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sábado, 12 de julho de 2025

DIÁRIO DE BORDO: uma história universal entre Oriente e Ocidente - Fausto Godoy

 O Diário de Bordo de Fausto Godoy, uma fabulosa travessia nas grandes correntes de encontros e desencontros entre o Oriente (que ele conhece muito bem) e o Ocidente (por “defeito” de nascença), e um plaidoyer pela convivência harmoniosa.

Uma pequena grande história das relações, das interações, desencontros, dominação e oposição, nas trajetórias respectivas do Oriente e Ocidente, por um grande conhecedor prático, pelo estudo e pela convivência direta, por um fino conhecedor, e compendiador excepcional das virtudes, defeitos, contribuições e desafios de dois universos nas antioodas, que se conheceram, se retrairam, se relacionaram, prla cooperação e pela dominação, Fausto Godoy. PRA

DIÁRIO  DE  BORDO

Estou rascunhando um livro sobre as minhas andanças nestes 80 anos de vida, 40 de Itamaraty e quase 10 como professor universitário. É muita história, pelo que sou muito grato à Vida... Preparei uma introdução, em que tento explicar a minha visão sobre a Ásia, com base nas minhas experiências nos onze países em que servi durante quase dezesseis anos, e sobre o que penso das relações Ocidente/Oriente. Resolvi resumir tanto quanto possível neste texto algumas das reflexões e das conclusões a que cheguei. Por isto ele é longo, pelo que me desculpo antecipadamente perante os amigos que terão a paciência de chegarem até o final...mas não posso fazer de outra forma. Além de prolixo, vivi muito... Aqui vai o seu resumo:

“Está sendo muito complexa a aceitação pelo Ocidente de que a dinâmica do mundo mudou e que é necessário convivermos com paradigmas novos e distintos nas relações internacionais: a Ásia tornou-se fator decisivo na economia e na política globais; e sua presença, crescente e irreversível, instiga sentimentos ambíguos: de um lado, respeito pelo despertar de um gigante de História muito antiga e, de outro, apreensão pelas consequências que este protagonismo crescente possa causar. 

Mais que tudo, evidencia o nosso despreparo para lidar com esta realidade. Acostumado a exportar seus valores e a impor seus conceitos civilizatórios como verdades absolutas e perenes sobre esta mais da metade da raça humana, o Ocidente não tem sabido lidar com o novo fenômeno de que não serão mais possíveis situações como as Guerras do Ópio, promovidas pelos ingleses para impor à China o consumo da droga a fim de equilibrar uma balança comercial bilateral deficitária para a Grã-Bretanha; ou a abertura forçada do Japão Tokugawa às potências ocidentais; ou, ainda, o fim melancólico do Raj britânico e a independência arbitrária e intempestiva da Índia e do Paquistão, com as sequelas que deslanchou. Ainda pior, instituir uma ordem “à la Ocidental” a um Oriente cada vez mais assertivo da sua identidade e crescente poder. Os conflitos atuais – a guerra da Ucrânia, o conflito Israel-Hamas/Palestina, a guerra Israel-Irã, os talibãs no Afeganistão, etc. – evidenciam cada vez mais a incapacidade – e o profundo dilema que assola o Ocidente em lidar com uma “outra História”, que não entende e, de certa forma, lhe escapa.

De sua parte, antes de emergirem como elemento maior nas relações internacionais, os países asiáticos, assim como as ex-colônias europeias em todo o mundo, tiveram que absorver o impacto e administrar o legado da independência que tão traumaticamente alcançaram ao longo do século XX, sobretudo as fronteiras forjadas de forma artificial e arbitrária pelos colonizadores. O país que se tornaria o Laos, por exemplo, resultou de uma solução de conveniência para os colonizadores franceses no processo traumático da chamada “Guerra da Indochina”, que durou quase dez anos, causou perto de quatrocentas mil mortes e resultou na independência conturbada de três países - Vietnã, Laos e Camboja, abrindo ainda espaço para a Guerra do Vietnã, de trágica memória, sobretudo para os americanos que se envolveram no conflito. No final, a maioria da população de etnia lao tornou-se tailandesa e as fronteiras étnicas não se encaixam nas fronteiras políticas, com as consequências agudas que decorrem desta indefinição. Processo semelhante ocorreu na Malásia e na Indonésia: a população do norte da ilha de Sumatra foi repartida pelos holandeses ao largo do estreito de Malaca: parte tornou-se malaia e parte indonésia. Índia e Paquistão até hoje não solucionaram a questão da Caxemira, que está na raiz do recrudescimento do fundamentalismo islâmico e de sua cria: o extremismo talibã e seus desdobramentos. As cento e trinta e cinco etnias de Myanmar se recusam a aceitar a supremacia de qualquer uma delas no país definido arbitrariamente pelos colonizadores ingleses como Birmânia, e os “rohingyas” muçulmanos que foram deslocados arbitrariamente para servirem como “coolies” nas plantações de chá da região majoritariamente budista vivem hoje a tragédia de uma verdadeira “limpeza étnica”, que os tornou apátridas. Bem-vindos ao mundo westfaliano... 

As guerras do Vietnã nos confrontos da Guerra Fria, e as do Iraque e do Afeganistão, mais recentemente, assim como as tragédias na Líbia, na Síria, na Palestina, e agora a guerra entre Israel e Irã, demonstram o quanto as potências centrais do Ocidente são incapazes de entender e conviver com o “diferente” e com a penosa realidade de ter de compartilhar conceitos e valores que não lhes são próprios. Na contracorrente, tampouco têm sabido lidar com a “invasão” dos seus territórios por imigrantes e refugiados que buscam escapar de vicissitudes econômicas, muitas das quais herdadas do período em que foram colônias.

A “contaminação” entre culturas, ou, melhor, a introversão de referenciais culturais “estrangeiros” no quotidiano do indivíduo urbano contemporâneo, seja no Ocidente, seja no Oriente, obriga a que revisemos percepções e valores, senão os assimilando – o sushi nas churrascarias, o yoga nas academias, neste lado do planeta, ou a bolsa Louis Vuitton, no Japão, ou na China, o Mc Donald´s e os “jeans” em todo o planeta - como verdadeiro código interplanetário. Impõe-se a obrigação de convivermos com estas realidades irrefutáveis, e para os mais generosos e intelectualmente motivados, assimilá-las. Não somos mais ilhas, ou, melhor, os continentes/ilhas estão agora integrados no continente global... Bem-vindos todos à Pangeia restaurada...

Porém isto não quer absolutamente dizer que perdemos referenciais e valores próprios, mas sim que os globalizamos sempre quando exista comunicabilidade entre eles. Outros, porém, permanecem intocáveis, posto que constituem os alicerces das nossas genéticas culturais. Parecem-me que são “espaços inegociáveis”.

Talvez o mais fundamental desses valores e um dos principais diferenciais entre as duas grandes geografias mundiais seja a inserção do ser humano na sociedade: para o Ocidente o indivíduo constitui o seu cerne e alicerce. Tal é a mensagem da “Declaração dos Direitos do Homem”, corolário da Revolução Francesa, ou da Declaração da Independência norte-americana (...“nós consideramos como verdade auto-evidente que todos os homens nascem iguais, que eles são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre estes a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade”...). Confúcio, nos Analectos, diria quase o oposto: “o filósofo Yu disse:...a  submissão filial e fraternal, não é ela a raiz de todas as ações benévolas?”. Para o asiático confucionista a virtude maior reside em servir à sociedade, em ser um elo para o seu funcionamento. O indivíduo somente se realiza no contexto social: o bom cidadão é aquele que obedece aos mais velhos e ao superior. Citando, ainda, Confúcio, nos Analectos (1:6):  “...o Mestre disse, o jovem deve ser um bom filho no lar e um indivíduo obediente fora dele, frugal nas palavras porém confiável no que diz, e deverá amar o povo,  no geral, porém cultivar a amizade dos companheiros... Em contrapartida, o ser superior deve ser merecedor desse respeito: “se o indivíduo for pessoalmente correto, então haverá obediência sem necessidade de ordens; mas se ele não for correto pessoalmente, não haverá obediência ainda que haja ordens”  (Analectos, 13:16).

Já o hindu tem uma visão quase diametralmente distinta: concentrado em suas encarnações futuras a caminho da transcendência (moksha), o indivíduo deve ocupar-se sobretudo do seu dharma,  sua lei/missão pessoal, e do seu kharma  que definiu a sua encarnação presente, fruto de suas vidas passadas, e o dirige para a próxima, que será melhor, ou pior, como resultado das suas ações que o seu livre-arbítrio indicará...É, aliás, o que ensina o Bhagavad Gita.

O Islã prega, de sua parte, a existência de um Deus único e absoluto, que revelou a Maomé, o seu Profeta, a sua lei, o Al Corão.  O significado do próprio termo “islã” – submissão – revela a relação entre o Criador e a criatura. Entretanto, contaminados pelo fanatismo religioso, os países islâmicos enfrentam desafios gigantescos para evitar que a paixão e a militância da fé termine por comprometer a própria sobrevivência do Estado. Fruto dela, o Afeganistão, que se confronta com uma comoção civil interminável, viveu o dilema de aceitar a presença de tropas estrangeiras, soviéticas e ocidentais, em seu território que em última instância se revelaram mais nefastas que eficazes. Outro não foi o desfecho trágico da desocupação das tropas americanas e a retomada do poder pelos talibãs. Esta verdadeira “cruzada” entre um islã deturpado por uma sociedade patriarcal anacrônica, para alguns, e o vagido de uma sociedade mais liberal, herdada da presença do Ocidente nestes últimos vinte anos, transborda para o vizinho Paquistão e tem poucas chances de chegar a um final feliz no curto, ou sequer médio, prazos. 

Estes conflitos vazaram as fronteiras territoriais e hoje envolvem praticamente todo o planeta. E os refugiados do Oriente e  da África, principalmente, que “invadem” a Europa na busca de uma vida mais pacífica encontram crescente resistência de seus anfitriões islamofóbicos. 

Será, em última instância, que esses valores perdurarão numa Ásia cada vez mais imbricada com o Ocidente... e vice-versa? Seria, por acaso, relevante que eles prevalecessem na forma em que estão? Quão “inegociáveis” serão eles?... 

O espraiamento do terrorismo para o Ocidente - as torres gêmeas de Nova York; a estação de Atocha, em Madri; os atentados na França; o “Boko Haram”, na Nigéria; as invasões do Iraque e da Síria; o retorno dos talibãs ao poder no Afeganistão; o conflito entre Israel e os militantes do Hamas na faixa de Gaza, e agora seu confronto com o Irã xiita, etc. - demonstram que estamos todos vulneráveis. Não podemos mais ignorar a questão; temos de nos posicionar, sob pena de sermos suas vítimas – próximas ou distantes. Mas qual é a melhor postura? A arrogância das potências centrais que buscam impor suas políticas... a agressividade bélica das tropas estrangeiras pela Ásia afora... as guerras que destampam a ameaça de um holocausto nuclear e causam o êxodo de milhares de indivíduos pelo Ocidente afora?... A busca de uma “contemporização” que abrirá ainda maiores espaços para a militância?... 

A resposta é certamente difícil e nunca deixará de ser incompleta. Não obstante demasiado complexo, o “dilema” precisa ser enfrentado se quisermos encontrar um mínimo de convivência entre os indivíduos e os povos no planeta cada vez mais globalizado. Nesse quadro, talvez a melhor solução seja buscar entender o fenômeno sem “parti pris”, sem “verdades absolutas”, hierarquia de conceitos ou imposição de valores, abrindo espaço para o diálogo construtivo. Temos que escapar do “absoluto” nos nossos julgamentos e convivermos com o “relativo” das múltiplas realidades: nada é “negro” e nada é “branco” nas relações entre os Estados e os indivíduos. Temos que atuar na gama do “cinza” da negociação, que deixa espaço para o entendimento e a humanidade.  

Impossível...Devaneio?... Haveria outra saída para a Pangeia globalizada?... Não é projeto fácil, contaminado que está pela intransigência contrária à discussão isenta e pelo fanatismo dogmático de abandonar posições rígidas. Daí a necessidade cada vez maior de buscarmos as raízes do problema, que, para mim, estão na impermeabilidade dos indivíduos e das instituições em conviver com a alteridade”... 


 To be continued...