José Augusto Lindgren ALVES1
Revista Fevereiro: política, teoria, cultura, n. 5, 2012
(ISSN 2236-2037)
Aqui em Sarajevo, onde atualmente vivo, tomei conhecimento de matéria publicada na Bolívia, segundo a qual a decisão governamental de manter a abolição da categoria “mestiço” no censo de 2012 estaria gerando controvérsias e descontentamento. Tal situação, no outro hemisfério do planeta, não deixa de me chamar ainda mais a atenção para as dificuldades que vejo aqui, na Bósnia e Herzegovina. Elas também são decorrência do repúdio à mestiçagem e à simples mistura de etnias na mesma vizinhança, cujo paroxismo foi a guerra de 1992-95, com suas atrocidades. Mas os problemas não pararam aí. A própria paz obtida nos acordos extraídos em Dayton, Ohio, nos Estados Unidos, resultou na total “etnização” da política, que perdura até hoje e mostra-se profundamente negativa para toda a população, engendrando tensões e impasses impossíveis de serem superados nas presentes circunstâncias.
Jornalistas ocidentais que cobriam as guerras na ex-Iugoslávia frequentemente diziam que as “etnias” ou “nacionalidades” sempre geraram problemas nos Bálcãs, em função de sua violência. É verdade. Como também geraram, com violência semelhante, em todo o resto da Europa, para não dizer do mundo. O termo “balcanização”, amplamente usado até hoje, é invenção preconceituosa do Ocidente contra esta área do continente europeu que foi parte do Império Otomano. E o preconceito é ainda mais visceral contra os turcos, herdeiros republicanos dos antigos conquistadores de Constantinopla, atualmente Istambul. Afinal, não foi o Império Otomano, nem sua herança cultural, que fragmentou a península em comunidades de identificação a guerrearem entre si2. Muito menos a ex-Iugoslávia de Tito, de que o povão e a intelectualidade da Bósnia sentem saudade assumida. Como explica brilhantemente a búlgara Maria Todorova, os Bálcãs se espatifaram precisamente porque quiseram seguir o modelo dos “estados nações” da Europa3, deles recebendo incentivo. Estes, como todos sabemos, só se aceitaram e acalmaram entre eles com o advento da União Européia – ainda que internamente as tensões interétnicas ressurjam, em graus e formas diferentes, na Bélgica, na Espanha, no Reino Unido e alhures.
Os acordos de paz de Dayton, que, em 1995, puseram fim à guerra de mais de três anos e meio na Bósnia, forjaram uma constituição esdrúxula. Ela reconhece no Estado soberano da Bósnia e Herzegovina três povos constitutivos – muçulmanos (também chamados “bosníacos”, já que muitos são seculares), croatas (supostamente católicos) e sérvios (supostamente ortodoxos) –, e duas Entidades político-administrativas que não são estados federados – a Federação da Bósnia e Herzegovina (FB&H) e a República Srpska. O traçado territorial dessas duas entidades componentes do país tem linhas vertiginosas de alongamentos, circunvoluções e reentrâncias, que parecem as de um sismógrafo em período de terremoto, para acomodar por toda parte as etnias dominantes4. Internamente, a República Srpska é unitária, porque quase exclusivamente sérvia, como a população da Sérvia, país vizinho independente5. A Federação (FB&H), por sua vez, é subdividida em dez cantões, tendo cada um sua maioria étnica e respectiva chefia de governo cantonal, municipal etc., muçulmana ou croata.
A presidência do Estado da Bósnia e Herzegovina é integrada por três membros – muçulmano, croata e sérvio – que se alternam periodicamente na chefia. E toda a composição dos órgãos parlamentares, a nomeação de titulares para as pastas ministeriais e a distribuição de cargos dentro dos ministérios, agências e até embaixadas têm que levar em conta as três “nacionalidades” constitutivas, a que se acresce – menos na presidência – um representante para as “minorias” (judeus, ciganos, valáquios, ucranianos etc, sem incluir a mais natural de todas: aqueles, quase sempre mestiços, que ainda insistem em se dizer iugoslavos).
O retalhamento do Estado entre as etnias, que determinam, com base em religião, muitas vezes artificial e forçada, a composição de tudo, reflete-se tanto na etnização da política, como na radicalização das “diferenças” dentro da sociedade. Assim como os partidos cultivam os eleitores de sua etnia exclusiva (partidos croatas, partidos sérvios e partidos “nacionalistas” muçulmanos), ou de sua etnia dominante (caso do Partido Socialista Democrata, que congrega “bosníacos”, croatas e sérvios não nacionalistas, e foi o impulsionador da idéia de uma Bósnia e Herzegovina abrangente, para todos), as aldeias e cidades, antes mescladas, vão-se tornando exclusivas de identidades específicas. Embora este segundo fenômeno seja mais notável no campo, a própria capital Sarajevo, ainda cosmopolita, tem hoje população mais de 90% “bosníaca”. Permanece pluricultural, com igrejas e sinagogas funcionando ao lado de mesquitas, porque é predominantemente secular, e muitos dos “muçulmanos” de toda a Bósnia, sobretudo urbanos, na verdade são agnósticos, ateus ou simplesmente desligados de cultos e manifestações de crença. Reconhecem-se “muçulmanos” pela ascendência e pelos nomes turcos “de batismo”. Apesar dessa peculiaridade local, que não é somente dos “muçulmanos”, mas também de católicos e ortodoxos, parte ponderável dos habitantes majoritários aos poucos se “islamizam”: nos trajes de mulheres e homens, na abstenção de álcool e carne de porco, no número impressionante de novas mesquitas, no fortalecimento das escolas corânicas, na construção de centros culturais islâmicos, geralmente com subsídios de correligionários de fora.
As religiões que, segundo consta, conviviam exemplarmente no passado, hoje repercutem e retroalimentam, pela declarações provocativas de seus líderes, as acirradas disputas políticas, todas as quais têm fundamentação e conotação religiosa. Todos se declaram tolerantes, mas criticam, às vezes ofendem, as comunidades de fé antagônicas. Assim como os croatas, de origem católica, combateram os muçulmanos na maior parte da guerra, até se aliarem a eles contra os sérvios, os bispos católicos atuais reclamam do tratamento dado aos croatas pelos muçulmanos da Federação (FB&H). O patriarca ortodoxo de Sarajevo defende os sérvios, ortodoxos por definição legal, e a República Srpska, criada por Radovan Karadzic, como baluartes contra o temido “expansionismo” do islã, sem gestos de simpatia tampouco para os “católicos”. O Reis-El-Ulemá, líder supremo dos islamitas balcânicos (não somente da Bósnia, mas da Sérvia, da Croácia e do Montenegro), de linha sunita e voltado para a Turquia, critica com veemência as “perseguições” sérvias e croatas aos muçulmanos, no presente, mas se vê também acossado pelo fundamentalismo wahabita, assimilado dos mujahedins estrangeiros que vieram defender os bosníacos na guerra. Tais djihadistas estrangeiros foram depois expelidos, por pressão norte-americana6, mas aqui deixaram sementes de crescimento visível7. Os políticos, por outro lado, com ou sem fé verdadeira, disseminam lendas religiosas, crendices e tradições rituais populares, às vezes recentemente inventadas, para divulgar uma imagem de devoção convincente.
Num país que sempre teve grande número de casamentos mistos (calculam-se em 20% do total, antes da guerra), as etnias hoje se retraem, isolam-se, rejeitam misturas e sincretismos. Nas famílias e comunidades, pretendentes e namorados de “nacionalidade” diferente são mal vistos. Pares de etnias distintas agora tentam emigrar para poder casar sem constrangimentos. Seus filhos não tem “etnia”. A categoria “mestiço” não existe nos formulários de identificação. Tal omissão leva, por exemplo, minha secretária, filha de muçulmana com “católico” ateu da Bósnia, morto como civil no cerco de Sarajevo, a declarar-se “muçulmana”, conquanto não praticante de qualquer fé. Da mesma forma, outra funcionária da Embaixada, filha de católica com ortodoxo que sempre se consideraram “bósnios”, revolta-se por ter que se designar “croata” ou “sérvia” sem o ser.
A palavra “bósnio”, gentílico da Bósnia, que deveria aplicar-se a todo o Estado, envolvendo as duas entidades, os três povos constitutivos, as minorias e, evidentemente os mestiços, não é uma nacionalidade, nem etnia, muito menos religião. Não passa de um adjetivo de uso confuso, empregado por estrangeiros de maneira neutra, enquanto pelos “bosníacos” tem acepção contestável, vista como “expansionista” pelas demais culturas do país. É o caso da “comida bósnia”, da “música bósnia” e, muito em especial da “língua bósnia”. Sim, porque o bósnio passou a ser uma língua, não apenas um dialeto, usada somente por um grupo de pessoas sem localização definida, supostamente “muçulmanas”. Em decorrência da guerra e de seus horrores, os bosníacos, bem europeus até nisso, decidiram que não podiam mais falar idioma dos inimigos. Apesar de se haverem sempre comunicado em serbo-croata como os sérvios e croatas do local, havendo seu conterrâneo Ivo Andric ganho nessa língua o Prêmio Nobel de Literatura em 1961, os bosníacos, não dispondo de um gaélico para exumar como os irlandeses, nem de um catalão como os catalães, ou de um basco para os bascos, optaram por acentuar e regularizar as pequenas diferenças de linguagem, inventando, com apoio do exterior, uma língua bósnia, ou bósnio, oficializada nas escolas bosníacas, com dicionário e gramática publicados até em Oxford8. As escolas, por sinal, não somente por causa das três línguas (quase iguais, todos entendendo as três variantes), passaram a ensinar tudo, até mesmo a história recente, sob enfoque étnico, em classes separadas por “nacionalidades”. O sistema educacional público da Bósnia, antes integrador, passou a ter “três escolas sob o mesmo teto”. Inovação ominosa para o futuro da sociedade, tal segregação num só prédio logo se reproduz nas brincadeiras e horas de lazer. Conforme tem sido avaliado e dito por especialistas na Bósnia, a compartimentação quando jovem invariavelmente leva à discriminação agressiva quando adulto.
Tudo isso poderia ser meramente curioso se não tivesse decorrido de uma guerra sanguinária, com campos de concentração, estupros coletivos, cerco com bombardeio de cidades indefesas e atos de genocídio, inconcebíveis se não os víssemos filmados, documentados e amplamente divulgados. Tudo isso poderia ser até engraçado, se a possibilidade de um novo conflito estivesse totalmente descartada. Se as feridas e cicatrizes atuais não fossem tão profundas. Se as provocações interculturais fossem coisa do passado. Se não houvesse tantas armas e munições em mãos da população. Se esta não fosse segmentada e etnicamente incitada a proteger a respectiva identidade por meio da rejeição aos diferentes. Se o país existente, disfuncional e dividido dezesseis anos após a guerra, estivesse operando normalmente.
A verdade é que, em função da etnização da política, o Estado da Bósnia e Herzegovina permaneceu sem governo emergente das eleições gerais de outubro de 2010, até o momento em que se escrevem estas linhas, em fevereiro de 2012. Somente não afundou de vez porque os três presidentes eleitos, sérvio, muçulmano e croata, conseguiram entender-se minimamente e mantiveram o conselho de ministros anterior em exercício. Em 28 de dezembro de 2011, os líderes dos seis principais partidos políticos (dois de cada povo Constitutivo) chegaram finalmente a um acordo sobre a divisão das pastas ministeriais e a designação de um primeiro-ministro, cuja posse deverá ocorrer em poucos dias, com quinze meses de atraso.
Além, evidentemente, da necessidade um governo com o qual possa negociar, uma das condições impostas pela União Européia para aceitar negociações de adesão com a Bósnia tem sido, há anos, a realização de novo recenseamento populacional. O último censo, de 1991, que serviu de base à divisão do território em Dayton, certamente está hoje ultrapassado, pelas “limpezas étnicas”, pelos massacres da guerra, pelos deslocamentos que ela provocou, pelo não retorno ou estabelecimento alhures de refugiados, pela recusa de certos líderes a restituir aos antigos moradores as casas esvaziadas pela força e ocupadas por novos habitantes. As mesmas preocupações e interesses conflitantes dos políticos, que impediram, por tanto tempo, a formação do governo, barraram também projeto de lei sobre a matéria, submetido ao parlamento desde meados de 2010.
Em 28 de dezembro de 2011, na mesma reunião que finalmente permitiu o entendimento interpartidário para formação de novo conselho de ministros, acertaram-se, igualmente, os pontos conflitantes para a realização de novo censo – previsto para ocorrer em abril de 2013. A mágica, neste caso, não poderia ser mais simples: acordou-se que, na consulta aos habitantes, a identificação da respectiva religião apenas será feita por decisão individual voluntária. Não se chegou a criar a categoria dos mestiços, mas se ofereceu uma saída que o multiculturalismo ideológico não prevê: a opção pela cidadania abrangente, ao invés da escolha obrigatória de uma identidade étnica, ou, na melhor das hipóteses, de duas etnias que se encontram, acasalam, proliferam, mas não se misturam.
Ao contrário dos anos 30 e 40 do século passado, os horrores da guerra na Bósnia ocorreram com amplo conhecimento externo, informação instantânea, cobertura da televisão e passividade generalizada. Ocorreram em plena Europa, quando e onde se imaginava que nada disso pudesse voltar a acontecer depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente no apogeu da “era dos direitos”. Como hoje em dia, em plena era dos “direitos das culturas”, as sementes da barbárie semeiam-se em muitos lugares, não somente na Europa, com apoio externo variado, em nome do direito à diferença, sob a capa do multiculturalismo distorcido “politicamente correto” em voga. E tal atitude prossegue, por mais que a radicalização das culturas converta-se em extremismos, a crispação das identidades subnacionais ameace a governabilidade do conjunto, e a reação ultranacionalista esperada eleja democraticamente políticos racistas, em sociedades longamente estabelecidas na Europa.
Segundo as informações que obtive de La Paz, o questionário do Instituto Nacional de Estatística da Bolívia oferece aos habitantes do país, para a auto-identificação respectiva, as categorias de afrodescendente ou integrante de uma de 54 nações indígenas. A par disso, oferece apenas a alternativa entre as opções “outras” ou “nenhuma”. Ou seja, para atender ao indigenismo radical de um governo “de esquerda”, sintonizado com o “progressismo” contraditório da intelectualidade liberal pós-moderna, que se reflete na militância multicultural atualmente hegemônica até nas Nações Unidas, a Bolívia se dispõe a denegar a miscigenação concreta que se vem realizando há séculos. Posso até compreender as razões da decisão boliviana. O que não aceito e me deixa indignado é ver que a esquerda intelectual da atualidade, que, aliás, pouca importância dá ao presidente Evo Morales, incentiva, através de ativistas “engajados”, iniciativas anti-igualitárias com grande ligeireza.
Com base nas desgastadas posições racialistas de que a mestiçagem era usada para encobrir discriminações que hoje ninguém mais nega, o indigenismo boliviano no poder, assim como o essencialismo étnico da Bósnia, além de descartar como irrelevantes as aspirações de importantes segmentos em ambos os países, entronizam um novo apartheid sem a categoria dos “coloureds”. Ao fazê-lo, em vez de enfrentarem as dificuldades reais que assolam as populações desses dois países pobres, eliminam a noção de classes econômicas, novamente inquestionável com as adaptações pertinentes, e reincorporada no pensamento social contemporâneo até pelo Fórum de Davos.
Ainda bem que o Brasil resistiu às propostas de eliminação da categoria dos “pardos” nos censos do IBGE. Nossa própria experiência de luta antirracista comprovou que tal eliminação não era condizente com a vontade do povo, nem necessária sequer para a adoção de ações afirmativas. O possível mau uso do conceito de mestiçagem não pode justificar aquilo que José Murilo de Carvalho identificou como “genocídio estatístico”9. Este tampouco pode impedir que o mundo, globalizado pela economia e pelo fluxo permanente de pessoas, migrantes temporários e turistas, emigrantes e imigrantes, legais e indocumentados, traficados ou transferidos por livre e espontânea vontade, continue a miscigenar-se.
Talvez quando todos forem, como quase todos já são, obviamente mestiços em todo e qualquer país, os responsáveis pelas políticas de esquerda e pelas atividades mais necessárias no planeta resolvam finalmente dedicar-se a sério à igualdade entre os homens.
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1José Augusto Lindgren Alves é embaixador em Sarajevo, Bósnia e Herzegovina, e membro, a título pessoal, desde 2002, do Comitê para a Eliminação das Discriminação Racial (CERD), das Nações Unidas, em Genebra.
2Conforme já expliquei alhures, quando era embaixador em Sófia, o sistema do millet, no Império Otomano, com todos os defeitos inerentes a qualquer domínio imperial, foi a primeira experiência “moderna” de um multiculturalismo na linha anglo-saxônica hoje dominante na ONU (“Nacionalismo e Etnias em Conflito nos Bálcãs”, Lua Nova n° 63, S. Paulo, 2004).
3Maria Todorova, Imagining the Balkans, New York, Oxford University Press, 1997.
4Às duas Entidades se acrescenta o pequeno Distrito de Brcko, autônomo, na fronteira nordeste, entre a Croácia e a Sérvia, onde não foi possível determinar uma etnia majoritária.
5O povo da entidade República Srpska é considerado por terceiros “bosno-sérvio” ou “sérvio da Bósnia”, qualificação que ele próprio abomina.
6Talvez seja muito em função disso que a embaixada dos Estados Unidos em Sarajevo é alvo de atentados islâmicos, como em outubro de 2010, quando um wahabita desferiu rajada de metralhadora contra o prédio. Aqui isto surpreende em particular porque os Estados Unidos se posicionam mais em favor dos “muçulmanos” ou bosníacos, do que de seus adversários.
7A quem tiver interesse no assunto, recomendo vivamente assistir ao filme bósnio “No Caminho”, de Jasmile Zbanic, que vi pela primeira vez no Brasil, em 2011, no canal CULT da TV a cabo. Deve ser encontrado em vídeo, sob o nome original “Na Putu”, ou em inglês “On the Path”.
8Da mesma forma que a Croácia, que também conta com dicionários de língua exclusiva croata (e deve ser o mesmo na Sérvia), acaba de impedir a exibição de um filme sérvio recente porque não tinha dublagem ou subtítulos locais.
9José Murilo de Carvalho, “Genocídio Racial Estatístico”, O Globo, Rio de Janeiro, 27/12/2004