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sábado, 31 de maio de 2025

Memorias pouco diplomáticas do velho Itamaraty - Marcos Azambuja (Piauí)

memórias pouco diplomáticas 

Casa bem assombrada

O Itamaraty antes de sua ida para Goiás

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/casa-bem-assombrada/

Marcos de Azambuja

Revista Piaui, n. 54, março 2011

OPalácio continua lá, quase no fim (ou quase no começo) da Rua Larga. Vou chamá-la assim, com maiúscula e tudo, apesar de hoje ser outro o seu nome, e de ter sido promovida a avenida. Era, a Rua Larga, uma via de mão dupla em mais de um sentido. Cedinho, e por boa parte da manhã, sua maré entrava, numerosa, da Central do Brasil em direção ao Centro (dizia-se “a Cidade”). E, do meio para o fim da tarde, e à noitinha, o fluxo ia, com a mesma intensidade, no sentido contrário. Era aquela vasta e modesta humanidade dos subúrbios da Central, que vinha para o trabalho muito mais pelos trilhos dos trens e dos bondes do que sobre rodas. Mais avançada a noite, o tráfego de pessoas e veículos era quase nenhum, e indefinido o seu sentido. Lima Barreto teria reconhecido, nesse vaivém, muitos de seus personagens.

A nossa Broadway – fazíamos, às vezes, a tradução literal por graça, e para dar à rua um pouco mais de prestígio – já estava então longamente assentada e arborizada, e fazia ofício de parecer que ali estivera desde sempre. Paralela a ela, parecendo uma imensa e recente cicatriz, ficava a avenida Presidente Vargas, que vinha da Igreja da Candelária e continuava em direção à Praça Onze (que já havia acabado, sem que o seu desaparecimento, como temera Herivelto Martins, tivesse levado ao fim as escolas de samba) até chegar à Cidade Nova. Foram-se as polacas do Mangue, com o renascimento administrativo e empresarial dos últimos anos; chegaram, mais numerosos do que elas, funcionários públicos e congêneres. A Rua Larga acabava em frente ao Ministério da Guerra, hoje chamado pelo nome menos ameaçador de Palácio Duque de Caxias.

Os grandes prédios continuam quase todos lá: a Igreja de Santa Rita, o Colégio Pedro II, a antiga sede da Light, chamada, devido à extensão e ao poder real e imaginado de seus tentáculos, de “o polvo canadense”. E desapareceu, sim, o Dragão, grande loja de coisas de casa, copa e cozinha.

Cyro de Freitas-Valle, que foi secretário-geral do Itamaraty, e fora antes embaixador em Berlim (o nosso último representante a entregar credenciais a Hitler, e cuja missão terminou com sua internação em Baden-Baden, na boa companhia de Guimarães Rosa, cônsul em Hamburgo, e de todo nosso pessoal diplomático na Alemanha; até serem trocados, em Lisboa, pelos alemães que serviam no Brasil), pois Freitas-Valle era conhecido na Casa, por sua severidade, como o “Dragão da Rua Larga”. Não só apreciava como não cansava de repetir o apelido, que o fazia passar por muito mais feroz do que de fato era.

Continua a haver hoje, em volta do Itamaraty, o mesmo ruidoso pequeno comércio. E, como insígnias de outros tempos, sobrevivem lojas de chapéus, que vão se adaptando às novas cabeças e aos novos tempos, e, por razões inexplicáveis, várias lojas de velas, prontas a serem acesas, ecumenicamente, nos altares de todos os cultos e na devoção a todos os santos e orixás.

As lojas de então, ao que parece, tinham mais estoque do que espaço. Como o calor fazia com que se procurasse temperaturas mais amenas, mercadorias e vendedores extravasavam para as calçadas, assaltando os transeuntes com o alarido de um assédio ruidoso, cheio de gestos e bordões pitorescos. Diminuíram muito, de lá para cá, os aleijados mais dramáticos, que tinham presos aos andrajos bilhetes de loteria e, com isso, encarnavam o cruel encontro da esperança da sorte com a falta de sorte. Havia também, numa vitrine, uma bota de borracha imersa em um aquário. Lá ficou a bota, por muitos e muitos anos, talvez ainda lá esteja, esverdeada pela presença de fungos, para provar, urbi et orbi, a sua robusta impermeabilidade.

Encontrava-se comida farta e barata nas redondezas. Havia o Tim-tim por Tim-tim, na rua do Lavradio, que, em épocas melhores, alimentara Sarah Bernhardt. Havia o Penafiel, com suas grandes panelas já abertas perto da porta, à exposição para a freguesia que chegava. O Cedro do Líbano e o Sentaí. Um pouco mais longe, mas tudo se fazia a pé, o Rio Minho, a Cabaça Grande, o Mosteiro e o Dirty Dick. Vários deles desapareceram, e os que sobraram gozam de aparelhos de ar-condicionado. Foram-se, exceto por uns bravos e barulhentos remanescentes, os ventiladores de teto. E foram-se de vez os palitos, aos quais dedicávamos, os cariocas, uma paixão incontrolável: mesmo senhoras grã-finíssimas, findo o repasto, estendiam a mão ao paliteiro e punham-se a futucar os dentes com galhardia.

Com a sua fachada neoclássica, a Casa continua virtualmente sem mudanças há mais de 150 anos. Só variou o matiz de sua pintura externa, que ao longo dos anos viajou de um rosa pálido até um siena intenso. Dá ainda para a rua sem recuo, mas tinha, naqueles tempos, o mais democrático dos acessos. Posteriormente, a sua guarda ficou, e perdura até hoje, a cargo dos Fuzileiros Navais – corporações ambas, a deles e a nossa, criadas quando da chegada providencial de dom João VI a estas praias. Não havia, ou não se percebia, ou não ameaçava a gente de boa paz, a violência urbana. Naquele tempo, no Rio, só me assaltavam dúvidas.

Ainda se entra, a pé, pela mesma e longa galeria flanqueada pelos bustos dos heróis da independência das Américas, e os de alguns penetras de outras safras e procedências. Existe outra entrada, só usada em dias de gala. Ela leva ao saguão que se abre para a bela escadaria e conduz ao andar superior. Por ela subiu o Império para comemorar, dançando, o fim da Guerra do Paraguai, na noite em que a princesa Isabel e o conde d’Eu receberam para um grande baile os oficiais que, vitoriosos, voltavam à Corte.

Havia, e há, uma terceira entrada. É a exclusiva para automóveis, que contorna o edifício e leva à garagem, ao estacionamento e aos demais prédios que integram o nosso quadrilátero diplomático. Mas naquele tempo havia pouquíssimos automóveis. Chegávamos quase todos a pé.

Fiz longa essa descrição da Casa e do seu entorno porque acho que uma parte da cultura do Itamaraty derivava de nossa situação na cidade e de nossa planta. Em Brasília, mais tarde, os espaços e as vistas iriam permitir sonhar e antever um novo Brasil. No Rio, estávamos ancorados no âmago mesmo da cidade, e não era possível escapar do que, de fato, éramos e tínhamos sido. A história e o presente, mais do que o futuro, nos definiam. Em Brasília, havia aspirações.


Ser diplomata não é uma vocação primária. Nunca encontrei criança que quisesse ser diplomata ao crescer. Também não é emprego fácil de definir. David Silveira da Mota, colega que foi um grande profissional, contava que sua filha, no colégio, uma vez foi perguntada sobre o que fazia seu pai. A professora ia repetindo a pergunta a todos os alunos e recebia respostas simples e claras. Quando chegou a vez da menina, ela, hesitante, confessou: “Meu pai é diplomata. Faz discursos em francês.” Era o mais perto que ela conseguia chegar dos mistérios da profissão. Chega-se a ela mais por exclusão de alternativas e por avaliação de conveniências do que por uma irresistível convocação.

A liturgia dos exames de admissão ao Instituto Rio Branco era cercada de pompa e circunstância. As vagas anuais não costumavam ultrapassar uma dúzia e meia, e o número de candidatos que se apresentavam beirava o milhar. Havia primeiro os exames psicológicos que, além de excluir os desequilibrados mais evidentes, tinham um objetivo acessório veladamente homofóbico. Não eram muito eficazes nesse objetivo semiclandestino, já que o Itamaraty sempre preservou entre os seus, ao longo dos anos, uma saudável diversidade de preferências sexuais.

A exigência era a de que o candidato já tivesse dois anos de estudos universitários na bagagem. O processo de exames – orais e escritos – se estendia por seis meses, e como o curso de preparação durava dois anos, o candidato deveria prover seus gastos por quase três anos, sem qualquer remuneração, salvo se conseguisse provar à administração estar literalmente à míngua de recursos. Ao contrário das corporações militares, não dispúnhamos de alojamentos, nem de serviços médicos, nem de alimentação regular para os aspirantes, o que tinha o efeito de desencorajar os que temiam não poder arcar com as despesas. A própria carga horária das aulas, e a necessidade de produzir papéis, e de estar preparado para arguições e exames, impedia que um aluno pudesse ter algum emprego complementar. Concluo: a natureza das coisas privilegiava os candidatos de classe média do Rio de Janeiro e, em menor medida, os que vinham de regiões mais próximas da então capital.

Os exames orais tinham uma liturgia que os aproximava mais do que havia sido em tempos antigos do que, imagino, acontece hoje. A banca, integrada por três membros, ficava aboletada sobre um estrado; e o candidato, sentado em um plano mais baixo, passava de uma cadeira, onde havia meditado depois de sorteado o seu ponto, para outra, de onde seria arguido.

Lembro duas arguições que enfrentei. A primeira era o exame de português, no qual o principal arguidor foi Aurélio Buarque de Holanda (que o neto de um conhecido sugeriu, faz poucas semanas, que não existiu, e que era, apenas, o nome de um dicionário). Cabia-me falar sobre a crase, assunto que então, como agora, me enche de perplexidade e insegurança. Presidia a banca o embaixador Antônio Camilo de Oliveira, que tinha, por bons modos, o hábito de inclinar ligeiramente a cabeça quando a palavra lhe era dirigida. Respondi às perguntas de Aurélio não a ele, mas diretamente ao embaixador, que parecia concordar com o que eu dizia – o que, como eu sinistramente pretendia, inibia o nosso grande lexicógrafo.

Mais de cinquenta anos depois, dois exemplos que eu devia comentar continuam presentes na minha memória: “Os touros se corriam desembolados à espanhola” e “Os cavalos corriam a toda brida.” Um, penso que leva crase. O outro, não. Mas qual?

Acredito hoje, como aquele velho parlamentar nosso que, acusado de usar mal aquele acento, repetiu em plenário o velho adágio: “A crase, senhor presidente, não foi feita para humilhar ninguém.” Depois da chamada Guerra da Lagosta, que quase nos engalfinhou com a França, o nosso então embaixador em Paris, Carlos Alves de Souza, escreveu suas memórias do incidente, às quais deu o título de Tempos de Crise. Gilberto Chateaubriand, secretário da embaixada, e desafeto do embaixador, ao apontar no texto vários usos impróprios do cruel acento, sugeriu que o livro se chamasse Tempos de Crase.

O último exame, aquele que encerrava o calvário do acesso à Casa, era o de cultura geral, e o meu arguidor foi Guimarães Rosa, em quem a aparente bonomia escondia, de fato, um imenso saber. Na conversa, chegamos a Florença, que eu havia visitado meses antes. E Rosa perguntou-me se recordava de um grande crucifixo que estava na Basilica di Santa Croce. Nem Constantino ao ver o sinal das nuvens, nem Dom Afonso Henriques em Ourique, nem Vieira ao ser iluminado pelo celebérrimo estalo tiveram uma epifania tão sublime quanto eu ali, naquela hora grave. Apareceu-me no espírito, sem hesitação, nítida, a grandiosa obra de Cimabue. Ao identificá-la, comecei com aquele homem extraordinário uma amizade que se estendeu pelos anos. Ingressei na carreira sem nenhum chamado claro; e fui aprovado, literalmente, por um milagre. Valeu a pena.

João Augusto de Araújo Castro, que foi ministro das Relações Exteriores, costumava pedir a Ítalo Zappa, seu assessor de imprensa, que espalhasse algum comentário, testasse alguma notícia ou disseminasse um rumor à medida que caminhasse pelos corredores. Zappa saía do gabinete do ministro e ia até o prédio mais distante, definido por suas colunas e pelo seu frontão triangular, onde ficavam o salão de conferências, a biblioteca, a mapoteca e o sempre poderoso Departamento de Administração. Parava aqui e acolá, fumava e conversava com gestos largos, tomava um café no fim de sua linha e voltava pelo mesmo caminho. Falava com um e outro, cravava os olhos cinzentos e buliçosos nos colegas, e recolhia o boato ou o balão de ensaio que ele mesmo havia plantado menos de uma hora antes, agora enriquecido e adornado de comentários, avaliações e especulações que seus interlocutores haviam agregado. Fazia Zappa, assim, o que o Itamaraty sempre fez bem: examinar e contextualizar qualquer fato ou rumor à luz da experiência e da ótica de alguns dos melhores analistas do país.

Era uma maneira barata e artesanal, mas eficaz, de se fazer uma pesquisa de opinião. A geografia do conjunto e as características da grei permitiam que houvesse um acesso fluido a tudo e todos. O velho casarão e os seus anexos tinham uma escala civilizada e humana. Não tínhamos a pretensão à imponência que nos veio da Itália de Mussolini, e que encontra eco nos prédios que acolhiam o Ministério da Fazenda e o do Trabalho, nem certa teatralidade de outros, herdados da Exposição do Centenário de 1922. O Ministério da Educação e da Cultura, este era de outra inspiração. Ele talvez continue a ser o prédio mais bonito do Rio, mas tem mais a ver com as aspirações que nos levaram a Brasília, com a modernidade de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, do que com a história que moldou nossa Casa.

Quando falávamos da Casa, queríamos privilegiar certo intimismo de nosso vínculo com a instituição. Mas também lembrávamos que o Itamaraty havia sido, por várias décadas, apenas a residência de uma família apatacada, cujo chefe recebeu o título primeiro de Barão e depois de Conde de Itamaraty. E fora onde por dez anos viveu e trabalhou o Barão do Rio Branco, que nela morreu em 1912.

Era bom que eu precisasse a moldura do tempo que essas recordações cobrem. Seriam os anos do governo de Juscelino Kubitschek, da sua tumultuada posse (quem se lembra ainda da revolta de Jacareacanga?) até a inauguração de Brasília (que é quando a história, se tivesse mais senso de teatro do que preocupação com o rigor cronológico, faria terminar seu mandato). Os contemporâneos nunca sabem como os enxergará o futuro. Não se sabia no fim do século XIX que aquela seria a Belle Époque; não sabiam os cortesãos de Versalhes, imersos na doçura de viver, que a festa Ancien Régime logo acabaria, nem que acabaria do jeito que acabou.

Não sabíamos que vivíamos anos dourados. Mas sentíamos que eram bons os tempos e os ventos, e o Rio via com indiferença, e mesmo com desdém, os prenúncios de que deixaria de ser a capital. A cidade parecia convencida de que seus encantos e vantagens supririam as eventuais perdas e danos. Não foi bem assim. Também havia, no fundo, dúvidas sobre se a capital iria, de fato, mudar. Predominava aquele risonho ceticismo com que os cariocas costumam receber anúncios de ambiciosos projetos governamentais. Como seria possível imaginar que se deixaria Copacabana para viver em Goiás?

Hoje parece natural que a capital esteja no Planalto Central, que tenhamos um imenso parque industrial e que a nossa energia venha de grandes usinas hidrelétricas. Não só não era assim, em meados dos anos 50, como havia um mar de descrédito cercando nossas pretensões de ocupar lugares e posições que cabiam apenas às grandes potências. Havia uma aceitação generalizada de que não tínhamos nem o talento, nem a vocação, nem a capacidade gerencial, nem os meios, nem o barro humano para sair do âmbito de nossas atividades mineiras e agrárias. O Brasil é um país essencialmente agrícola, dizia-se e repetia-se. Os motivos de nosso orgulho eram consequência de uma natureza generosa e raramente o resultado do aproveitamento e capacitação de nossos recursos humanos. O Brasil se definia em termos quantitativos e não qualitativos. Aqueles anos marcaram a mudança dessa perspectiva; começávamos a acreditar em nós mesmos.

OItamaraty teve nesse período três titulares, José Carlos de Macedo Soares, Francisco Negrão de Lima e Horácio Lafer. Cada qual com um traço que fazia a festa dos cartunistas: as fundas olheiras de Macedo Soares; a mecha branca de Negrão de Lima; os chapéus Gelot e a elegância europeia de Horácio Lafer. Além dos três, havia Augusto Frederico Schmidt, agente provocador, poeta e empresário, gordo e desarrumado, que teve um papel importante como conselheiro ad hoc para assuntos internacionais de Juscelino. Ele foi o mentor principal da Operação Pan-Americana, o nosso mais ambicioso projeto de política externa. Nas circunstâncias, era um desígnio pouco realista de botar de pé um Plano Marshall para a América Latina. A decisiva adesão política e financeira dos Estados Unidos só viria a se materializar quando a Revolução Cubana alterou a equação estratégica de toda a região.

A polarização mais visível na definição da nossa inserção internacional era a que separava “nacionalistas” e “entreguistas”. A clivagem pode parecer simplista e ingênua, mas as duas palavras tinham uma grande capacidade de mobilização. O talento de Juscelino foi o de evitar essa armadilha, e encontrar no “desenvolvimentismo” a síntese que lhe permitiu agradar os que desejavam um Brasil forte em suas indústrias e na sua infraestrutura, mas que, ao mesmo tempo, abria as portas para capitais internacionais que poderiam alavancar as promessas criadas pelo seu Plano de Metas. O gênio de JK foi o de usar as virtudes do otimismo e da esperança (e uma dose caseira de irresponsabilidade), e sugerir que poderíamos progredir em grande velocidade, que o país se tornaria moderno. Mesmo o capital que vinha de fora, ele insinuava, não nos iria dominar: acabaria, como em ampla medida ocorreu, por ser metabolizado e incorporado ao patrimônio nacional.

Há uma tendência hoje a olhar para trás e sugerir que o Itamaraty perdeu, nos últimos anos, influência e boa parte do controle operacional sobre a política exterior do Brasil. Se é verdade que, de um lado, é bem maior o número de agências públicas e de atores privados (acadêmicos, mediáticos e empresariais) que atuam no campo da política externa, por outro, desde a ditadura militar, os presidentes têm dado ao Itamaraty recursos mais amplos e uma medida de autonomia que antes não existia. O Brasil era mais personalista e menos disciplinado. A ideia de que dispúnhamos de um corpo profissional de agentes treinados especificamente para o exercício de funções diplomáticas só se afirma, em plenitude, depois da criação do Instituto Rio Branco. E só depois se consolida o conceito de que a condução das relações internacionais era assunto para ser tratado, de forma suprapartidária, por um corpo estável de profissionais.

Se a formação profissional e universitária dos novos diplomatas me parece melhor do que era, e a distribuição social e geográfica mais representativa do país grande e diverso que somos, ainda assim sinto falta de certos ingredientes do estilo da Casa, que se perderam com o passar dos anos. Sou ocasionalmente nostálgico, mas não tenho nenhum ânimo restaurador. Sei que o que antes funcionava, e parecia necessário e certo, seria hoje apenas caricatura. Se não quero restaurar, procuro evitar, também, que se esqueçam boas práticas, e que se pretenda julgar aqueles tempos apenas com a ótica e os valores de hoje.

Mudou o Natal e mudamos nós. Éramos, os empregados do Itamaraty, em primeiro lugar, poucos. E tínhamos um acerado esprit de corps, que vinha de afinidades de formação, temperamento e origem. Essas afinidades eram reforçadas pela modelagem que, consciente e inconscientemente, o Itamaraty imprimia aos que ingressavam na carreira. Não era, por certo, uma camisa de força, e nem por gestos e palavras se exercia nada que parecesse uma ação autoritária, coercitiva.

Como acontece com outras profissões altamente hierarquizadas, e com formas de proceder longamente incorporadas, o que se buscava na Casa não era reprimir individualidades, mas estimular uma cooperação harmoniosa que parecesse quase natural e pudesse ocorrer sem ruptura do princípio de autoridade. O Manual de Serviço, que era o nosso guia básico, continha uma frase central: “O pedido de um chefe é uma ordem.” Assim, tudo entre nós se expressava, na linguagem oral, por pedidos; e na linguagem escrita “rogar” era o verbo apropriado: “Rogo a V. Exa…”

Era na linguagem e no comportamento que o Itamaraty buscava deixar a sua marca. Normas de redação nos empurravam a privilegiar certas expressões e maneiras de dizer, e a evitar outras não porque fossem erradas, mas porque não seriam as de nossa ortodoxia. Tínhamos para a correspondência oficial quase uma dezena de fechos, que iam de uma informalidade muito relativa até a expressão do nosso mais profundo respeito, que era reservado às comunicações dirigidas ao presidente da República.

Os menos graduados se dirigiam aos mais altos na hierarquia com o invariável “Respeitosamente”; e os mais graduados se dirigiam aos subordinados, também sem exceção, com a fórmula “Atenciosamente”. Não se impunham regras de convívio de maneira explícita, mas quando um dos nossos cardeais dizia a um grupo de diplomatas que se sentassem “à vontade”, todos se sentariam no mais rigoroso respeito ao que determinava a lista de antiguidadeEm outras palavras: todos sabiam o seu lugar. As vantagens de sistemas com códigos de comportamento profundamente enraizados são evidentes. Ganha-se em organicidade e coerência, mas, reconheça-se, perde-se em criatividade e espontaneidade.

Embora errasse pouco, o Itamaraty demorava em acertar. E sua força de arraste inercial era imensa. Ainda que Azeredo da Silveira tivesse consagrado a fórmula “a principal tradição do Itamaraty é saber renovar-se”, a renovação costumava ser de incorporação lenta e penosa. Ajudava também a nossa opção preferencial pelo conservadorismo das práticas e das ideias o fato de que não tínhamos um registro preciso das oportunidades perdidas, ou de derrotas que pudessem ser atribuídas a desacertos ou imprudências diplomáticas. Desconfiava-se da pressa; desconfiava-se das heterodoxias; desconfiava-se das novidades; desconfiava-se enfim de tudo aquilo que não encontrasse legitimação nas mais sagradas fontes de nossas ações: os antecedentes e os precedentes.

O que podia parecer novo era a história que a gente não lera. Para toda proposta mais arrojada, ou afoita, recitava-se a frase “é urgente esperar”, mantra que, desde Talleyrand, se aplicava a toda tentativa de imprimir uma velocidade imprudente à tramitação dos negócios de Estado. Todos conhecem o Itamaraty do Barão do Rio Branco; poucos, o Itamaraty do Visconde de Cabo Frio, seu contemporâneo e diretor-geral quase vitalício, patrono das regras de conduta corporativas. Ele encarnava, mesmo bem avançados a República e o século XX, a burocracia imperial, e procurava fazer o que por muitas décadas ninguém logrou conseguir: que o Itamaraty começasse a trabalhar cedo e mantivesse horários regulares e previsíveis. Dizia-se que os militares e os diplomatas nunca faziam nada: mas os militares não faziam nada cedo, e os diplomatas não faziam nada tarde.

Não só eram os diplomatas brasileiros parecidos entre si, como éramos também parecidos com todos os diplomatas do mundo – mas um mundo que consistia em uns quarenta países, dentre os quais talvez uma dúzia ou pouco mais que de fato contassem. Integrávamos uma elite, uma comunidade global que compartilhava estilos e práticas. Essa crème de la crèmeinternacional se entendia em francês, a língua diplomática par excellence. Compreende-se esse tribalismo elitista. Era prático que agissem todos sob um mesmo código e que, literal e metaforicamente, falassem a mesma língua. Pilotos de aviões comerciais e controladores de voo, no planeta mundializado de hoje, se pautam por procedimentos e códigos parecidos. De outra maneira, sobretudo em emergências, não se poderia contar com o automatismo e a confiabilidade de respostas e reflexos.


Nenhuma palavra nos últimos cinquenta anos sofreu a degradação pela qual passou “elite”. Era ela um rótulo que todos buscavam, que servia tanto para situar uma senhora na sociedade e identificar um homem de saber e talento como para enfeitar a fachada de uma padaria ou um açougue. Só tinha conotações favoráveis, mesmo na esquerda: Lênin defendia que o partido revolucionário reunisse a nata da classe operária. Hoje, a palavra sugere uma seletividade pouco democrática e mesmo ilegítima; e “elitismo” quase que se contrapõe diretamente aos conceitos de igualdade de oportunidades e ampla inclusão. O Itamaraty era então – e sobretudo – a Casa da elite. Diria mais: era o lugar que reunia a elite da elite, e sua legitimação derivava de se perceber e de ser percebida como um núcleo de qualidade e excelência. Com a criação do Instituto Rio Branco, deixou de ser uma Casa de elite por seleção aristocrática para ser também uma Casa de elite por seleção intelectual. O conceito de elite não só permaneceu como robusteceu: We few, we happy few, we band of brothers.

Não se imagine que a combinação de formalismo e elitismo criasse um lugar solene. Pelo contrário. O sentido do humor, a aceitação risonha da excentricidade dos comportamentos, a autoconfiança que boa parte desses atores trazia do berço faziam com que o lugar fosse, bem mais do que hoje, divertido e pitoresco. É preciso pensar menos em um ministério, como o entendemos hoje, e mais em um clube social, com suas regras e peculiaridades. Um clube que valorizava, de maneira bisonha, certos traços e idiossincrasias que só se explicavam pelo objetivo, ora explícito ora não, de identificar para fora, para a sociedade, uma pequena comunidade que se comprazia na sua singularidade. Era, desse modo, o lugar de pensamento e do comportamento politicamente incorretos: o lugar livre onde não se envergava a camisa de força dos preconceitos e convenções.

Não seria provável, hoje, uma grande figura afirmar, mesmo no círculo restrito da Casa, que a receita da felicidade consiste em viajar à custa do Estado, hospedar-se em casa de amigos e dormir com a mulher do próximo. Nem sobreviveria agora, sem certo escândalo, um notável embaixador, avançado em anos, cuja preferência por namoradas cada vez mais jovens levou a que se sugerisse que seu apartamento fosse decorado por Walt Disney. O controle institucional ou mediático do comportamento era bem menos rigoroso do que hoje, e a ambiguidade de valores era aceita com mais naturalidade do que agora.

Aimagem de vários dos nossos Maiores, em vetusto fardão e condecorações engalanadas, perdura nas paredes do palácio que agora é museu. São visitados por frequentes grupos de crianças de várias escolas, levados por suas professoras, e observo seu silêncio respeitoso em torno daquelas figuras augustas. O meu impulso, anárquico, é dizer pelo menos uma pequena parte do que sei a respeito deles. Refreio-me: se isso acontecesse, olharíamos a história com irreverência, que não é o sentimento que os museus procuram incentivar; e não se permitiria que o tempo fosse cobrindo a todos com o manto da respeitabilidade.

Nossos Maiores eram, em bom número, fidalgos. Muitos tinham a autoconfiança que vinha de uma posição social desde sempre segura; de estarem entre pares e iguais; de terem sido preparados para o jogo e para as funções; de estarem imbuídos de um senso de superioridade sobre o meio no qual se inseriam; de cultivarem sentimentos que, pelos bons modos que então se praticavam, eram mais implícitos do que explícitos, e que vinham da soma desses traços e circunstâncias.

Como selecionar um meio de campo que refletisse a alma da Casa naquele tempo? Nele deveriam figurar Maurício Nabuco, Vasco Leitão da Cunha, Pedro Leão Veloso, Ciro de Freitas-Valle, Décio de Moura, que ainda usava monóculo, como também o fazia Lafayette de Carvalho e Silva. Cada um tinha traços, atitudes e frases que ficaram. No caso de Leão Veloso, a imortalidade veio, sobretudo, por ter dado a receita e o nome de uma sopa que era uma transposição para as águas e os peixes daqui de uma bouillabaisse do Mediterrâneo. Só o filé à Oswaldo Aranha seria seu rival.

Vasco Leitão da Cunha, epítome de um cavalheiro conservador, era, ao mesmo tempo e paradoxalmente, amigo de Fidel Castro, de quem ficou próximo quando foi embaixador em Havana, e um vigoroso defensor de princípios democráticos. Foi ministro da Justiça e era homem trabalhador e corajoso. Não se ocupava de punhos de renda. Dizia que, quando trabalhava, arregaçava as mangas.

Como numa boa receita mineira, José Sette Câmara Filho harmonizava todas as qualidades. Nabuco era impagável. À noite, só vestia smoking – alegava que fazia isso por racionalidade e economia: bastavam-lhe dois conjuntos para estar sempre corretamente vestido. Ao voltar ao Rio, aposentado, sumiu. Passados uns dias, os amigos, preocupados, foram procurá-lo. Encontraram-no em sua casa em Botafogo. Explicou, com naturalidade, que a palavra “aposentado” significava ficar confinado aos seus aposentos. Era o que simplesmente estava fazendo.

A Maurício Nabuco devemos um livrinho encantador, Drinkologia dos Estrangeiros, manual do bem beber e cujo título evocava o bar a que estava habituado, no velho Hotel dos Estrangeiros, num dos lados da praça José de Alencar. Foi escrito em Roma, no fim da Segunda Guerra Mundial. As ilustrações eram de Giorgio de Chirico e foi Clarice Lispector, casada com Maury Gurgel Valente, secretário da embaixada, quem jogou no fogo de uma lareira, depois do jantar de lançamento, a matriz da obra, para assegurar para sempre o seu valor bibliográfico. Foi, por sua vez, Antônio Houaiss quem, muitos anos depois, resgatou e reeditou o livrinho, tendo preparado uma encantadora introdução.

Ao caricaturá-los mansamente, e ao destacar um ou outro traço bizarro de nossos Maiores, poderia ir longe – no que cometeria grave injustiça. Eram mais densos em conteúdo e tinham muito mais estofo do que aqui lhes reconheço. O Itamaraty era um armazém de inteligências. Havia ali, em volta do lago e à vista dos cisnes, alguns dos melhores da nossa literatura (em prosa e verso), da nossa cultura e do nosso direito. A Casa cultivava a diversidade. Roberto Campos não via o mundo com os olhos de João Cabral de Melo Neto. Manoel Pio Corrêa não tinha, absolutamente, a mesma visão de Vinicius de Moraes e Paschoal Carlos Magno.

Ao reclamarem para si mesmos certo tipo de tratamento e deferência, eles agiam em parte por vaidade pessoal. Mas igualmente, e em não menor medida, por acharem que, como representantes do Brasil, não podiam aceitar tratamento displicente, que reduzisse nosso prestígio. Havia, no culto geral ao formalismo e na exigência de que a liturgia das relações entre Estados fosse estritamente cumprida, a preocupação de não permitir que o Brasil, que em muitas dimensões contava pouco, pudesse ser menoscabado. Para eles, o representante e o representado se confundiam. Os vultos itamaratianos eram cosmopolitas que retinham uma brasilidade essencial; eram cidadãos do mundo e patriotas à flor da pele.

Para a maior parte deles, era importante parecer que não estavam se esforçando, mesmo quando, de fato, estivessem suando a camisa. Os mais velhos desejavam passar uma impressão de nonchalance que se contrapunha ao excesso de zelo. Não lhes custava muito manter a pose porque, de fato, trabalhar muito não era uma das exigências do ofício. Eram uma versão tropicalizada da maneira de proceder das épocas vitoriana e eduardiana.

A caricatura ganhava contornos mais nítidos quando se pensava no cerimonial e nas regras do protocolo. Como venho da Casa, tenho robusto respeito por essas atividades tão próximas do âmago do saber diplomático. Postas de lado as mesuras e as afetações extravagantes, cerimonial é, na essência, duas coisas de difícil execução: a administração e a conciliação das vaidades pessoais e nacionais; e a montagem de operações diplomáticas como viagens, congressos, conferências e solenidades de todo tipo. Dá mais trabalho do que parece, e os riscos de um vexame à vista de todos são inúmeros. O erro é risco universal. A gafe é o papelão ou a trapalhada feita por quem é do ramo e tinha a obrigação de fazer melhor.


OItamaraty era um reduto de personalidades – e excentricidades. Como nas grandes famílias, o comportamento esdrúxulo, quando não biruta, era considerado parte inescapável da variedade da espécie e a sua tolerância como um imperativo do convívio social. Só a extrema desagradabilidade no trato e a improbidade com a coisa pública eram tidas como inaceitáveis. As peculiaridades das opções sexuais, os excessos com a bebida, um comportamento boêmio ou errático, tudo o mais era visto com indulgência civilizada.

Conheciam-se quase todos miudamente, em geral desde a infância. Se o Barão do Rio Branco era Juca Paranhos e Joaquim Nabuco, Quincas, alguns dos grandes chefes mantinham a tradição dos apelidos caseiros: Carlos Silvestre de Ouro Preto era Bubu; Carlos Alfredo Bernardes, Lolô; Antônio Corrêa do Lago, Ton Ton; Martim Francisco Lafayette de Andrada, Tim Tim; Frederico Chermont Lisboa, Fifi; e eu poderia me alongar em exemplos. Uso essa referência anedótica para acentuar o caráter intimista da instituição, e a natureza dos traços de família e de formação que uniam seus membros. Os laços familiares eram densos e cruzados. Os contemporâneos se conheciam de escolas e faculdades. A totalidade do mundo universitário brasileiro seria menor do que o número de alunos hoje de qualquer das nossas maiores universidades.

Além desse grupo intramural de diplomatas, havia um pequeno número de pessoas eminentes que, apesar de não fazerem parte dos quadros do Ministério, eram intimamente associadas à instituição, e ocasionalmente eram chamadas a socorrê-la ou representá-la. Refiro-me a Afonso Arinos de Melo Franco, Francisco Clementino de San Tiago Dantas, Raul Fernandes, Walther Moreira Salles, Gilberto Amado, Oswaldo Aranha e um punhado mais. Eram vistos pela Casa e viam-se a si mesmos, imagino, como membros fuori muri da família diplomática com a qual entretinham laços estreitos e fraternos.

Dávamos, para fora, uma impressão de racionalidade e previsibilidade. O presidente John Kennedy – e o presidente Richard Nixon faria depois a mesma reflexão –, que só conversava com brasileiros que faziam parte desse círculo restrito, dizia de sua surpresa em ver como interlocutores tão qualificados, ao voltar ao Brasil, pareciam outras pessoas e se conduziam de maneira bem diferente da impressão que haviam deixado. Os americanos não levavam em conta que, ao voltar para casa, nossos negociadores tinham que enfrentar a turbulência doméstica das paixões nacionalistas e da exaltação retórica.

Passada a grande fase das negociações de fronteiras e da presença brasileira na 2ª Conferência de Paz de Haia, com Rui Barbosa, e da nossa participação na criação da Liga das Nações, e vencidos os desafios que para nós representaram a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o Itamaraty vivia como que uma entressafra. Do Pan-americanismo do Barão e de Nabuco sobrara o apoio à Organização dos Estados Americanos, a OEA, e a aceitação da presença influente de Washington no tratamento das questões latino-americanas. A frustração na expectativa de que o Brasil pudesse obter um assento permanente primeiro no Conselho da Liga e, mais tarde, no Conselho de Segurança das Nações Unidas mostrava os limites de nosso poder e influência. A lição aprendida parecia ser a de que o Brasil devia cuidar de seus interesses reais e imediatos na América do Sul e no hemisfério, e não apostar muito na elevação do patamar de sua inserção internacional.

O foco de quase todas as nossas preocupações, pois, era o continente americano. Abro logo um espaço para qualificar e nuançar o que acabo de sustentar. Portugal tinha influência no Brasil, sobretudo na política e no comércio do Rio de Janeiro; a França era o farol de nossas ambições intelectuais e culturais; Londres importava como centro financeiro; como era grande a influência da Igreja Católica, na vida política; o Vaticano, portanto, também importava diplomaticamente. O resto (ou “os demais países”, segundo o linguajar da Casa) teria importância ocasional e incidental.

Exceto um punhadinho de exceções, não existia a África independente nem o Caribe anglófilo, e na Ásia o Japão era o único parceiro que para nós existia. A Índia engatinhava e a China vivia ainda o tsunami de sua grande revolução. Com o Oriente Médio petrolífero, falávamos através de intermediários ocidentais. Os contatos com a União Soviética e seus satélites eram tênues, e as aproximações e os distanciamentos se faziam em função das variações de temperatura da Guerra Fria, e à luz das condicionantes de nossa política interna, com seus laivos estridentes de anticomunismo.

Praticávamos, ao fim e ao cabo, uma política exterior que tinha em Washington e Buenos Aires a sua natural bipolaridade. A Argentina aparecia como um grande rival. Perón, e sua política de restauração da primazia argentina, e mesmo de recriação das divisões administrativas da América espanhola na Bacia do Prata, nos inquietava muito mais do que faz hoje a retórica bolivariana de Hugo Chávez. O Brasil desconfiava de seus vizinhos e guardávamos as distâncias que mantínhamos em relação a eles desde a época colonial. Recorde-se que não éramos uma região de democracias estabilizadas, e sim uma parte remota do mundo ainda sujeita aos arroubos de caudilhos civis ou submetida a pronunciamentos militares. O Brasil, sem capacidade de liderar um processo associativo da América do Sul, temia que essa aglutinação se fizesse sem nós, ou em nosso desfavor. Certo imobilismo regional nos convinha.

Como no tempo do Barão, a aliança com Washington era vista como um escudo e a garantia de que não ficaríamos isolados. A nossa aliança com os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial havia reforçado esses laços – e toda uma geração de civis e militares, para a qual a saga da guerra contra os países do Eixo havia sido uma experiência fundamental, encorajava a ligação especial entre o Rio e Washington.

É interessante ver quem nos visitou nesses anos. O presidente Dwight Eisenhower e seu secretário de Estado, John Foster Dulles, pesos-pesados do poder norte-americano absolutamente hegemônico. Portugal e Itália mandaram seus presidentes e mais tarde viria De Gaulle, símbolo maior da tentativa europeia de recuperar o espaço perdido com o desenlace da Segunda Guerra Mundial. Comparado com o ritmo de hoje, o número de viagens presidenciais era irrisório. Cada uma delas devia ser acompanhada de uma parafernália de tratados e atos internacionais, declarações conjuntas e encontros ritualizados. Havia a emissão de selos, a designação de ruas como homenagem ao visitante, a disputa de troféus esportivos – uma azáfama para fazer com que a visita fosse guardada pela história.

Fui convocado para ajudar a organizar a visita do presidente Eisenhower, que, por ser um exercício logístico de certa complexidade, serviria um pouco como ensaio para a inauguração de Brasília, que se daria semanas depois. Meu envolvimento começou no Rio, quando aqui aportou (o que para nós era uma grande novidade) a missão precursora. Chefiada pelo secretário de imprensa da Casa Branca, Jim Hagerty, a missão chegara com uma numerosa equipe multidisciplinar e uma parafernália de equipamentos de transporte, segurança e comunicações como nunca se tinha visto nestas bandas. Ela era operada por funcionários da Casa Branca, das agências de informação e por oficiais do Exército, que se comunicavam desde o Rio com Washington e com todo o mundo na maior velocidade.

Ainda no Rio, no meio de uma reunião na embaixada americana, fiquei incumbido de perguntar ao Itamaraty, distante uns poucos quarteirões, se uma ação que estávamos examinando seria a melhor. Não consegui linha, como era habitual. Tentei uma vez, duas vezes, três vezes. Depois de tentar várias vezes, achei que era humilhação demais admitir que não conseguia falar com um prédio das imediações, e fingi ao telefone uma conversa imaginária com um interlocutor inexistente. Se foi gravado – suponho que possa ter sido –, terá ficado o registro de que eu seria um interlocutor lunático, a ser tratado com cautela.

Conto o episódio como ilustração de como era imensa a distância entre nós e eles em matéria de tecnologia, e como eram precários os recursos próprios de que dispúnhamos. Viajei de Brasília ao Rio no Air Force 2 e o percurso que costumava fazer em mais de duas horas e meia levou pouco mais de uma hora. Para quem pela primeira vez viajava em um avião a jato, o conforto era surpreendente.

Fui recrutado também para fazer parte da equipe que organizou a transferência da capital para Brasília. Ficamos adidos à Casa Civil de JK, chefiada por Oswaldo Penido. Embora a empreitada fosse arriscada, para não pequena surpresa nossa, ela funcionou bem melhor do que era razoável esperar. Tenho alergia à expressão “momento histórico”, usada e abusada para rotular qualquer ocasião. Mas acho, com pequeno risco de erro, que se pode usar a expressão para definir aquele dia, 21 de abril de 1960.

Juscelino mantinha no Palácio da Alvorada um livro de honra. Nele os visitantes ilustres – e quase ninguém de interesse passava por aqui naqueles tempos sem ser levado a Brasília – deixavam sua reação à nova capital. Os comentários iam desde a retórica laudatória de André Malraux (“la capitale de l’espoir”) até o ceticismo de Graham Greene (“I have seen the future and I don’t like it”).

Havia em JK um entusiasmo com seu projeto que o impelia a correr riscos. Enquanto governava nunca foi tão popular quanto seria depois. Brasília tinha tantos detratores quanto defensores. A direita nunca o aceitou, e o via como um gastador irresponsável. Também a esquerda não se identificava com ele. Foi bem mais tarde, depois do golpe militar, quando foi criada a Frente Ampla reunindo JK, João Goulart e Carlos Lacerda, que o civilismo encontrou em Juscelino, em sua obra e em seu tempo, o melhor símbolo para a reconstrução de uma sociedade democrática.

OItamaraty não foi logo para Brasília. A cumplicidade entre o corpo diplomático estrangeiro, que não queria ir, e a diplomacia brasileira, que em sua maioria preferia ficar, fez com que se passassem mais de dez anos. Só no verão de 1970 que uma série de caravanas de caminhões e funcionários empreendeu, finalmente, sua marcha para o oeste.

O casarão da Rua Larga ficou com muitos de seus móveis e objetos, que não combinariam com a estética da nova sede. Ficaram os arquivos, a biblioteca e a mapoteca. O edifício passou depois por um longo período de vacas magérrimas. Não por desamor, talvez, mas pela razão oposta: a necessidade de quebrar os laços afetivos entre os lugares, as coisas e as pessoas. Era preciso, pela rejeição do que tinha sido, estabelecer as bases de uma nova fidelidade.

O velho nome do palácio, contudo, não foi abandonado. Não há um Palácio do Catete em Brasília, nem um das Laranjeiras, menos ainda um da Guanabara. O nome Itamaraty não foi descartado – como que para dizer que a trajetória de nosso relacionamento com o mundo é um rio ininterrupto; e que, mesmo em circunstâncias inteiramente diversas, a nossa continua, estamos no mesmo endereço.

Gosto de imaginar que, quando partiu o último comboio, na calçada oposta ao palácio, em frente ao restaurante Galo, um pé-sujo de mala muerte que por muitos anos funcionou ali, estaria aquele Aires a quem não fiz nenhuma referência até agora. Seria o mesmo conselheiro José da Costa Marcondes Aires que, em l887, depois de trinta e tantos anos fora do Brasil, havia regressado a sua terra, a sua língua e ao seu Catete, onde escreveu seu Memorial.

Diz bem do que foi a impressão deixada por aquela gente que o mais civilizado e maduro personagem da literatura brasileira seja um velho diplomata aposentado para quem o mundo terminava no Rio de Janeiro.

Marcos de Azamuja

Foi Secretário Geral do Itamaraty e embaixador em Buenos Aires e Paris. É conselheiro do CEBRI.


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

“Segredos” da Biblioteca do Barão - Cristiane Costa e Luís Cláudio Villafañe G. Santos (Piauí)

“Segredos” da Biblioteca do Barão - Cristiane Costa e Luís Cláudio Villafañe G. Santos (Piauí)

Uma das mais importantes “descobertas” feitas a partir da Biblioteca do Barão, base original da biblioteca do Itamaraty do RJ: estava lá, mas ainda inexplorada. Mérito do embaixador Villafañe.

“Um relatório produzido nos anos 40 apresenta o lado B do Barão do Rio Branco (1845-1912). O documento até agora inédito examinou a marginália (notas feitas nas margens dos livros) do chanceler que ajudou a definir as fronteiras do Brasil. É um relato dos hábitos, manias, vícios e idiossincrasias do patrono da diplomacia brasileira."

Por Cristiane Costa e Luís Cláudio Villafañe G. Santos

Leia: https://piaui.co/3Pdy9eF

domingo, 14 de janeiro de 2024

Do Piauí, o mais novo diplomata estudava 12horas por dia e se inspira em Alberto da Costa e Silva - Yala Sena (Cidade Verde)

Do Piauí, o mais novo diplomata estudava 12horas por dia e se inspira em Alberto da Costa e Silva

Fotos: Renato Andrade/Cidadeverde.com

Por Yala Sena

Filho de professora, o mais novo diplomata aprovado para o Itamaraty, Luis Marcelo Gomes Mendes Leite, de 22 anos, atribui sua vitória a disciplina, foco e estudos. 

Segundo ele, a rotina de leituras e preparação chegava a mais de 12 horas por dia e disse que uma das suas inspirações é o diplomada, poeta, ensaísta e historiador Alberto da Costa e Silva que morreu em novembro do ano passado de causas naturais aos 92 anos. Alberto é filho do poeta Da Costa de Silva. 

Luís Marcelo conta que foi aprovado no concurso para ser diplomata aos 19 anos e realizou as três fases, que foram bastantes criteriosas, chegando a escrever cerca de 24 textos em línguas inglês, português, espanhol e francês. 

“A emoção que sentir foi de alívio (risos). Eu vivi uma rotina muito difícil, estudava em média 12 horas por dia. Fiquei feliz, mas aliviado”, disse sorrindo acrescentando. “Abri mão de quase tudo. Tudo que fazia em minha vida era pautado em como impactar para prova. Saia poucos com meus amigos, passei muito tempo sem rede social, abdiquei de vida noturna e se saísse era coisas leves. Tinha uma rotina de acordar 5h da manhã, ia para a academia e começava a estudar e só parava à noite”. 

Luís Marcelo informou que a posse está prevista para acontecer em fevereiro e depois irá fazer um curso de formação em Brasília.

O diplomata é um servidor que trabalha para promover as relações entre o Brasil e outros países. O salário inicial é de R$ 20.900.  Ele disse que Berlim é um posto diplomático que tem simpatia. 

“O que mais me ajudou foi a oportunidade que o Dom Barreto me deu como monitor e posteriormente me efetivaram como professor de História Mundial das turmas de pré-vestibular e é um assunto que cai na minha prova e isso era positivo já que comentava com os alunos e revisava”. 

Conselho para os interessados: “comece logo”

O piauiense deu conselho para as pessoas que desejam seguir a carreira de diplomata. Segundo ele, é preciso ter foco, estudar bastante e o mais cedo possível buscar informações. 

“Uma coisa que queria era alguém ter me dito antes: comece logo. Ai! a pessoa diz:’ ah! mas eu não sei como?’: comece, vai atrás, busque informações, tente saber o que a prova exige, como é a rotina de uma pessoa que se prepara a sério para isso,  ter um foco e é importante buscar apoio psicológico e apoio da família. A gente até brinca, que primeiro, é preciso passar na prova. Eu era muito pragmático, tudo que fazia eu imaginava o que eu iria ganhar em termo de preparação de melhora de nota para a prova”.  Durante a entrevista, Luís Marcelo estava acompanhado da mãe Márcia Valéria Gomes Mendes Leite, do pai Marcelo Roger Leite e da irmã Isadora Mendes Leite. 

“Está sendo surpreendente. Eu não tenho palavras para descrever o sentimento de felicidade que ele alcançou. Ele é um menino dedicado e disciplinado. Tudo foi ele. Me sinto muito orgulhosa de ser mãe dele”, disse a mãe Maria Valéria. Ela disse que não está ainda preparada para ver o filho pelo mundo.

 

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Foto arquivo pessoal 

Matéria original 

O mais novo diplomata do Brasil é filho do sol, do Equador. Luis Marcelo Gomes Mendes Leite, de 22 anos, realizou um feito histórico e é o mais novo piauiense a entrar no serviço diplomático brasileiro. O estado tem se destacado na formação de profissionais precoces, já que em 2013, outro piauiense, Pedro Felipe de Oliveira Santos, ganhou destaque nacional por ser o juiz federal mais novo do Brasil ao passar no concurso aos 25 anos. 

Luis Marcelo foi aprovado na terceira e última fase do Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), processo seletivo para ingresso na carreira de diplomata. Ele foi aluno e monitor do Instituto Dom Barreto. 

O diplomata é um servidor público que trabalha para promover as relações entre o Brasil e outros países. Trata-se de um profissional de carreira lotado no Ministério das Relações Exteriores (MRE), também conhecido como Itamaraty.

Seu local de trabalho pode variar ao longo de sua trajetória, sendo possível exercer atividades dentro ou fora do Brasil. 

Os pré-requisitos para ser um diplomata são: ser brasileiro nato, possuir uma graduação no ensino superior (em qualquer curso) e passa no concurso. Luis é formado em comércio exterior. 

A aprovação do piauiense viralizou na  rede social com muitos comentários elogiando o feito dele.

Os internautas chamam o piauiense de “gênio”, “gigante”, “orgulho demais” e “Meus parabéns!!! Orgulho de ter um piauiense no Itamaraty, ainda mais sendo o mais novo do país!”

O governador Rafael Fonteles também comemorou a aprovação do piauiense. 

“Parabéns ao piauiense Luis Marcelo Gomes Mendes Leite, aprovado na 3ª fase do Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, aos 22 anos de idade, se tornando a pessoa mais nova no serviço diplomático brasileiro! Que essa seja uma trajetória de muito sucesso, Luis!

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

O resgate do caçador de Bruxas: Vasco Leitão da Cunha - Ana Clara Costa (Piauí)

Correções da História 

O RESGATE DO CAÇADOR DE BRUXAS

Um diplomata quer reescrever a história do chanceler da ditadura

Ana Clara Costa 

PIAUÍ, Edição 205, Outubro 2023


Vasco Leitão da Cunha era considerado um diplomata brilhante quando assumiu interinamente o Ministério da Justiça, em 1942, auge do Estado Novo, e deu voz de prisão ao poderoso chefe da polícia de Vargas, Filinto Müller, que torturava opositores com choque elétrico. Esse ato de coragem marcou a biografia de Leitão da Cunha, mas acabou obscurecido por sua atuação como chanceler do marechal Humberto Castello Branco, cargo que assumiu logo depois do golpe de 1964.

Sob seu comando, o Itamaraty abandonou os preceitos da Política Externa Independente, em vigor desde 1961, para adotar o alinhamento automático com os Estados Unidos. Nos vinte meses em que permaneceu no cargo, Leitão da Cunha removeu de postos-chave dezenas de servidores considerados simpatizantes da esquerda e autorizou a cassação de quatro diplomatas: Antônio Houaiss, Jayme de Azevedo Rodrigues, Jatyr de Almeida Rodrigues e Hugo Gouthier de Oliveira Gondim.

Nas últimas décadas, pouco se falou de Leitão da Cunha. Até que, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro colocou Ernesto Araújo à frente do Ministério das Relações Exteriores, que passou a promover pesquisas e debates sobre temas caros à direita. O diplomata Henri Carrières – genro do ex-astrólogo Olavo de Carvalho, o mentor de Ernesto Araújo – propôs um mergulho na até então pouco conhecida gestão de Leitão da Cunha na ditadura.

Com o apoio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), entidade de pesquisa ligada ao Itamaraty, Carrières percorreu os arquivos diplomáticos dos anos iniciais do regime. O seu objetivo era mostrar que o legado do diplomata ia além da colaboração com a ditadura. Por isso, a maior parte dos documentos reunidos por ele busca revelar as diretrizes da política externa nas relações com os Estados Unidos, a Europa Ocidental e os países do bloco socialista. Alguns de seus achados, no entanto, confirmam que Leitão da Cunha perseguiu colegas que não marchavam no passo do novo governo.


Carrières organizou A gestão de Vasco Leitão da Cunha no Itamaraty e a política externa brasileira, coleção de documentos diplomáticos inéditos dos anos de 1964 e 1965. Em dois volumes que somam 1 140 páginas, a obra foi publicada pela Funag em 2021. O chanceler de Castello Branco também foi o tema da tese que Carrières desenvolveu no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, defendida neste ano, e para a qual ele teve acesso a escritos pessoais do ex-chanceler.

Na organização e nos comentários do livro, Carrières enaltece o trabalho de Leitão da Cunha na política externa, mas as orientações para o expurgo político que ele promoveu no Itamaraty também se revelam. Um relatório classificado como secreto e sem data, mas atribuído ao período de Leitão da Cunha, descreve o “comunismo no Ministério das Relações Exteriores”.

Segundo Carrières, o documento foi “possivelmente” elaborado pela Comissão de Investigações, um departamento criado pelo chanceler, na esteira do Ato Institucional nº 1, para perseguir opositores do regime. “O problema da esquerdização, no Itamaraty, não é recente. Data de alguns anos o indício da existência de uma célula com nítidos objetivos comunistas. Concretamente, o assunto alcançou grande evidência quando uma carta, de texto suspeito, atribuída ao cônsul João Cabral de Melo Neto […] motivou instauração de rigoroso inquérito.” Essa passagem do relatório referia-se a um grupo de diplomatas de esquerda – entre eles, o poeta João Cabral – conhecido no Itamaraty como “célula Bolívar”. No início dos anos 1950, os membros do grupo foram investigados e temporariamente afastados de seus cargos. Dois deles mais tarde seriam cassados pela ditadura: Houaiss e Almeida Rodrigues.

Outro documento secreto incluído no livro descreve as gestões de Leitão da Cunha sobre o governo uruguaio para controlar as atividades de João Goulart, deposto em 1964, e outros asilados políticos que viviam no país. Num ato mais generoso do chanceler, um telegrama secreto orienta a emissão de um salvo-­conduto a Miguel Arraes, governador cassado de Pernambuco, para que ele pudesse deixar o Brasil com destino à Argélia, na condição de asilado.

Procurado pela piauí para comentar o resgate biográfico de Leitão da Cunha, Carrières não respondeu aos contatos da reportagem. O acesso à sua tese no Curso de Altos Estudos também foi negado. Considerado pelos seus pares como um servidor técnico, qualificado e com passagens bem-sucedidas pela Índia e pelo Reino Unido, Carrières é casado com Maria Inês de Carvalho, filha de Olavo de Carvalho. Trabalhou na assessoria internacional de Michel Temer. Quando todo o gabinete do emedebista foi exonerado na posse de Bolsonaro, Carrières saiu junto. Mas logo foi chamado de volta ao Palácio do Planalto para trabalhar na equipe de Filipe Martins, olavista convicto e assessor internacional de Bolsonaro, que conhecia bem o trabalho do diplomata. Depois, Carrières foi direcionado a um posto na Embaixada do Brasil em Washington, sob a batuta do embaixador Nestor Forster, outro reconhecido admirador de Olavo de Carvalho. Hoje, Carrières dá expediente na embaixada em Assunção, no Paraguai, onde vive com a mulher e os seis filhos. O casal é ultracatólico e educa os filhos em casa.

A trajetória profissional de Leitão da Cunha merece ser mais bem conhecida. Um dos maiores diplomatas de sua geração – nasceu em 1903, no Rio de Janeiro –, ele serviu na Argélia durante a Segunda Guerra Mundial, como delegado brasileiro junto ao Comitê Francês de Libertação Nacional, e lá se tornou próximo do general Charles de Gaulle. Integrou a delegação brasileira na primeira Assembleia Geral das Nações Unidas, em Londres, em 1947. Foi embaixador brasileiro em Cuba durante a revolução, pela qual chegou a ter simpatia – até compreender que Fidel Castro conduziria a ilha para o socialismo. Apesar de seu anticomunismo, Vasco Leitão foi embaixador em Moscou durante o governo João Goulart.

No entanto, a caça às bruxas que Vasco Leitão promoveu no Itamaraty salta aos olhos. Na contramão da releitura de Carrières sobre o personagem, o historiador Rogério de Souza Farias, da Universidade de Brasília, mergulhou em outros arquivos pouco explorados do período da ditadura e descobriu que as quatro cassações realizadas pelo chanceler não foram exigidas pelos militares. (Ele prepara um livro sobre seus achados, ainda sem previsão de lançamento.) Um exemplo: nas cinco oportunidades em que pôde deliberar sobre o caso de Azevedo Rodrigues, Leitão da Cunha defendeu a aplicação da penalidade mais severa. E não havia delito recente para justificar a punição dos outros três diplomatas – Houaiss, Almeida Rodrigues e Gondim –, que foi amparada em fatos antigos.

A pesquisa de Farias aponta que Houaiss foi aposentado por Leitão da Cunha em razão da alegada participação na “célula Bolívar”, já examinada no processo que se encerrara uma década antes. Até a consulta que o Itamaraty fez ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em 1964 para saber se havia fatos desabonadores sobre Houaiss voltou vazia. Mesmo assim, o chanceler enviou a Castello Branco o pedido de cassação, sem que fosse analisada a defesa do diplomata. Farias também descobriu que parte dos depoimentos usados para embasar a cassação de Houaiss foi, na verdade, deturpada, pois eram originalmente em defesa do diplomata.

Em 1983, um ano antes de sua morte, Vasco Leitão da Cunha deu um depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas. Alegou que, longe de perseguir diplomatas de esquerda, sua gestão os salvou de um expurgo ainda mais drástico. “Pude fazer uma proteção em torno do Itamaraty. Uma trincheira”, disse. E, assim, aquilo que o ex-chanceler chamou de “punição revolucionária” teria ficado em “termos aceitáveis”. No mesmo depoimento, Leitão da Cunha elogiou Houaiss: “Ele é generoso. Fala comigo.”

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-resgate-do-cacador-de-bruxas/?utm_campaign=a_semana_na_piaui_184&utm_medium=email&utm_source=RD+Station 

sábado, 8 de abril de 2023

Como representantes da sociedade civil pediram ajuda aos EUA para barrar um golpe de Estado de Bolsonaro no Brasil - João Paulo Charleaux (Piauí)

 questões da democracia 

O DIA EM QUE BRASILEIROS PEDIRAM AJUDA AOS ESTADOS UNIDOS PARA BARRAR UM GOLPE DE BOLSONARO

Comitiva driblou vigilância do Itamaraty e conseguiu se reunir com autoridades americanas

João Paulo Charleaux Piauí, 06 abr 2023

https://piaui.folha.uol.com.br/o-dia-em-que-brasileiros-pediram-ajuda-aos-estados-unidos-para-barrar-um-golpe-de-bolsonaro/


Um grupo de mais ou menos vinte brasileiros viajou aos Estados Unidos em julho de 2022 para convencer o governo americano a impedir que o então presidente, Jair Bolsonaro, desse um golpe de Estado no Brasil. A comitiva desembarcou em Washington no dia 24 de julho. Ao longo de seis dias, foi recebida a portas fechadas pelo Departamento de Estado e por sete parlamentares do Partido Democrata, incluindo um dos membros da comissão parlamentar que investigava a invasão ao Capitólio, ocorrida em 6 de janeiro de 2021, e que, naquele momento, buscava conexões entre as armações antidemocráticas de membros das famílias Trump e Bolsonaro.

A ideia era mostrar ao governo dos Estados Unidos que Bolsonaro tinha a intenção de empastelar as eleições presidenciais de outubro daquele ano e já dispunha dos meios para alcançar esse fim. A mensagem era de que, em Brasília, políticos de extrema direita contavam com o apoio das Forças Armadas, das forças policiais e de um número crescente de civis que tinham se armado para pôr abaixo a democracia no maior país da América do Sul. Os membros da comitiva queriam uma chance de explicar cara a cara aos americanos que o Brasil, sozinho, não tinha capacidade de conter aquele golpe, e só uma pressão internacional contundente poderia impedir que o pior acontecesse na reta final da disputa eleitoral.

O tempo era curto. No momento em que a comitiva brasileira pôs os pés em Washington, faltavam 70 dias para o primeiro turno. A agenda era difícil, porque pressupunha que autoridades oficiais do governo americano, como os membros do Departamento de Estado, abririam as portas para um grupo de brasileiros que não estava revestido de nenhum cargo diplomático e governamental, ou mesmo de um mandato público. Eram apenas líderes de organizações da sociedade civil.

No dia marcado, 26 de julho, às oito da manhã, a comitiva saiu do Hotel State Plaza e cobriu a pé as três ou quatro quadras até um dos edifícios do Departamento de Estado, em Washington. Do lado de dentro do prédio, o encontro aconteceu com membros do Brazil Desk – nome dado aos diplomatas e outros burocratas americanos responsáveis pelas relações com o Brasil –, além de membros dos departamentos de Assuntos Multilaterais, Direitos Humanos, Organismos Internacionais e Hemisfério Ocidental, que também se perfilaram à mesa para ouvir a comitiva.

Até a reunião ter início, alguns colegas jornalistas brasileiros receberam com desconfiança a informação de que aquela agenda ambiciosa de fato seria cumprida. Eles tinham razão para desconfiar. Afinal, foi mantido segredo sobre alguns dos nomes dos interlocutores e sobre parte dos locais dos encontros, fazendo tudo parecer excessivamente misterioso ou simplesmente pouco crível nessa agenda. Mas o mistério tinha uma razão de ser: os organizadores da comitiva temiam que o embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster, um conhecido militante bolsonarista, contactasse uma a uma as autoridades que tinham manifestado interesse em receber o grupo brasileiro, com o intuito de demovê-las da ideia às vésperas desses encontros. Forster era conhecido em Washington por desacreditar organizações brasileiras tidas por Bolsonaro como inimigas.

Mas a comitiva conseguiu passar por baixo do radar do Itamaraty – ou pelo menos dos setores bolsonaristas que tinham se incrustado na estrutura da política externa brasileira – para cumprir aquela agenda. Uma vez abertas as portas e iniciados os encontros, ficou claro que havia um grande desafio a cumprir: era preciso redobrar as manifestações americanas em defesa da democracia do Brasil e fazer com que essas declarações tivessem de fato poder dissuasório sobre os golpistas. Ou seja, fazer com que o governo americano vociferasse ameaças críveis de retaliação caso o resultado das eleições fosse desrespeitado no Brasil.

Se você perguntasse àquela altura à diplomacia americana quantas vezes ela tinha saído em defesa da democracia no Brasil, durante os anos Bolsonaro, os funcionários te enviariam oito links contendo transcrições de declarações públicas feitas por diferentes autoridades do governo dos EUA. Se você pedisse um comentário adicional, eles diriam não ter nada a acrescentar.

A primeira dessas manifestações públicas tinha ocorrido ainda em 9 de agosto de 2021 – portanto, quase um ano antes da visita dessa comitiva a Washington. Naquela data, Juan Gonzalez, um americano nascido em Cartagena, na Colômbia, que, no governo Biden, assumiu o posto de diretor sênior para o Hemisfério Ocidental no Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, apareceu usando pela primeira vez uma formulação de frase que seria repetida à exaustão nos meses seguintes: fulano expressa, manifesta ou reitera a “confiança no sistema eleitoral brasileiro”.

 

Ogoverno Biden temia que a invasão ao Capitólio, ocorrida em Washington, em 6 de janeiro de 2021, se repetisse no Brasil; o que, de fato, acabaria ocorrendo em 8 de janeiro de 2023. A preocupação com a erosão da democracia era tão grande que, antes de completar seu primeiro ano na Casa Branca, Biden promoveu uma Cúpula pela Democracia, com a participação de mais de cem países, incluindo o Brasil de Bolsonaro. Por causa da pandemia, o encontro foi virtual. O presidente brasileiro mandou um recado por vídeo repleto de generalidades sobre um tema pelo qual ele demonstrou, demonstra e viria a demonstrar reiteradas vezes ter desprezo.

Da primeira declaração de Gonzalez, em agosto de 2021, até o primeiro encontro pessoal entre Biden e Bolsonaro, em Los Angeles, na Cúpula das Américas, em 9 de junho de 2022, passou-se quase um ano sem que os EUA fizessem qualquer nova declaração pública mais contundente em relação ao risco de um golpe no Brasil. Depois desses meses de banho-maria, o então presidente brasileiro parece ter se sentido seguro o bastante para tentar seu lance mais audaz até então: no dia 7 de julho de 2022, um mês depois de ter sido recebido por Biden em Los Angeles, Bolsonaro anunciou que reuniria dentro do Palácio da Alvorada, em Brasília, todas as representações diplomáticas estrangeiras para denunciar ao mundo alguma coisa bombástica sobre o sistema eleitoral brasileiro. “Será um convite a todos eles”, disse Bolsonaro referindo-se ao corpo diplomático internacional. “O assunto será um PowerPoint, nada pessoal meu, para nós mostrarmos tudo que aconteceu nas eleições de 2014, 2018, documentado, bem como essas participações dos nossos ministros do TSE [Tribunal Superior Eleitoral], que são do Supremo, sobre o sistema eleitoral”, anunciou o então presidente, com a habitual falta de clareza com a qual tornou conhecidos seus pronunciamentos.

A reunião com os embaixadores ocorreu no dia 18 de julho de 2022. Mais ou menos quarenta diplomatas estiveram presentes, num anúncio explícito de que, se Lula ganhasse, não tomaria posse. Ninguém sabia de que forma Bolsonaro implementaria o golpe que estava anunciando ao mundo, mas já não havia dúvidas de que esse golpe viria. No dia seguinte, a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil divulgou um comunicado no qual afirmou que “as eleições brasileiras, conduzidas e testadas ao longo do tempo pelo sistema eleitoral e instituições democráticas, servem como modelo para as nações do hemisfério e do mundo”. Era uma resposta clara, agressiva e imediata às ameaças de Bolsonaro.

Foi uma semana depois dessa reunião de Bolsonaro com os embaixadores que a comitiva da sociedade civil brasileira se sentou à mesa com o pessoal do Departamento de Estado, em Washington. Nos Estados Unidos o Departamento de Estado é o responsável pela condução institucional da política externa americana, equivalente ao Itamaraty. Mas, ao contrário do que ocorre no Brasil, o Congresso americano tem um peso enorme na formulação e na condução da agenda de política externa. E os parlamentares que têm assento nas comissões de política externa da Câmara e do Senado têm conexões fortes e constantes com suas bases eleitorais. No caso da América Latina, esse lobby vem forte da parte dos cubanos que vivem na Flórida, por exemplo. Colombianos, mexicanos e venezuelanos também são atuantes. Mas os brasileiros exercem pouco esse papel. A comitiva brasileira quis, de maneira algo quixotesca, compensar de forma episódica essa falta de lobby constante.

 

Depois da primeira investida no Departamento de Estado, o grupo passou a se encontrar com os parlamentares num Capitólio ainda simbolicamente fumegante depois da invasão trumpista. Os brasileiros se sentaram numa sala de um dos anexos do Capitólio e esperaram em silêncio pela chegada do personagem mais influente naquela história toda. Jamie Raskin era um democrata que estava na crista da onda, participando de todos os noticiários e talk shows noturnos. Ele integrava a comissão parlamentar de investigação do 6/1, como ficou conhecida a invasão ao Capitólio.

Raskin entrou na sala ladeado por um grupo de assessores. O deputado tem uma testa larga encimada por uma cabeleira negra e ondulada, puxada para trás – um traço extinto hoje pela luta que trava contra um câncer. Na hora em que Raskin entrou na sala, tive a impressão de estar diante de um palhaço de algum circo antigo, um clown sem maquiagem, no sentido das linhas de expressão do rosto e do jeito serelepe de se mover, como quem domina a cena e chama para si, naturalmente, o rufar dos tambores.

Todos se sentaram ao redor de uma longa mesa. Raskin ficou de pé. O deputado posicionou-se atrás da cadeira reservada para si e apoiou os braços no espaldar alto. Enquanto ouvia os brasileiros se apresentando, um depois do outro, ele ficava empinando a cadeira, num jogo distraído de balanço, para frente e para trás. A atitude me pareceu excessivamente informal, o que costuma acontecer com pessoas que, quando encontram brasileiros, acham que estão lidando com gente que vive numa eterna escola de samba. A impressão foi confirmada por um comentário qualquer feito por Raskin a respeito de o segurança dele querer um Brasil estável porque era naturalmente destino de suas férias de fim de ano. Os assessores riram. Os membros da comitiva, nem tanto.

Há um jogo combinado nessas situações: o deputado ou senador finge prestar toda a atenção do mundo no que está sendo dito, mas, em algum momento, quando a conversa começa a ficar enfadonha, algum assessor irrompe na sala e diz que vai começar uma votação importantíssima no plenário. O congressista sai fora e deixa um ajudante – pessoa, claro, da maior confiança e competência, alguém sobre quem se possa dizer que “falar com ele é o mesmo que falar comigo. Sinto muito. O dia a dia aqui no Congresso tem dessas coisas. Vocês vão me desculpando. Mas fiquem à vontade” e zaz, vai embora.

Raskin tinha preparado a cena, como indicava o fato de sequer ter se sentado. O que ele não esperava é que Anielle Franco, uma das pessoas que faziam parte da comitiva brasileira, estaria contando a ele sobre como a irmã dela, Marielle Franco, tinha sido morta a tiros junto com o motorista, Anderson Gomes, em março de 2018, na mesma Rio de Janeiro para a qual o segurança risonho do deputado queria viajar.

Como esperado, o assessor irrompeu no salão na hora H, abrindo com pressa as pesadas portas de madeira que vão do chão ao teto, e começou a dizer algo como: “deputado, vai começar a votação em plenário”, mas Raskin parece ter mudado a cena e, como um clown acrobático e habilidoso, improvisou ali mesmo todo o script de sua escapada. Ele fez um gesto com as mãos, sinalizando ao assessor que não iria sair dali por nada, pois estava vidrado no relato de Anielle sobre a violência das milícias fluminenses contra alguém que, como ele, era uma parlamentar. A comitiva tinha fisgado a atenção do deputado.

O segundo ato não tardou. Alguém no grupo citou de passagem que Eduardo Bolsonaro desembarcou em Washington dois dias antes da invasão ao Capitólio. Raskin aparentemente nunca tinha ouvido essa informação. Ele olhou para um dos assessores, como se perguntasse: “Como não sabemos disso? Do que se trata? Como assim?” O deputado mostrou-se interessado em saber quais as ligações entre Trump e de seu ex-assessor de campanha Steve Bannon com a família Bolsonaro. Ninguém soube dar detalhes sobre essas ligações, porque esses detalhes não são conhecidos. O filho do presidente chegou a Washington e esteve na Casa Branca às vésperas do 6/1, mas não se sabe ao certo o que ele pode ter feito por lá, além de encontrar, falar e ouvir. Uma jornalista brasileira que cobre o Congresso americano e estava presente nessa reunião deu um passo à frente e começou a brifar Raskin e seus assessores sobre esses fatos. “Nós precisamos investigar isso”, ele respondeu.

A declaração de Raskin foi mal interpretada no Brasil. O integrante da CPI do Capitólio estava dizendo que queria investigar de que forma Trump e Bannon podiam estar exportando o know-how golpista americano. Raskin não tinha poderes para investigar um cidadão brasileiro em sua CPI, ainda mais esse cidadão sendo o presidente de um outro país ou o filho do presidente. Mas foi inútil tentar aclarar, pois em poucos minutos todos os portais brasileiros traziam a notícia de que a Câmara dos EUA queria incluir Eduardo Bolsonaro nas investigações sobre o ataque ao Capitólio, o que, claro, não aconteceu.

Terminada a reunião, eu conversei com Raskin no corredor. E ele me disse o seguinte: “Esta reunião foi muito educativa e deixou claro que as forças democráticas do Brasil temem que algo similar ao que aconteceu em 6 de janeiro de 2021 nos EUA se repita em seu próprio país. Por isso estão em contato com partidos políticos, movimentos e cidadãos do mundo todo para que se unam a eles em defesa da democracia constitucional e das eleições.”

Algo semelhante foi dito pelo senador Bernie Sanders, uma espécie de Pepe Mujica americano, no que diz respeito à mescla de idade, militantismo e vibração jovial com as causas que fazem a cabeça das esquerdas latino-americanas. Sanders deu enorme espaço e atenção aos membros da comitiva. “O que eu ouvi, infelizmente, soa muito familiar para mim, por causa dos esforços de Trump e de seus amigos para minar a democracia americana. Não estou surpreso que Bolsonaro esteja tentando fazer o mesmo no Brasil. Esperamos muito que o resultado das eleições seja reconhecido e respeitado, e que a democracia prevaleça, de fato, no Brasil”, disse já no corredor.

 

Aagenda se estendeu para muito além disso. Houve visitas ainda aos deputados Hank Johnson, Mark Takano e Sheila Cherfilus McCormick. A comitiva teve reuniões ainda com assessores dos senadores Patrick Leahy, presidente do Senado, e Ben Cardin, além de alguns embaixadores de países-membros da OEA (Organização dos Estados Americanos), que pediram para não serem identificados, e também pela CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) – estes dois últimos seriam atores decisivos caso houvesse qualquer impasse na apuração dos votos e os relatórios dos observadores internacionais fizessem o caso parar na OEA, em Washington.

Um aspecto curioso é o de que o grupo de peticionários brasileiros era formado apenas por representantes de organizações da sociedade civil. Não eram embaixadores, doutores ou deputados, mas líderes de organizações não governamentais ligadas aos indígenas, aos movimentos negros, além de feministas e pessoas dedicadas à defesa mais abrangente dos direitos humanos, da democracia e da liberdade de expressão – em suma, o grupo era formado pelo que, no violento jogo de dardos do bolsonarismo, corresponderia ao centro do alvo.

Ao todo, foram reunidas para a viagem dezenove organizações desse tipo, como os institutos Marielle Franco, Vladimir Herzog e da Mulher Negra, a Comissão Arns e o Pacto pela Democracia, além de siglas ligadas às quilombolas, às lésbicas, aos gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos. A maior parte dos membros eram jovens mulheres – algumas delas, indígenas; outras, negras – que figuravam como estrelas ascendentes da pauta identitária que tem marcado as agendas das esquerdas não só no Brasil, mas nos EUA também. Essas organizações são mantidas e incentivadas por aportes vindos de uma mescla de financiadores estrangeiros tradicionais, como a Open Society Foundations, do magnata George Soros, e por fundos formados por abastadas famílias brasileiras que simpatizam com essas causas, sendo o Galo da Manhã, que hoje administra a filantropia da família Bracher, um dos principais financiadores brasileiros do setor.

A articulação da viagem foi assumida por uma organização chamada WBO (Washington Brazil Office), um “think tank” que mistura pesquisa, produção de informação e lobby político, e sobrevive de recursos de origem semelhante à das demais organizações. O WBO teve um parto lento: começou a ser gestado em 2020, foi constituído formalmente em 2021 e teve seu lançamento público em 2022. A organização nasceu para fazer a ponte entre esses movimentos brasileiros e os interlocutores em Washington, sendo comandado por duas figuras: o brasileiro Paulo Abrão e o americano James Naylor Green. Abrão foi secretário nacional de Justiça da presidente Dilma Rousseff, além de ter sido secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), em Washington. Green é filho de uma engajada família quaker de Baltimore, que militou contra a ditadura brasileira nos anos 1970 e 1980, antes de tornar-se um dos mais prestigiados brasilianistas americanos, professor na Universidade Brown e autor de diversos livros influentes sobre política, história e cultura brasileira. Embora seja um militante aguerrido do movimento gay, Green chegou a ser tomado pelo colunismo político-social brasileiro como amante de Dilma por tê-la acompanhado em passeios por Nova York em 2017, quando ela viajou aos EUA para dar palestras e espairecer do golpe baixo sofrido no ano anterior.

O meio-campo da comitiva levada a Washington pelo WBO era formado por figuras mais ou menos anônimas. Mas, pelas laterais do grupo, avançavam conhecidos ex-membros de governos petistas – além de Abrão, faziam parte da comitiva Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, que tinha sido secretário de direitos humanos de Dilma e assessor especial da Casa Civil do governo Lula, e Paulo Vannuchi, membro da Comissão Arns que foi ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo Lula. O trio formado por Abrão, Sottili e Vannuchi se enquadraria no que as novas esquerdas resumiriam como “homens brancos velhos e influentes” do setor. Eles emprestaram credibilidade ao lobby pela democracia em Washington, mas souberam dar palco e passagem à nova geração, mais bem talhada para o figurino em voga.

A mescla dos perfis dos membros da comitiva era a seguinte: os mais velhos já tinham feito parte de governos petistas no passado. Os mais novos tinham uma ambição latente de vir a ocupar cargos públicos num eventual governo Lula, no futuro. A comitiva refletia, portanto, essa tensão que as esquerdas vivem, tendo de um lado um setor mais tradicional, formado principalmente por homens brancos de sólida carreira acadêmica e militância política, com origem no movimento sindical ou na luta contra a ditadura e pela transição democrática; e, de outro, jovens ligadas às questões de gênero e de raça, às pautas indígenas e de meio ambiente, às causas das novas esquerdas, chamadas frequentemente de “identitárias”. Na ala antiga, estavam homens como Sottili e Vannuchi. Na ala nova, mulheres como Sheila de Carvalho e Anielle Franco – a primeira foi a Washington representando o Instituto de Referência Negra Peregum e o grupo de advogados denominado Prerrogativas, ou simplesmente Prerrô, que se tornou mais conhecido por questionar juridicamente a prisão de Lula na Operação Lava Jato. A segunda viajou representando o Instituto Marielle Franco. Mais tarde, terminada a viagem da comitiva, debelado o golpe e sacramentada a vitória de Lula, Carvalho seria nomeada assessora especial do ministro da Justiça, Flávio Dino, e Anielle se tornaria ministra da Igualdade Racial.

Com tantos ex e futuros membros de governos petistas, tornava-se difícil explicar que aquela não era uma comitiva que tinha ido a Washington para militar em causa própria. Esse era, então, o primeiro desafio: deixar claro que, embora os membros da comitiva tivessem um lado ideológico e até, em alguns casos, um lado partidário, o objetivo da visita não era defender Lula, mas o processo eleitoral como tal, que, se respeitado cabalmente, provavelmente resultaria num terceiro mandato do líder petista, conforme as pesquisas indicavam. De forma simples, o pedido era para que os interlocutores americanos reconhecessem o resultado da eleição de outubro tão logo ele fosse anunciado, fosse quem fosse o vencedor, para evitar que, nas primeiras horas após a apuração, Bolsonaro e seus seguidores tentassem de alguma forma virar a mesa à força.

Afastar as suspeitas de partidarismo era só um dos desafios. O outro era debelar uma contradição implícita: aquele era um grupo de pessoas de esquerda que estava indo pedir ao governo dos EUA que tomasse uma atitude em relação à dinâmica da política interna do Brasil. O antecedente não era nada bom porque, no Brasil, ainda ecoava com força o papel nefasto que os americanos tinham desempenhado em 1964, quando deram apoio ao golpe que engendrou uma ditadura de 21 anos.

Entre 1964 e 2022, muita coisa havia mudado nas relações entre os dois países. Mas, entre as coisas que permaneciam inalteradas, a desconfiança da esquerda brasileira em relação ao governo americano era uma das principais. Não havia muito espaço no dito setor progressista brasileiro para varrer para debaixo do tapete o passivo da Guerra Fria.

Cinquenta e oito anos antes da visita dessa comitiva a Washington, os EUA tinham penhorado apoio ao golpe que depôs João Goulart no Brasil. A chamada Operação Brother Sam consistia em sinalizar aos militares golpistas brasileiros que eles teriam apoio de forças americanas, caso encontrassem resistência inesperada de parte de tropas leais a Jango, em março de 1964. A Marinha dos EUA planejava, naquela época, deslocar do Caribe para a costa brasileira uma porção de navios. No fim, nada disso foi necessário. Como se sabe hoje, não houve resistência ao golpe. O apoio militar americano limitou-se, naquele momento, a dar respaldo, a mostrar que a maior potência do mundo estava do lado dos golpistas, contra Jango e contra a esquerda brasileira.

Poucos membros da comitiva de julho de 2022 gostariam de ver as coisas postas dessa forma, mas o fato é que aquele era um grupo de esquerdistas brasileiros indo a Washington pedir que os EUA tomassem alguma atitude em relação aos rumos da política interna do Brasil. Num certo sentido, era uma Operação Brother Sam ao contrário só que, dessa vez, com os americanos se colocando ao lado da democracia.

 

Averdade é que a comitiva até tinha membros petistas e lulistas, mas ela não era uma panfletagem por um e por outro. Ela também pedia ajuda ao governo americano, mas não era um convite à intervenção. Essas duas nuances eram importantes do lado brasileiro da história. Do lado americano, o problema estava no fato de que todos os deputados e senadores contactados pela comitiva eram membros do Partido Democrata, o que poderia fazer parecer que tudo não passava de uma grande ação entre amigos esquerdistas.

Para diluir o peso do Partido Democrata naquilo tudo, tentou-se até incluir a deputada republicana Liz Cheney como interlocutora. Liz é uma combativa política conservadora nascida num ninho de falcões em Madison, capital do estado de Wisconsin. O pai dela é Dick Cheney, um dos arquitetos da Guerra do Iraque, que foi ministro da Defesa de George Bush e vice-presidente de George W. Bush. Naquele momento, Liz figurava como um dos maiores desafetos de Donald Trump, por ter criticado duramente a campanha golpista do ex-presidente americano. Ela passou a liderar a dissidência a Trump no campo republicano, e foi nessa condição que assumiu o cargo de vice-presidente da comissão que investigava a invasão ao Capitólio de 6 de janeiro. Tentou-se uma aproximação da comitiva com Liz, mas o convite não prosperou.

(Incluir Liz Cheney na agenda foi a primeira sugestão que me lembro de ter feito a Paulo Abrão quando ele me convidou para embarcar nessa comitiva como assessor de imprensa do WBO.)

O resultado mais visível de todo esse périplo foi uma série de iniciativas parlamentares – cartas, moções, declarações, manifestações com os mais diversos nomes – nas quais a Câmara e o Senado dos EUA pediam que o presidente Joe Biden pressionasse Bolsonaro para que ele não desse um golpe. A carta mais contundente nesse sentido foi assinada por 39 parlamentares e pediu que Biden deixasse “inequivocamente claro para o presidente Bolsonaro, seu governo e as forças de segurança que o Brasil se encontrará isolado dos EUA e da comunidade internacional de democracias caso haja tentativas de subverter o processo eleitoral do país”.

Esse foi o tamanho da pressão pública americana nos campos legislativo, diplomático e midiático. Já no campo militar, é difícil saber quantas e quais mensagens foram dadas, e de que forma. O fato mais contundente nessa área foi a vinda de Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional dos EUA, a Brasília, no dia 5 de agosto de 2022. Não há muita informação pública sobre o conteúdo das conversas, mas a lista de autoridades bolsonaristas visitadas por Sullivan na ocasião dá uma boa medida dos interesses discutidos. Além de Bolsonaro, o conselheiro de segurança da Casa Branca esteve com o almirante Flávio Rocha, então secretário especial de Assuntos Estratégicos do governo brasileiro; Walter Braga Netto, secretário da Defesa; Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional; e Hamilton Mourão, vice-presidente da República. Tudo isso, tendo a tiracolo o mesmo Gonzalez que havia sido responsável pela primeira manifestação pública dos EUA sobre a confiabilidade das urnas, em 9 de agosto de 2021.

Já empossado presidente, Lula foi a Washington em 9 de fevereiro, onde foi recebido por Biden e por parlamentares como Sanders, que meses antes tinham se engajado de corpo inteiro na pressão internacional pelo respeito ao resultado das eleições. As organizações que participaram da comitiva da sociedade civil até tentaram incluir na agenda de Lula algum encontro, qualquer evento ou menção mais formal a todo o esforço que havia sido feito em julho de 2022. Mas aquele já não era o Lula candidato, mas um presidente revestido de formalidades e de interesses muito vinculados ao protocolo do Itamaraty e às pressões dos demais ministros de seu gabinete. 

Do lado das organizações, correu uma brisa de ressentimento, do tipo: “agora empossado, ele não pode se esquecer de nós, da sociedade civil, sob risco de tomar um golpe, que nem a Dilma”. Coisas assim. Mas foram murmúrios. Muita gente que militava nesses movimentos sociais conseguiu ou viria a conseguir cargos no governo. Tudo se assentou, de uma forma ou de outra. E agora, passado o pior, a esquerda brasileira terá pelo menos quatro anos para se decidir sobre o que foi tudo isso: uma revisão, uma reciclagem, um amadurecimento, um olhar mais aberto às nuances do papel que os EUA desempenharam no passado e desempenham hoje em relação ao Brasil, às esquerdas latino-americanas? Ou um soluço pontual numa longa história indigesta e imutável? O registro dos fatos ocorridos em Washington em julho de 2022 talvez possam oferecer elementos novos para quem se propõe a interpretar essa história.