envolvem definição de
regras que afetam agentes econômicos e expectativas de ganhos relativos para
determinados setores de atividade. Deve-se buscar o equilíbrio de posições e
uma definição ampla, verdadeiramente nacional, do que seja interesse público
relevante.
7. Antecipar ações e reações em um processo
negociador, prever caminhos de conciliação e soluções de compromisso, nunca
tentar derrotar completamente ou humilhar a parte adversa.
O soldado e o diplomata,
como ensinava Raymond Aron, são os dois agentes principais da política externa
de um Estado – embora atualmente outras forças sociais, como as ONGs e os
homens de negócio, disputem espaço nos mecanismos decisórios burocráticos –
mas, à diferença do primeiro, o segundo não está interessado em ocupar
território inimigo ou destruir sua capacidade de resistência. Ainda que, em
determinadas situações negociais, o interesse relevante do país possa ditar
alguma instrução do tipo "vá ao plenário com todas as suas armas
(argumentativas) e não faça prisioneiros", o confronto nunca é o melhor
método para lograr vitória num processo negociador complexo. A situação ideal é
aquela na qual você "convence" as outras partes negociadoras de que
aquela solução favorecida por seu governo é a que melhor contempla os
interesses de todos os participantes e na qual as partes saem efetivamente
convencidas de que fizeram o melhor negócio, ou pelo menos deram a solução
possível ao problema da agenda.
8. Ser eficiente na representação, ser conciso e
preciso na informação, ser objetivo na negociação.
Considere-se um agente
público que participa de um processo decisório relevante e convença-se de que
suas ações terão um impacto decisivo para sua geração e até para a história do
país: isto já é um bom começo para dar dignidade à função de representação que
você exerce em nome de todos os seus concidadãos. Redija com clareza seus
relatórios e seja preciso nas instruções, ainda que dando uma certa latitude ao
agente negocial direto; não tente fazer literatura ao redigir um anódino memorandum,
ainda que um mot d’esprit aqui e ali sempre ajuda a diminuir a secura
burocrática dos expedientes oficiais’. Via de regra, estes devem ter um resumo
inicial sintetizando o problema e antecipando a solução proposta, um corpo
analítico desenvolvendo a questão e expondo os fundamentos da posição que se
pretende adotar, e uma finalização contendo os objetivos negociais ou
processuais desejados. No foro negociador, não tente esconder seus objetivos
sob uma linguagem empolada, mas seja claro e preciso ao expor os dados do
problema e ao propor uma solução de compromisso em benefício de todas as
partes.
9. Valorize a carreira diplomática sem ser
carreirista, seja membro da corporação sem ser corporatista, não torne
absolutas as regras hierárquicas, que não podem obstaculizar a defesa de posições
bem fundamentadas.
Geralmente se entra na
carreira diplomática ostentando um certo temor reverencial pelos mais
graduados, normalmente tidos como mais "sábios" e mais preparados do
que o iniciante. Mas, se você se preparou adequada e intensamente para o
exercício de uma profissão que corresponde a seus anseios intelectuais e
responde a seu desejo de servir ao país mais do que aos pares, não se deixe
intimidar pelas regras da hierarquia e da disciplina, mais próprias do quartel
do que de uma chancelaria. Numa reunião de formulação de posições, exponha com
firmeza suas opiniões, se elas refletem efetivamente um conhecimento
fundamentado do problema em pauta, mesmo se uma "autoridade superior"
ostenta uma opinião diversa da sua. Trabalhe com afinco e dedicação, mas não
seja carreirista ou corporatista, pois o moderno serviço público não deve
aproximar-se dos antigos estamentos de mandarins ou das guildas medievais, com
reservas de "espaço burocrático" mais definidas em função de um
sistema de "castas" do que do próprio interesse público. A
competência no exercício das funções assignadas deve ser o critério essencial
do desempenho no serviço público, não o ativismo em grupos restritos de
interesse puramente umbilical.
10. Não faça da diplomacia o foco exclusivo de suas
atividades intelectuais e profissionais, pratique alguma outra atividade
enriquecedora do espírito ou do físico, não coloque a carreira absolutamente à
frente de sua família e dos amigos.
A performance profissional
é importante, mas ela não pode ocupar todo o espaço mental do servidor, à
exclusão de outras atividades igualmente valorizadas socialmente, seja no
esporte, seja no terreno da cultura ou da arte. Uma dedicação acadêmica é a que
aparentemente mais se coaduna com a profissão diplomática, mas quiçá isso
represente uma deformação pessoal do autor destas linhas. Em todo caso,
dedique-se potencialmente a alguma ocupação paralela, ou volte sua mente para
um hobby absorvente, de maneira a não ser mais um "burocrata
alienado". Sim, e por mais importante que seja a carreira diplomática para
você, não a coloque na frente da família ou de outras pessoas próximas. Muitos
se "sentem" sinceramente diplomatas, outros apenas "estão"
diplomatas, mas, como no caso de qualquer outra profissão, a diplomacia não
pode ser o centro exclusivo de sua vida: os seres humanos, em especial as
pessoas da família, são mais importantes do que qualquer profissão ou carreira.
[PRA, 800: Chicago, 22 de julho;
São Paulo-Miami-Washington, 11-12 de
agosto de 2001;
revisto: 2.11.01]
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