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domingo, 25 de maio de 2025

Caminhos da Democracia – Tocqueville, Levitsky e Trump: Declínio democrático. A democracia tem salvação? - Sergio Florencio

 Caminhos da Democracia – Tocqueville, Levitsky e Trump

(3ª e 4ª Partes)

Declínio democrático. A democracia tem salvação? 

 

Sergio Florencio 


Introdução

Em meados do século XIXTocqueville descrevia a decadência dos regimes aristocráticos europeus e anunciava a emergência do mundo da democracia, inspirado na experiência da América. Quase dois séculos mais tarde a equação se inverte. Trump avança na desconstrução dessa mesma democracia, e defende regimes autoritários.  Nesse novo mundo, Levitsky analisa como as Democracias Morrem e, em seguida, diante do episódio do 6 de janeiro de 2021, procura explicar Como Salvar a Democracia. A democracia tem salvação?  Ou estamos diante deuma experiência histórica que está terminando?

As diferentes ameaças à democracia em Tocqueville e em Levitsky

A Democracia na América oferecia a fotografia de uma democracia em que igualdade e liberdade se equilibravam. Mas continha também o filme em que, no longo prazo, esses dois vetores se desequilibravam, deformavam os fundamentos da democracia e produziam a tirania da maioriaSegundo Tocqueville, aquele desequilíbrio tinha diversas origens. A primeira era a tendência dedemocracias privilegiarem a igualdade sobre a liberdadeA primazia da igualdade produzia um individualismo que afastava o indivíduo de preocupações situadas além do seu pequeno mundo da família e do trabalho. Assim, o universo da política se apequenavaos rumos do país não mais refletiam o embate de ideias que molda o jogo democrático, e esse vácuo era ocupado por governantes eleitos mas autoritários – o ovo da serpente da tirania da maioria.

Enquanto Tocqueville visualizava, no século XIX, esse desvirtuamento da democracia como uma possibilidade futura, Levitsky e Ziblatt se confrontam, na segunda década do século XXI, com uma recessão democrática real, nos EUA e no mundo.  Ressaltam que, nos EUA, esse fenômeno tem sua origem muito antes de Trump.  “Durante a maior parte da história dos Estados Unidos, os partidos políticos priorizaram a guarda dos portões, em detrimento da abertura... Por um lado, não era muito democrático. ... Por outro lado, o sistema de convenções era um guardião eficiente, pois filtrava de maneira sistemática candidatos perigosos.” (1) Figuras com grande apelo popular, tais como Henry Ford, George Wallace e Joseph McCarthy, sempre tiveram suas ambições políticas barradas pelos guardiões do partido. 

Os Guardiões da Democracia saem. Os outsiders entram. 

Entretanto, a partir de 1972, a grande maioria dos delegados das convenções de Democratas e Republicanos passou a ser eleita em primárias e em assembleias estaduais. “Primárias vinculantes eram certamente mais democráticas. Mas não seriam democráticas demais? Ao colocar as indicações presidenciais nas mãos dos eleitores, as primárias vinculantes enfraqueceram a função dos partidos como guardiões da democracia, abrindo a porta para outsiders.” (2)  

Esse processo vai desvirtuando o sistema político e culmina na escolha de Trump como candidato do partido Republicano. “Mesmo depois que ele começou a crescer abruptamente nas pesquisas, poucas pessoas levaram sua candidatura a sério. ...Contudo, o mundo havia mudado. Os guardiões do partido eram apenas uma sombra do que tinham sido, por duas razões principais. Uma foi o aumento dramático da disponibilidade de dinheiro de fora. ...O outro grande responsável ... foi a explosão da mídia alternativa, sobretudo noticiários de TV a cabo e redes sociais ... Embora muitos fatores tenham contribuído para o sucesso político atordoante de Trump, sua ascensão à Presidência é, em boa medida, uma história de guarda ineficaz dos portões(3)

O diagnóstico de Levitsky e Ziblatt a respeito dagrande falha do sistema eleitoral norte-americano(“guarda ineficaz dos portões”) se aproxima doargumento de Tocqueville sobre a necessidade de introduzir núcleos aristocráticos na sociedadedemocrática. Seu melhor exemplo é a figura do juiz - situado acima do homem comum –, capaz deintroduzir certa racionalidade e evitar a demagogia.

Como as Democracias Morrem também se aproximados Federalistas. “Nossos fundadores estavam profundamente preocupados com a salvaguarda da democracia. Eles se debateram com um dilema que, em muitos aspectos, nos acompanha até hoje. Por um lado, eles não procuravam um monarca, mas um presidente eleito refletindo a vontade do povo. Por outro, não confiavam plenamente na capacidade do povo de avaliar a aptidão de candidatos para o cargo”. “ A história nos ensinará”, escreveu Alexander Hamilton em O Federalista, que “entre os homens que subverteram a liberdade de repúblicas, a maioria começou cortejando obsequiosamente o povo; começaram demagogos e terminaram tiranos.” “ O cargo de presidente raramente caberá a homens que não sejam dotados em grau eminente das qualificações necessárias.” Homens com talento para “intrigas baixas e as pequenas artes de popularidade” seriam removidos por filtragem. O Colégio Eleitoral tornou-se assim o guardião original de nossa democracia.” (4)

Esses ideais que inspiraram a democracia nascente foram preservados por quase dois séculos, com poucas exceções. Entretanto, como vimos, a partir de 1972, a maioria dos delegados do Colégio Eleitoral passou a ser eleita, o que “abriu a porta para outsiders”. 

Ameaças à democracia na Europa. O crescimento da extrema direita.

Além dessas falhas inerentes à sociedade e ao sistema político norte-americano antes indicadas, dois fenômenos de outra ordem contribuíram para recessão democrática dos EUA nas últimas décadas – a redução do crescimento econômico e o aumento da desigualdade. O primeiro está ligado à crise econômica de 2008/2009 e aos efeitos da pandemia. O segundo derivou do avanço tecnológico e dos rumos da globalização que, nas palavras de Dani Rodrikfoi longe demaisOutros desdobramentos, como a desindustrialização e a precarização da mão de obra, agravaram a desigualdade, que alimentou o descrédito no  sistema político e o desencanto com a democracia. O desfecho foram os dois mandatos presidenciais de Trump, com efeitos devastadores para o sistema democrático nos EUA e no mundo.

O declínio democrático não atinge apenas os EUA. Na Europa, a emergência de líderes autoritários e o crescimento do apoio popular a partidos de extrema direita ameaçam igualmente a democracia, fragilizada ainda mais fragilizada com a eleição de Trump. A guerra na Ucrânia, a redução dos gastos militares dos EUA no continente, as críticas de Trump à OTAN, seu apoio ao invasor Putin e o abandono de Zelenski – essa sequência de fatos debilita a aliança EUA-União Europeia e compromete seu futuro. O resultado é uma Europa com política fiscal altamente expansionista,crescentes gastos militares e agravamento das tensões econômicas e geopolíticas. 

As democracias estão fragilizadas na maior parte da União Europeia. A Aliança pela Alemanha (AfD), de extrema direita, já e a terceira força política no país, com crescimento de filiados mais forte que as duas maiores agremiações. Na Itália, Georgia Meloni, Primeira Ministra desde 2022, apesar de gestão mais moderada, defende a organização fascista Movimento Socialista Italiano. Na França, a agenda reformista de Macron se revela impopular e, apesar da inelegibilidade de Marine Le Pen, seu partido ganha força e adeptos. Na Hungria, Viktor Orbánconsolida a mais robusta guinada autoritária na União Europeia. “O primeiro-ministro mudou a composição de vários órgãos em teoria independentes – a Procuradoria-Geral, o Escritório Central de Estatísticas, o Tribunal de Constas, a Corte Constitucional – substituindo seus membros por aliados partidários depois que voltou ao poder em 2010. ... Orbán aumentou o número total de membros da Corte Constitucional, mudou as regras de nomeação ... e encheu a corte de partidários.” (5)

Populismos na América Latina. Chávez à esquerda. Fujimori à direita.

Nos países da América Latina a democracia tambémesteve historicamente ameaçada, sendo com frequência derrotada por ditaduras militares ou civis. Levitsky e Ziblatt estudam em maior detalhe, primeiro, o caso da Venezuela.  “Por mais de trinta anos e, nos anos 1970, era vista como uma democracia modelo numa região infestada por golpes de Estado e ditaduras”. (6). Entretanto, como a maioria dos países latino-americanos, a Venezuela viveu prolongada recessão na década de 1980, o que levou ao golpe abortado de 1992, liderado por Chávez. Esse, a partir de então, construiu umaaliança com o ex-presidente Rafael Caldera e foi eleito presidente em 1998, ao derrotar o candidato do establishment. 

Ao examinar a trajetória de Chávez, Levitsky e Ziblatt traçam um paralelo com a ascensão de Hitler e Mussolini.  Ressaltam as enormes diferenças mas igualmente as semelhanças espantosas entre os três para chegar ao poder. “Não apenas todos eles eram outsiders... mas cada um deles ascendeu ao poder porque políticos do establishment negligenciaram os sinais de alerta e, ou bem lhes entregaram o poder (Hitler e Mussolini) ou então lhes abriram a porta(Chávez). A abdicação de responsabilidades políticas da parte de seus líderes marca o primeiro passo de uma nação rumo ao autoritarismo.” (7)

O outro país latino-americano estudado em Como as democracias morrem é o Peru do Presidente Alberto Fujimori, que chegou ao poder o início da década de 1990. O país tinha entrado em colapso com o surto inflacionário e com o terrorismo do Sendero Luminoso, que dominava amplas regiões do país.Upoderoso Congresso, hostil ao  presidente, juízes indicava a maior parte dos membros da Suprema Corte. Fujimori passou a atacar sistematicamente o Congresso e fechou o Congresso em 1992.

“ Instituições não facilmente expurgáveis podem ersequestradas de maneira sutil, por outros meios. Poucos fizeram isso melhor que o conselheiro de inteligência de Alberto Fujimori, Vladimiro Montesinos. ... Gravou em vídeos centenas de políticos, juízes, congressistas, empresários, jornalistas e editores de oposição pagando ou recebendo suborno ... e depois usou os vídeos para chantageá-los. Ele também mantinha três magistrados da Suprema Corte, dois membros do Tribunal Constitucional e um número inacreditável de juízes e promotores  públicos em sua folha de pagamento, fazendo entregas mensais em suas residências. ... Nas sombras, porém, Montesinosajudava Fujimori a consolidar seu poder”. (8)  

Em Seminário na Fundação FHC sobre seu livro, Levitsky indicou que o grande mal dos sistemas políticos da América Latina é o crescimento vertiginosos de populismos. Para ele, a razão maior para esse fenômeno reside no lado da oferta, ou seja, a incapacidade do Estado de fazer o básico, de ofertar bens públicos essenciais para a população. Um Estado politicamente fraco pouco faz para satisfazer as necessidades da população – saúde, educação, segurança e transporte. Três modalidades de instituições falham em seus objetivos – partidos políticos; organizações da sociedade civil; e mídia. 

Essa incapacidade do Estado gera a insatisfação da população, com corolários que distorcem o jogo político e abalam a democracia: descrédito napolítica; redução da capacidade do Estado de tributar; marginalização dos partidos políticos; erosão das elites; disfuncionalidade dos grupos de pressão; incapacidade de controlar a corrupção. O desfecho dessa sequência é o populismo - líderes autoritários, desequilíbrio das contas públicas, violação de direitos humanos, e nacionalismo exacerbado.

Trump II. Declínio democrático e geopolítico do Ocidente? 

No momento em que Donald Trump chega ao poder,a democracia e o sistema eleitoral nos EUA vinham perdendo solidez e funcionalidade, fenômenos descritos em Como as Democracias Morrem. No contexto mais amplo, o trumpismo surgiu associado à falência dos três pilares que sustentavam as democracias liberais.  

O primeiro é o trinômio crescimento econômico, inclusão social e elevado padrão de vida. Como ressalta Yascha Mounk em O povo contra a democracia, a renda de uma família típica americana dobrou de 1935 a 1960, o que voltou a ocorrer de 1980 a 1985, mas estagnou a partir de então. Asexpressivas taxas de crescimento nos últimos anos, nos EUA, foram acompanhadas por forte concentração de renda. Isso se reflete neo seguinte indicador - mais de dois terços dos americanos adultos acreditam ser importante viver em uma democracia, mas entre os millenials, menos de umterço pensa o mesmo.  

O segundo pilar é o binômio democracia e liberalismo. Em lugar de uma equação equilíbrada, passou a prevalecer no mundo seja a democracia sem direitos – a tirania da maioria de Tocqueville – sejamos direitos sem democracia, que caracterizam os regimes autocráticos, onde uma camada da população, de bilionários ou tecnocratas, tem direitos, mas que excluem o povo das decisões políticas – como China e Rússia. 

O terceiro pilar da democracia liberal é a homogeneidade étnica e cultural ou, na sua ausência, a hegemonia do segmento mais poderoso da sociedade. Em O grande experimento, Mounk se dedica à análise desse novo fenômeno.

“No século XVIII, os Pais Fundadores dos Estados Unidos embarcaram em um grande experimento democrático, estabelecendo uma república autônoma. ... Hoje, estamos embarcando em um empreendimento igualmente novo – a construção de democracias enormemente diversificadas. ... Esse grande experimento é o empreendimento mais importante de nossa época. E ainda não chegamos a um consenso em relação às regras e instituições que podem ajudá-lo a triunfar.” (9)

A falência desses três pilares da democracia liberal, associada à um sistema político eleitoral disfuncional, explicam a emergência de Trump. Mas os cem primeiros dias de seu segundo mandato evidenciam sua extraordinária capacidade de acelerar o declínio dos EUA e da democracia liberal no mundo. Vejamos alguns fatos que ilustram o governo mais caótico e mais ameaçador para a democracia dos últimos cem anos. 

A alternância no poder – essência do jogo democrático – foi transformada, por Trump, em ameaça ao governo, o que explica a rebelião de 6 de janeiro de 2022, que surgiu como instrumento de vingança política.  O novo presidente vem desmantelando a máquina do Estado norte-americano. O desprezo pelas leis e pelas regras básicas da democracia é seu forte. A pesquisa científica, a autonomia das universidades écrescentemente abandonadas, com base em acusações infundadas de politização da academia. O repúdio aos comprovados avanços da ciência, da medicina e das mudanças climáticas são ameaças civilizatórias. A hostilidade aos imigrantes – não apenas os ilegais - assume caráter de política de estado e as deportações se transformam em violaçõessistemáticas de direitos humanos. Seu repúdio ao sistema multilateral de comércio ( GATT e OMC), com imposição de tarifaço em nível  deprotecionismo superior às desastrosas tarifas SmootHawley dos anos 1930. Seu apoio aos país invasor -Rússia- e desprezo pelo destino da Ucrânia. O desprezo pelo multilateralismo (ONU) e pelo osistema de alianças dos EUA e às instituições que moldaram a liberalização comercial e financeira do pós-guerra até os anos 1980 ( FMI, Banco Mundial).

Conclusão

Três mensagens contidas na Nota da Edição Francesa de 1848, da Democracia na América, orientaram a elaboração dessa série de três artigos sob o título Caminhos da Democracia- Tocqueville, Levitsky e Trump.

Primeira. “Este livro foi escrito há quinze anos, sob a preocupação constante de um único pensamento: a chegada universal, próxima e irresistível da democracia no mundo.” 

Segunda. “Depois de ter destruído o feudalismo e vencido os reis, a democracia recuará diante dos burgueses e dos ricos?”

Terceira. “As instituições da América ... devem ser objeto de estudo para a França republicana, Não é apenas a força que sustenta um novo governo; são as boas leis; depois do combatente, o legislador. Aquele destruiu; esta funda”. (10)

A primeira mensagem de Tocqueville seria perfeitamente ajustada ao mundo de hoje com apenas a substituição da palavra “chegada” por “declínio”. Essa é nossa primeira conclusão – o declínio da democracia. Para alguns analistas, esse declínio é apenas potencial, porque nos países europeus– França, Alemanha, Portugal-  a extrema direita antidemocrática cresce de forma acelerada, mas ainda não assumiu o poder. É verdade que a Hungria é sim uma autocracia, e que na Itália Meloni venceu as eleições, embora com postura moderada. Nosso argumento central nesta série de artigos é que o declínio da democracia ou a recessão democrática éefetivo e não potencial.  

A base para aquele argumento é o papel das instituições – inclusivas ou extrativistas - segundo o modelo de Daron Acemoglu em Why Nations FailInstituições extrativistas seriam aquelas marcadas por elites que expropriam a riqueza da nação em benefício próprio e ignoram o interesse coletivo. Os Estados Unidos, por exemplo, segundo Martin Wolff, em The crisis of democratic capitalism - marcados por crescente concentração de renda e desigualdade -seriam enquadrados no modelo de instituições extrativistas, com a democracia em declínio.

Outra base para nosso argumento é O Povo contra a democracia, de Yascha Mounk, ao identificar uma tendência generalizada de certas instituições, tais como o Judiciário no plano político, e o Banco Central, no plano econômico. Ao praticarem políticas divorciadas do interesse da coletividade, essas duas instituições alimentariam o questionamento popular das instituições. Nesse caso, é preciso uma qualificação e uma divergência em relação a Mounk. Em nossa opinião, muitas vezes aquelas duas instituições não “praticam políticas divorciadas do interesse da coletividade”.  Apenas defendem políticas impopulares. 

segunda mensagem de Tocqueville praticamente coincide com a visão de Martin Wolff, ou seja, a governança prevalecente, nos países avançados,  desde os anos 1970, negligenciou as necessidades da maioria da classe trabalhadora e da população mais pobre. Isso ocorreu porque a política econômica passou a defender de forma enfática a globalização acelerada e a desregulamentação da economia, que muito beneficiaram o capital em detrimento do trabalho e aceleraram o capitalismo rentista.Tocqueville não usava essa última expressão, mas questionava possível descaminho da democracia – recuará diante dos burgueses e dos ricos? A resposta franca de Martin Wolff – editorialista do Financial Times – seria positiva.

A terceira mensagem de Tocqueville adverte para a centralidade do Judiciário em A Democracia na Américapor uma razão relevante para ele e que continua a ter importância nas democracias atuais, tanto nos países centrais – principalmente EUA e União Europeia – como nos países periféricos, sobretudo América Latina. 

Esse é o ponto crucial para nossa conclusão. Para analistas que examinam a sociedade a partir da luta de classes, o declínio das democracias resulta do inevitável agravamento do conflito entre a elite empresarial e a massa operária. Nossa série de artigos diverge dessa interpretação. A recessão democrática resulta sobretudo de duas deformações. 

Primeiro, as instituições representativas perdem seu papel original – representantes de segmentos específicos da população e equilibradores da tensão entre esses grupos – e passam a defender apenas os interesses dos grupos que representam.

Segundo, as elites interessadas apenas nos ganhos imediatos e de curto prazo não promovem asreformas necessárias para equilibrar os interesses dos diversos segmentos da sociedade e das instituições. Essa incapacidade agrava as tensões, produz insatisfação social, instabilidade política e desencanto com a democracia. 

O desfecho dessa trajetória é a eleição de políticos populistas que, na aparência, procuram resolver da forma mais direta as necessidades da população. Ao buscar solução direta para os problemas, o líder populista elimina as instituições e dialoga diretamente com o povo. Isso provoca aumento da popularidade e declínio da eficácia da gestão pública. Os Três Poderes deixam de atuar de forma independente e harmônica, com um Executivo poderoso e um Legislativo a ele associado ou oposto. No caso de associação populista entre esses dois Poderes, a tendência é o caos econômico e a instabilidade social, que podem resultar na Tirania da Maioria de Tocqueville. Na hipótese de oposição entre esses dois Poderes, o cenário provável é o imobilismo e a estagnação, que podem ter o mesmo desfecho previsto por Tocqueville. 

Uma das mais ricas advertências de A Democracia na América resida mesmo no importante papel do Judiciário. Para Tocqueville, toda democracia precisa ter núcleos aristocráticos (a figura do Juiz), essenciais para introduzir experiência política e conhecimento técnico necessários à boa gestão pública. Essa seria a melhor maneira de se evitar a Grande Revolução (Revolução Francesa) e de abrir caminho para pequenas revoluções, que produzem mudanças, mas sem destruir a estabilidade necessária para o equilíbrio da economia e a harmonia da sociedade. 

Assim, na Democracia na América, o Judiciário é portador aristocrático de racionalidade para o sistema democrático.  Por razões diferentes, no mundo de hoje, também o Judiciário é o Poder decisivo, porque limita, restringe ou aprimora os excessos populistas inerentes ao Executivo e ao Legislativo. O Judiciário introduz racionalidade na democracia e, por isso mesmo, é a primeira vítima do populismo.

 

Sergio Florencio

Brasília, 25 de maio de 2025.