O presente livro de André Heráclio do Riego constitui um notável esforço de síntese interpretativa sobre um dos autores mais fecundos do pensamento social brasileiro. Junto com Manoel de Oliveira Lima e Manoel Bomfim, Gilberto Freyre foi um dos primeiros historiadores sociais do Brasil. Na verdade, ele foi bem mais do que isso: um antropólogo de formação, tendo estudado com Franz Boas, na Columbia (NY), veio a empreender um levantamento da cultura material e humana do Brasil colonial e imperial, compreendendo não apenas a sua análise da Casa Grande e [da] Senzala, o título de sua primeira grande obra (1933), como também a miscigenação geral do povo brasileiro a partir de suas fontes étnicas, os aportes estrangeiros à cultura material e espiritual, assim como a lenta emergência, a partir da sociedade patriarcal, de formações urbanas ao longo da costa atlântica e no interior próximo, tal como refletida em Sobrados e Mucambos (3 volumes, 1936) e no seu outro clássico, Ordem e Progresso. O extenso subtítulo dessa terceira grande obra, em 2 volumes (1959), revela, aliás, a extensão de seu trabalho analítico: “Processo de desintegração da sociedade patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre: aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre; e da Monarquia para a República”. Gilberto Freyre antecipou, de certa forma, a famosa escola francesa dos Annales, com sua forte ênfase no cotidiano das famílias, nos costumes do povinho miúdo, na alimentação e nas técnicas do trabalho humano; mais de um acadêmico francês em estágio universitário no Brasil dos anos 1930 e 40, na recém fundada Universidade de São Paulo por exemplo, se declarou pronto a reconhecer certa dívida interpretativa em relação ao “mestre de Apipucos”, sua residência e escritório de trabalho no Recife senhorial. Bem antes que entrassem na moda, justamente a partir da USP, críticas à sua visão do mundo patriarcal, supostamente na origem do mito da “democracia racial” no Brasil, muitos acadêmicos brasileiros reconheciam em Gilberto um dos intelectuais que mais se destacaram na tentativa de substituir o “olhar estrangeiro” por um olhar nacional na compreensão do Brasil, inclusive por conta da vastidão de sua obra. Para o historiador Evaldo Cabral de Mello, talvez por uma não secreta simpatia para com o colega pernambucano, a riqueza e a variedade da obra de Gilberto de Mello Freyre exigiriam o “trabalho aturado” de muitos especialistas para ser bem compreendida.
É um fato que, até Freyre, a historiografia brasileira conhecia muito pouco em matéria de história social. Só Capistrano de Abreu se havia aventurado por este caminho, e ainda assim de forma esparsa e sem continuidade. “Os historiadores desconheciam o povo, como continuam a desconhecê-lo”, acusou José Honório Rodrigues numa de suas obras historiográficas mais marcadas por seu tradicional antielitismo. A história social brasileira teve, assim, seu iniciador em Capistrano de Abreu e seu continuador no antropólogo e sociólogo pernambucano, “pela maior atenção ao povo, às frustrações psicológicas, às alterações nas relações de família, às atitudes e ajustamentos sociais, às crenças fundamentais”. O mestre de Apipucos sugeriu que sua própria ambição seria a de ser o Ticiano ou o El Greco da história brasileira. Estes dois pintores, bem como Rembrandt, valeriam mais, para tais propósitos, por sua habilidade de evocação da vida e da atmosfera que circundava seus modelos do que pela beleza estrita de suas obras, como o autor escreve na Introdução.
Ganha corpo nesse sentido a interpretação de Evaldo Cabral de Mello da obra de Gilberto Freyre. Para este seu primo, a novidade da sua abordagem consistia na transposição para uma sociedade de tipo histórico, como a brasileira, até então examinada exclusivamente a partir dos métodos diacrônicos da História, da visão sincrônica desenvolvida pela antropologia para a descrição das sociedades primitivas. “O que era então uma ousadia teórica habilitou o mestre de Apipucos a dar uma das contribuições mais originais à cultura ocidental do século XX”, concluiu Evaldo Cabral de Mello.
Oliveira Lima, por quem Gilberto Freyre nutria uma grande admiração, que aliás era recíproca da parte do historiador e diplomata pernambucano, parece ser o sujeito oculto das influências freyreanas, pelo menos durante um certo período. Assim, conquanto o mestre de Apipucos tenha sido um grande divulgador da obra do dom Quixote Gordo, o reconhecimento de sua influência sobre a própria, ademais de escasso, é esporádico. Com a crítica é pior aindaː escreveu-se muito sobre Franz Boas e Gilberto Freyre, sobre o pensamento hispânico na obra freyreana, sobre Gilberto Freyre vitoriano nos trópicos, mas pouquíssimo sobre a influência de Oliveira Lima, o maior historiador diplomático, mas também da história social do Brasil imperial. A obra de Gilberto Freyre influenciou fortemente a maneira como o brasileiro de hoje vê o seu passado, tendo contribuído, com sua obra de hermenêutica da sociedade nacional, para a valorização do mesmo passado e para a identificação de ligações que a sociedade transpõe do passado para a formação das imagens que, em cada presente, se desenham do próprio presente, e também do futuro do país.
Mas sua obra não influenciou apenas a visão dos brasileiros sobre o seu próprio passado, assim como a dos estrangeiros sobre o Brasil – pois que ela foi amplamente traduzida no exterior, inclusive em japonês –, mas igualmente a política externa oficial do Brasil, praticamente dominada, dos anos 1930 aos 60, por uma espécie de “lusotropicalismo binacional”, já que servindo a duas ditaduras unidas pelo conceito de Estado Novo, o de Salazar, em Portugal, e o de Getúlio Vargas, no Brasil, e até mais além, marcando a complacência diplomática brasileira com o ultracolonialismo português na África. Gilberto Freyre também foi o primeiro a destacar as conexões entre o Oriente e o Ocidente nesse mundo lusotropical, destacando os valores asiáticos absorvidos pela cultura lusobrasileira, chegando inclusive a falar, no caso do Brasil, de uma “China tropical”, tal como expresso em capítulo final ao seu livro dedicado ao público estrangeiro, New World in the Tropics.
Com sua visão originalíssima sobre essa imbricação de culturas, Gilberto Freyre padeceu, provavelmente, de uma ênfase analítica excessiva sobre seu primeiro grande clássico, causando uma distorção crítica quando da revisão historiográfica e sociológica sobre o regime escravocrata patriarcal da sociedade tradicional, considerada muito “nordestina”. De fato, é uma evidência acadêmica que grande parte dos estudiosos da obra de Freyre verteram um interesse desproporcionado por Casa Grande & Senzala. Como observou Peter Burke, “mesmo tendo sido prolífico em seus escritos e amplo em seus interesses, Gilberto Freyre é mais lembrado por um só livro, publicado em 1933, quando o autor tinha 33 anos”.
O leitor poderá observar no decorrer desta obra do também pernambucano André Heráclio do Rego, diplomata e historiador como Evaldo Cabral de Melo, que a análise de Gilberto Freyre sobre o século XIX não se limitou, de forma alguma, a Pernambuco e ao Nordeste. Ao contrário, sua abrangência é nacionalː o mestre de Apipucos tratou repetidamente de personagens como José Bonifácio e dom Pedro II, e de temas como a unidade nacional e a integridade territorial, ademais do movimento da Independência. O que ocorre é que fez isso em obras esparsas, publicadas em coletâneas, em plaquetes e em artigos de jornal, que na sua maior parte não tiveram a boa sorte de ser reunidas em volume mais vistoso. Esta é a matéria do livro que o leitor tem em mãos, graças à garimpagem muito bem conduzida por André Heráclio.
Ele se baseia num conhecimento profundo dessa obra esparsa de Gilberto Freyre e complementarmente naquelas obras “maiores” mencionadas por Peter Burke e Evaldo Cabral de Mello, ademais de trechos de várias outras em que se fazem referências e considerações sobre o século XIX no Brasil, seus personagens e seus temas. O resultado é um livro que passa a integrar o universo já bastante amplo dos estudos gilbertianos, mas de uma maneira original e inovadora, pois que chamando justamente a atenção para uma série de textos normalmente descurados na literatura interpretativa. Já sua introdução oferece uma revisão atualizada de uma vastíssima bibliografia centrada no mestre pernambucano, à qual se seguem sete capítulos sobre o longo século XIX, explorando as ricas minas deixadas esparsas na obra multifacetada de Gilberto Freyre.
Destaco em particular a abordagem original do período monárquico, absolutamente fundamental para a preservação da unidade nacional, pois que as tentativas republicanas, no Nordeste e no Sul, poderiam ter levado à fragmentação da nação. Comparece, igualmente, na análise de André Heráclio, a importância da influência oriental na formação da cultura luso-brasileira, normalmente descurada na historiografia e na sociologia tradicionais. O capítulo final, “Considerações e sugestões”, é praticamente uma nova introdução e um convite ao aprofundamento continuado de novas interpretações sobre a densa produção intelectual do mestre pernambucano. No conjunto, a pequena, mas riquíssima, “freyreana” de André Heráclio já constitui um dos mais valiosos aportes ao estudo e ao conhecimento integral da obra de Gilberto Freyre no Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário