Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
O que é este blog?
Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
Um leitor, que visitou um antigo site meu, encontrou esta pequena proposta de reformas, feitas mais de onze anos atrás.
terça-feira, 20 de dezembro de 2005
43) Uma proposta modesta: a reforma do Brasil
Monteiro
Lobato, num de seus livros da série do Sítio do Pica-Pau Amarelo,
atribuiu a Emília a tarefa de fazer uma "reforma da Natureza": coisa de
corrigir alguns mal-feitos do Criador, e consertar o que parecia errado
aos olhos de retrós de uma boneca de pano. Mas ele também tentou
"consertar o Brasil" várias vezes, chegando até a enfrentar prisão
devido algumas de suas sugestões [nota em 12/01/2017: petróleo, por exemplo]. Não creio que eu corra o mesmo risco agora; provavelmente vou receber apenas sorrisos condescendentes. Em
todo caso, dou primeiro o meu diagnóstico (muito rápido), depois um
pequeno receituário, também rápido e rasteiro, já que nenhuma dessas
tarefas será empreendida anytime soon... [nota em 12/01/2017: como eu tinha razão, podemos colocar muitos anos mais à frente.]
Uma proposta modesta: a reforma do Brasil Paulo Roberto de Almeida
Prolegômenos: Não
creio que o Brasil necessite, tão simplesmente, de uma mera reforma
econômica. Ele precisa, sobretudo, de várias reformas estruturais, a
começar pelo terreno político, onde se encontra a chave para a resolução
dos muitos problemas que explicam o nosso baixo desempenho econômico.
Primeira parte - O Diagnóstico
1. Constituição intrusiva demais, codificando aspectos de detalhe que deveriam estar sendo regulados por legislação ordinária.
2. Estado intrusivo, despoupador, perdulário, disforme e pouco funcional para as tarefas do crescimento econômico.
3.
Legislação microeconômica (para o ambiente de negócios e para a
regulação das relações trabalhistas) excessivamente intrusiva na vida
dos cidadãos e das empresas, deixando pouco espaço para as negociações
diretas no mercado de bens, serviços e de trabalho.
4.
Preservação de monopólios, cartéis e outras reservas de mercado, com
pouca competição e inúmeras barreiras à entrada de novos ofertantes.
5.
Reduzida abertura externa, seja no comércio, seja nos investimentos,
seja ainda nos fluxos de capitais, gerando ineficiências, preços altos,
ausência de competição e de inovação.
6. Sistemas legal e
jurídico atrasado e disfuncional, permitindo manobras processualísticas
que atrasam a solução de controvérsias e criam custos excessivos para as
transações entre indivíduos.
Segunda parte - A Reforma
1.
Reforma política, a começar pela Constituição: seria útil uma “limpeza”
nas excrescências indevidas da CF, deixando-a apenas com os princípios
gerais, remetendo todo o resto para legislação complementar e
regulatória. Operar diminuição drástica de todo o corpo legislativo em
todos os níveis (federal, estadual e municipal), retirando um custo
enorme que é pago pelos cidadãos; Proporcionalidade mista, com voto
distrital em nível local e alguma representação por lista no plano
nacional, preservando o caráter nacional dos partidos.
2. Reforma
administrativa com diminuição radical do número de ministérios, e
atribuições de diversas funções a agências reguladoras. Privatização dos
grandes monstrengos públicos que ainda existem e são fontes de
ineficiências e corrupção, no setor financeiro, energético, e outros;
fim da estabilidade no serviço público.
3. Reforma econômica
ampla, com diminuição da carga tributária e redução das despesas do
Estado; aperto fiscal nos “criadores de despesas” irresponsáveis que são
os legislativos e o judiciário; reforma microeconômica para criar um
ambiente favorável ao investimento produtivo, ao lucro e para diminuir a
sonegação e a evasão fiscal.
4. Reforma trabalhista radical, no
sentido da flexibilização da legislação laboral, dando maior espaço às
negociações diretas entre as partes; extinção da Justiça do Trabalho,
que é uma fonte de criação e sustentação de conflitos; Retirada do
imposto sindical, que alimenta sindicalistas profissionais, em geral
corruptos.
5. Reforma educacional completa, com retirada do
terceiro ciclo da responsabilidade do Estado e concessão de completa
autonomia às universidades “públicas” (com transferência de recursos
para pesquisa e projetos específicos, e os salários do pessoal
remanescente, mas de outro modo fim do regime de dedicação exclusiva,
que nada mais é do que um mito); concentração de recursos públicos nos
dois primeiros níveis e no ensino técnico-profissional.
6.
Abertura econômica e liberalização comercial, acolhimento do
investimento estrangeiro e adesão a regimes proprietários mais
avançados.
Confesso que tenho duas grandes confissões a fazer: uma boa, outra menos boa. A boa é que eu gostei muito de escrever esse texto, que pode ser a base de alguma obra maior, sobre as grandes reformas nunca feitas em nosso país em 200 anos de história; ele estava há muito tempo em minha cabeça, mas nunca tinha feito sequer uma anotação para ele, pois a gente espera alguma grande oportunidade para sentar, pensar, refletir, pesquisar algumas coisas e depois elaborar algo mais estruturado. Pois bem, nunca tinha feito, pois essas oportunidades sempre são perdidas, como diria Roberto Campos. Foi preciso receber um convite do Rodrigo da Silva, do Spotniks, para escrever um texto sobre um assunto completamente diferente para eu me decidir finalmente a escrever; e ele veio de um só jato, como se diz; escrevi durante uma noite inteira, entre meia noite e cinco da manhã, que são as minhas melhores horas de escrita (para desconforto de alguns próximos). Eu gostei muito, portanto, de ter recebido o convite, o que me permitiu "desovar" algo que estava dormindo em minha cabeça desde algum tempo. Como sempre digo, quando me decido a escrever algo: o artigo (ou o livro) já está pronto, só me falta escrevê-lo, o que é a parte mais fácil (com alguma revisão posterior para corrigir os inúmeros erros de digitação e concordância que inevitavelmente surgem de uma escrita muito rápida, mas que não acompanha um pensamento duas vezes mais rápido). A confissão menos boa, mas que faço mesmo assim é que não gosto do título. Não gosto de ter chamado meus dez personagens de "derrotados", ainda que estas aspas possuem um enorme significado implícito, obviamente. Eu não considero esses brilhantes pensadores "derrotados", inclusive porque eles integram a memória coletiva de nosso povo como alguns dos melhores brasileiros que se esforçaram para fazer do país uma sociedade melhor, mais justa, mais moderna, mais conforme os valores universais do direito e da democracia. Mas optei por deixar "derrotados" (que devem ser lidos sempre com aspas) com o objetivo precípuo de chocar, de impactar, de incitar à curiosidade os estudantes mais jovens pela história, pela obra e pelo pensamento desses brasileiros geniais, e possivelmente estimular mestrandos e doutorandos a pesquisar sobre seus projetos de reforma, e de trazer novamente à tona uma agenda inconclusa de modernização do país, de sua política e de sua economia, enfim, projetos para "civilizar" o Brasil, como diziam os primeiros pensadores da nacionalidade. Estas são as minhas reflexões adicionais sobre esse texto que me deu imenso prazer ao "retirá-lo" de minha cabeça e colocar sob a forma de um arquivo eletrônico, agora à disposição dos interessados graças à generosidade do Rodrigo da Silva e do Spotniks. Vale! Paulo Roberto de Almeida Brasília, 14/02/2016
Dez grandes derrotados da nossa história (ou, como o Brasil poderia ter dado certo, mas não deu)
O Brasil, já disse alguém, não é para
principiantes. Vamos admitir que a frase expresse a realidade, ainda que
ela seja uma mera banalidade conceitual. A verdade é que nenhuma
sociedade urbanizada, industrializada, conectada, ou seja, complexa,
como são quase todas as nações contemporâneas, é de fácil manejo para
amadores da vida política ou para iniciantes no campo da gestão
econômica. Não deveria haver nada de surpreendente, portanto, em que o
Brasil, de fato, não seja para principiantes, como dito nesse slogan tão
folcloricamente simpático quanto sociologicamente inócuo.
Mas
atenção: a frase é, sim, relevante pelo lado do seu exato contrário. O
mais surpreendente, no caso do Brasil, está em que o país não é de
rápida explicação ou de fácil interpretação nem mesmo para pensadores
distinguidos e intelectuais de primeira linha (eles o são, de verdade?).
Ele tampouco parece ser de simples manejo mesmo para estadistas da
velha guarda (nós os temos?), para políticos experientes (parece que
ainda existem), sem esquecer os empresários inovadores (quantos são,
alguém sabe dizer?) ou para economistas sensatos (seria uma espécie
rara?). O Brasil já destruiu mais de uma reputação política, como
continua desafiando as melhores vocações de “explicadores sociais”
(inclusive brasilianistas), com o seu jeito sui-generis de ser. Existe,
por exemplo, alguma explicação sensata para o fato de que “o país do
futuro”, o “gigante inzoneiro”, a terra dos recursos infinitos, seja
ainda uma sociedade desigual, ricamente dotada pela natureza, mas com
muitos pobres, milhões deles, uma nação até materialmente avançada, mas
(aparentemente, pelo menos) mentalmente atrasada? O que é que nos retém
na rota do desenvolvimento social integrado? Quais são os formidáveis
obstáculos, quantas e quais são as barreiras intransponíveis?
Não foram
poucos os espíritos corajosos que tentaram vencer essas dificuldades e
nos colocar num itinerário de progresso sustentado. A maior parte acabou
derrotada por um conjunto variado de circunstâncias cuja identificação
exata requereria um batalhão de sociólogos, dos melhores. Vamos
repassar, ainda que brevemente, o itinerário de dez grandes
personalidades que, em momentos decisivos da história do Brasil, viram
seus projetos e propostas de reformas ou de melhorias para o país
totalmente frustrados em função das condições ambientes, por força da
oposição de outros personagens ou de grupos poderosos, ou pelo fato de
que eles mesmos não souberam, ou não puderam, obter apoios suficientes
para que suas propostas de políticas públicas fossem, em primeiro lugar,
aceitas por outros dirigentes, ou pela opinião pública, depois seguidas
pela coalizão dominante a cada momento e, finalmente, implementadas na
forma por eles concebida inicialmente. A maior parte desses homens não
foi sequer consolada, em vida, por aquele famoso dístico de bandeira
estadual: “ainda que tardia”.
1) Hipólito José da Costa
Nascido na
Colônia do Sacramento, criado em Rio Grande, espírito iluminista,
liberal econômico, assessor, durante algum tempo, do grande estadista
português da passagem do século 19, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o
conde de Linhares, para quem investigou as inovações econômicas e
melhoramentos agrícolas da jovem República americana nos anos finais do
século 18, e por quem foi enviado à Inglaterra para adquirir
equipamentos gráficos, para modernizar a imprensa do Reino, e onde se
tornou maçom, foi preso e torturado pela Inquisição ao retornar a
Portugal, tendo conseguido fugir após alguns anos de cárcere.
Estabelecido na Inglaterra desde então, Hipólito deu início ao primeiro
jornal independente brasileiro, o Correio Braziliense, que
editou sozinho em Londres desde a transmigração da corte portuguesa para
o Brasil, em 1808, até que fosse confirmada a independência e a
separação do, até então, Reino Unido, no final de 1822. Nomeado cônsul
do Brasil em Londres, por José Bonifácio, Hipólito ainda teve tempo de
enviar-lhe, em fevereiro de 1823, um ofício propondo reformas nos
correios, nos transportes e na colonização, mas não para tomar posse do
cargo para o qual estava preparado como nenhum outro brasileiro.
Seu Correio Braziliense
forneceu, durante exatos quatorze anos e sete meses ininterruptos,
material de informação, de reflexão e de críticas a todos os dirigentes
portugueses (que o liam à sorrelfa) e aos brasileiros ilustrados,
constituindo o maior repositório de dados e análises fiáveis sobre o
estado do reino de Portugal, sobre a situação da Europa napoleônica e
pós-napoleônica, sobre as Américas em geral e sobre o Brasil em
particular. Seu “armazém literário” constitui o mais completo manual de
políticas públicas e de economia política – no sentido de estadismo para
a prosperidade dos povos, como a definia Adam Smith – cujo grande
objetivo era o de ajudar o Brasil e os “brazilienses” a enriquecer
rapidamente, como ocorria então na Inglaterra. Muitos ministros do
reino, em Portugal e no Brasil, concordavam com ele, mas às escondidas,
pois não o podiam revelar, ainda que um ou outro mais ousado tentasse
convencer o príncipe regente, depois D. João VI, do acertado daqueles
críticas e propostas de políticas, inclusive no que se referia aos
tratados desiguais com a própria Inglaterra. Infelizmente seus conselhos
foram raramente seguidos e ele veio a morrer antes de poder servir de
forma mais efetiva ao país que era o seu, mas que tinha abandonado ainda
muito jovem para nunca mais voltar.
2) José Bonifácio de Andrada e Silva
As mesmas
ideias defendidas por Hipólito, de monarquia constitucional e de fim da
escravidão, foram esposadas por José Bonifácio, grande intelectual
nascido em Santos, SP, homem de ciência e de grandes luzes, membro de
diversas academias europeias, combatente contra as tropas napoleônicas
em Portugal, antes de retornar ao Brasil para servir ao Reino Unido e se
converter no verdadeiro artífice da independência do Brasil. Proclamada
esta, ele pretendia, já na Assembleia Constituinte, libertar o Brasil
da mácula do tráfico escravo e, assim que possível, da nódoa da
escravidão, conseguindo braços para a lavoura e para a formação de uma
sólida economia agrícola entre camponeses imigrados europeus. Como
Hipólito, e como tantos outros abolicionistas, José Bonifácio foi
derrotado pela coalizão de mercadores de escravos e de grandes
proprietários de terras, abandonado, aliás, pelo próprio Imperador, que
aproveitou-se do recrudescer das turbulências políticas na Assembleia
Constituinte e das divisões políticas entre os maçons para decretar o
encerramento do breve exercício de ordenamento constitucional, “cassar”
os seus membros e exilar ou prender toda a família dos Andradas.
Bonifácio foi mais uma vez para a Europa, e só retornou ao Brasil para
ser preceptor, por breve tempo, do menino Pedro de Alcântara, mas já sem
condições de influenciar a política no período regencial. Foi um dos
grandes derrotados de nossa lista de estadistas-idealistas.
3) Irineu Evangelista de Souza
O gaúcho de nascimento e self-made man
só adquiriu o título nobiliárquico de Barão de Mauá (depois Visconde,
em 1875) na data da inauguração, em 1854, do primeiro trecho da ferrovia
Rio-Petrópolis, entre o porto de Mauá, na baia da Guanabara, e o pé da
serra de Petrópolis. Antes disso ele já tinha amealhado fortuna com seus
empreendimentos industriais (sobretudo estaleiros) e comerciais (em
especial seus bancos, no Brasil e em diversas capitais estrangeiras).
Homem possuidor do mesmo espírito empreendedor e liberal de seus tutores
ingleses (primeiro numa casa de importação no Rio, depois mediante
viagem à Inglaterra, em 1840), ele enfrentou inúmeras dificuldades num
país escravocrata e caracterizado pela mão pesada do Estado em todo e
qualquer setor da economia (o governo tinha de autorizar qualquer novo
empreendimento que ele desejasse fazer), e teve vários atritos com
ministros de sucessivos gabinetes do Segundo Império; essas desavenças o
levaram à ruina comercial e financeira, e obstaram a que suas ideias
progressistas pudessem ser reconhecidas como válidas e implementadas num
país em que o status de senhor de escravos ainda era sinal de
distinção.
O
historiador Nathaniel Leff, heterodoxo entre os intérpretes de nossa
história econômica, afirma que o atraso do Brasil não se situa tanto na
colônia, como afirmam vários historiadores consagrados, mesmo os da
vertente marxista, mas precisamente no período do Segundo Império,
quando o Brasil perde a oportunidade de implementar as reformas
preconizadas por Mauá, seja no terreno da força-de-trabalho, seja na
política monetária, ou no ambiente de negócios e no da infraestrutura.
Não há nenhuma dúvida que, ao final do Império, o Brasil teria sido um
país muito diferente se as ideias (não só econômicas) de Mauá tivessem
sido implementadas como políticas públicas. Ele foi, provavelmente, o
primeiro empresário derrotado de nossa história.
4) Joaquim Nabuco
O
“aristocrata” da zona da mata de Pernambuco é mais um derrotado de nossa
lista, não exatamente enquanto publicista – terreno no qual ele foi
brilhante – ou como diplomata do Império e da República, mas enquanto
abolicionista, a despeito de suas raízes nos engenhos de açúcar do
Nordeste. Intelectual blasé, ele bateu-se com denodo pela causa
da emancipação, e seu livro sobre o abolicionismo (publicado em Londres
em 1883) foi decisivo na intensificação da campanha, nessa mesma
década. Mas ele já tinha sido derrotado antes, pois que não conseguiu
reeleger-se para sua primeira cadeira de deputado, conquistada em 1878,
assim como viu frustrada sua campanha pela laicização do Estado
Imperial, que tinha a religião católica como oficial. Mesmo quando da
abolição, por decreto imperial, suas propostas para que a emancipação
dos escravos fosse acompanhada de um grande programa de reforma agrária e
da universalização da educação pública, compulsória e gratuita, com
vistas à elevação do padrão educacional de milhões de brasileiros
pobres, e não apenas dos negros libertos, jamais foram seriamente
consideradas pela República oligárquica.
Ele
afastou-se da política, como monarquista que era, e dedicou-se aos
livros e à história. Só retornou à vida pública para novamente
dedicar-se à diplomacia, não para defender o regime, mas para servir ao
país. O retorno lhe deu ainda mais desgosto, no caso da arbitragem
italiana sobre a questão da Guiana, fronteira com a colônia britânica: a
Grã-Bretanha abocanhou quase 50% a mais do território disputado do que
foi concedido ao Brasil, nascendo aí seu acentuado monroismo, ou
americanismo, ao considerar que das potências europeias o Brasil não
deveria esperar nada. Do nosso ponto de vista, entretanto, o Nabuco
“derrotado” que interessa registrar é o das nunca implementadas
propostas de reforma agrária e de educação pública em favor de negros
libertos e dos brancos pobres, na verdade para todos.
O Brasil
republicano, desde o início, e provavelmente até hoje, continua a pagar
muito caro pela ausência de medidas desse tipo, para elevar a capacidade
produtiva do seu povo. A reforma agrária, na verdade, na prática se
tornou inócua pela modernização capitalista da economia rural, mas no
campo da educação continuamos a exibir atrasos, se não quantitativamente
(a taxa de escolarização, no início do primário, alcançou, por fim, a
dos países avançados, mas 150 anos depois), certamente em qualidade do
ensino.
5) Rui Barbosa
Conselheiro
do Império, primeiro ministro da Fazenda do novo regime, no governo
provisório de Deodoro, quando empreendeu algumas boas reformas e outras
menos boas, o homem mais inteligente do Brasil (segundo os baianos),
foi, antes de tudo, um pensador, um doutrinário e um publicista (e um
dos mais prolíficos do Brasil, que nunca publicou um livro sequer, mas
que tem obras completas em dezenas de volumes). Ele é usualmente
definido como um polímata, pois suas atividades e escritos abrangiam os
mais diversos domínios do conhecimento humano, com especial predileção
pelo direito. Logrou sucesso em muitos dos empreendimentos que lhe foram
oferecidos ou para os quais ele se voluntariou, em virtude de seus
vastos conhecimentos jurídicos; voltou da Segunda Conferência
Internacional da Paz da Haia, em 1907, como um herói, o “Águia de Haia”,
como exageradamente seus conterrâneos chamaram-no.
Mas também
acumulou vários insucessos, entre eles a mal concebida reforma bancária
do início da República, que acabou resultando numa violenta
especulação, o chamado Encilhamento. Opôs-se a Rio Branco na compra do
Acre à Bolívia, e saiu ruidosamente da delegação negociadora. Sua maior
derrota, porém, não para ele, mas para o Brasil, foi ter perdido o
pleito presidencial de 1910 para o Marechal Hermes da Fonseca,
militarista como seria de se esperar, mas sobretudo prepotente, mandando
submeter a golpes de canhão os governadores recalcitrantes dos estados
que não o obedeciam. Por isso mesmo, o chanceler Rio Branco, angustiado,
pensou em se demitir do seu cargo, sucessivamente renovado em quatro
governos: coitado, morreu logo após.
A derrota
para Hermes da Fonseca foi uma derrota para o Brasil, no sentido em que
representou a consolidação do arbítrio como norma de governo, um golpe
de Estado permanente contra vários princípios constitucionais, a ofensa
aos adversários políticos (considerados inimigos) como coisa
corriqueira, o despotismo do Executivo sobre os demais poderes. Rui se
exasperava em face do desprezo que o governo exibia contra os mais
comezinhos valores da democracia, entre eles as liberdades individuais e
o pleno vigor do Estado de direito. Seus artigos, conferências e
palestras dos últimos anos revelam justamente sua revolta contra o
desrespeito demonstrado pela maior parte dos políticos – e dos militares
– às normas mais elementares do sistema democrático. Como seu amigo
Nabuco, ele faria um excelente ministro – talvez até primeiro – de um
sistema parlamentar ao estilo inglês (se possível de uma monarquia
constitucional, pois a despeito do seu republicanismo, Rui, a exemplo de
Oliveira Lima, se decepcionou rapidamente com aquela república), ou de
um governo congressual ao estilo americano, como preconizado pelo
professor de Princeton Woodrow Wilson, mais tarde presidente. Como os
anteriores, Rui também foi um derrotado, não apenas nos seus princípios e
convicções, mas também em suas tentativas práticas de democratizar
plenamente e de enquadrar o Brasil num Estado de direito efetivo.
6) Monteiro Lobato
O filho de
fazendeiros do Vale do Paraíba se espantou desde cedo com a
inacreditável miséria dos caboclos do interior, que ele imortalizou na
figura emblemática do Jeca Tatu. Ele constatou as condições sanitárias
abomináveis dos matutos do interior e, sobretudo, a ignorância abismal
desses homens que sequer tinham consciência de sua condição ou da
existência de um país chamado Brasil. Seus muitos artigos de imprensa,
sua atividade de editor, seus diálogos imaginários sobre nossos
problemas com um inglês da Tijuca – Mister Slang e o Brasil –,
todos eles batem na mesma tecla: o Brasil é um país profundamente
atrasado, tão arcaico a ponto de ser derrotado pelas saúvas e por
endemias eternas, e só teria salvação se empreendesse um vigoroso
esforço de modernização, de preferência modelado no exemplo americano.
O fordismo
lhe parecia a solução ideal para nossa débil industrialização, e o
petróleo seria o combustível indispensável à redenção da nação. Lobato
está na origem do “petróleo é nosso”, mas ele não era um chauvinista, um
patriota rústico que queria afastar o capital estrangeiro do esforço de
capacitação industrial e tecnológica. Ele se batia contra os “trustes
estrangeiros” não porque fossem estrangeiros, mas porque via neles uma
conspiração contra a prospecção de poços no Brasil, ao preferirem as
jazidas mais fáceis do Oriente Médio. Achava que o governo não fazia
esforços suficientes nessa direção, e denunciou o “entreguismo” da
ditadura Vargas: por isso foi processado e preso. Mas a sua concepção de
progresso era indiscutivelmente americana: ele foi mais um derrotado
pelo nacionalismo rastaquera e pelo estatismo arraigado nos corações e
mentes das elites políticas e industriais. Só o fato de proclamar o
valor dos livros na construção da nação já lhe valeria a entrada num
panteão da pátria. Pena…
7) Oswaldo Aranha
Paradoxalmente,
só foi derrotado quando finalmente chegou ao momento de maior glória, e
pelo próprio homem que ajudou a colocar no poder. A “estrela da
revolução liberal” de 1930, foi de fato o homem que “liquidou” a
República Velha, ante as hesitações e dúvidas de Getúlio Vargas quanto
às chances de vitória do movimento contra Washington Luís e seu
presidente eleito do bolso do colete. Não fossem os esforços decididos
de Aranha, no sentido de unir gaúchos e mineiros, e de aliciar forças
decisivas no Exército e nas tropas estaduais militarizadas, a revolução
de 1930 não seria o marco da modernização do Brasil e da construção de
um Estado moderno, não mais a “República carcomida” das oligarquias do
café-com-leite. Sucessivamente ministro da Justiça, da Fazenda (quando
ele encaminha os problemas da dívida externa e dos estoques de café) e
embaixador em Washington, Aranha estava no auge de sua glória quando
decide abandonar, por desgosto, seu posto diplomático, na sequência do
Estado Novo, em novembro de 1937, que repudiou imediatamente.
Foi apenas
sua amizade com Vargas, e a necessidade que este tinha de manter as
melhores relações possíveis com os americanos – a despeito de suas
notórias simpatias pelos regimes fascistas da Europa – que explicam seu
retorno à política, como chanceler do Estado Novo, de março de 1938 a
agosto de 1944. Sua ação à frente do Itamaraty foi decisiva para conter a
inclinação de muitos dos expoentes do regime por uma aliança com as
potências nazifascistas, aparentemente invencíveis no início dos anos
1940, e para ancorar vigorosamente o Brasil no grupo das Nações Aliadas.
Aranha
sempre foi um candidato natural das forças democráticas à presidência da
República: hipoteticamente em 1934, numa eventual escolha alternativa
pela Constituinte (e provavelmente por isso, Vargas decidiu manda-lo
para Washington); talvez em 1938, se as eleições previstas não tivessem
sido cortadas pelo golpe de Estado; possivelmente ao final do Estado
Novo, quando Vargas ainda manobrava para continuar, depois indicando um
sucessor de sua escolha; em 1950, quando foi sondado, mas preferiu
deixar o terreno livre para o ex-ditador; ou ainda, e finalmente, à
morte deste, nas eleições de 1955, disputadas por muitos candidatos bem
menos qualificados do que ele. Foi uma pena que sua falta de ambição, e
sua fidelidade irrestrita ao “irmão maior” que era Vargas, obstaram que
ele galgasse o posto mais alto da República.
Para se
ter uma ideia de como o Brasil poderia ter sido diferente, se ele
tivesse ascendido ao comando da nação, basta ler a carta que Aranha
enviou a Vargas para que este discutisse os assuntos da guerra e da paz
no encontro que o ditador teria em Natal com Franklin Roosevelt, em
janeiro de 1943. O maquiavélico ditador não só o afastou traiçoeiramente
dessas conversações, mas também impediu um encontro especial que se
realizaria em Washington com o presidente americano no mesmo mês em que
Aranha foi humilhado pela polícia política do regime, no triste episódio
da Sociedade das Américas, em agosto de 1944, o que acabou determinando
sua saída da chancelaria.
Naquela
carta, Aranha delineou não apenas um esquema de aliança com os EUA, para
ganhar a guerra, mas também uma estreita cooperação para participar da
nova ordem mundial a partir da restauração da paz; ele incluiu,
sobretudo, um programa inteiro de modernização industrial e de
capacitação do Brasil, com ajuda americana, de molde a realmente
impulsionar o grande deslanche do país à condição de potência regional
(num esquema não muito diferente da aliança não escrita defendida por
Rio Branco, e mais enfaticamente por Nabuco, no começo do século). O
Brasil teria sido um país muito diferente do que foi o caso, e
certamente melhor, se Oswaldo Aranha tivesse ascendido à presidência e
imprimido um estilo de governança e de políticas econômicas bem mais
abertas e propensas à integração na política e na economia mundiais.
8) Eugênio Gudin
Um
personagem nascido no século 19, que quase atravessou todo o século 20,
pregando sempre as mesmas ideias liberais em economia e de simples
sensatez na gestão pública. Formado em engenharia, mas economista por
gosto, Gudin foi um aderente da escola neoclássica, mas de fato um
eclético, e o responsável pela institucionalização dos cursos de
economia nas faculdades brasileiras de humanidades e de ciências sociais
em 1944. No mesmo ano, e no seguinte, foi protagonista do mais
importante debate jamais ocorrido na história intelectual do Brasil;
este representou, na verdade, um anticlímax, no sentido em que sua
importância tanto teórica quanto prática foi deixada de lado pelo “curso
natural das coisas”, ou seja, pela continuidade, em nossa governança,
das mesmas inclinações e tendências estatizantes e intervencionistas que
caracterizam o universo conceitual das lideranças políticas e
empresariais do país.
O debate
ocorreu quando se discutia abandonar os mecanismos intervencionistas em
vigor durante o período bélico para adotar novos instrumentos capazes de
guiar a ação do Estado no apoio ao processo de industrialização
(sinônimo de desenvolvimento na concepção da época). Gudin, que
naturalmente defendia princípios liberais e mecanismos de mercado para
guiar a ação do Estado no fomento desse processo, teve como contendor no
debate o industrial e intelectual – professor na Escola Paulista de
Sociologia e Política – Roberto Simonsen. Em 1930, fez traduzir e
publicar pelo CIESP, o Centro da Indústria do Estado de São Paulo, que
ele tinha criado em oposição à FIESP, o livro do economista romeno
Mihail Manoilescu, Teoria do Intercâmbio Desigual e do Protecionismo,
uma atualização “científica” das ideias de Friedrich List. Simonsen,
obviamente, se bateu pelo planejamento estatal, pelo protecionismo
tarifário e pelos subsídios oficiais à “indústria infante”, enfim, todo o
contrário do que pensava e preconizava Gudin, que era pela adesão do
Brasil aos princípios das vantagens comparativas, que recomendavam
incrementar o esforço de modernização agrícola, melhorar a
infraestrutura e o capital humano, e manter uma governança econômica em
bases sólidas e fiscalmente equilibradas.
O
resultado do debate foi mais uma vez paradoxal: Gudin saiu-se como o seu
vencedor teórico, ao demonstrar a inconsistência lógica e a escassa
solidez prática dos argumentos de Simonsen. Mas este foi, ao fim e ao
cabo, o vencedor efetivo do debate, uma vez que, no decurso das décadas
seguintes, todos os governos, apoiados pelos industriais e pelos
empresários em geral, seguiram as recomendações dos estatizantes, dos
nacionalistas primários, dos protecionistas declarados, que sempre foram
legião em todas as esferas da administração pública e na vida civil do
país. Mais uma vez, o derrotado foi o Brasil, único país no mundo a ter
conhecido oito (OITO) moedas sucessivas no espaço de pouco mais de meio
século: mil-réis, cruzeiro, cruzeiro novo, cruzado, cruzado novo,
cruzeiro, cruzeiro real, real. Não é preciso referir-se aos números
astronômicos dos nossos processos inflacionários para constatar os
desastres criados pelos êmulos de Roberto Simonsen, que eliminaram na
prática as receitas mais equilibradas e ponderadas do longevo Gudin. Ele
continuou, até o final de sua vida secular, a preconizar as mesmas
receitas, sempre para ser derrotado pela realidade.
9) Roberto Campos
O
ex-seminarista que se fez diplomata às vésperas da Segunda Guerra, teve a
chance de servir em Washington quando se realizou a célebre conferência
de Bretton Woods, em 1944, na qual ele era um simples assessor, e não
um delegado. O mesmo ocorreu na conferência de Havana, sobre comércio e
emprego, em 1947-48, quando ele continuou a aperfeiçoar seu conhecimento
prático de economia, ao mesmo tempo em que fazia um mestrado nessa área
na George Washington University, quando defendeu uma tese sobre os
ciclos econômicos, de tinturas tanto neoclássicas quanto precocemente
keynesianas. Ele ainda era um partidário do Estado promotor do
desenvolvimento econômico, quando exerceu o cargo de diretor no BNDE,
nos anos 1950, quando colaborou na arrancada dos “cinquenta anos em
cinco” do governo JK, que também elevou a inflação a patamares nunca
antes vistos no Brasil, inclusive com a construção de Brasília (que foi
feita sem orçamento, à margem do orçamento e contra o orçamento, à razão
de 1,5% de déficit fiscal durante quatro anos).
Não
surpreende, assim, que o Brasil fosse levado a uma situação de grave
desequilíbrio orçamentário e de enormes problemas de balanço de
pagamentos no início dos anos 1960, quando ele foi, durante três anos,
embaixador em Washington. Ele se demitiu do posto, exasperado com a
inépcia de Jango, três meses antes do golpe de 31 de março de 1964,
cujos líderes o guindaram à função de ministro do planejamento, em
dobradinha com o ministro da Fazenda Octávio Gouveia de Bulhões. Ambos,
entre 1964 e 1967, conduziram o mais importante processo de reformas
econômicas e administrativas jamais empreendido no Brasil, um conjunto
ambicioso de mudanças constitucionais e de medidas infraconstitucionais
que abriram o caminho para o mais vigoroso ciclo de crescimento de nossa
história econômica.
Paradoxalmente,
porém, os dois, ainda que liberais em espírito e em intenção, foram
também os responsáveis pelo início da mais imponente escalada econômica
estatal jamais vista nessa mesma história. Não só eles, pois que seus
sucessores, em especial os acadêmicos Delfim Netto e Mário Henrique
Simonsen, impulsionaram, com o apoio entusiasta dos militares
reformistas, esse engrandecimento inédito do ogro estatal, elevando
enormemente a carga fiscal – a pretexto de aumentar o investimento
público –, criando dezenas de estatais em todos os setores considerados
“estratégicos”, não apenas para a economia, mas também para a “segurança
nacional”. De certa forma, o Brasil do regime militar conduziu uma
espécie de “stalinismo para os ricos”, uma industrialização “num só
país” que respeitava inteiramente o vezo nacionalista rústico dos
militares e sua preferência pela mais acabada autarquia produtiva, essa
introversão míope que tinha sido a marca dos regimes fascistas da Europa
dos anos 1930 (por acaso, um período no qual muitos dos líderes da
“revolução de 1964” estavam estudando nas academias militares e
aprendendo rudimentos econômicos de “independência e de soberania
nacional”).
Roberto
Campos detectou desde muito cedo essa deriva do Estado
reformista-modernizador dos militares para um “complexo
industrial-militar” orientado mais pelos princípios da “segurança
nacional” do que pelos saudáveis valores da economia de mercado; passou o
resto de sua vida tentando reverter o intervencionismo exacerbado do
regime militar e o nacionalismo tosco dos políticos da redemocratização.
Sem sucesso, porém: como Raymond Aron, na França, que durante anos
lutou contra os instintos socialistas da intelectualidade parisiense,
Campos lutou contra a indigência mental de nossos políticos e a
ignorância econômica da maior parte da intelligentsia nacional (que
Millor Fernandes chamava de “burritsia” acadêmica). Como Aron,
igualmente, só foi reconhecido como visionário ao final da vida, e ainda
assim, nem um, nem outro, conseguiu recolocar os respectivos países no
caminho das reformas liberais e pró-mercado. A despeito de ter acertado
em praticamente 90% do que escreveu durante toda a sua vida, Campos foi
ironicamente derrotado por uma de suas mais conhecidas ironias: “o
Brasil é um país que não perde oportunidade de perder oportunidades”.
10) Gustavo Franco
Um dos
mais jovens expoentes da equipe que idealizou, montou e administrou o
lançamento do Plano Real, o mais bem sucedido esforço de estabilização
macroeconômica conhecido em nossa história econômica – hoje,
infelizmente, ameaçado pela Grande Destruição lulopetista –, que exibe a
distinção adicional de ter concebido o regime de transição da antiga e
desvalorizada sétima moeda de nossa história monetária para o Real,
mediante a indexação monetária via URV, cuja inspiração lhe tinha sido
dada ao estudar a experiência alemã de saída da inflação, em 1923. Ele
também foi o defensor de uma política de capitais e de câmbio bem mais
livre do que o normalmente admitido tradicionalmente, não apenas nas
faculdades de economia, mas sobretudo nos escalões governamentais, não
obtendo inteiro sucesso nessa área, em razão, como sempre, dos azares da
política.
A primeira
versão do Plano Real previa um esforço de ajuste fiscal bem mais severo
do que o efetivamente realizado, não implementado porque o presidente
Itamar Franco queria uma “estabilização sem recessão”. Foi preciso,
assim, manter os juros num patamar bem mais elevado do que o adequado,
pois que a âncora fiscal, que deveria ter sido implantada, foi
substituída por uma âncora cambial, que redundou, contra a vontade de
muitos economistas, numa excessiva valorização do Real (daí os
desequilíbrios de transações correntes acumulados na segunda metade dos
anos 1990). O resultado foi a crise de 1998-99, ainda assim provocada
por fatores externos: as crises asiáticas de 1997 e a moratória russa de
agosto de 1998, que impactou diretamente o Brasil; a situação foi
enfrentada mediante um programa de apoio financeiro das instituições de
Bretton Woods e de países credores, com sucesso relativo até a década
seguinte, quando a crise argentina, o apagão elétrico e as eleições de
2002 (e os efeitos econômicos do PT) agravaram o quadro de turbulências
no Brasil.
Gustavo
Franco, que tinha sido secretário de política econômica na gestão Itamar
e depois diretor de assuntos internacionais do Banco Central, ao
iniciar-se a gestão FHC, foi elevado à condição de presidente do BC em
meio às turbulências financeiras da crise asiática; conduziu um
meticuloso programa de ajustes cambiais que, teoricamente pelo menos,
permitiriam ao Brasil compensar a valorização por etapas, para evitar
uma grave crise e mais inflação. A pressão dos mercados, e do próprio
jogo político, foi entretanto mais forte, e Gustavo se viu constrangido a
sair do BC no auge da desvalorização cambial do início de 1999, e antes
do estabelecimento dos regimes de metas de inflação e de flutuação
cambial, finalmente adotados por Armínio Fraga, levado à presidência do
BC pouco depois. Uma história completa desses episódios, do ponto de
vista da política cambial, ainda está para ser escrita e o próprio
Gustavo é um bom candidato para empreender a tarefa. Mas esse é apenas
um detalhe num itinerário de reformas tentativas que Gustavo Franco
tentou impulsionar e que aguardam ainda hoje para serem continuadas e
completadas.
A
importância de Gustavo Franco, como economista e intelectual, está em
sua condição de debatedor, de publicista, ao defender em seus muitos
artigos, entrevistas e palestras, e em diversos livros, o Plano Real
como apenas o início de um processo de reformas e de mudanças
estruturais no Estado e na economia do Brasil que o levariam da condição
de adepto eterno de um keynesianismo de botequim e de um cepalianismo
tosco ao status de “país normal”, ou seja, simplesmente aderente de
regras claras, estáveis e transparentes de gestão econômica, como
compete a qualquer país dotado de uma economia de mercado digna desse
nome. Infelizmente, a gestão econômica companheira fez o Brasil
retroceder pelo menos vinte anos economicamente, e muito mais ainda
moralmente falando. Gustavo Franco também foi um derrotado, ainda que
temporariamente, uma vez que as reformas que ele preconizava não foram,
senão minimamente, implementadas nos anos seguintes, e muitas delas
revertidas na gestão irresponsável dos lulopetistas. Seus escritos e
declarações indicam o que está aberto nessa agenda de “work in progress”
(na verdade, evoluindo para trás, atualmente).
Os “derrotados” do desenvolvimento brasileiro: um balanço frustrante
Todas as
personalidades brevemente referidas aqui foram, em primeiro lugar,
pensadores, intelectuais com distintas formações acadêmicas – ou na vida
prática, como Irineu Evangelista de Souza – e com diferentes situações
sociais, de atuação no setor público e de responsabilidade nos governos
aos quais serviram ou com os quais trabalharam – ou não, caso de
Hipólito e Monteiro Lobato. Vários conceberam planos mais ou menos
arrojados para o futuro do Brasil, alguns com projetos ambiciosos de
mudanças estruturais, outros – como Gudin – com um cuidado mais prosaico
com uma gestão simplesmente responsável da coisa pública. Todos eles
preconizaram reformas corajosas para eliminar obstáculos e enfrentar os
problemas e desafios que constatavam existir no itinerário do
desenvolvimento brasileiro.
De certa
forma, muitos deles foram visionários, mas sensatos, no sentido em que
nenhum deles concebeu qualquer projeto utópico de reforma integral,
revolucionária, da sociedade brasileira. Nenhum deles foi um “engenheiro
social”, no sentido várias vezes criticado por um pensador liberal como
Isaiah Berlin: todos eles preconizaram atuar nos quadros dos regimes
constitucionais em vigor, respeitando as mais amplas liberdades –
sobretudo a de empreender – e os princípios e valores dos regimes
democráticos. Não por acaso, as propostas por eles formuladas se
aproximavam do modelo constitucional e de governança de corte britânico,
de amplo sucesso prático nos Estados Unidos e nos países que
institucionalmente e culturalmente pertencem ao mesmo arco
civilizatório.
Nenhum
deles teve sucesso – no máximo parcial – nas reformas e nas medidas
preconizadas para levar o Brasil a um patamar mais alto de
desenvolvimento político, econômico e social, num processo de total
respeito às regras elementares do jogo democrático, como diria Norberto
Bobbio. Aliás, o jurista e filósofo italiano, a despeito de seu imenso
sucesso intelectual e do prestigio cívico alcançado, foi outro derrotado
em seu próprio país, por acaso caracterizado por uma governança quase
tão corrupta quanto a brasileira.
Todos os
brasileiros, se tivessem logrado sucesso na implementação das medidas
propostas – se tivessem sido por acaso guindados a posições de mais alta
responsabilidade governativa, o que ocorreu unicamente com José
Bonifácio, mas ele foi rapidamente “podado” pelo seu soberano – teriam
provavelmente mudado o Brasil de uma forma mais profunda, mais intensa, e
mais positiva do que efetivamente ocorreu nos dois séculos que levam de
Hipólito José da Costa a Gustavo Franco. Este último continua um
batalhador incansável pelas reformas necessárias, e o único
“sobrevivente” (com perdão pela palavra) nesta nossa seleção: a ele cabe
manter a tocha das reformas, em primeiro lugar como publicista,
eventualmente, e novamente, como reformador.
No momento
em que o Brasil enfrenta a mais grave crise de sua história –
certamente na esfera econômica, mas também, e sobretudo, no plano moral –
é útil refletir sobre todas essas oportunidades perdidas, sobre a ação,
em grande medida frustrada, de todos esses “derrotados” na prática. Do
meu ponto de vista, eles são vitoriosos morais, gigantes intelectuais da
modernização e do progresso brasileiro, que, por um conjunto variado de
circunstâncias, não puderam conduzir suas propostas a bom termo, ou que
não tiveram a oportunidade, em virtude de um ambiente particularmente
negativo para os reformistas de qualquer quilate, de vê-las
implementadas pelos tomadores de decisões de cada momento. A “agenda
conjunta” de reformas modernizadoras – e corretoras de nossos grandes
defeitos sociais –, que todos eles preconizavam, permanece inconclusa:
na verdade, ela só existe no papel, num exercício como este de
levantamento das nossas lacunas e omissões, uma vez que não pudemos
contar, ainda, com estadistas que as implementassem verdadeiramente, com
base num consenso necessário e no respeito das liberdades democráticas.
A pergunta
final é inevitável: quando vamos contar com personalidades que se
apoiem nas propostas desses gigantes intelectuais para arregaçar as
mangas e “civilizar o Brasil”, na linguagem dos próceres da
independência? Não sabemos ainda. Mas seria útil retomar cada uma das
propostas desses pioneiros, para ver o que ainda falta fazer no Brasil.
Mãos à obra, pesquisadores e ativistas: a agenda já existe. Cabe agora
debater os meios de implementá-la, para passarmos da condição de
“derrotados” à de vencedores.
Que tal começar pelo levantamento do que falta fazer?
**Paulo Roberto de Almeida é Doutor em
Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas. Foi
ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington (1999-2003).
Trabalhou entre 2003 e 2007 como Assessor Especial no Núcleo de Assuntos
Estratégicos da Presidência da República.
Minha contribuição para a reforma geral da casa brasileira...
(Provavelmente utópico, nas condições atuais, mas não menos necessário)
Paulo Roberto de Almeida
1) Redução à metade dos parlamentares da Câmara federal e dos seus equivalentes nas assembléias estaduais e nas câmaras de vereadores, com redução correspondente de todas as verbas disponíveis para custeio de toda essa malta. Isto como primeiro passo, pois a intenção também seria cortar as verbas de gabinetes na origem, o número de assessores livremente contratados e outras despesas prebendalísticas que são propriamente escandalosas.
2) Redução de um terço no Senado, com apenas dois representantes por estado, eleitos alternadamente para turnos de seis anos, tão somente.
3) Aumento do mandato presidencial para cinco anos, proibida a reeleição subseqüente. Governadores teriam mandato de quatro anos, sem reeleição, como prefeitos aliás. Redução drástica do número de municípios, fundindo dois ou mais daqueles que não souberem se sustentar por meios próprios.
4) Redução drástica do número de ministérios, com eliminação dos ministérios criados para fins exclusivamente políticos, bem como das secretarias com status próprio, acoplando-as, se for o caso, a algum ministério penduricalho (mas o melhor mesmo seria cortar de vez).
5) Privatização de todos os monstrengos públicos que ainda sugam o nosso dinheiro e se prestam à extorsão financeira por parte dos políticos. Redução drástica, a algumas poucas centenas de casos, dos cargos em comissão e dos assessores de confiança.
6) Eliminação de quase todos os impostos federais, e sua substituição por um imposto único, de natureza financeira. Seriam feitas simulações quanto ao mínimo indispensavel de alíquota para garantir, no começo, uma "mesada" ao Estado central, sujeita a redução gradual e paulatina, até que a carga fiscal seja novamente reduzida a 28 por cento do PIB. Seriam preservados apenas dois impostos sobre os vícios (tabaco e álcool) e um sobre os combustíveis, para evitar abusos e induzir ao transporte coletivo.
7) Mensalão fixo para as universidades federais, que teriam total autonomia para gerir suas contas e pagar o quanto quisessem a professores e funcionários (exclusivamente por mérito) e remuneração diferenciada por desempenho. As universidades entrariam rapidamente em decadência e crise terminal, o que poderia ser útil, pois obrigaria os professores a, pela primeira vez, corrigir um sistema viciado, inclusive cobrando mensalidade de quem pode pagar. Elas emergeriam muito mais saudáveis dessa crise, sem mais depender do mensalão federal...
8) Fim das estabilidade no serviço público, com algumas poucas exceções ligadas a carreiras de Estado.
9) O Banco Central deixa de fixar os juros: eles passam a ser estabelecidos pelo mercado.
10) O governo renuncia a fixar qualquer padrão para a TV digital e deixa que as empresas, em livre concorrência, e o público escolham, eles mesmos, o que for melhor para a maioria.
11) Fim dos cartéis telefônicos: o governo simplesmente decreta a abertura em todos os níveis, e as companhias telefônicas serão livres para oferecer o serviço que elas desejarem, pelo preco que quiserem, sem existência de nenhuma barreira à entrada de novos concorrentes.
12) Como norma geral, tudo o que não for expressamente proibido à livre iniciativa, fica expressamente permitido, sem maiores regulamentos intrusivos ao exercício das competências individuais. ------------- Paulo Roberto de Almeida Brasília, 12 de março de 2006.
Na última mesa, discutiu-se a nova moda de buscar conselhos para aplicações e negócios no modelo dos livros de autoajuda
A terceira e última mesa, presidida pelo professor Paulo Calmon, do Ipol e do Centro de Estudos Avançados de Governo e Administração Pública (Ceag/UnB), contou com estes expositores: Elaine da Silveira Leite, doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Escreveu o capítulo 14: “Financialization, crisis, and a new mania in Brazil”); José Roberto Ferreira Savoia, administrador de empresas e docente da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP. Capítulo 9: “Pension reform in Brazil: addressing a social pact”); e Fernando Sotelino, banqueiro de investimentos e professor da School of International and Public Affairs da Universidade de Columbia (capítulo 12: “The financial services industry”). Debatedor: Marcos Köhler, economista e consultor legislativo do Senado Federal, atualmente dirigindo a Secretaria de Finanças (Safin) daquela Casa.
A palestra de Elaine Silveira Leite – “Financeirização, Estado e crise: uma nova mania no Brasil” – versou sobre o mundo dos gurus de autoajuda financeira e a recente popularização do mercado de ações entre os brasileiros de classe média. Segundo ela, o caminho para esse processo foi aberto nas duas últimas décadas, com os governos FHC (‘venda’ à sociedade de um novo modelo de administração pública, mais “gerencial’, modelado conforme histórias de sucesso de empresas privadas, em contraposição ao velho modelo “burocrático”), Lula (familiarização da opinião pública com uma aristocracia sindical hoje no comando de grandes fundos de pensão estatais) e com as campanhas publicitárias e de relações públicas da Bolsa Mercantil & de Futuros/Bolsa de Valores de São Paulo (BMF/Bovespa), comparando, por exemplo, o jogador Pelé a um lote de ações cuja cotação jamais parou de subir desde a Copa do Mundo de 58.
A expositora propôs o que eu chamaria de uma sociologia do conhecimento da crescente curiosidade e do novo interesse de brasileiros – sem nenhum contato anterior com esse mercado – pelo universo abstrato e volátil das operações em bolsa. Descobriu uma indústria editorial-promocional que movimenta muito dinheiro tendo por referências conselheiros como Gustavo Cerbasi, autor, entre outros títulos, do bestseller Casais inteligentes enriquecem juntos (em colaboração com sua mulher, Adriana) e eventos como a Expomoney, que, a cada mês, monta sua tenda em uma capital brasileira para levar os leitores e leitoras de Cerbasi e outros a entrar em contato direto com seus ídolos. Deparou, também, com o culto do sucesso financeiro – e das virtudes que conduzem a ele, como disciplina, temperança, autocontrole e poupança – fomentado por denominações evangélicas pentecostais e neopentecostais, como a Assembleia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus. E constatou que até mesmo o governo federal começa a estimular a inserção de conteúdos de educação financeira em seus programas assistenciais (Bolsa Família) e de microcrédito popular.
Posso estar enganado, mas percebi no tom de fala da jovem socióloga uma atitude de condescendente reprovação ante a propagação do que ela considera uma mania financeira, decerto alienada e alienante. Fazer o quê? É o enfoque-padrão de uma intelectualidade acadêmica e midiática que, no Brasil, ignora o quanto a sua ojeriza à ganância capitalista e à ‘vulgaridade’ do motivo do lucro é legatária da tradição católica contrarreformista que aqui se instalou desde os primórdios da colonização portuguesa.
Talvez involuntariamente, sei lá, a apresentação de Elaine da Silveira Leite reafirmou o vigor e a atualidade do fecundo e mais que centenário insight weberiano sobre o impacto extrarreligioso da ética protestante: o capitalismo apresenta, entre os seus elementos constitutivos centrais, uma forte dimensão moral.
(Bem provável que a palestrante não concordaria com a minha dica, mas, mesmo assim, aproveito para recomendar aos leitores dois pensadores americanos cujas obras, a um tempo, esclarecem e enaltecem o legado da imaginação moral do capitalismo liberal, contrastando-o com as catástrofes sociais engendradas no Ocidente, desde os anos 60, alvorada da presente era de ativismo demente e relativismo niilista pelos apóstolos do Estato-babá e de uma visão de ‘justiça social’ baseada unicamente em uma infinidade de direitos e nenhum dever: a historiadora das ideias Gertrude Himmelfarb [Victorian minds: a study of intellectuals in crisis and ideologies in transition, Poverty and compassion: the moral imagination of the late Victorians, The de-moralization of society: from Victorian virtues to modern values, On looking into the abyss: untimely thoughts on culture and society e The moral imagination: from Edmund Burke to Lionel Trilling]; e o sociólogo e criminologista James Q. Wilson – pai da teoria das janelas quebradas, que, nos anos 80 e 90, fundamentou a vitoriosa estratégia de segurança pública da tolerância zero, do ex-prefeito republicano de Nova York Rudolph Giuliani. O caminho mais acessível para conhecer o pensamento de Wilson sobre criminalidade, moralidade e política pública consiste em logar www.nationalaffairs.com e baixar, inteiramente grátis, os seus artigos na extinta revista The Public Interest – berço intelectual do neoconservadorismo do seu editor-em-chefe Irving Kristol [marido, recentemente falecido, de Himmelfarb]), e de seus editores-adjuntos [pensadores de primeira como os sociólogos Nathan Glazer e Daniel Bell, entre muitos e muitos outros]. Trata-se de periódico tremendamente influente no debate político e cultural dos Estados Unidos não só durante os 40 anos em que foi publicado [1965/2005], mas até hoje, por intermédio da segunda geração de neoconservadores discípulos de Kristol e seu grupo, como David Brooks, colunista do New York Times.)
Na sua apresentação – “Reforma previdenciária no Brasil: construindo um pacto social” –, o professor Savoia reiterou um diagnóstico já bem conhecido, mas (ao menos no meu leigo entender) inovou ao avançar uma perspectiva otimista sobre a factibilidade dessa reforma.
Começando por sublinhar o abismo entre os privilégios previdenciários de uma minoria de servidores públicos e os minguados benefícios da esmagadora maioria de aposentados pelo chamado Regime Geral do INSS, o palestrante recordou que, até a década de 40 do século passado, o Brasil gastava mais com educação do que com previdência; depois da Segunda Guerra Mundial, porém, isso se inverteu, e os gastos com aposentadorias e pensões dispararam. Hoje, o país gasta com cidadãos e cidadãs acima dos 60 anos 12% do seu PIB (tanto quanto a Bélgica, que tem o dobro de idosos).
A grande questão é: como compatibilizar as despesas previdenciárias e o ajuste das contas públicas com a necessidade e o potencial de crescimento da economia brasileira? Melhor que a resposta chegue bem antes de 2030, quando, advertiu Savoia, os estacionamentos terão de criar o dobro das vagas atualmente reservadas aos idosos, e as isenções de pagamento do IPTU concedidas pelas prefeituras aos contribuintes nessa faixa tenderam a provocar um colapso das finanças municipais.
À primeira vista, o problema parece insolúvel, pois os lobbies dos sindicatos e, sobretudo, das categorias mais influentes do setor público (juízes, procuradores, policiais federais, funcionários de empresas estatais, entre outras corporações profissionais) formam poderoso ‘grupo de veto’ contra qualquer proposta mais abrangente de reforma, obrigando o Estado a gastar muito com idosos e pouco com crianças e jovens.
Neste ponto, o expositor indicou o que lhe parece uma nova janela de oportunidade reformista: o crescente aperto financeiro dos governos estaduais e municipais terminaria por levar esses atores, sempre com grande peso no sistema político brasileiro, a buscar uma colaboração, um novo “pacto” com a União, de maneira a criar regras previdenciárias menos onerosas para os cofres públicos.
Fernando Sotelino alertou para uma especificidade do sistema financeiro brasileiro. Em comparação com o México, onde praticamente 90% dos bancos são privados, e com China e Índia (predomínio esmagador dos bancos estatais), no Brasil existe um equilíbrio entre uns e outros e também entre a banca privada nacional e a estrangeira (só para ilustrar: Banco do Brasil, Bradesco e Itaú, Santander e HSBC).
Desde o início do Real (1994) e a adoção do Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, no ano seguinte), o setor passou por três etapas de mudança: de 95 a 98 (“consolidação assistida pelo governo”, com a eliminação de numerosos bancos estaduais tremendamente deficitários); de 99 a 2007 (“a festa” de fusões e incorporações sob a égide do tripé virtuoso, formado pelas metas de inflação, o câmbio flutuante e a responsabilidade fiscal); de 2008 até agora (crise, forçando uma onda de “redimensionamentos”: Itaú incorpora o Unibanco, Banco do Brasil compra o Banco Votorantim etc).
Sotelino apontou uma incômoda contradição: apesar da sofisticação dos seus profissionais e dos seus instrumentos e instituições no setor financeiro e a despeito da governança corporativa dos bancos brasileiros, internacionalmente reconhecida como robusta, e da sua alavancagem – proporção entre capital e empréstimos bancários – sob controle, o Brasil, “depois de 17 anos de Real e de Proer, ainda não consegue emitir títulos de 10 anos a 9% fixos de rendimento no mercado internacional”. E este, enfatizou Sotelino, é “um termômetro importante” da capacidade de crescimento sustentado. Enquanto isso, “China, Índia e México lançam títulos de 10 anos a 7%, e o mercado compra.”
Trocando em miúdos: “Ainda não conquistamos credibilidade a longo prazo”. E a classe média brasileira “paga 100% ao ano no cartão de crédito e 35% também ao ano no financiamento do automóvel – e ainda acha bom…”
Sem fazer uma referência direta ao rebote do dirigismo nos últimos anos do governo Lula (“Tiramos o olho da bola, essa a percepção do mercado internacional”), abordada por outros palestrantes, Sotelino sugeriu que a imagem financeira do Brasil lá fora não tem grande probabilidade de se dissolver tão cedo.
O debatedor Köhler abriu sua fala com uma frase do economista austríaco Joseph Schumpeter (“O empresário inovador é o único líder que não gosta de ser seguido”) para deixar claro que o Brasil não deve esperar que alguém lhe dê de presente “a receita do enriquecimento”. Aludindo aos problemas previdenciários apontados por Savoia, disparou: “Nós, brasileiros, somos exímios fabricantes de pretextos para defender o nosso corporativismo.”
Segundo Marcos Köhler, mesmo com todos os avanços das políticas para a macroeconomia, o país ainda padece de um “vácuo de regulação microeconômica”. Deu como exemplo o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), com sua missão de ‘xerife da concorrência’: “No episódio da fusão da Nestlé-Garoto [gigantes da indústria de chocolate], o órgão se comportou como um leão desdentado, se curvou diante do fato consumado”, ao invés de condicionar seu sinal verde para a operação a uma profunda análise de suas repercussões concorrenciais no mercado brasileiro. Com efeito, acrescentou que a passividade da regulação estatal é o outro lado do chamado custo Brasil: “Não é só a carga tributária; a oligopolização também encarece boa parte do que os brasileiros compram”. Nessa conexão, lembrou que uma forte razão por que, nos shoppings de Brasília, os preços das roupas masculinas são absurdamente altos – não apenas em comparação com os outlets deMiami, mas com São Paulo, Rio e outras capitais – é o fato de que as três ou quatro lojas principais pertencem ao mesmo dono.
A história, prosseguiu Köhler, se repete no setor financeiro, com o alto grau de concentração no mercado bancário: “O sistema, sem dúvida, é eficiente, ‘prudencial’, mas, sob certo aspecto, é mal regulado. Daí os spreads [diferença entre os juros que o banco paga ao depositante e cobra do tomador de empréstimo] serem tão brutais. O segmento dos cartões de crédito também é muito oligopolizado” – completou.
Pois é, assim caminha o Estado brasileiro, administrando, com prejuízo para a sociedade, uma enorme soma de corporativismos, favoritismos e oligopólios. Dá vontade de parafrasear os publicistas do passado que clamavam contra “muita saúva” e “pouca saúde”: corporativismo e oligopólio, as duas pragas do Brasil são!