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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O Estado brasileiro: debate e agenda (2) - Paulo Kramer


Os desafios da nova era

Paulo Kramer
Congresso em Foco, 29/12/2011
O papel do feminismo num país agora governado por uma mulher e as perspectivas para o futuro
A segunda mesa, sob a presidência da professora Leoni Campos de Souza, reuniu os seguintes expositores: Lia Zanotta, docente do Departamento de Antropologia da UnB (cap. 10: “Feminism, the state, and gender equality”) ; Eiiti Sato, diretor do Instituto de Relações Internacionais (Irel/UnB, capítulo 5: “Crisis and beyond: responses and prospects”); David Fleischer, professor-emérito do Ipol, (capítulo 7: “Political reform: a ‘never-ending story’”). Debatedor: Benício Schmidt, cientista político, docente veterano da UnB e pesquisador-sênior do seu Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (Ceppac). Benício está iniciando uma segunda e bem-sucedida carreira no mundo do livro, sua paixão da vida inteira: ele agora dirige as editoras Verbena e Francis, esta última detentora dos títulos de autoria do genial polemista, crítico cultural e memorialista Paulo Francis, falecido em 1997, entre os quais delícias proustianas como Trinta anos esta noiteCabeça de papelCabeça de negro e O afeto que se encerra. Ao lado do analista político Walder Góes, do velho Jornal do Brasil, e de Nelson Rodrigues, Francis integrou a trinca dos jornalistas que mais influenciaram as minhas opções intelectuais e a minha visão de mundo. (Espero que Benício inclua na sua lista de republicações o livrinho de Paulo Francis que é uma bela introdução às relações internacionais da segunda metade do século passado, utilíssimo para os leitores mais jovens, O Brasil no mundo, lançado em 1984 ou 1985 pela Zahar.)
Em sua apresentação sobre “Feminismo, Estado e igualdade de gênero”, a professora Zanotta delineou um painel reconstituindo etapas importantes da história contemporânea do feminismo brasileiro, desde os anos 70.
O moderno feminismo surgiu no Brasil fortemente vinculado às lutas mais gerais da sociedade civil e dos políticos oposicionistas pela redemocratização. Continuou, nos anos 80, com a abertura de espaços públicos de discussão e encaminhamento das questões femininas mais marcantes, como violência doméstica, e o lobby pelos direitos e de saúde da mulher, tendo em vista a Assembleia Nacional Constituinte (1987/88).
De acordo com a expositora, a visibilidade da violência sexista se acentuou graças à intensificação dos protestos contra casos de assassinatos de mulheres das classes média e alta por seus cônjuges, cujos advogados de defesa apelavam para o argumento, que hoje soa absurdo, de “legítima defesa da honra” masculina. Relativamente à saúde feminina, a antropóloga assinalou que, no Brasil, os óbitos de mulheres causados por moléstias reprodutivas (74 por 100 mil) ainda se situam muito acima da média mundial, que é de seis por 100 mil.
Dos anos 90 em diante, o movimento se multissegmentou em torno de questões regionais, socioeconômicas e culturais (estas últimas geralmente ligadas à chamada busca de reconhecimento por setores minoritários) e se consolidou em redes de organizações, marchando no interior das instituições estatais e conquistando nacos de poder decisório em questões específicas. Exemplos: direito ao aborto – ao menos em circunstâncias extremas – e direitos dos homossexuais. Militantes dessas causas passaram a ocupar cargos em novas estruturas como as secretárias da mulher nos três níveis federais de governo.
A antropóloga concluiu que o principal desafio político do feminismo brasileiro, no momento atual, é a ameaça de um backlash (revertério) conservador promovido pelo Vaticano, as denominações pentecostais e neopentecostais e seus aliados na classe política contra as conquistas acima. (Sinto muito, professora, mas esses entrechoques são essenciais à democracia. Gozado como os paladinos e paladinas da ‘tolerância’ se tornam intolerantes em face da suposta intolerância dos seus adversários…)
A palestra de Eiiti Sato, “Além das crises: respostas e perspectivas”, partiu das interpretações, correntes e não raro conflitantes da crise mundial e seus desdobradamentos: “Para alguns analistas até pouco tempo atrás, ela assumia um formato de V (profundo mergulho recessivo seguido de rápida e vigorosa recuperação). Superada essa ilusão, a controvérsia, hoje, opõe aqueles que lhe atribuem um modelo em L (queda abrupta do nível de atividade e sua manutenção em patamar estagnado de longa duração) aos que acreditam no double dip em forma de W. Isso para não mencionar o humor negro, antenado na tecnoera digital, de quem vaticina uma instabilidade econômica internacional aparentemente sem fim recorrendo ao símbolo WWW”…
Para extrair algum sentido do presente e tentar discernir os contornos do futuro, Sato advertiu ser indispensável prestar igual atenção a aspectos de continuidade e descontinuidade. No primeiro caso, se enquadram condições inalteradas ou pouco alteradas ao longo da história: desde o século 18, por exemplo, o Brasil corresponde à metade do território sul-americano e, há muito tempo, a cerca da metade do PIB e da população do continente. Ademais, a posição do país no ranking do PIB mundial era a mesma de 30 anos atrás. De lá para cá, é verdade, algumas condições pioraram: na década de 60, o país tinha 35 mil quilômetros de ferrovias; hoje, somente 28 mil.
Na coluna das descontinuidades, a incerteza maior se traduz em questões do tipo: “Conseguirá o Brasil repetir agora sua reação à Grande Depressão do século passado?”; ou “Em que medida a presente crise acentua sérios pontos de estrangulamento como o subinvestimento em infraestrutura?”
David Fleischer abriu sua palestra, “Reforma política – uma história sem fim”, definindo esse debate como fruto sazonal que, desde a promulgação da Carta de 88, brota nos anos impares (pré-eleições municipais ou gerais).
Ainda que incapazes de entusiasmar os analistas mais exigentes, Fleischer reconheceu que algumas reformas poucas significativas foram introduzidas de lá para cá na legislação eleitoral e partidária: voto em urnas eletrônicas, desde 1998; emenda de reeleição de presidente, governador e prefeito, em 1997; aprovação da cota feminina de um terço nas listas de candidatos proporcionais (de pouco adiantou: apenas 8% das cadeiras da Câmara são ocupadas por mulheres nesta legislatura); fidelidade partidária (2007). Esta última, assim como a verticalização (obrigando as coligações estaduais, para governo de estado, a refletirem as nacionais, para a presidência da República, valeu no pleito de 2002, mas já estava arquivada no de 2006), e, também, a lei da Ficha Limpa (junho  do ano passado e, sobre a qual ainda pairam muitas incertezas acerca do cronograma de sua aplicabilidade) – todas tiveram em comum o serem produtos da tendência à judicialização da política: o Judiciário (TSE, STF) preenche vácuos de legislação deixados pelos parlamentares, em sua grande maioria temerosos de alterar as regras de um jogo que, conquanto viciadas, ou às vezes por isso mesmo, os ajudam a se eleger/reeleger.
No presente momento, notou Fleischer, entre as mudanças em análise no Senado e na Câmara, aquelas com maiores chances de virar lei são apenas duas, aparentemente, menos controvertidas. Uma é a mudança da data de posse do presidente, dos governadores e prefeitos. A outra é a redução de dois para um do número de suplentes de senador, bem como a proibição de que eles tenham com os titulares relações de parentesco sanguíneo ou por afinidade e de que o suplente suceda permanentemente ao titular, permitindo apenas que um substitua o outro em seus impedimentos temporários (em caso de vacância, a cadeira senatorial seria preenchida na disputa eleitoral mais próxima no tempo). Pelo menos, esta é a fórmula prevista pela comissão especial de reforma política do Senado, criada no início deste ano pelo presidente José Sarney (PMDB/AP), relatada pelo senador Francisco Dornelles (PP/RJ) e que funcionou durante o primeiro semestre.
Na Câmara, outra comissão especial, tendo por relator o deputado petista gaúcho Henrique Fontana, saiu-se com uma fórmula especiosa e corporativista: nessa versão, a suplência senatorial passaria a caber ao deputado federal mais votado em cada estado – independentemente de ele pertencer ou não ao partido do titular, em total desapreço pela preferência do eleitor. Probabilidade de aprovação da matéria pelo Senado: menor que zero.
Duas outras propostas reformistas, cuja concretização Fleischer ainda considera possível, porém menos provável, tratam da regulamentação da fidelidade partidária, por meio de uma lei, e não mais, como hoje, por decisão judicial; e o fim das coligações proporcionais (para deputado federal, deputado estadual e vereador). Essas alianças quase sempre funcionam como meros pactos de sobrevivência eleitoral para candidatos de partidos nanicos que buscam tomar carona na votação obtida pelos partidos maiores. O PCdoB, por exemplo, para turbinar suas chances, costuma apresentar uma única ‘dobradinha’ de candidatos à Câmara dos Deputados e à Assembleia Legislativa de cada estado, atrelando-a a coligações com o PT, o PMDB e outras agremiações de maior porte, que, por sua vez, se beneficiam ganhando mais tempo de propaganda eleitoral no rádio e na TV.
Casamentos de conveniência, sem nenhuma afinidade programática ou ideológica e desfeitos no momento mesmo em que as urnas são fechadas e começa a contagem de votos, as coligações proporcionais incentivam a proliferação de legendas, o que dificulta a governabilidade. Pelos cálculos de Fleischer, o seu fim reduziria o número de partidos representados na Câmara dos atuais 20 para um patamar ‘mais civilizado’ de nove ou dez.
Quanto à fidelidade partidária, o PLS (Projeto de Lei do Senado), 266/11, aprovado pela comissão especial presidida por Dornelles previa, originariamente, que o deputado que trocasse seu partido por outro perderia o mandato, exceto nas hipóteses de incorporação/fusão de legendas, criação de novo partido; desvio de programa partidária; e perseguição pessoal. Quando a matéria chegou à CCJ, seu relator e também presidente desse colegiado, senador Eunício Oliveira (PMDB/CE), com apoio do DEM, suprimiu a segunda hipótese, foi uma represália dos Democratas à sangria nos seus quadros provocada pelo surgimento do PSD, do prefeito Gilberto Kassab e do vice-governador Guilherme Afif Domingos. De início terminativo (isto é, bastaria ser aprovado na CCJ para seguir à Câmara sem, passar pelo Plenário do Senado), o projeto recebeu recurso, assinado por, no mínimo, 10% dos 81 senadores – ou líderes de bancadas de equivalente tamanho –, para ser, sim, apreciado em Plenário. Lá, recebeu emenda do senador Sérgio Petecão (PSD/AC) restabelecendo a hipótese do partido novo. A matéria voltou à CCJ para análise dessa emenda, e Eunício confiou  sua relatoria ao senador Demóstenes Torres (DEM/GO), que, previsivelmente, irá rejeitá-la. Em resumo, o PSD, por ora, sobrevive pendurado em decisão do Judiciário. Não apenas no DEM, mas em outros partidos, inclusive da base governista, políticos se ressentem de que uma legenda que ainda não passou pelo teste das urnas já ostente uma bancada com mais de 50 deputados federais e dois senadores.
(Vale acrescentar que as proposições do Senado se encontram em várias etapas de tramitação ao longo do processo legislativo. Algumas delas, como  o PLS 263/11, já estão na Câmara. O projeto proíbe a transferência de domicílio eleitoral do prefeito e do vice-prefeito no exercício do mandato, com a finalidade de acabar com a síndrome do ‘prefeito itinerante’, aquele que, constitucionalmente impossibilitado de concorrer a um terceiro mandato consecutivo, contorna esse impedimento transferindo seu título para município vizinho um ano antes da eleição. Outras, como o projeto da infidelidade partidária, há pouco referido, estão de volta à CCJ para reexame. As demais aguardam inclusão na Ordem do Dia do Plenário. Enquanto isso, a comissão especial da Câmara se mantém paralisada em razão do conflito de interesses dos deputados dos diferentes partidos: duas vezes adiada, a apreciação do relatório Fontana acabou ficando para o próximo ano. Na verdade, o que importa para o relator e seu partido são dois itens apenas: a lista partidária fechada dos candidatos a eleições proporcionais e o financiamento de campanhas. No primeiro caso, ele apresentou uma proposta de ‘voto misto’, que não deve ser confundida com o voto distrital misto adotado na Alemanha, pois pretende manter o sistema de representação inteiramente proporcional com a seguinte e duvidosa inovação: o eleitor votaria duas vezes – uma no partido, outra no candidato de sua preferência. No segundo caso, um volume de recursos não especificado e proveniente de votações do Orçamento da União e de doações privadas de empresas e indivíduos constituiria um fundo sob a administração da Justiça Eleitoral, que os redistribuiria aos partidos na proporção do número de cadeiras conquistadas na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais. Ninguém precisa de dotes superiores de perspicácia política para compreender que o impasse decisório da comissão especial deriva do fato de que essas propostas do relator Henrique Fontana, se aprovadas, beneficiariam desproporcionalmente o PT. Com poucos líderes marcantes, além do carismático Lula, o partido ostenta, porém, uma ‘marca’ que hoje é top of the mind, oferecendo um guarda-chuva confortável para o grupo cinzento e opaco de burocratas partidários sindicais que certamente encabeçariam sua lista em posição privilegiada para açambarcar a maioria dos votos dados à legenda. Da mesma forma, o financiamento público somente se justifica e se torna factível quando canalizado para partidos e não fragmentado para lançar inúmeras campanhas individuais.)
David Fleischer concluiu sua fala repisando o insolúvel obstáculo para a consecução de qualquer projeto mais ambicioso de reforma política: a realidade de que, ao contrário de outras profissões, a classe política dispõe de liberdade praticamente ilimitada para se autorregulamentar. Diante de uma proposta de mudança, por mais simples que esta aparente ser, a primeira pergunta que o político se faz é: “Isso vai ajudar ou atrapalhar a minha reeleição?”
Nesse sentido, é fácil prever que, se o financiamento público virar lei, suas excelências dificilmente resistirão à tentação de, a cada novo ciclo eleitoral, injetar no tal fundo de campanhas mais e mais recursos que acabarão fazendo falta em áreas prioritárias como saúde, educação e infraestrutura!
Em seus comentários, o debatedor Benício Schmitdt aproveitou para alfinetar indiretamente as anteriores colocações do professor Boschi, afirmando que os cientistas sociais não deveriam fugir à avaliação das implicações éticas e cívicas do abandono ou de uma “releitura positiva” de conceitos-chave como os de patrimonialismo, corporativismo e cooptação, que descrevem a situação de subordinação social e menoridade política de milhões de brasileiros, ademais da desmoralização das instituições republicanas. “Se é assim”, desabafou Schmidt, “é melhor assumirmos de uma vez por todas que o regime é semidemocrático, encerrarmos esta reunião e voltarmos logo para casa.”
Em sua opinião, as situações assim descritas jamais poderiam ser consideradas realidades positivas, por profundamente antidemocráticas e eternizadoras da desigualdade. Ainda assim, o debatedor concordou que “núcleos de inteligência” estatais ajudaram e ainda ajudam a garantir o processo de desenvolvimento e a continuidade institucional. Nessa conexão, lembrou o papel dos militares nos avanços da informática, da automação e da indústria aeronáutica e assinalou que a esses e outros quadros mais antigos juntam-se novas empresas estatais como a Empresa Brasileira de Planejamento Energético (EBPE), criada na reta final do governo FHC, para reagir à ameaça do apagão elétrico.
Apesar disso, Schmidt expressou dúvidas quanto às contribuições de outras novas categorias funcionais – como os auditores da Controladoria-Geral da União ou os gestores de políticas públicas (estes ligados ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão) – para a solução dos graves problemas gerenciais da máquina administrativa do Estado em todos os níveis e esferas de governo: “Os nós que amarram o Brasil só podem ser desatados com a adoção de uma visão inovadora de planejamento e controle”, e não com a cristalização de vícios como o formalismo jurídico e o corporativismo do serviço público.
No mais, reconheceu e realçou o papel dos movimentos feministas como atores coletivos emergentes, essenciais à modernização de programas governamentais em áreas “sociais” como a da saúde, bem como reafirmou seu pessimismo em relação às reformas políticas.
Leia a seguir:
(no próximo post)



O Estado brasileiro: debate e agenda (1) - Paulo Kramer


O Estado brasileiro: debate e agenda

Congresso em Foco, 28/12/2011
Recentemente, por iniciativa do consultor e professor de administração pública da Universidade de Brasília João Paulo Peixoto, o Instituto de Ciência Política (Ipol/UnB) hospedou uma conferência destinada a divulgar e discutir a recém-lançada coletânea The Brazilian state: debate and agenda (Lexington Books, 2011).
Organizado pelos professores Maurício Font e Laura Randall, com assistência de Janaína Saad, o livro é fruto do seminário “The Brazilian State: Paths and Prospects of Dirigisme and Liberalization”, realizado em novembro de 2009 pelo think tank de estudos latino-americanos dirigido por Font na City University of New York (Cuny) – o Bildner Center for Western Hemisphere Studies. Os papers então apresentados se transformaram nos 16 capítulos da coletânea, e alguns de seus autores compareceram ao Ipol para debater seus trabalhos entre si e com um público de docentes e estudantes que lotava a “sala da pós-graduação” naquela manhã de sexta-feira.
Recebi de meu amigo e colega Peixoto – autor do segundo capítulo: “The Brazilian states since Vargas” – o desafio de, ao final de três mesas redondas, apresentar um resumo, ou wrap up(‘amarração’ geral), como dizem os americanos, de todas as exposições e comentários. O que segue são as notas que tomei no desempenho de minha missão.
Leia a seguir:
Na primeira mesa redonda, discutiu-se os efeitos do receituário liberal e como ele se manifesta hoje
A primeira mesa, coordenada por outro confrade do Ipol, o politólogo e analista internacional Ricardo Caldas, teve como expositores o próprio Font, que além de organizador, é autor da “Introdução” à coletânea; novamente o nosso anfitrião Peixoto; e o cientista político e professor do antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Uerj) – há pouco transplantado para a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, passando a se chamar Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) – Renato Boschi, veterano estudioso da história e estrutura da articulação de interesses (lobby) empresariais no Brasil. Ele escreveu o terceiro capítulo de The Brazilian State, intitulado “State developmentalism: continuity and uncertainty”. As três exposições, foram debatidas por outro professor do Ipol, Antonio Brussi.
Em sua apresentação sobre “Estado, mercado e desenvolvimento: foco na infraestrutura”, Maurício Font questionou se o processo de reformas liberalizantes dos anos 90 (abertura comercial externa, privatizações, estabilização monetária e responsabilidade fiscal) – com agenda inspirada no nunca suficientemente demonizado Consenso de Washington, aquela cabala ‘imperialista’ e ‘neoliberal’ que a esquerda ama odiar – estaria com seus dias contados para dar lugar a um Consenso de Brasília. Afinal, desde o segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a política econômica readquiriu um perfil mais dirigista, como exemplificam os generosos financiamentos do BNDES a grandes grupos empresariais amigos e financiadores eleitorais do PT. Agora, no governo Dilma, noto que o programa Brasil Maior segue nessa senda de incentivos fiscais, protecionismo comercial e política industrial, fundamentada na crença de que a tecnocracia estatal pode e deve escolher firmas ‘vencedoras’ em setores ditos estratégicos, no pressuposto de que os burocratas do Executivo e das agências oficiais de fomento, além dos economistas da Unicamp e quejandos, são muito mais ‘espertos’ que o mercado.
Antes de discutir as limitações desse enfoque intervencionista, o brasilianista passou em revista fatores domésticos e externos que ensejaram o boom de consumo de massa responsável pelos altos índices de popularidade do ex-presidente Lula e seu governo. São coisas que não constituem nenhuma surpresa para pessoas medianamente informadas sobre a economia brasileira, mas que uma ruidosa e caríssima máquina de propaganda do governo federal, secundada por um exército de blogueiros chapa-branca, faz de tudo para esconder do povão: a bendita herança da política macroeconômica do fernando-malanismo, acolhida e aprofundada no primeiro lulato pelo eixo Palocci-Meirelles; a insaciável fome de commodities agrícolas e minerais do dragão industrial-exportador chinês; o afluxo de capitais privados, domésticos e externos, para investimentos em áreas de infraestrutura (sobretudo telecomunicações), graças à privatização desse setor e também à flexibilização do monopólio estatal do petróleo e do gás, em meados dos anos 90.
O reverso dessa medalha, advertiu Font, residiria em sérias e persistentes debilidades do Estado brasileiro, que, na visão do antropólogo Roberto DaMatta sempre teve razões que a própria sociedade desconhece; o mesmo Estado, também, que os ideólogos petistas, ‘viúvas’ da era Geisel, idolatram e vêem como solução para tudo; e que os brasileiros, a um só tempo, tendem a temer como a um tirano e a confiar como  em um paizão camarada.
Nos três níveis de governo, o Estado brasileiro fica com quase 40% de toda a riqueza que o país produz, mas, entre custeio de uma inchada, aparelhada e ineficiente máquina pública, corrupção endêmica que o lulismo catapultou a níveis ‘nunca dantes’ alcançados, rolagem da dívida pública com os bancos e agigantamento do assistencialismo, no fim sobra pouco dinheiro estatal para poupança e investimento (de 1% a 2% do PIB).
Daí, como explicou Font, as debilidades da nossa infraestrutura de viação e logística. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), lançado por Lula em 2007, até hoje entregou apenas um terço das obras planejadas. As parcerias público-privadas (PPPs), mesmo reguladas por lei federal desde 2004, não entusiasmaram os investidores, descrentes da capacidade da burocracia governamental para gerir seu dinheiro e mantê-lo a salvo da gula ‘companheira’ e dos demais partidos políticos da coalizão oficialista – com ou sem a faxina ética que a presidente da República agora parece ter-se arrependido de haver anunciado.
Outro entrave, sublinhado pelo diretor do Bildner Center, ao deslanche das PPPs brasileiras, em contraste com os progressos verificados, por exemplo, no Chile, é a incompetência para contornar “conflitos federativos” com governos estaduais, tais como os que retardam a conclusão das obras ferroviárias do Ferroanel de São Paulo, da ferrovia Norte-Sul e da Ferronorte (Mato Grosso).
Na sua exposição, “O Estado brasileiro desde Vargas”, João Paulo Peixoto referiu, com ironia, à “duvidosa delícia acadêmica” de ter de comprimir 70 anos de história em 15 minutos de apresentação.
Peixoto iluminou o contraponto entre a profusão de modelos políticos experimentados pelo Brasil desde a Independência – monarquia constitucional, república presidencialista, ditadura civil, ditadura militar, república parlamentarista –, de um lado, e, de outro, a profunda linha de continuidade na tradição do patrimonialismo intervencionista, tão forte que já relegou ao abandono inconclusas reformas como as privatizações e a modelagem administrativa do Executivo federal, as quais praticamente começaram e terminaram no primeiro mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso.
(Enquanto ouvia meu colega discorrer sobre os fracassos sociais e os déficits de cidadania no rastro da centralização e da hipertrofia do poder do Estado [“De que adianta o Brasil virar a sexta, ou quinta economia mundial se continua com índices de desenvolvimento humano e desempenho educacional que nos envergonham?” – desafiou], lembrei-me da lição que aprendi com autores liberais como Antonio Paim [A querela do estatismoMomentos decisivos da história do Brasil e O liberalismo contemporâneo] e Simon Schwartzman [Bases do autoritarism brasileiro]: em países onde as empresas estatais e os tecnocratas são muito poderosos, as desigualdades tendem a se multiplicar até tornar impagável a dívida social. Em suma, Estado rico, sociedade pobre.)
Em viva contraposição ao diagnóstico do professor Peixoto, a visão de Renato Boschi me pareceu bem otimista. Sua exposição – “Política e trajetória no desenvolvimento capitalista brasileiro” –, enfatizou o papel positivo do Estado no crescimento econômico e no desenvolvimento social do país.
Boschi, que no momento conduz pesquisa sobre variedades de capitalismo, tecnologia e ecologia, fez referência à “escola francesa da economia política da regulação”, paradigma segundo o qual decisões de política pública tomadas no passado assumem uma rigidez que se reflete na longa continuidade das trajetórias estatais (aquilo que os cientistas sociais de língua inglesa denominariam de path dependence). Mesmo assim, acrescentou o professor do Iesp/Iuperj, o advento de uma crise sistêmica introduz significativas descontinuidades e inflexões de curso. Como exemplo recente, ele apontou a Grande Recessão, de 2008 até hoje, que, a seu ver, estaria fomentando uma reavaliação positiva do papel regulador e fomentador do Estado nos centros hegemônicos do capitalismo mundial, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, depois do longo descrédito ideológico a que influentes líderes liberal-conservadores condenaram as políticas dirigistas ou assistencialistas. (Imediatamente vêm à memória os nomes de Ronald – “O governo não é a solução, é o problema” – Reagan e de Margaret – “Não existe essa coisa de sociedade” – Thatcher.)
No caso brasileiro, a análise de Boschi converge com a de Peixoto, no que em um juízo de fato (continuidade do protagonismo econômico do Estado); porém, ambos discordam fortemente em termos de juízo de valor quanto à benignidade/malignidade do processo.
Para acentuar a continuidade da trajetória brasileira, o expositor contrastou-a com o caso argentino, que, no século passado, experimentou violentas reversões de política econômica, decorrentes de uma discordância fundamental entre as classes dirigentes: agraristas liberais contra uma aliança do empresariado industrial protecionista com o sindicalismo peronista. No Brasil, ao contrário, o consenso pró-estatismo estaria solidamente enraizado na cultura política das diversas elites.
Neste ponto, refleti que Boschi e Peixoto voltavam a convergir em mais uma constatação factual: a de que a abertura comercial promovida pelo governo Fernando Collor e as privatizações e reformas do Estado encaminhadas o Itamar Franco e FHC representaram pouco mais que soluções de continuidade passageiras e superficiais na carapaça do estatismo brasileiro.
O iuperjiano acrescentou que a análise comparativa das trajetórias macroeconômicas deve estar atenta não apenas às diferenças mais evidentes, mas também a semelhanças sutis e aparentemente paradoxais. Um exemplo: a despeito do encolhimento drástico da infraestrutura de bem-estar social durante a ditadura do general Pinochet, sob a orientação de economistas ultraliberais egressos da satânica Universidade de Chicago, o Chile manteve inabalável o controle estatal de atividades econômicas-chave como a mineração do cobre, antes e depois da transição democrática no início dos anos 90.
(Se eu não estivesse tão ocupado anotando tudo para o meu resumo final, teria, nesse momento, levantado o braço para pedir licença de recordar a diferença abismal entre a nossa carga tributária e a dos chilenos, cerca de metade da brasileira…)
Para o final da apresentação de Boschi ficariam suas observações mais polêmicas, como a de que a concentração unilateral de muitos pensadores políticos e sociais, hoje, sobre os efeitos perversos do patrimonialismo dificultaria o reconhecimento de um aspecto “positivo” docapitalismo politicamente orientado à brasileira, saber: a preservação de núcleos profissionais de grande competência instalados em setores ‘modernos’ da administração federal direta (caso do Ipea) e, claro, nas grandes empresas estatais, como Petrobras, BNDES, Eletrobrás e tantas outras. (Cabe esclarecer que patrimonialismo e capitalismo político, ou politicamente orientado, são arquétipos da sociologia de Max Weber: o primeiro designa a modalidade de dominação política que borra as fronteiras entre o ‘público’ e o ‘privado’ em proveito dos governantes, dos altos escalões burocráticos estatais e dos aliados-clientes de ambos no mundo dos negócios. Esse arquétipo foi introduzido na ciência social brasileira por Raymundo Faoro na sua obra capital, Os donos do poder, cuja primeira edição data de 1958. O segundo arquétipo [capitalismo político ] tem evidentes afinidades com o primeiro e descreve as atividades dos empresários cujos lucros derivam muito mais de suas conexões com o governo do que da competição com outras firmas no mercado.)
Antonio Brussi, debatedor dessa primeira mesa redonda, adiantou que concentraria os seus comentários na fala e no capítulo de Boschi na coletânea em foco, em vez de confrontar as idéias deste com as de Font e Peixoto.
Chamando atenção para os dois eixos fundamentais do trabalho analisado – o papel do Estado diante da atual crise econômica, aqui e lá fora; e o “avanço da fronteira social” possibilitado pela expansão do mercado de consumo interno durante a era Lula –, Brussi concordou com a interpretação de que as reformas liberais da década de 90 não se provaram suficientemente resistentes para apagar o legado varguista do planejamento econômico e das políticas sociais (trabalhista, previdenciária). Algumas das realizações mais marcantes do governo Lula estariam ligadas, simultaneamente, ao já referido robustecimento do consumo de massa e ao reforço da rede de proteção social, onde se encaixam os sistemáticos aumentos reais do salário mínimo, o programa Bolsa Família e a redução do IPI sobre automóveis e outros bens duráveis.
Brussi argumentou que, para Boschi, teria sido/ainda seria possível avançar nesse caminho via ampliação dos financiamentos do BNDES, do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida, das obras do PAC e do próprio Bolsa Família.
(Neste momento, suspirei para dentro: “Tudo maravilhoso se isso  não tornasse a carga tributária – sempre esse detalhe fatal! – mais pesada do que já é…)
O debatedor esboçou um panorama histórico das respostas da economia brasileira às anteriores crises cíclicas do capitalismo mundial. A de 1875-1896, foi enfrentada com a expansão da cafeicultura em São Paulo, a qual, impulsionada pela imigração de trabalhadores livres da Europa, permitiu que a acumulação de capitais transbordasse para outros setores, assim possibilitando o início da industrialização. À depressão de 1929/30, o Brasil reagiu com a adoção da estratégia de substituição de importações, que se estenderia do início da era Vargas até praticamente o fim do regime militar.
O desarranjo sistêmico iniciado em 1971 com a decisão do governo Richard Nixon de sepultar um dos pilares da ordem econômica do pós-Segunda Guerra Mundial, acabando com a paridade dólar-ouro, abriu caminho a um período de ‘estagflação’ a que o Brasil levaria muito tempo para responder à altura, com o encerramento da estratégia substitutiva de importações, a sua troca pela integração competitiva ao mercado mundial e, finalmente, a conquista duradoura da estabilidade de preços.
Enfim, Antonio Brussi se mostrou cético em face da perspectiva do avanço do redistributivismo por tempo indeterminado, sublinhando que os casos dos Estados Unidos e do Reino Unido estão aí mesmo para ensinar que é possível, sim, ocorrer retrocessos no índice de Gini, medida de concentração de renda. O debatedor fundamentou seu pessimismo em hipótese formulada por dois marxistas americanos hoje quase inteiramente esquecidos, Paul Sweezy e Paul Baran, segundo quem existiriam sistemas socioeconômicos na periferia capitalista fadados a chegar à decadência antes de alcançar um imaginário apogeu.
(Do meu canto, conjecturei que, nesse raciocínio, talvez fosse possível encaixar a preocupação de economistas brasileiros atuais e nada marxistas como o gaúcho Aod Cunha e o portenho-carioca Fábio Giambiagi, que têm alertado para o perigo de, na ausência de reformas inadiáveis, tornar-se o Brasil demograficamente velho antes de ficar rico, desperdiçando o seu passageiro “bônus demográfico”, janela de oportunidade que consiste no fato de que parcela considerável da população economicamente ativa ainda ser jovem o suficiente e já ser numerosa o bastante para arcar com os custos das aposentadorias de um crescente contingente de trabalhadores maduros.)
Enquanto eu assim devaneava, boa parte do plenário reagia inquieta à hipótese de o patrimonialismo ostentar um lado bacana. Bem a propósito disso, Font relembrou que, no início dos anos 50, o sociólogo Hélio Jaguaribe já advertia contra os três Cs que entravavam a marcha do desenvolvimento brasileiro: clientelismo, corporativismo e corrupção.
Leia a seguir:
(no próximo post)