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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Luis Fernando Veríssimo: o cronista e a sociedade em movimento - Paulo Baía

Luis Fernando Veríssimo: o cronista e a sociedade em movimento

             * Paulo Baía 

Há cronistas que se confundem com o próprio país, como se sua pena tivesse nascido para traduzir o Brasil em pequenas doses de humor, acidez e erudição. Luis Fernando Veríssimo pertence a essa linhagem rara. Ele não escreveu apenas sobre fatos, escreveu sobre modos de vida, sobre os gestos mínimos que revelam as estruturas invisíveis da sociedade. Fez da crônica um território de investigação antropológica, mas com a leveza da literatura e a pontaria do jornalismo. Ler Veríssimo é compreender que a crítica social pode vir embalada em ironia, que a observação política pode se esconder em diálogos cotidianos e que a história de um país cabe em poucas linhas se o olhar for suficientemente afiado.

Veríssimo dominava a arte de olhar para o detalhe e, a partir dele, alcançar a totalidade. O machismo que se expunha em uma frase desajeitada no jantar de família, o autoritarismo que se infiltrava em discursos oficiais, a desigualdade que se manifestava na diferença entre quem aguardava na fila e quem furava o protocolo, tudo virava matéria de análise. A crônica, em suas mãos, tornava-se uma espécie de etnografia cotidiana, um retrato sociológico daquilo que não costuma aparecer nas estatísticas, mas molda de forma profunda a experiência coletiva. No Brasil, onde a política se mistura ao humor involuntário dos governantes e onde a tragédia social convive com a criatividade cultural, Veríssimo encontrou material inesgotável. Ele podia partir de um episódio trivial para desmontar, com sutileza, as pretensões das elites, a arrogância dos poderosos, a insensibilidade dos que tratam a desigualdade como se fosse destino natural. Mas fazia isso sem panfletarismo, com a elegância de quem sabia que uma ironia bem colocada é mais devastadora do que longas diatribes. O riso que provocava era sempre acompanhado de incômodo, porque fazia ver o que estava naturalizado.

A política foi um de seus alvos mais constantes. Acompanhou governos, denunciou contradições, riu dos discursos solenes que escondiam farsas e apontou o abismo entre o que se dizia em Brasília e o que se vivia nas ruas. Ao mesmo tempo, nunca deixou de lado a dimensão cultural, entendendo que literatura, cinema, televisão e música são arenas de disputa simbólica. O cronista que comentava jazz com paixão era o mesmo que desnudava os mecanismos do preconceito ou ironizava o consumismo vazio. Essa multiplicidade é a marca de um intelectual que não se restringiu a um campo específico, mas atravessou fronteiras com a naturalidade de quem reconhece a complexidade da vida social.

O humor, em Veríssimo, nunca foi superficial. Era método de análise, recurso sociológico, arma política. Seu humor revelava as incoerências do cotidiano e expunha a hipocrisia das instituições. Era um riso que desorganizava certezas, que desmontava verdades aparentemente inabaláveis. Ao rir de si mesmo, ao rir dos brasileiros, convidava à reflexão crítica sobre o que somos e sobre o que fingimos ser. O humor, nesse sentido, era tão político quanto qualquer discurso inflamado, mas infinitamente mais eficaz, porque alcançava leitores de todos os tipos. O cronista foi também um memorialista, não apenas no sentido de resgatar lembranças pessoais, mas de registrar a memória coletiva de um país em transformação. Cada texto guardava o espírito de uma época, servindo de arquivo para futuras gerações entenderem como se discutiam certos temas, como se pensava a democracia, como se elaboravam as tensões entre tradição e mudança. Ler Veríssimo hoje é reencontrar o Brasil em movimento, perceber os debates que se transformaram e os preconceitos que resistiram.

Há também um componente antropológico em sua obra. Ele descrevia os comportamentos com a paciência de um etnógrafo, atento a códigos invisíveis e rituais sociais. Seus personagens, muitas vezes caricatos, revelavam dimensões profundas da cultura brasileira. A graça não estava apenas na piada, mas no reconhecimento de que aquela piada dizia algo sério sobre o país. O marido perdido no supermercado, o funcionário público indeciso, o eleitor desconfiado, todos condensavam traços de uma coletividade marcada por contradições, espertezas e fragilidades. No plano literário, Veríssimo conseguiu o feito raro de unir sofisticação e simplicidade. Escrevia para que qualquer leitor entendesse, mas sem abrir mão da precisão estilística, da construção engenhosa, do ritmo que fazia o texto fluir como música. Sua prosa tinha a leveza de uma conversa de bar e a densidade de um ensaio acadêmico. Essa combinação explica por que foi lido por milhões e respeitado por intelectuais de diferentes áreas.

O Brasil é um país que sempre necessitou de intérpretes e Veríssimo foi um dos mais originais. Não ofereceu grandes sistemas teóricos, mas ofereceu o olhar atento para o detalhe que desvela o sistema. Não escreveu tratados de sociologia, mas escreveu crônicas que cumpriam esse papel com mais eficácia do que muitos estudos acadêmicos. Sua genialidade esteve justamente em traduzir o complexo em linguagem acessível, em transformar o drama em humor, em fazer da literatura um exercício de consciência crítica. Luis Fernando Veríssimo não apenas escreveu sobre o Brasil, escreveu o Brasil. Registrou suas idiossincrasias, denunciou suas injustiças, celebrou suas invenções culturais, criticou suas autoridades, ironizou suas contradições. Fez da crônica um gênero central para entender a sociedade e, ao mesmo tempo, uma arte literária que dignifica a palavra escrita. Ao lê-lo, rimos, refletimos e nos reconhecemos. E é nesse espelho, construído com leveza e rigor, que a sociedade brasileira pôde se ver mais claramente.

Luis Fernando Veríssimo permanece como um desses raros autores que ultrapassam o tempo. Sua obra é memória e é futuro, porque continua a dialogar com cada nova geração que descobre no humor a força da crítica e no detalhe cotidiano o reflexo de uma nação inteira. Sua crônica é música que nunca cessa, jazz que improvisa sem perder o ritmo, palavra que brinca e ensina. É literatura que se abre como janela para um Brasil que insiste em rir, chorar e resistir ao mesmo tempo. Ele nos deixou um legado que não cabe em prateleiras, mas se espalha em cada leitor que aprende a olhar o mundo com desconfiança e delicadeza. Ler Veríssimo é continuar acreditando que a ironia pode ser ética, que o riso pode ser revolucionário, que a palavra pode ser mais forte do que qualquer arma. Por isso, ao lembrarmos de Luis Fernando Veríssimo, lembramos de nós mesmos. Somos o país que ele escreveu, somos o espelho que ele devolveu com generosidade e inteligência. E, enquanto houver leitores atentos, seu olhar continuará vivo, desafiando o conformismo e celebrando a beleza escondida nos gestos mais simples.

               * Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

https://www.revistaprosaversoearte.com/luis-fernando-verissimo-o-cronista-e-a-sociedade-em-movimento-por-paulo-baia/ 

sábado, 12 de julho de 2025

O Brasil paralisado por impasses na governança - Paulo Baía

A tempestade e o fio: o Brasil entre poderes em fricção, fé em disputa e a urgência da escuta democrática

              * Paulo Baía 

O Brasil, em julho de 2025, é um país que caminha sob a vertigem. A paisagem institucional permanece em pé, mas há rachaduras nos pilares. As cores da democracia ainda estão nas bandeiras, nos tribunais, nas urnas e nas palavras dos discursos oficiais. No entanto, os três poderes da República caminham como corpos desajustados, um de costas para o outro, sem sincronia, sem harmonia, em fricção constante. A ideia de equilíbrio entre os poderes tornou-se peça de ficção constitucional. O que há é um embate silencioso e cotidiano entre instâncias que se desejam autônomas, mas que se sabotam mutuamente, num jogo de vaidades e estratégias dissimuladas. Neste palco de choques institucionais, pulsa a vida real de um país desigual, fatigado e ainda assim vivo.

Para compreender os últimos quinze anos da vida nacional é necessário nomear, sem rodeios, o lugar central que o Supremo Tribunal Federal passou a ocupar. O STF deixou de ser apenas o guardião da Constituição. Tornou-se ator de cena, não mais bastidor. Seus ministros passaram da toga ao microfone, do voto técnico à decisão com gestos dramáticos. O Supremo passou a ditar o ritmo da política brasileira, interferindo diretamente nos processos eleitorais, nas ações do Executivo, nas disputas legislativas, nos embates simbólicos do país. É um protagonismo visceralmente político, alimentado tanto pela omissão dos demais poderes quanto pela tempestade de crises que exigiram posicionamento. Seus votos tornaram-se editoriais. Suas decisões, capítulos do romance nacional. Seus ministros, personagens centrais da narrativa coletiva.

Mas o protagonismo do STF, ainda que por vezes necessário diante do colapso de outras instituições, é também sintoma. Sintoma de uma democracia tensionada, que transfere ao Judiciário o papel de árbitro quando a política perde sua capacidade de mediação. O Supremo preenche o vazio deixado por um Executivo sob constante cerco e por um Legislativo que se transformou num superpoder descontrolado. O Congresso Nacional já não é apenas uma casa de leis. Tornou-se o verdadeiro centro do governo, agindo sob um parlamentarismo informal, não declarado, mas operante. Um parlamentarismo de fato, em que deputados e senadores controlam a execução orçamentária por meio das emendas, exigem recursos, ministérios, cargos, favores. E tudo isso sem qualquer responsabilidade direta pelas consequências. A fatura é do Executivo. A cobrança é da população. A glória é do Legislativo.

Esse modelo deformado de governança cria um poder que governa sem governar, que executa sem responder, que pressiona sem assumir. O presidente da República torna-se um negociador permanente, um refém com caneta, um gerente de emendas. A responsabilidade pública permanece com o Executivo, mas o comando do orçamento está nas mãos do Parlamento. A inversão é brutal. É um regime de submissão consentida, em que o governo, para sobreviver, entrega partes da alma do Estado. O presidencialismo que resta é apenas uma imagem invertida no espelho da Constituição.


E nesse campo de distorções, reina também o bolsonarismo. Não como governo, mas como assombração. Jair Bolsonaro, ainda que fora do cargo, permanece como centro simbólico de um movimento que sobrevive a ele. O bolsonarismo é hoje um sistema articulado, operante, incrustado em igrejas, câmaras, corporações, escolas militares, polícias e redes sociais. Alimenta-se do ressentimento, da desconfiança, da descrença na política, da fé manipulada, do medo como método. Atua como vírus ideológico e cultural, contaminando o debate público, deslegitimando as instituições, instilando a lógica da ruptura permanente. Já não depende de Bolsonaro. Tornou-se maior que ele. Respira por aparelhos próprios.


A ofensiva internacional de Donald Trump, ao impor um tarifaço de cinquenta por cento sobre produtos brasileiros, foi mais que hostilidade econômica. Foi um gesto político, um aceno internacional à extrema direita brasileira, uma tentativa de desestabilizar o governo Lula e reforçar a ideia de que o Judiciário brasileiro age por vingança, não por justiça. Foi uma interferência grosseira nas escolhas internas do Brasil. Uma aliança explícita com o bolsonarismo em versão transnacional. Uma diplomacia da intimidação. Um gesto simbólico que buscava empurrar o Brasil de volta ao mundo das tutelas coloniais.


A resposta de Lula foi serena e firme. Acionou os canais diplomáticos, convocou a embaixadora brasileira nos Estados Unidos, prometeu reciprocidade, falou como chefe de Estado de uma nação que não aceita ser humilhada. O gesto teve peso. E reverberou. Porque há momentos em que é preciso erguer a voz com sobriedade, para que o país se reconheça em sua própria dignidade.


As ruas, até então dispersas, reagiram. Em 10 de julho, dezenas de milhares de pessoas tomaram praças e avenidas em várias capitais. A convocação partiu das frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, com apoio do MST, da CUT, da UNE, do PT, do PSOL. O grito não era apenas contra Trump, mas contra a tentativa de submeter o Brasil a um jogo autoritário global. Era um grito por soberania, por justiça tributária, por proteção ao Judiciário, por respeito à democracia. Era, sobretudo, um ato de memória coletiva. Uma lembrança de que o povo ainda sabe reconhecer os momentos em que a história exige presença.


O impacto foi imediato. O instituto Quaest registrou interrupção na curva de queda da aprovação do governo Lula. A tendência mudou. O povo entendeu o gesto. A firmeza diante da agressão externa foi compreendida como força, não como confronto gratuito. O episódio devolveu ao governo a capacidade de recompor sua narrativa. Recolocou Lula como protagonista. Mas essa recuperação, embora simbólica, não basta. O campo democrático precisa de mais que gestos pontuais. Precisa de enraizamento. Precisa de escuta.


Escutar as vozes do país profundo. Escutar as igrejas, sim, mas todas elas. Ouvir padres, pastores, bispos, cardeais, pregadores, líderes evangélicos, teólogos populares. Ouvir os terreiros, os babalorixás, os pais e mães de santo, os dirigentes de casas de Umbanda. Ouvir também os espíritas kardecistas, os médiuns, os esotéricos. Ouvir os que vivem da fé, que comungam com a espiritualidade de um povo que é profundamente religioso, místico, plural. Esses espaços não são apenas templos. São centros de escuta, redes de cuidado, territórios de acolhimento. São onde o povo busca sentido, refúgio, força. Negar isso é negar o coração do Brasil.


É preciso também escutar os adversários que não se tornaram inimigos. Aqueles que votaram contra, mas que não entregaram sua alma ao bolsonarismo. Gente comum. Trabalhadores, estudantes, pequenos empreendedores, donas de casa, motoristas de aplicativo, jovens desiludidos, mães aflitas. Gente que sente, sofre, espera. Muitos não escolheram a extrema direita por convicção, mas por solidão. Por ausência de alternativa. Por desinformação. Por medo. Esses não devem ser atacados, mas ouvidos. Porque ali também está o futuro.


Lula começou a reencontrar esse caminho. Rompeu o silêncio estratégico. Assumiu as rédeas. Recompôs a base, reorganizou as prioridades, enfrentou a chantagem institucional com mais firmeza. Mas o desafio é imenso. A engrenagem é pesada. O centrão exige mais. O STF seguirá intervindo. Trump não recuará. O bolsonarismo avançará pelas bordas, pelas frestas, pelos corpos.


É nesse cenário que se impõe a urgência de escolhas. Há decisões que não podem mais ser adiadas. Há pactos que não podem mais ser mantidos. Há zonas de conforto que se tornaram campos de rendição. A estabilidade não vale a perda da alma. A governabilidade não pode custar a dignidade do projeto. A conciliação não pode se transformar em traição. É preciso ter coragem para dizer não. Para traçar limites. Para afirmar valores.


Como escreveu a jornalista Silvia Debossan Moretzsohn, em seu artigo “Sobre escolhas difíceis — e óbvias”, publicado no site Come Ananas, há momentos em que já não se pode continuar fingindo que tudo é questão de cálculo. Há horas em que o óbvio se impõe, não por ser simples, mas por ser urgente. Porque há lutas que não admitem postergação. Porque há uma história que precisa ser escrita com coragem.


O fio da história foi reencontrado. Mas segurá-lo exige firmeza, escuta, clareza e, sobretudo, compromisso. O futuro do Brasil, entre as fricções dos poderes, as tormentas externas e os fantasmas internos, dependerá da capacidade de enfrentar o que precisa ser enfrentado. Com beleza. Com dureza. Com generosidade. E com a coragem de não desistir. Porque, no fundo, é disso que se trata: de não desistir. De novo. E sempre.


               * Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ


https://agendadopoder.com.br/a-tempestade-e-o-fio-o-brasil-entre-poderes-em-friccao-fe-em-disputa-e-a-urgencia-da-escuta-democratica/ 

domingo, 29 de junho de 2025

Congresso Nacional: da constituição cidadã à degradação republicana - Paulo Baía

Recomendo ler, com atenção. O que eu fiz e não hesitei em encontrar ou inventar um novo título ou qualificação para este diagnóstico cruel de uma realidade com a qual os brasileiros nos defrontamos:

Brasil: uma cleptocracia pouco republicana, aberta aos oportunistas espertos e às oligarquias predatórias

Paulo Roberto de Almeida 


Congresso Nacional: da constituição cidadã à degradação republicana

             * Paulo Baía 

Era uma vez um país que ousou sonhar com uma república viva. Ouvia-se, nos corredores de seu Parlamento, os ecos de um tempo fundante, tempo de reescrita, tempo de refundação. O ano era 1987. O povo ainda fermentava nas ruas, ainda sangrava de uma ditadura que não havia sido completamente sepultada, ainda desejava dizer: agora somos nós. Dali emergiu a Constituição de 1988, chamada com reverência de Constituição Cidadã, como se nela pulsassem os corações silenciados por duas décadas de chumbo. O Congresso Nacional era então um lugar de possibilidades, de fricções criativas, de esperanças germinando entre artigos e incisos. Havia contradições, havia limites, havia vícios. Mas havia também coragem. Havia decência institucional. Havia desejo de país.

O que se vê hoje, no entanto, é um outro cenário. É a lenta, ruidosa e devastadora degradação republicana. A casa que um dia aspirou representar a pluralidade do Brasil se converteu numa cidadela fechada. A arquitetura monumental que abriga os plenários virou teatro de um drama infame, onde cada cena é encenada não para o bem comum, mas para a manutenção de privilégios. O Congresso abandonou seu papel de representação popular e federativa, entregou-se ao patrimonialismo sem disfarces, ao clientelismo blindado por mecanismos técnicos de difícil decifração, ao poder quase litúrgico das emendas parlamentares, que são hoje a moeda com que se compram silêncios e se vendem consciências.

O país que ergueu sua Constituição com a promessa de um federalismo cooperativo assiste agora à sua própria fragmentação. A república foi desfigurada pelo avanço de quatro forças que ocupam o centro da cena legislativa: a bancada da bala, a do boi, a dos bancos e a bancada teocrática. Essas forças não apenas impõem sua agenda. Elas dominam o cotidiano do Parlamento. Ditam as pautas. Vetam o dissenso. Subjugam as demais bancadas como senhores de um latifúndio simbólico. A política brasileira, sob seu domínio, deixou de ser campo de disputa democrática para se tornar trincheira de exclusão, zona franca de interesses elitistas, lugar onde o povo só entra como espectro, como ausência, como retórica vazia.

Os teocratas atuais que se alastram pelo Parlamento, com suas indumentárias cívicas e dogmas disfarçados de moral pública, desempenham papéis com tal desenvoltura que fariam inveja aos aiatolás. Suas performances são meticulosamente teatrais, envoltas em uma retórica de salvação nacional, mas orientadas pela ânsia de poder absoluto. Não mais bastam-lhes púlpitos, templos e crenças: exigem microfones, comissões, gabinetes, verbas. Exigem influência sobre a educação, a cultura, os costumes, a vida íntima dos cidadãos. A cruz e a Constituição tornaram-se para eles armas de um mesmo arsenal. Legisladores de dogmas, gestores da fé como política de Estado, seus discursos se impõem não como opinião, mas como ordem. Como fé inquestionável transformada em norma jurídica. E assim as fronteiras da república laica vão se estreitando, sufocadas sob a imposição de valores que deveriam pertencer à esfera privada.

Esse domínio não é apenas conservador. É anti-republicano. É uma recusa ativa ao projeto de um Brasil plural, socialmente justo, economicamente solidário, eticamente público. O que se vê é a substituição do pacto coletivo por um condomínio de corporações. As leis brotam do asfalto quente do privilégio. As votações obedecem a mapas secretos de interesses. As comissões parlamentares são convertidas em quartéis administrativos de guerra contra qualquer tentativa de redistribuição. E quem ousa tocar nas estruturas de desigualdade é reduzido a inimigo.

O presidencialismo brasileiro, duas vezes ratificado pelas urnas em plebiscitos contundentes, tornou-se uma ficção governável apenas à custa de chantagens. O presidente, seja qual for sua coloração ideológica, é hoje um refém. Governar exige genuflexão. Exige concessões orçamentárias, nomeações milimetricamente negociadas, silêncio cúmplice diante de aberrações legislativas. A soberania do Executivo foi dissolvida por um parlamentarismo de fato, não previsto na Constituição, rejeitado pela sociedade, mas operado com vigor por um Legislativo que ocupa os espaços vazios da política com métodos de domínio. Métodos que fazem do orçamento público um campo de caça permanente. Métodos que substituem a democracia pelo conchavo, o pacto pela chantagem, a política pela clientela.

No meio desse desequilíbrio, o Judiciário se vê compelido a agir. Tenta proteger a Constituição, tenta manter alguma ordem, mas o faz do alto de um protagonismo que se descola da realidade social. Um protagonismo aristocrático, que transforma o juiz em oráculo, o tribunal em torre, a sentença em escudo. Em vez de mediar, confronta. Em vez de equilibrar, projeta-se como ator político. A tensão entre os poderes, que deveria ser sinal de vitalidade democrática, tornou-se dissonância crônica. Um campo minado onde a desarmonia não gera controle, mas ameaça.

O Congresso já não reflete o país. Suas entranhas são ocupadas por dinastias familiares, por homens brancos, empresários, grandes proprietários, teocratas com sede de poder. Não há ali ecos das fábricas que se reduzem, fábricas robotizadas em que a presença do trabalhador é dispensada, nem das salas de aula pública, nem do ambulatório do SUS, nem do campo desassistido, nem da favela cercada de tiro e esgoto. O poder ali não circula. Reproduz-se. De pai para filho, de padrinho para afilhado, de teocratas para discípulos igualmente teocratas. É uma lógica de hereditariedade travestida de democracia representativa. Os invisíveis da política são os mesmos invisíveis das estatísticas, das filas do INSS, das UTIs que colapsam, dos trens lotados. Não há espaço para eles. Não há voz para eles. Não há tempo para eles.

O povo é ruído. É despesa. É obstáculo. E é assim que legislam: contra a vida que dói, contra a juventude periférica que morre cedo ou enlouquece tentando sobreviver. Contra os motoboys que arriscam a existência por poucos trocados. Contra os idosos que veem sua aposentadoria corroída pela inflação e pela crueldade institucional. Contra as mulheres que sustentam seus filhos sozinhas. Contra os pretos, os indígenas, os LGBTQIA+, os corpos indesejados. Contra a própria ideia de justiça.

A representação federativa, que deveria equilibrar as vozes dos estados e territórios, virou instrumento de distorção. Os votos têm pesos desiguais. Os estados mais populosos têm menos representação proporcional. Os menos populosos, mais poder de veto. Essa assimetria é mantida não por inércia, mas por escolha. Uma escolha cínica que favorece o poder acumulado de elites locais, de feudos eternizados, de castas que se alimentam do desequilíbrio. E, em vez de discutir e deliberar pela representatividade efetiva e real da população com base em suas dinâmicas demográficas, o que se tem feito é simplesmente aumentar aritmeticamente o número de deputados federais para atender demandas localizadas. Uma manobra que, longe de corrigir os desequilíbrios estruturais, amplia e aprofunda as distorções da representação política da população brasileira, que em tese se faz presente na Câmara dos Deputados, mas na prática é diluída, ignorada e neutralizada por esse inchaço artificial da estrutura legislativa.

A reforma política, necessária e urgente, permanece trancada a sete chaves. Porque corrigir distorções significaria redistribuir o poder. E isso, no Brasil, ainda é considerado crime de lesa-majestade.

A república sangra. Não de uma ferida aberta, mas de mil cortes silenciosos. Cada emenda secreta. Cada CPI abortada. Cada veto derrubado. Cada projeto aprovado em favor do capital. Cada silêncio diante da dor coletiva. Cada escárnio contra a solidariedade. A confiança da população desmorona. O desprezo é palpável. Mais de 80% dos brasileiros não confiam no Congresso Nacional. Isso não é uma opinião. É um diagnóstico. É um atestado da falência moral de uma instituição que deveria representar todos, mas que se especializou em representar poucos.

Como dizia Santo Agostinho: na ausência de justiça, o que é o poder senão uma forma de saque institucionalizado. O Congresso brasileiro, hoje, é a síntese desse saque. Seus rituais são legais. Seus procedimentos são formais. Suas decisões, amparadas pelo regimento. Mas o que ali se opera é a manutenção de um Brasil excludente. Um Brasil que agride quem trabalha e protege quem explora. Um Brasil que reveste a desigualdade com o manto da técnica. Um Brasil onde a legalidade virou o álibi da injustiça.

Romper esse ciclo exige mais do que bons discursos. Exige ruptura. Exige reforma política. Exige mobilização cidadã. Exige coragem institucional para confrontar os interesses estabelecidos. Exige rever o financiamento de campanhas, rediscutir o sistema eleitoral, colocar a paridade de gênero e raça como princípio e não como concessão. Exige reumanizar a política. Fazer dela um lugar de projeto coletivo, e não de sobrevivência individual. Fazer dela ponte, e não trincheira. Fazer dela ato de cuidado, e não ritual de poder.

O Brasil precisa reaprender a sonhar. E sonhar exige recusar. Recusar a naturalização do privilégio. Recusar a obscenidade do orçamento capturado. Recusar o cinismo como método. Recusar o poder como herança. Recusar a política como farsa. Recusar o Congresso como fortaleza de poucos. Recusar o medo como regra. Recusar a república como escombro.

Só assim, quem sabe, um dia, o Congresso Nacional volte a ser o que prometeu ser. A casa de todos. A voz dos que não têm vez. O lugar onde a justiça não seja exceção, mas fundamento. Onde o povo não seja massa de manobra, mas sujeito da história. Onde a política não seja técnica de dominação, mas prática de emancipação. Onde o país possa, enfim, se reconhecer. E respirar. E florescer.

Paulo Baia

          * Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

Congresso Nacional: da constituição cidadã à degradação republicana https://agendadopoder.com.br/congresso-nacional-da-constituicao-cidada-a-degradacao-republicana/