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domingo, 28 de setembro de 2025

Brasil intervém no processo África do Sul v. Israel sobre genocídio - Lucas Carlos Lima (Conjur)

 

OPINIÃO

Brasil intervém no processo África do Sul v. Israel sobre genocídio

Conjur, 28 de setembro de 2025, 13h24

Na mesma semana em que a Comissão Internacional Independente de Inquérito da ONU sobre o Território Palestino Ocupado emitiu relatório reconhecendo a prática de genocídio em Gaza, foi publicada a manifestação de intervenção do Estado brasileiro no caso movido pela África do Sul contra Israel perante a Corte Internacional de Justiça, alegando a violação da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948.

CIJ

Diferentemente do que foi amplamente noticiado, o Brasil não foi à Corte de Haia para acusar Israel de cometer genocídio. A participação brasileira é limitada à intervenção processual de um Estado interessado em oferecer sua visão jurídica sobre o tratado que fundamenta o caso, qual seja, a Convenção contra o Genocídio.

Houve estratégica prudência por parte do Brasil em sua manifestação ao levantar uma série de elementos jurídicos e fáticos perante as juízas e juízes da Corte de Haia, que serão fundamentais na decisão final do julgamento, cujas audiências deverão ocorrer em 2026. A manifestação brasileira não afirma explicitamente que ocorre um genocídio em Gaza — e deixa muito claro, em diversas passagens, que sua intenção é se pronunciar sobre a interpretação da Convenção.

Spacca

Palestinos são grupo protegido

Em primeiro lugar, o Brasil destacou que a população palestina é um dos grupos protegidos pela Convenção do Genocídio, ou seja, detém direitos específicos de não ser vítima de genocídio. Em seguida, analisou cuidadosamente a jurisprudência da Corte e de outros tribunais internacionais sobre os critérios de comprovação do crime.

Como se sabe, o crime de genocídio é uma das violações mais graves que um Estado ou indivíduos podem cometer. Devido à sua gravidade e às consequências jurídicas e reputacionais para um Estado, a jurisprudência internacional desenvolveu padrões muito elevados para aferir sua ocorrência. Segundo a Corte, ao se examinar as provas de genocídio, a conclusão deve ser que “a única inferência razoável” é a intenção genocida. Não bastam atos bárbaros de natureza genocida contra um grupo; é igualmente necessária a comprovação da intenção de eliminar, total ou parcialmente, aquele grupo (o chamado dolus specialis).

Na visão brasileira, a linguagem empregada pela Corte no passado permite que se adote uma abordagem balanceada na identificação das provas da intenção, à luz de diversos elementos destacados em sua manifestação. Os argumentos do Brasil fundamentaram-se em relatórios de organismos internacionais sobre a situação de mulheres e crianças, a fome em Gaza, deslocamentos forçados, a negação de ajuda humanitária, bem como em declarações públicas de autoridades israelenses.

Amparando-se na jurisprudência da Corte, o Brasil observou que “um certo número de órgãos estatais ou outros indivíduos atuando em nome de um Estado pode produzir um padrão de conduta a partir do qual se pode inferir uma política governamental relativa à destruição de um grupo”. Em outras palavras, não seria necessário um plano formal e específico para a prática do genocídio.

Legítima defesa x genocídio

O Brasil também aproveitou a oportunidade para se pronunciar sobre o argumento de legítima defesa e sua relação com o crime de genocídio — uma das principais teses apresentadas por Israel na fase inicial do processo. Para o Brasil, em conformidade com os pilares da Carta da ONU e das regras sobre o uso da força, toda legítima defesa deve ser necessária e proporcional, não podendo ser invocada como excludente de ilicitude nem servir para atenuar as obrigações relativas à proibição de genocídio.

Numa formulação inovadora, o Brasil parece chamar a Corte Internacional de Justiça à sua responsabilidade no julgamento. Dada a excepcional gravidade do crime de genocídio, não cabe apenas à Corte adotar rigor na verificação da intenção, mas também oferecer uma justificação extensiva caso ela não a encontre no caso concreto — algo que, para alguns juízes internacionais, faltou na decisão sobre a acusação de genocídio entre Croácia e Sérvia. Em suma, o ônus probatório rigoroso deve ser acompanhado de uma motivação igualmente rigorosa, especialmente diante da grande atenção da comunidade internacional ao deslinde do caso.

Se o Brasil não argumentou diretamente pela ocorrência de genocídio em Gaza, sua intervenção não pode ser retirada de contexto nem ter diminuído seu valor simbólico. Politicamente, trata-se de um contundente apoio à África do Sul e ao povo palestino. As sofisticadas estratégias jurídicas empregadas na manifestação configuram traçados de potenciais caminhos jurídicos a serem seguidos. Quando a Corte Internacional de Justiça emitir seu julgamento final no Palácio da Paz, na Haia, saberemos o quão efetiva terá sido a política externa jurídica brasileira.

  • é professor de Direito Internacional da UFMG, coordenador do grupo de pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais (CNPq/UFMG) e membro da Diretoria da International Law Association – Brasil.

domingo, 26 de janeiro de 2025

Acordo para o fim da Guerra da Ucrânia possui riscos jurídicos - Lucas Carlos Lima (FSP)

 

 
 UCRÂNIA

Acordo para o fim da Guerra da Ucrânia possui riscos jurídicos

Negociações enfrentam desafios legais relacionados à soberania, territórios ocupados e garantias internacionais

Lucas Carlos Lima

É professor de direito internacional na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do grupo de pesquisa em cortes e tribunais internacionais.

Folha de S. Paulo, 26/01/2025

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/01/acordo-para-o-fim-da-guerra-da-ucrania-possui-riscos-juridicos.shtml

Desde que Donald Trump anunciou a intenção de encerrar rapidamente a Guerra na Ucrânia, muito se tem especulado sobre os termos de um eventual acordo entre Moscou e Kiev. O conflito, iniciado em fevereiro de 2022, está prestes a completar três anos, deixando um saldo trágico de mais de um milhão de baixas entre civis e militares.

O potencial acordo para encerrar o embate possui uma série de elementos geopolíticos que precisam ser cuidadosamente sopesados. Contudo, há pelo menos dois aspectos jurídicosque merecem atenção especial.

A questão fundamental e potencialmente capaz de gerar impasses diz respeito aos territórios já ocupados pela Rússia desde o início do conflito, incluindo a península da Crimeia, anexada em 2014. Desde 1945, o ordenamento jurídico internacional, erigido após a Segunda Guerra Mundial, prevê a proibição do uso da força e a impossibilidade de aquisições territoriais por meios bélicos.

Um acordo que reconheça expressamente os antigos territórios ucranianos —hoje sob ocupação russa— como parte legítima do território russo enfrentaria barreiras significativas no direito internacional. Por isso, discute-se a possibilidade de um acordo que promova o congelamento das fronteiras, estabelecendo-as conforme as atuais linhas de frente entre russos e ucranianos, sem, contudo, reconhecer formalmente a soberania russa sobre as áreas ocupadas.

Uma solução desse tipo aparenta equilibrar as ambições da Ucrânia e da Rússia. Por um lado, o conflito seria encerrado, permitindo que ambos os Estados concentrem seus esforços na estabilização econômica em vez de manterem a militarização. Por outro lado, Kiev e Moscou poderiam apresentar resultados positivos ao público interno e externo.

A Ucrânia poderia alegar que não houve cessão formal de território, enquanto a Federação Russa poderia vangloriar-se de continuar ocupando e controlando efetivamente a Crimeia e as regiões do Donbass. Uma solução também deveria ser pensada em relação aos casos movidos pela Crimeia contra a Rússia em tribunais internacionais.

Um acordo dessa natureza necessitaria de garantias concretas. Isso explica as discussões atuais sobre uma missão de paz supervisionada pela ONU para monitorar e salvaguardar as fronteiras. Entretanto, uma missão de paz só poderia ser mobilizada mediante aprovação do Conselho de Segurança da ONU, que, por sua vez, exigiria consenso entre os membros com direito a veto. Na ausência desse consenso, o Conselho permanece vulnerável à paralisia.

Outro tipo de garantia precisaria ser politicamente negociado: a segurança de que a Ucrânia não será novamente atacada e de que a Otan não continuará com um alegado expansionismo rumo ao Leste Europeu. Esses acordos políticos são difíceis de formalizar em termos jurídicos e poderiam ser incluídos por meio de cláusulas específicas, como compromissos da Ucrânia de não aderir à Otan ou à União Europeia.

Um segundo argumento jurídico poderia ser invocado no futuro, dependendo dos termos do eventual acordo: o argumento da nulidade. De acordo com o direito internacional, "é nulo um tratado cuja conclusão foi obtida pela ameaça ou pelo emprego da força em violação dos princípios de Direito Internacional incorporados na Carta das Nações Unidas". Assim, em um futuro próximo ou distante, a Ucrânia poderia declarar a nulidade do acordo para tentar recuperar os territórios perdidos.

O presidente Trump, para cumprir sua promessa de campanha, enfrentará o desafio de encontrar um equilíbrio entre Moscou, Kiev (e também Bruxelas) e, ao mesmo tempo, construir uma base jurídica sólida para garantir a estabilidade do acordo. Caso tenha sucesso, ele obterá uma significativa vitória no cenário internacional. Mesmo após a formalização de um acordo, novos desafios e riscos inevitavelmente surgiriam numa região historicamente marcada pelo signo do conflito.


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Posição do Brasil em Haia fica no meio do caminho entre direito e diplomacia - Lucas Carlos Lima (FSP)

Posição do Brasil em Haia fica no meio do caminho entre direito e diplomacia

Ausência de referências a eventos posteriores ao ataque do Hamas pode ser sinal de moderação à luz da tensão diplomática

Lucas Carlos Lima

Professor de direito internacional (UFMG), atuou perante

 a Corte Internacional de Justiça; organizador do livro

“A Jurisprudência da Corte Internacional de Justiça” (ed. Del Rey)


Folha de S. Paulo, 20/02/2024

Opiniões consultivas emitidas pela Corte Internacional de Justiça, o principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas, são receptáculos do estado do direito internacional num determinado momento histórico. Apesar de não serem vinculantes como decisões em casos contenciosos iniciados por um Estado contra outro, elas possuem grande autoridade pois anunciam o conteúdo e alcance das normas jurídicas aplicáveis ao caso e servem como fonte para auxiliar a resolução de controvérsias futuras.

Essa é a razão pela qual nesta semana mais uma vez os olhos do mundo se voltam a Haia diante do pedido de opinião consultiva formulado pela Assembleia-Geral da ONU em janeiro de 2023 –ou seja, muito antes dos ataques perpetrados pelo Hamas contra Israel no 7 de Outubro– sobre consequências das ações de Israel nos territórios palestinos.

Juízes da Corte Internacional de Justiça (CIJ) durante audiência sobre a ocupação de Israel de territórios palestinos - Piroschka van de Wouw - 19.fev.2023/Reuters

As perguntas colocadas à Corte pela Assembleia foram duas. Em primeiro lugar, esclarecer quais são as consequências jurídicas decorrentes da "violação contínua por Israel do direito do povo palestino à autodeterminação, da sua prolongada ocupação, colonização e anexação do território palestino ocupado desde 1967", bem como da "adoção de legislação e medidas discriminatórias relacionadas".

Em um segundo momento, compreender como as referidas políticas "afetam o estatuto jurídico da ocupação e quais são as consequências jurídicas que decorrem desse estatuto para todos os Estados e para as Nações Unidas", visando também entender quais são as obrigações de todos os membros da comunidade internacional diante da situação.

É interessante notar que a linguagem empregada pela Assembleia-Geral faz referência às resoluções e normas internacionais anteriores (bem como a própria decisão de 2004 da Corte Internacional sobre a "Legalidade da Construção do Muro em Territórios Palestinos Ocupados" por Israel), que já estabeleceram a violação, por parte de Israel, de normas e obrigações de direito internacional.

A Assembleia busca, portanto, compreender quais são os efeitos e linhas de ação a serem tomadas diante da situação de violação de territórios ocupados por Israel em contrariedade ao direito internacional. Esse ponto foi alvo de crítica na manifestação de Israel, para quem as perguntas "representam uma clara distorção da história e da realidade atual do conflito israelo-palestino".

Muitos Estados e organizações internacionais resolveram participar do procedimento, apresentando sua posição sobre as perguntas colocadas pela Assembleia. Tal participação revela que os Estados são conscientes de que as suas posições são levadas em alta consideração pela Corte.

O Brasil não é exceção e apresentou suas considerações escritas e oralmente sobre o tema. É possível notar, nos últimos tempos e independente do governo, uma maior preocupação do Brasil em participar de procedimentos consultivos perante tribunais internacionais. Parece se difundir nos corredores de Brasília uma consciência da oportunidade que esses procedimentos representam de influenciar a ordem jurídica internacional.

Em suas observações escritas bem como em sua sustentação pública no Palácio da Paz, a posição brasileira pode ser sintetizada nos seguintes pontos: (1) a Corte Internacional possui jurisdição e deve exercê-la para emitir uma opinião sobre as questões solevadas; (2) a ocupação israelense dos territórios palestinos viola o direito do povo palestino à autodeterminação, e o Brasil defende o caráter peremptório dessa norma; (3) Israel deve pôr fim à ocupação de territórios palestinos; (4) um Estado que viola o direito internacional deve oferecer a devida reparação, e tal princípio se aplica a Israel; (5) todos os Estados, e não apenas os envolvidos no conflito, devem se abster não apenas do reconhecimento dessa situação, mas também de atos que possam implicar tal reconhecimento; (6) nenhum Estado deve colaborar com as ações ou iniciativas israelenses relacionadas à ocupação ilegal dos territórios palestinos; (7) os Estados devem cooperar para pôr fim à ocupação, por meios legais, o mais rápido possível.

A posição brasileira parece alinhada com seus princípios constitucionais e internacionais de política externa jurídica e está em consonância com diversas outras manifestações de Estados em relação ao estado do direito internacional. Em algumas passagens os argumentos jurídicos poderiam ser melhor detalhados ou elaborados, oferecendo uma visão mais precisa e contundente da posição brasileira.

Embora os argumentos brasileiros se encontrem ancorados no direito internacional, em muitas passagens a posição brasileira parece mais um discurso diplomático que uma argumentação jurídica. A ausência de referências aos eventos posteriores ao ataque do Hamas parece também um sinal de moderação à luz da tensão diplomática que tomou o noticiário nesta semana.

Em alguns meses a Corte Internacional emitirá seu parecer sobre a questão. Se a decisão da Corte irá efetivamente influenciar o futuro da situação na Palestina é um questionamento bem mais complexo.



quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

O processo da África do Sul contra Israel perante a Corte Internacional de Justiça - Lucas Carlos Lima (Conjur)

 O processo da África do Sul contra Israel perante a Corte Internacional de Justiça

Conjur, 1/01/2024

https://www.conjur.com.br/2024-jan-01/o-processo-da-africa-do-sul-contra-israel-perante-a-corte-internacional-de-justica/

Lucas Carlos Lima é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cortes e Tribunais Internacionais UFMG/CNPq e co-organizador da obra A Jurisprudência da Corte Internacional de Justiça.


No dia 29 de dezembro de 2023 a República da África do Sul acionou a Corte Internacional de Justiça  trazendo o Estado de Israel à barra da Haia por alegações de violações à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948 (doravante “Convenção contra Genocídio” ou “convenção”). Em suma, a África do Sul inicia um procedimento judicial para (a) verificar as ações cometidas por Israel em Gaza configuram violações à distintas obrigações presentes na convenção e; (b) obter uma decisão em procedimento cautelar e suspender imediatamente as ações militares de Israel em Gaza e contra Gaza.

Sabendo que os processos perante a Corte da Haia podem levar anos, um pedido durante o decorrer do conflito tem também como intuito a obtenção de uma ordem cautelar para influenciar os acontecimentos presentes. Essa parece ser inclusive uma tendência dos últimos anos em matéria de direitos humanos, como recentemente observou na UFMG a professora Serena Forlati, da Universidade de Ferrara. Nesse sentido, é possível verificar que a corte foi acionada recentemente em dois casos envolvendo a mesma convenção: no caso Ucrânia v. Rússia e no caso Gâmbia v. Myanmar. Em ambos os casos a Corte Internacional emitiu ordens cautelares demandando específicas ações dos Estados requeridos para proteger os direitos presentes na convenção.

O presente ensaio analisa tecnicamente o processo movido pela África do Sul perante a Corte da Haia à luz das regras internacionais existentes e da jurisprudência da corte sobre a matéria com a finalidade de esclarecer o significado dessa ação judicial para o conflito. Num primeiro momento (1) foca-se nas alegações da África do Sul, esmerilhando assim sua petição inicial. Em seguida, revisita-se a jurisprudência da corte em matéria de genocídio e medidas cautelares (2) buscando similaridades com a presente demanda. Por fim, conjectura-se os potenciais caminhos que a corte pode tomar envolvendo o caso.

 1. As alegações da África do Sul e os requisitos procedimentais da corte
Em sua petição inicial (application), a África do Sul argumenta que Israel estaria violando a Convenção contra Genocídio, entre outras alegações, por não agir para impedir a realização de um genocídio, por conspirar para a realização de um genocídio e por impedir a investigação e a punição de um genocídio, nos termos dos artigos I, II, III, IV, V e VI da convenção [1]. Segundo o documento sul-africano, “os atos e omissões de Israel denunciados pela África do Sul são de caráter genocida porque têm a intenção de destruir uma parte substancial do grupo nacional, racial e étnico palestino, que é a parcela do grupo palestino situado na Faixa de Gaza”. Dentre as diferentes fontes que mobiliza para fundamentar seus argumentos, a África do Sul utiliza declarações de diferentes países e chefes de Estado (inclusive do Brasil) para configurar o genocídio. Contudo, na hipótese do caso proceder, cada ato precisará ser analisado isoladamente nos termos da Convenção de Genocídio para verificar uma violação, demandando um alto ônus probatório de ambas as partes.

Alguém poderá se questionar: por que a África do Sul moveu o processo e qual sua legitimidade processual para fazê-lo? Não seria mais óbvio um processo movido pelo Estado da Palestina contra Israel em que ambas as portes poderiam trocar as recíprocas acusações?

Embora esta última possibilidade exista, as obrigações jurídicas presentes na Convenção contra o Genocídio são obrigações de uma natureza única no direito internacional, qual seja, obrigações de caráter erga omnes partes. Em outras palavras, são obrigações devidas a todas as outras partes da convenção e cujos interesses jurídicos são de todos os membros da convenção em salvaguardar. Como a própria corte observou em 2022: são obrigações “no sentido de que cada Estado Parte [da Convenção] tem interesse em cumpri-las em qualquer caso” de modo que isso “implica que qualquer Estado Parte [da Convenção], sem distinção, tem o direito de invocar a responsabilidade de outro Estado parte por uma suposta violação de suas obrigações erga omnes partes” [2]. Desse modo, verificadas supostas violações à convenção, qualquer Estado que é parte na convenção — inclusive o Brasil — teria legitimidade para acionar um outro Estado, ou ainda, vir a intervir no procedimento por dela ser parte e ter interesses em sua interpretação.

O pedido da África do Sul não visa apenas a discussão das obrigações da convenção, mas requer também, a título de medidas cautelares, que uma série de atos sejam realizados por parte de Israel. Dentre eles, estão (1) que Israel suspenda suas atividades militares em Gaza; (2) que Israel garante que qualquer ação militar ou grupos militares irregulares cessem suas atividades; (3) que todas as medidas à disposição do Estado de Israel para prevenir um genocídio sejam tomadas. Ou seja, há uma clara intenção por parte da África do Sul em encerrar a ofensiva israelense com o objetivo que não danificar os direitos protegidos na convenção, confirmando portanto a dupla intenção da ação.

2. A jurisprudência da Corte Internacional em matéria de genocídio e medidas cautelares
Em virtude do Artigo IX da Convenção contra Genocídio, a Corte Internacional de Justiça é o órgão judicial responsável por dirimir controvérsias envolvendo sua aplicação e interpretação da convenção. A corte já emitiu uma importante opinião consultiva detalhando a importância da convenção e fez diversas pronúncias sobre a natureza das obrigações nela presentes. Ademais, dois casos contenciosos já chegaram à fase de mérito e obtiveram decisões finais: o caso Bósnia v. Sérvia, no qual a corte entendeu que a Sérvia falhou na prevenção do genocídio conduzido por milícias em seu território; e o caso Croácia v. Sérvia, no qual a Corte entendeu que um genocídio não ocorreu, apesar do importante voto dissidente do juiz e professor Antônio Augusto Cançado Trindade.

As lições de casos anteriores demonstram que não se pode perder de vista que os tempos da justiça internacional são tão morosos quanto o da justiça interna e um caso como este pode levar até mesmo a uma divisão no interior da corte (composta por 15 juízes de diferentes nacionalidades, origens e percepções do direito internacional). A petição sul-africana é o início de um longo processo. Nos dois casos em que terminou de julgar alegações da violação da convenção, a Corte Internacional de Justiça levou mais de dez anos para emitir uma decisão final, com diversos incidentes processuais no decorrer do processo.

Isto porque a configuração de jurídico ocorre quando um padrão probatório particularmente alto é atingido. Além de cometer atos de violência específicos contra um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, o genocídio enquanto figura jurídica exige uma vontade especial de eliminação, total ou parcial, do grupo em questão, nos termos do Artigo II da convenção. Como a própria corte já estabeleceu no passado, a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal “é a característica essencial do genocídio, que o distingue de outros crimes graves. Ele é considerado um dolus specialis, ou seja, uma intenção específica, que, que, para que o genocídio seja estabelecido, deve estar presente além da intenção exigida para cada um dos atos individuais envolvido”.

No último caso em que a corte julgou, envolvendo a Croácia v. Sérvia de 2015, a Corte Internacional foi particularmente exigente no momento de verificar o dolo especial. Por consequência, concluiu que a Croácia havia falhado na demonstração e prova do dolo especial, apesar dos atos cometidos estarem previstos na convenção, faltava o elemento volitivo de destruição do grupo, que não poderia ser meramente inferido dos atos. No caso Gâmbia v. Myanmar, ainda sem julgamento perante a corte, parece contribuir para o caso o fato de que existe relatórios de uma missão especial de fact-finding do Conselho de Direitos Humanos da ONU que já atestou o intento genocida pode ser particularmente relevante.

Contudo, a estratégia sul-africana parece estar em linha com outros processos recentes perante a corte em que a convenção foi invocada que buscaram uma ordem provisória para a cessação das violações da convenção em caráter de urgência. Nesses casos, como a Corte precisa apenas satisfazer que ela teria jurisdição prima facie, que existiria um risco de dano, urgência e que os direitos violados são plausíveis, a Corte Internacional poderia emitir uma ordem com requisitos processuais menos rigorosos que a prova de um genocídio no escopo de ordenar qualquer abstenções de ações que poderiam configurar violações da Convenção contra o Genocídio. Nesse sentido, precedente relevante parece ser também o caso da Ucrânia v. Rússia, cuja medida provisória foca menos na necessidade de intento genocida, mas sim no risco de violação aos direitos protegidos na convenção [3].

3. O que esperar do processo perante a Corte Internacional de Justiça?
Pode-se ler a ação sul-africana também como uma tentativa de uma rápida obtenção por parte da Corte da Haia de uma ordem de cessação de atos beligerantes por parte de Israel. Essa medida judicial poderia servir para exercer maior pressão internacional, também jurídica, para uma cessação das hostilidades, inclusive levando as partes para a mesa de negociação.

Obviamente são muitos requisitos processuais que precisam ser preenchidos e a urgência do caso levará à Haia nas próximas semanas uma série de argumentos jurídicos complexos na tentativa de conduzir o pedido sul-africano ao êxito.

Caso a corte verifique que tenha jurisdição sobre a controvérsia (algo que nem sempre é óbvio na jurisprudência da corte), iniciar-se-á um longo processo de discussão da existência ou não de um genocídio e de outras violações da convenção.

O procedimento na corte pode tomar uma série de caminhos e tentar prever com precisão o comportamento judicial em casos de alta complexidade nem sempre torna-se um exercício frutífero. Contudo, dada a jurisprudência recente de matéria, algumas questões emergem e outras situações podem ser conjecturadas.

Uma primeira questão que surge envolve a participação ou não de Israel nos procedimentos, que tende a fazer toda a diferença em matéria de defesas e justificativas. Israel teria ocasião de apresentar suas defesas processuais e substanciais, como, por exemplo, contestar a própria jurisdição da corte e contestar a existência de uma “controvérsia” entre África do Sul e Israel envolvendo a convenção. Outra questão mais complexa, envolve os limites da legítima defesa no direito internacional, que também poderia surgir.

Uma segunda questão procedimental seria se no presente caso também se verificará a tendência de intervenção de terceiros Estados, como aconteceu nos casos da Rússia e de Myanmar. Não é claro quais são os Estados que terão a vontade de participar processualmente no debate. Embora possa-se imaginar pelo menos uma participação da Palestina nos procedimentos, será interessante verificar quais Estados efetivamente irão participar do procedimento e quais serão os argumentos invocados, tanto no sentido de alegar a existência de violações quanto de manter o alto standard probatório para configuração de genocídio.

Ao mesmo tempo que a gravidade da situação em Gaza conclama ações internacionais, o devido processo legal deve ser respeitado em virtude da gravidade das acusações realizadas. Como mencionado, na jurisprudência da Corte Internacional um Estado jamais foi efetivamente condenado por conduzir ativamente um genocídio.

A corte é guiada pelo princípio do contraditório e pode-se supor que uma instituição judicial, norteada pela imparcialidade e independência pretorianas, não deseja ser percebida como dotada de predições. Isso significa que a participação de Israel e a oitiva de seus argumentos constitui um ponto fundamental para o processo diante da corte. Talvez possa-se esperar da corte algo similar aos casos anteriores: uma ordem em medida cautelar, ou seja, temporária enquanto durar o processo e buscando salvaguardar os direitos pendente lite, ordenando a abstenção de atos que possam lesionar os direitos protegidos na Convenção contra o Genocídio.

Embora existam críticas à mobilização da Corte Internacional meramente com finalidades cautelares em casos envolvendo violações de direitos humanos, esta tendência para se consolidar na jurisprudência da Haia — e o caso da África no Sul não parece ser exceção. Ademais, é importante a existência de um órgão judicial que possa decidir ou não sobre a existência de um genocídio, evitando a apropriação da expressão por discursos políticos. Se de algum modo contribuir para evitar o agravamento de conflitos e que os direitos das partes sejam preservados, a Corte Internacional de Justiça estará exercendo seu importante papel como principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas e, portanto, da própria proteção de direitos reconhecidos pela comunidade internacional.

 


[1] Sobre a Convenção contra o Genocídio existe ampla literatura a respeito. Nesse sentido ver o recente TAMS, Christian; BERSTER, Lars; SCHIFFBAUER, Bjorn. The Genocide Convention: Article-by-Article Commentary. Bloomsbury Publishing, 2023; GAETA, Paola. The UN Genocide Convention: A Commentary. Oxford University Press, 2009. Ver também CANEDO, Carlos. O Genocídio como Crime Internacional. Del Rey, 1999.

[2] Sobre o tema, ver ROCHA, A. L. O. A Legitimidade processual perante a Corte Internacional de Justiça: o caso do genocídio Rohingya e os efeitos processuais das obrigações erga omnes partes. In: LIMA, L. C. (Org.); ROCHA, A. L. O. (Org.). Cadernos de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2023. v. 2. pp. 71-118.

[3] Sobre essa decisão ver LIMA, Lucas Carlos. As medidas cautelares da Corte Internacional de Justiça no caso entre Ucrânia e Federação Russa. Revista de Direito Internacional, Vol. 19, 2022, pp.32-38.

    sábado, 9 de dezembro de 2023

    Plebiscito da Venezuela é estratégia jurídica pela autodeterminação - Lucas Carlos Lima (FSP)

     
     LUCAS CARLOS LIMA

    Plebiscito da Venezuela é estratégia jurídica pela autodeterminação

    Ao buscar aval popular na disputa, Caracas parece sugerir que venezuelanos estariam sob jugo de uma Guiana ocupante


    Folha de S. Paulo, 6 dezembro 2023

    Lucas Carlos Lima

    Professor de direito internacional na UFMG, é coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG


    Estados soberanos não raramente projetam as suas políticas externas jurídicas em diferentes frentes de argumentação com a finalidade de atingir seus objetivos.

    Se alguns alegam que o plebiscito aplicado pela Venezuela em 3 de dezembro em relação à região de Essequibo é uma medida que visa a acumular vantagens internas num contexto eleitoral complexo, pode-se também analisá-lo no contexto de uma batalha judicial internacional pela soberania sobre um território.

    Nesse segundo sentido, o plebiscito pode ser instrumentalizado para justificar e legitimar as teses venezuelanas em relação ao conflito territorial.

    A reivindicação da Venezuela sobre a região do Essequibo é antiga e desde os anos 1960 serve de objeto a uma controvérsia com a Guiana e o Reino Unido —antiga potência colonial do território.

    Em suma, a fronteira entre Venezuela e Guiana foi determinada por uma arbitragem interestatal de 1899 conduzida por cinco juristas. O laudo, que designou a região de Essequibo como parte do território da Guiana Britânica à época, é atacado pela Venezuela, dentre outros motivos, pela acusação de suposto conluio e corrupção dos árbitros. Ao contestar o laudo, a Venezuela impugna o título jurídico que garante à Guiana a soberania sobre o território de Essequibo.

    Após anos de mediação e trocas de acusações, os Acordos de Genebra de 1966 entre as três partes deram poder ao secretário-geral da ONU para mediar a questão. Após uma nova e fracassada tentativa de mediação, António Guterres reconheceu a competência da Corte Internacional de Justiça, a Corte de Haia, para dirimir a questão. Em 2018, a Guiana recorreu à Corte tendo em vista uma declaração de validade do laudo arbitral de 1899.

    Em 2020, a Corte da Haia reconheceu a sua própria competência e, neste ano, rechaçou a defesa processual venezuelana de que o Reino Unido precisaria ser parte no processo graças à sua implicação na disputa. Quase que imediatamente após esse revés judicial, Caracas decidiu convocar o plebiscito que consulta a população sobre as posições de política externa do Estado venezuelano em relação a Essequibo –exigindo da população um conhecimento aprofundado da disputa e do direito internacional.

    A Guiana tentou impedir o plebiscito perante a Corte Internacional de Justiça com um pedido de decisão cautelar. Contudo, a Corte apenas expressou que a Venezuela "deverá se abster de tomar qualquer medida que possa modificar a situação que prevalece atualmente no território em disputa" controlado pela Guiana.

    Seria surpreendente se a Corte de Haia, em sede cautelar, interviesse em consultas democráticas de um Estado. Contudo, a lição do tribunal é especialmente importante para os rumores de uma suposta invasão militar.

    Nesse sentido, pode-se questionar: qual é o sentido do plebiscito como ato jurídico internacional? Antes de responder a essa questão, alguns argumentos jurídicos não podem deixar de ser delineados.

    Primeiro, nenhum plebiscito autoriza o uso da força nas relações internacionais. Desde 1945, a anexação territorial pelo uso da força é proibida pelo direito internacional, e os Estados possuem o dever de não reconhecer a situação fática.

    Segundo, existe uma obrigação a partir da Carta da ONU que os Estados têm o dever de resolver suas controvérsias pacificamente, o que está em sintonia com a tradição latino-americana e também brasileira de política jurídica internacional.

    Terceiro, a decisão da Corte, embora não tenha impedido o plebiscito, garantiu que qualquer ato de mudança de status do território (pelo uso da força ou não) se configuraria como uma interferência na decisão judicial final.

    Em outras palavras, tanto a manifestação da Corte quanto as demais regras do direito internacional seriam violadas em caso de uso da força por parte da Venezuela em Essequibo.

    Se o plebiscito não possui poderes para outorgar o título do território da Guiana à Venezuela, a qual finalidade ele serve? Ignorados os efeitos internos, revela o uso estratégico do princípio da autodeterminação dos povos.

    Como enunciado no direito internacional, "todos os povos têm direito à autodeterminação; em virtude desse direito, eles determinam livremente seu status político e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural".

    Ou seja, por meio do princípio, e sobretudo por meio da política de concessão de cidadania venezuelana aos habitantes de Essequibo, Caracas parece sugerir que os povos da região estariam sob o jugo de uma potência ocupante (a Guiana). Há obviamente problemas nessa tese.

    Enquanto a Corte Internacional de Justiça não decide o mérito do caso, ou seja, se o laudo arbitral de 1899 é nulo ou não, a Venezuela aparenta estar interessada em perseguir outras estratégias jurídicas para garantir algum tipo de titularidade à região do Essequibo.

    Diante desse contexto, evitar a escalada das tensões e trazer as partes à mesa de negociação parece o caminho mais indicado tanto para o Brasil quanto para outros Estados, direta ou indiretamente envolvidos, para impedir violações ao direito internacional.