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quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Uma proposta modesta: a reforma do Brasil - Paulo Roberto de Almeida (2005)

Um leitor, que visitou um antigo site meu, encontrou esta pequena proposta de reformas, feitas mais de onze anos atrás.

terça-feira, 20 de dezembro de 2005

43) Uma proposta modesta: a reforma do Brasil


Monteiro Lobato, num de seus livros da série do Sítio do Pica-Pau Amarelo, atribuiu a Emília a tarefa de fazer uma "reforma da Natureza": coisa de corrigir alguns mal-feitos do Criador, e consertar o que parecia errado aos olhos de retrós de uma boneca de pano. Mas ele também tentou "consertar o Brasil" várias vezes, chegando até a enfrentar prisão devido algumas de suas sugestões [nota em 12/01/2017: petróleo, por exemplo].
Não creio que eu corra o mesmo risco agora; provavelmente vou receber apenas sorrisos condescendentes.
Em todo caso, dou primeiro o meu diagnóstico (muito rápido), depois um pequeno receituário, também rápido e rasteiro, já que nenhuma dessas tarefas será empreendida anytime soon... [nota em 12/01/2017: como eu tinha razão, podemos colocar muitos anos mais à frente.]

Uma proposta modesta: a reforma do Brasil
Paulo Roberto de Almeida

Prolegômenos:
Não creio que o Brasil necessite, tão simplesmente, de uma mera reforma econômica. Ele precisa, sobretudo, de várias reformas estruturais, a começar pelo terreno político, onde se encontra a chave para a resolução dos muitos problemas que explicam o nosso baixo desempenho econômico.

Primeira parte - O Diagnóstico

1. Constituição intrusiva demais, codificando aspectos de detalhe que deveriam estar sendo regulados por legislação ordinária.

2. Estado intrusivo, despoupador, perdulário, disforme e pouco funcional para as tarefas do crescimento econômico.

3. Legislação microeconômica (para o ambiente de negócios e para a regulação das relações trabalhistas) excessivamente intrusiva na vida dos cidadãos e das empresas, deixando pouco espaço para as negociações diretas no mercado de bens, serviços e de trabalho.

4. Preservação de monopólios, cartéis e outras reservas de mercado, com pouca competição e inúmeras barreiras à entrada de novos ofertantes.

5. Reduzida abertura externa, seja no comércio, seja nos investimentos, seja ainda nos fluxos de capitais, gerando ineficiências, preços altos, ausência de competição e de inovação.

6. Sistemas legal e jurídico atrasado e disfuncional, permitindo manobras processualísticas que atrasam a solução de controvérsias e criam custos excessivos para as transações entre indivíduos.

Segunda parte - A Reforma

1. Reforma política, a começar pela Constituição: seria útil uma “limpeza” nas excrescências indevidas da CF, deixando-a apenas com os princípios gerais, remetendo todo o resto para legislação complementar e regulatória. Operar diminuição drástica de todo o corpo legislativo em todos os níveis (federal, estadual e municipal), retirando um custo enorme que é pago pelos cidadãos; Proporcionalidade mista, com voto distrital em nível local e alguma representação por lista no plano nacional, preservando o caráter nacional dos partidos.

2. Reforma administrativa com diminuição radical do número de ministérios, e atribuições de diversas funções a agências reguladoras. Privatização dos grandes monstrengos públicos que ainda existem e são fontes de ineficiências e corrupção, no setor financeiro, energético, e outros; fim da estabilidade no serviço público.

3. Reforma econômica ampla, com diminuição da carga tributária e redução das despesas do Estado; aperto fiscal nos “criadores de despesas” irresponsáveis que são os legislativos e o judiciário; reforma microeconômica para criar um ambiente favorável ao investimento produtivo, ao lucro e para diminuir a sonegação e a evasão fiscal.

4. Reforma trabalhista radical, no sentido da flexibilização da legislação laboral, dando maior espaço às negociações diretas entre as partes; extinção da Justiça do Trabalho, que é uma fonte de criação e sustentação de conflitos; Retirada do imposto sindical, que alimenta sindicalistas profissionais, em geral corruptos.

5. Reforma educacional completa, com retirada do terceiro ciclo da responsabilidade do Estado e concessão de completa autonomia às universidades “públicas” (com transferência de recursos para pesquisa e projetos específicos, e os salários do pessoal remanescente, mas de outro modo fim do regime de dedicação exclusiva, que nada mais é do que um mito); concentração de recursos públicos nos dois primeiros níveis e no ensino técnico-profissional.

6. Abertura econômica e liberalização comercial, acolhimento do investimento estrangeiro e adesão a regimes proprietários mais avançados.

Brasília, 15 de dezembro de 2005.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Dez grandes "derrotados" de nossa historia (agora o artigo completo) - Paulo Roberto de Almeida

Primeiro minha explicação ex-post, mas que deve ser lida previamente, depois o artigo (neste link: http://spotniks.com/dez-grandes-derrotados-da-nossa-historia-ou-como-o-brasil-poderia-ter-dado-certo-mas-nao-deu/).

Confesso que tenho duas grandes confissões a fazer: uma boa, outra menos boa. A boa é que eu gostei muito de escrever esse texto, que pode ser a base de alguma obra maior, sobre as grandes reformas nunca feitas em nosso país em 200 anos de história; ele estava há muito tempo em minha cabeça, mas nunca tinha feito sequer uma anotação para ele, pois a gente espera alguma grande oportunidade para sentar, pensar, refletir, pesquisar algumas coisas e depois elaborar algo mais estruturado. Pois bem, nunca tinha feito, pois essas oportunidades sempre são perdidas, como diria Roberto Campos. 
Foi preciso receber um convite do Rodrigo da Silva, do Spotniks, para escrever um texto sobre um assunto completamente diferente para eu me decidir finalmente a escrever; e ele veio de um só jato, como se diz; escrevi durante uma noite inteira, entre meia noite e cinco da manhã, que são as minhas melhores horas de escrita (para desconforto de alguns próximos). Eu gostei muito, portanto, de ter recebido o convite, o que me permitiu "desovar" algo que estava dormindo em minha cabeça desde algum tempo. 
Como sempre digo, quando me decido a escrever algo: o artigo (ou o livro) já está pronto, só me falta escrevê-lo, o que é a parte mais fácil (com alguma revisão posterior para corrigir os inúmeros erros de digitação e concordância que inevitavelmente surgem de uma escrita muito rápida, mas que não acompanha um pensamento duas vezes mais rápido). 
A confissão menos boa, mas que faço mesmo assim é que não gosto do título. Não gosto de ter chamado meus dez personagens de "derrotados", ainda que estas aspas possuem um enorme significado implícito, obviamente. 
Eu não considero esses brilhantes pensadores "derrotados", inclusive porque eles integram a memória coletiva de nosso povo como alguns dos melhores brasileiros que se esforçaram para fazer do país uma sociedade melhor, mais justa, mais moderna, mais conforme os valores universais do direito e da democracia. 
Mas optei por deixar "derrotados" (que devem ser lidos sempre com aspas) com o objetivo precípuo de chocar, de impactar, de incitar à curiosidade os estudantes mais jovens pela história, pela obra e pelo pensamento desses brasileiros geniais, e possivelmente estimular mestrandos e doutorandos a pesquisar sobre seus projetos de reforma, e de trazer novamente à tona uma agenda inconclusa de modernização do país, de sua política e de sua economia, enfim, projetos para "civilizar" o Brasil, como diziam os primeiros pensadores da nacionalidade. 
Estas são as minhas reflexões adicionais sobre esse texto que me deu imenso prazer ao "retirá-lo" de minha cabeça e colocar sob a forma de um arquivo eletrônico, agora à disposição dos interessados graças à generosidade do Rodrigo da Silva e do Spotniks. 
Vale!
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 14/02/2016



Dez grandes derrotados da nossa história (ou, como o Brasil poderia ter dado certo, mas não deu)

 O Brasil, já disse alguém, não é para principiantes. Vamos admitir que a frase expresse a realidade, ainda que ela seja uma mera banalidade conceitual. A verdade é que nenhuma sociedade urbanizada, industrializada, conectada, ou seja, complexa, como são quase todas as nações contemporâneas, é de fácil manejo para amadores da vida política ou para iniciantes no campo da gestão econômica. Não deveria haver nada de surpreendente, portanto, em que o Brasil, de fato, não seja para principiantes, como dito nesse slogan tão folcloricamente simpático quanto sociologicamente inócuo.

Mas atenção: a frase é, sim, relevante pelo lado do seu exato contrário. O mais surpreendente, no caso do Brasil, está em que o país não é de rápida explicação ou de fácil interpretação nem mesmo para pensadores distinguidos e intelectuais de primeira linha (eles o são, de verdade?). Ele tampouco parece ser de simples manejo mesmo para estadistas da velha guarda (nós os temos?), para políticos experientes (parece que ainda existem), sem esquecer os empresários inovadores (quantos são, alguém sabe dizer?) ou para economistas sensatos (seria uma espécie rara?). O Brasil já destruiu mais de uma reputação política, como continua desafiando as melhores vocações de “explicadores sociais” (inclusive brasilianistas), com o seu jeito sui-generis de ser. Existe, por exemplo, alguma explicação sensata para o fato de que “o país do futuro”, o “gigante inzoneiro”, a terra dos recursos infinitos, seja ainda uma sociedade desigual, ricamente dotada pela natureza, mas com muitos pobres, milhões deles, uma nação até materialmente avançada, mas (aparentemente, pelo menos) mentalmente atrasada? O que é que nos retém na rota do desenvolvimento social integrado? Quais são os formidáveis obstáculos, quantas e quais são as barreiras intransponíveis?
Não foram poucos os espíritos corajosos que tentaram vencer essas dificuldades e nos colocar num itinerário de progresso sustentado. A maior parte acabou derrotada por um conjunto variado de circunstâncias cuja identificação exata requereria um batalhão de sociólogos, dos melhores. Vamos repassar, ainda que brevemente, o itinerário de dez grandes personalidades que, em momentos decisivos da história do Brasil, viram seus projetos e propostas de reformas ou de melhorias para o país totalmente frustrados em função das condições ambientes, por força da oposição de outros personagens ou de grupos poderosos, ou pelo fato de que eles mesmos não souberam, ou não puderam, obter apoios suficientes para que suas propostas de políticas públicas fossem, em primeiro lugar, aceitas por outros dirigentes, ou pela opinião pública, depois seguidas pela coalizão dominante a cada momento e, finalmente, implementadas na forma por eles concebida inicialmente. A maior parte desses homens não foi sequer consolada, em vida, por aquele famoso dístico de bandeira estadual: “ainda que tardia”.

1) Hipólito José da Costa

HipolitoJoseCostaRetrato
Nascido na Colônia do Sacramento, criado em Rio Grande, espírito iluminista, liberal econômico, assessor, durante algum tempo, do grande estadista português da passagem do século 19, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o conde de Linhares, para quem investigou as inovações econômicas e melhoramentos agrícolas da jovem República americana nos anos finais do século 18, e por quem foi enviado à Inglaterra para adquirir equipamentos gráficos, para modernizar a imprensa do Reino, e onde se tornou maçom, foi preso e torturado pela Inquisição ao retornar a Portugal, tendo conseguido fugir após alguns anos de cárcere. Estabelecido na Inglaterra desde então, Hipólito deu início ao primeiro jornal independente brasileiro, o Correio Braziliense, que editou sozinho em Londres desde a transmigração da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, até que fosse confirmada a independência e a separação do, até então, Reino Unido, no final de 1822. Nomeado cônsul do Brasil em Londres, por José Bonifácio, Hipólito ainda teve tempo de enviar-lhe, em fevereiro de 1823, um ofício propondo reformas nos correios, nos transportes e na colonização, mas não para tomar posse do cargo para o qual estava preparado como nenhum outro brasileiro.
Seu Correio Braziliense forneceu, durante exatos quatorze anos e sete meses ininterruptos, material de informação, de reflexão e de críticas a todos os dirigentes portugueses (que o liam à sorrelfa) e aos brasileiros ilustrados, constituindo o maior repositório de dados e análises fiáveis sobre o estado do reino de Portugal, sobre a situação da Europa napoleônica e pós-napoleônica, sobre as Américas em geral e sobre o Brasil em particular. Seu “armazém literário” constitui o mais completo manual de políticas públicas e de economia política – no sentido de estadismo para a prosperidade dos povos, como a definia Adam Smith – cujo grande objetivo era o de ajudar o Brasil e os “brazilienses” a enriquecer rapidamente, como ocorria então na Inglaterra. Muitos ministros do reino, em Portugal e no Brasil, concordavam com ele, mas às escondidas, pois não o podiam revelar, ainda que um ou outro mais ousado tentasse convencer o príncipe regente, depois D. João VI, do acertado daqueles críticas e propostas de políticas, inclusive no que se referia aos tratados desiguais com a própria Inglaterra. Infelizmente seus conselhos foram raramente seguidos e ele veio a morrer antes de poder servir de forma mais efetiva ao país que era o seu, mas que tinha abandonado ainda muito jovem para nunca mais voltar.

2) José Bonifácio de Andrada e Silva

josé bonifacio
As mesmas ideias defendidas por Hipólito, de monarquia constitucional e de fim da escravidão, foram esposadas por José Bonifácio, grande intelectual nascido em Santos, SP, homem de ciência e de grandes luzes, membro de diversas academias europeias, combatente contra as tropas napoleônicas em Portugal, antes de retornar ao Brasil para servir ao Reino Unido e se converter no verdadeiro artífice da independência do Brasil. Proclamada esta, ele pretendia, já na Assembleia Constituinte, libertar o Brasil da mácula do tráfico escravo e, assim que possível, da nódoa da escravidão, conseguindo braços para a lavoura e para a formação de uma sólida economia agrícola entre camponeses imigrados europeus. Como Hipólito, e como tantos outros abolicionistas, José Bonifácio foi derrotado pela coalizão de mercadores de escravos e de grandes proprietários de terras, abandonado, aliás, pelo próprio Imperador, que aproveitou-se do recrudescer das turbulências políticas na Assembleia Constituinte e das divisões políticas entre os maçons para decretar o encerramento do breve exercício de ordenamento constitucional, “cassar” os seus membros e exilar ou prender toda a família dos Andradas. Bonifácio foi mais uma vez para a Europa, e só retornou ao Brasil para ser preceptor, por breve tempo, do menino Pedro de Alcântara, mas já sem condições de influenciar a política no período regencial. Foi um dos grandes derrotados de nossa lista de estadistas-idealistas.

3) Irineu Evangelista de Souza

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O gaúcho de nascimento e self-made man só adquiriu o título nobiliárquico de Barão de Mauá (depois Visconde, em 1875) na data da inauguração, em 1854, do primeiro trecho da ferrovia Rio-Petrópolis, entre o porto de Mauá, na baia da Guanabara, e o pé da serra de Petrópolis. Antes disso ele já tinha amealhado fortuna com seus empreendimentos industriais (sobretudo estaleiros) e comerciais (em especial seus bancos, no Brasil e em diversas capitais estrangeiras). Homem possuidor do mesmo espírito empreendedor e liberal de seus tutores ingleses (primeiro numa casa de importação no Rio, depois mediante viagem à Inglaterra, em 1840), ele enfrentou inúmeras dificuldades num país escravocrata e caracterizado pela mão pesada do Estado em todo e qualquer setor da economia (o governo tinha de autorizar qualquer novo empreendimento que ele desejasse fazer), e teve vários atritos com ministros de sucessivos gabinetes do Segundo Império; essas desavenças o levaram à ruina comercial e financeira, e obstaram a que suas ideias progressistas pudessem ser reconhecidas como válidas e implementadas num país em que o status de senhor de escravos ainda era sinal de distinção.
O historiador Nathaniel Leff, heterodoxo entre os intérpretes de nossa história econômica, afirma que o atraso do Brasil não se situa tanto na colônia, como afirmam vários historiadores consagrados, mesmo os da vertente marxista, mas precisamente no período do Segundo Império, quando o Brasil perde a oportunidade de implementar as reformas preconizadas por Mauá, seja no terreno da força-de-trabalho, seja na política monetária, ou no ambiente de negócios e no da infraestrutura. Não há nenhuma dúvida que, ao final do Império, o Brasil teria sido um país muito diferente se as ideias (não só econômicas) de Mauá tivessem sido implementadas como políticas públicas. Ele foi, provavelmente, o primeiro empresário derrotado de nossa história.

4) Joaquim Nabuco

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O “aristocrata” da zona da mata de Pernambuco é mais um derrotado de nossa lista, não exatamente enquanto publicista – terreno no qual ele foi brilhante – ou como diplomata do Império e da República, mas enquanto abolicionista, a despeito de suas raízes nos engenhos de açúcar do Nordeste. Intelectual blasé, ele bateu-se com denodo pela causa da emancipação, e seu livro sobre o abolicionismo (publicado em Londres em 1883) foi decisivo na intensificação da campanha, nessa mesma década. Mas ele já tinha sido derrotado antes, pois que não conseguiu reeleger-se para sua primeira cadeira de deputado, conquistada em 1878, assim como viu frustrada sua campanha pela laicização do Estado Imperial, que tinha a religião católica como oficial. Mesmo quando da abolição, por decreto imperial, suas propostas para que a emancipação dos escravos fosse acompanhada de um grande programa de reforma agrária e da universalização da educação pública, compulsória e gratuita, com vistas à elevação do padrão educacional de milhões de brasileiros pobres, e não apenas dos negros libertos, jamais foram seriamente consideradas pela República oligárquica.
Ele afastou-se da política, como monarquista que era, e dedicou-se aos livros e à história. Só retornou à vida pública para novamente dedicar-se à diplomacia, não para defender o regime, mas para servir ao país. O retorno lhe deu ainda mais desgosto, no caso da arbitragem italiana sobre a questão da Guiana, fronteira com a colônia britânica: a Grã-Bretanha abocanhou quase 50% a mais do território disputado do que foi concedido ao Brasil, nascendo aí seu acentuado monroismo, ou americanismo, ao considerar que das potências europeias o Brasil não deveria esperar nada. Do nosso ponto de vista, entretanto, o Nabuco “derrotado” que interessa registrar é o das nunca implementadas propostas de reforma agrária e de educação pública em favor de negros libertos e dos brancos pobres, na verdade para todos.
O Brasil republicano, desde o início, e provavelmente até hoje, continua a pagar muito caro pela ausência de medidas desse tipo, para elevar a capacidade produtiva do seu povo. A reforma agrária, na verdade, na prática se tornou inócua pela modernização capitalista da economia rural, mas no campo da educação continuamos a exibir atrasos, se não quantitativamente (a taxa de escolarização, no início do primário, alcançou, por fim, a dos países avançados, mas 150 anos depois), certamente em qualidade do ensino.

5) Rui Barbosa

rui barbosa
Conselheiro do Império, primeiro ministro da Fazenda do novo regime, no governo provisório de Deodoro, quando empreendeu algumas boas reformas e outras menos boas, o homem mais inteligente do Brasil (segundo os baianos), foi, antes de tudo, um pensador, um doutrinário e um publicista (e um dos mais prolíficos do Brasil, que nunca publicou um livro sequer, mas que tem obras completas em dezenas de volumes). Ele é usualmente definido como um polímata, pois suas atividades e escritos abrangiam os mais diversos domínios do conhecimento humano, com especial predileção pelo direito. Logrou sucesso em muitos dos empreendimentos que lhe foram oferecidos ou para os quais ele se voluntariou, em virtude de seus vastos conhecimentos jurídicos; voltou da Segunda Conferência Internacional da Paz da Haia, em 1907, como um herói, o “Águia de Haia”, como exageradamente seus conterrâneos chamaram-no.
Mas também acumulou vários insucessos, entre eles a mal concebida reforma bancária do início da República, que acabou resultando numa violenta especulação, o chamado Encilhamento. Opôs-se a Rio Branco na compra do Acre à Bolívia, e saiu ruidosamente da delegação negociadora. Sua maior derrota, porém, não para ele, mas para o Brasil, foi ter perdido o pleito presidencial de 1910 para o Marechal Hermes da Fonseca, militarista como seria de se esperar, mas sobretudo prepotente, mandando submeter a golpes de canhão os governadores recalcitrantes dos estados que não o obedeciam. Por isso mesmo, o chanceler Rio Branco, angustiado, pensou em se demitir do seu cargo, sucessivamente renovado em quatro governos: coitado, morreu logo após.
A derrota para Hermes da Fonseca foi uma derrota para o Brasil, no sentido em que representou a consolidação do arbítrio como norma de governo, um golpe de Estado permanente contra vários princípios constitucionais, a ofensa aos adversários políticos (considerados inimigos) como coisa corriqueira, o despotismo do Executivo sobre os demais poderes. Rui se exasperava em face do desprezo que o governo exibia contra os mais comezinhos valores da democracia, entre eles as liberdades individuais e o pleno vigor do Estado de direito. Seus artigos, conferências e palestras dos últimos anos revelam justamente sua revolta contra o desrespeito demonstrado pela maior parte dos políticos – e dos militares – às normas mais elementares do sistema democrático. Como seu amigo Nabuco, ele faria um excelente ministro – talvez até primeiro – de um sistema parlamentar ao estilo inglês (se possível de uma monarquia constitucional, pois a despeito do seu republicanismo, Rui, a exemplo de Oliveira Lima, se decepcionou rapidamente com aquela república), ou de um governo congressual ao estilo americano, como preconizado pelo professor de Princeton Woodrow Wilson, mais tarde presidente. Como os anteriores, Rui também foi um derrotado, não apenas nos seus princípios e convicções, mas também em suas tentativas práticas de democratizar plenamente e de enquadrar o Brasil num Estado de direito efetivo.

6) Monteiro Lobato

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O filho de fazendeiros do Vale do Paraíba se espantou desde cedo com a inacreditável miséria dos caboclos do interior, que ele imortalizou na figura emblemática do Jeca Tatu. Ele constatou as condições sanitárias abomináveis dos matutos do interior e, sobretudo, a ignorância abismal desses homens que sequer tinham consciência de sua condição ou da existência de um país chamado Brasil. Seus muitos artigos de imprensa, sua atividade de editor, seus diálogos imaginários sobre nossos problemas com um inglês da Tijuca – Mister Slang e o Brasil –, todos eles batem na mesma tecla: o Brasil é um país profundamente atrasado, tão arcaico a ponto de ser derrotado pelas saúvas e por endemias eternas, e só teria salvação se empreendesse um vigoroso esforço de modernização, de preferência modelado no exemplo americano.
O fordismo lhe parecia a solução ideal para nossa débil industrialização, e o petróleo seria o combustível indispensável à redenção da nação. Lobato está na origem do “petróleo é nosso”, mas ele não era um chauvinista, um patriota rústico que queria afastar o capital estrangeiro do esforço de capacitação industrial e tecnológica. Ele se batia contra os “trustes estrangeiros” não porque fossem estrangeiros, mas porque via neles uma conspiração contra a prospecção de poços no Brasil, ao preferirem as jazidas mais fáceis do Oriente Médio. Achava que o governo não fazia esforços suficientes nessa direção, e denunciou o “entreguismo” da ditadura Vargas: por isso foi processado e preso. Mas a sua concepção de progresso era indiscutivelmente americana: ele foi mais um derrotado pelo nacionalismo rastaquera e pelo estatismo arraigado nos corações e mentes das elites políticas e industriais. Só o fato de proclamar o valor dos livros na construção da nação já lhe valeria a entrada num panteão da pátria. Pena…

7) Oswaldo Aranha

OswaldoAranha
Paradoxalmente, só foi derrotado quando finalmente chegou ao momento de maior glória, e pelo próprio homem que ajudou a colocar no poder. A “estrela da revolução liberal” de 1930, foi de fato o homem que “liquidou” a República Velha, ante as hesitações e dúvidas de Getúlio Vargas quanto às chances de vitória do movimento contra Washington Luís e seu presidente eleito do bolso do colete. Não fossem os esforços decididos de Aranha, no sentido de unir gaúchos e mineiros, e de aliciar forças decisivas no Exército e nas tropas estaduais militarizadas, a revolução de 1930 não seria o marco da modernização do Brasil e da construção de um Estado moderno, não mais a “República carcomida” das oligarquias do café-com-leite. Sucessivamente ministro da Justiça, da Fazenda (quando ele encaminha os problemas da dívida externa e dos estoques de café) e embaixador em Washington, Aranha estava no auge de sua glória quando decide abandonar, por desgosto, seu posto diplomático, na sequência do Estado Novo, em novembro de 1937, que repudiou imediatamente.
Foi apenas sua amizade com Vargas, e a necessidade que este tinha de manter as melhores relações possíveis com os americanos – a despeito de suas notórias simpatias pelos regimes fascistas da Europa – que explicam seu retorno à política, como chanceler do Estado Novo, de março de 1938 a agosto de 1944. Sua ação à frente do Itamaraty foi decisiva para conter a inclinação de muitos dos expoentes do regime por uma aliança com as potências nazifascistas, aparentemente invencíveis no início dos anos 1940, e para ancorar vigorosamente o Brasil no grupo das Nações Aliadas.
Aranha sempre foi um candidato natural das forças democráticas à presidência da República: hipoteticamente em 1934, numa eventual escolha alternativa pela Constituinte (e provavelmente por isso, Vargas decidiu manda-lo para Washington); talvez em 1938, se as eleições previstas não tivessem sido cortadas pelo golpe de Estado; possivelmente ao final do Estado Novo, quando Vargas ainda manobrava para continuar, depois indicando um sucessor de sua escolha; em 1950, quando foi sondado, mas preferiu deixar o terreno livre para o ex-ditador; ou ainda, e finalmente, à morte deste, nas eleições de 1955, disputadas por muitos candidatos bem menos qualificados do que ele. Foi uma pena que sua falta de ambição, e sua fidelidade irrestrita ao “irmão maior” que era Vargas, obstaram que ele galgasse o posto mais alto da República.
Para se ter uma ideia de como o Brasil poderia ter sido diferente, se ele tivesse ascendido ao comando da nação, basta ler a carta que Aranha enviou a Vargas para que este discutisse os assuntos da guerra e da paz no encontro que o ditador teria em Natal com Franklin Roosevelt, em janeiro de 1943. O maquiavélico ditador não só o afastou traiçoeiramente dessas conversações, mas também impediu um encontro especial que se realizaria em Washington com o presidente americano no mesmo mês em que Aranha foi humilhado pela polícia política do regime, no triste episódio da Sociedade das Américas, em agosto de 1944, o que acabou determinando sua saída da chancelaria.
Naquela carta, Aranha delineou não apenas um esquema de aliança com os EUA, para ganhar a guerra, mas também uma estreita cooperação para participar da nova ordem mundial a partir da restauração da paz; ele incluiu, sobretudo, um programa inteiro de modernização industrial e de capacitação do Brasil, com ajuda americana, de molde a realmente impulsionar o grande deslanche do país à condição de potência regional (num esquema não muito diferente da aliança não escrita defendida por Rio Branco, e mais enfaticamente por Nabuco, no começo do século). O Brasil teria sido um país muito diferente do que foi o caso, e certamente melhor, se Oswaldo Aranha tivesse ascendido à presidência e imprimido um estilo de governança e de políticas econômicas bem mais abertas e propensas à integração na política e na economia mundiais.

8) Eugênio Gudin

gudin
Um personagem nascido no século 19, que quase atravessou todo o século 20, pregando sempre as mesmas ideias liberais em economia e de simples sensatez na gestão pública. Formado em engenharia, mas economista por gosto, Gudin foi um aderente da escola neoclássica, mas de fato um eclético, e o responsável pela institucionalização dos cursos de economia nas faculdades brasileiras de humanidades e de ciências sociais em 1944. No mesmo ano, e no seguinte, foi protagonista do mais importante debate jamais ocorrido na história intelectual do Brasil; este representou, na verdade, um anticlímax, no sentido em que sua importância tanto teórica quanto prática foi deixada de lado pelo “curso natural das coisas”, ou seja, pela continuidade, em nossa governança, das mesmas inclinações e tendências estatizantes e intervencionistas que caracterizam o universo conceitual das lideranças políticas e empresariais do país.
O debate ocorreu quando se discutia abandonar os mecanismos intervencionistas em vigor durante o período bélico para adotar novos instrumentos capazes de guiar a ação do Estado no apoio ao processo de industrialização (sinônimo de desenvolvimento na concepção da época). Gudin, que naturalmente defendia princípios liberais e mecanismos de mercado para guiar a ação do Estado no fomento desse processo, teve como contendor no debate o industrial e intelectual – professor na Escola Paulista de Sociologia e Política – Roberto Simonsen. Em 1930, fez traduzir e publicar pelo CIESP, o Centro da Indústria do Estado de São Paulo, que ele tinha criado em oposição à FIESP, o livro do economista romeno Mihail Manoilescu, Teoria do Intercâmbio Desigual e do Protecionismo, uma atualização “científica” das ideias de Friedrich List. Simonsen, obviamente, se bateu pelo planejamento estatal, pelo protecionismo tarifário e pelos subsídios oficiais à “indústria infante”, enfim, todo o contrário do que pensava e preconizava Gudin, que era pela adesão do Brasil aos princípios das vantagens comparativas, que recomendavam incrementar o esforço de modernização agrícola, melhorar a infraestrutura e o capital humano, e manter uma governança econômica em bases sólidas e fiscalmente equilibradas.
O resultado do debate foi mais uma vez paradoxal: Gudin saiu-se como o seu vencedor teórico, ao demonstrar a inconsistência lógica e a escassa solidez prática dos argumentos de Simonsen. Mas este foi, ao fim e ao cabo, o vencedor efetivo do debate, uma vez que, no decurso das décadas seguintes, todos os governos, apoiados pelos industriais e pelos empresários em geral, seguiram as recomendações dos estatizantes, dos nacionalistas primários, dos protecionistas declarados, que sempre foram legião em todas as esferas da administração pública e na vida civil do país. Mais uma vez, o derrotado foi o Brasil, único país no mundo a ter conhecido oito (OITO) moedas sucessivas no espaço de pouco mais de meio século: mil-réis, cruzeiro, cruzeiro novo, cruzado, cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro real, real. Não é preciso referir-se aos números astronômicos dos nossos processos inflacionários para constatar os desastres criados pelos êmulos de Roberto Simonsen, que eliminaram na prática as receitas mais equilibradas e ponderadas do longevo Gudin. Ele continuou, até o final de sua vida secular, a preconizar as mesmas receitas, sempre para ser derrotado pela realidade.

9) Roberto Campos

roberto campos
O ex-seminarista que se fez diplomata às vésperas da Segunda Guerra, teve a chance de servir em Washington quando se realizou a célebre conferência de Bretton Woods, em 1944, na qual ele era um simples assessor, e não um delegado. O mesmo ocorreu na conferência de Havana, sobre comércio e emprego, em 1947-48, quando ele continuou a aperfeiçoar seu conhecimento prático de economia, ao mesmo tempo em que fazia um mestrado nessa área na George Washington University, quando defendeu uma tese sobre os ciclos econômicos, de tinturas tanto neoclássicas quanto precocemente keynesianas. Ele ainda era um partidário do Estado promotor do desenvolvimento econômico, quando exerceu o cargo de diretor no BNDE, nos anos 1950, quando colaborou na arrancada dos “cinquenta anos em cinco” do governo JK, que também elevou a inflação a patamares nunca antes vistos no Brasil, inclusive com a construção de Brasília (que foi feita sem orçamento, à margem do orçamento e contra o orçamento, à razão de 1,5% de déficit fiscal durante quatro anos).
Não surpreende, assim, que o Brasil fosse levado a uma situação de grave desequilíbrio orçamentário e de enormes problemas de balanço de pagamentos no início dos anos 1960, quando ele foi, durante três anos, embaixador em Washington. Ele se demitiu do posto, exasperado com a inépcia de Jango, três meses antes do golpe de 31 de março de 1964, cujos líderes o guindaram à função de ministro do planejamento, em dobradinha com o ministro da Fazenda Octávio Gouveia de Bulhões. Ambos, entre 1964 e 1967, conduziram o mais importante processo de reformas econômicas e administrativas jamais empreendido no Brasil, um conjunto ambicioso de mudanças constitucionais e de medidas infraconstitucionais que abriram o caminho para o mais vigoroso ciclo de crescimento de nossa história econômica.
Paradoxalmente, porém, os dois, ainda que liberais em espírito e em intenção, foram também os responsáveis pelo início da mais imponente escalada econômica estatal jamais vista nessa mesma história. Não só eles, pois que seus sucessores, em especial os acadêmicos Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen, impulsionaram, com o apoio entusiasta dos militares reformistas, esse engrandecimento inédito do ogro estatal, elevando enormemente a carga fiscal – a pretexto de aumentar o investimento público –, criando dezenas de estatais em todos os setores considerados “estratégicos”, não apenas para a economia, mas também para a “segurança nacional”. De certa forma, o Brasil do regime militar conduziu uma espécie de “stalinismo para os ricos”, uma industrialização “num só país” que respeitava inteiramente o vezo nacionalista rústico dos militares e sua preferência pela mais acabada autarquia produtiva, essa introversão míope que tinha sido a marca dos regimes fascistas da Europa dos anos 1930 (por acaso, um período no qual muitos dos líderes da “revolução de 1964” estavam estudando nas academias militares e aprendendo rudimentos econômicos de “independência e de soberania nacional”).
Roberto Campos detectou desde muito cedo essa deriva do Estado reformista-modernizador dos militares para um “complexo industrial-militar” orientado mais pelos princípios da “segurança nacional” do que pelos saudáveis valores da economia de mercado; passou o resto de sua vida tentando reverter o intervencionismo exacerbado do regime militar e o nacionalismo tosco dos políticos da redemocratização. Sem sucesso, porém: como Raymond Aron, na França, que durante anos lutou contra os instintos socialistas da intelectualidade parisiense, Campos lutou contra a indigência mental de nossos políticos e a ignorância econômica da maior parte da intelligentsia nacional (que Millor Fernandes chamava de “burritsia” acadêmica). Como Aron, igualmente, só foi reconhecido como visionário ao final da vida, e ainda assim, nem um, nem outro, conseguiu recolocar os respectivos países no caminho das reformas liberais e pró-mercado. A despeito de ter acertado em praticamente 90% do que escreveu durante toda a sua vida, Campos foi ironicamente derrotado por uma de suas mais conhecidas ironias: “o Brasil é um país que não perde oportunidade de perder oportunidades”.

10) Gustavo Franco

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Um dos mais jovens expoentes da equipe que idealizou, montou e administrou o lançamento do Plano Real, o mais bem sucedido esforço de estabilização macroeconômica conhecido em nossa história econômica – hoje, infelizmente, ameaçado pela Grande Destruição lulopetista –, que exibe a distinção adicional de ter concebido o regime de transição da antiga e desvalorizada sétima moeda de nossa história monetária para o Real, mediante a indexação monetária via URV, cuja inspiração lhe tinha sido dada ao estudar a experiência alemã de saída da inflação, em 1923. Ele também foi o defensor de uma política de capitais e de câmbio bem mais livre do que o normalmente admitido tradicionalmente, não apenas nas faculdades de economia, mas sobretudo nos escalões governamentais, não obtendo inteiro sucesso nessa área, em razão, como sempre, dos azares da política.
A primeira versão do Plano Real previa um esforço de ajuste fiscal bem mais severo do que o efetivamente realizado, não implementado porque o presidente Itamar Franco queria uma “estabilização sem recessão”. Foi preciso, assim, manter os juros num patamar bem mais elevado do que o adequado, pois que a âncora fiscal, que deveria ter sido implantada, foi substituída por uma âncora cambial, que redundou, contra a vontade de muitos economistas, numa excessiva valorização do Real (daí os desequilíbrios de transações correntes acumulados na segunda metade dos anos 1990). O resultado foi a crise de 1998-99, ainda assim provocada por fatores externos: as crises asiáticas de 1997 e a moratória russa de agosto de 1998, que impactou diretamente o Brasil; a situação foi enfrentada mediante um programa de apoio financeiro das instituições de Bretton Woods e de países credores, com sucesso relativo até a década seguinte, quando a crise argentina, o apagão elétrico e as eleições de 2002 (e os efeitos econômicos do PT) agravaram o quadro de turbulências no Brasil.
Gustavo Franco, que tinha sido secretário de política econômica na gestão Itamar e depois diretor de assuntos internacionais do Banco Central, ao iniciar-se a gestão FHC, foi elevado à condição de presidente do BC em meio às turbulências financeiras da crise asiática; conduziu um meticuloso programa de ajustes cambiais que, teoricamente pelo menos, permitiriam ao Brasil compensar a valorização por etapas, para evitar uma grave crise e mais inflação. A pressão dos mercados, e do próprio jogo político, foi entretanto mais forte, e Gustavo se viu constrangido a sair do BC no auge da desvalorização cambial do início de 1999, e antes do estabelecimento dos regimes de metas de inflação e de flutuação cambial, finalmente adotados por Armínio Fraga, levado à presidência do BC pouco depois. Uma história completa desses episódios, do ponto de vista da política cambial, ainda está para ser escrita e o próprio Gustavo é um bom candidato para empreender a tarefa. Mas esse é apenas um detalhe num itinerário de reformas tentativas que Gustavo Franco tentou impulsionar e que aguardam ainda hoje para serem continuadas e completadas.
A importância de Gustavo Franco, como economista e intelectual, está em sua condição de debatedor, de publicista, ao defender em seus muitos artigos, entrevistas e palestras, e em diversos livros, o Plano Real como apenas o início de um processo de reformas e de mudanças estruturais no Estado e na economia do Brasil que o levariam da condição de adepto eterno de um keynesianismo de botequim e de um cepalianismo tosco ao status de “país normal”, ou seja, simplesmente aderente de regras claras, estáveis e transparentes de gestão econômica, como compete a qualquer país dotado de uma economia de mercado digna desse nome. Infelizmente, a gestão econômica companheira fez o Brasil retroceder pelo menos vinte anos economicamente, e muito mais ainda moralmente falando. Gustavo Franco também foi um derrotado, ainda que temporariamente, uma vez que as reformas que ele preconizava não foram, senão minimamente, implementadas nos anos seguintes, e muitas delas revertidas na gestão irresponsável dos lulopetistas. Seus escritos e declarações indicam o que está aberto nessa agenda de “work in progress” (na verdade, evoluindo para trás, atualmente).

Os “derrotados” do desenvolvimento brasileiro: um balanço frustrante

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Todas as personalidades brevemente referidas aqui foram, em primeiro lugar, pensadores, intelectuais com distintas formações acadêmicas – ou na vida prática, como Irineu Evangelista de Souza – e com diferentes situações sociais, de atuação no setor público e de responsabilidade nos governos aos quais serviram ou com os quais trabalharam – ou não, caso de Hipólito e Monteiro Lobato. Vários conceberam planos mais ou menos arrojados para o futuro do Brasil, alguns com projetos ambiciosos de mudanças estruturais, outros – como Gudin – com um cuidado mais prosaico com uma gestão simplesmente responsável da coisa pública. Todos eles preconizaram reformas corajosas para eliminar obstáculos e enfrentar os problemas e desafios que constatavam existir no itinerário do desenvolvimento brasileiro.
De certa forma, muitos deles foram visionários, mas sensatos, no sentido em que nenhum deles concebeu qualquer projeto utópico de reforma integral, revolucionária, da sociedade brasileira. Nenhum deles foi um “engenheiro social”, no sentido várias vezes criticado por um pensador liberal como Isaiah Berlin: todos eles preconizaram atuar nos quadros dos regimes constitucionais em vigor, respeitando as mais amplas liberdades – sobretudo a de empreender – e os princípios e valores dos regimes democráticos. Não por acaso, as propostas por eles formuladas se aproximavam do modelo constitucional e de governança de corte britânico, de amplo sucesso prático nos Estados Unidos e nos países que institucionalmente e culturalmente pertencem ao mesmo arco civilizatório.
Nenhum deles teve sucesso – no máximo parcial – nas reformas e nas medidas preconizadas para levar o Brasil a um patamar mais alto de desenvolvimento político, econômico e social, num processo de total respeito às regras elementares do jogo democrático, como diria Norberto Bobbio. Aliás, o jurista e filósofo italiano, a despeito de seu imenso sucesso intelectual e do prestigio cívico alcançado, foi outro derrotado em seu próprio país, por acaso caracterizado por uma governança quase tão corrupta quanto a brasileira.
Todos os brasileiros, se tivessem logrado sucesso na implementação das medidas propostas – se tivessem sido por acaso guindados a posições de mais alta responsabilidade governativa, o que ocorreu unicamente com José Bonifácio, mas ele foi rapidamente “podado” pelo seu soberano – teriam provavelmente mudado o Brasil de uma forma mais profunda, mais intensa, e mais positiva do que efetivamente ocorreu nos dois séculos que levam de Hipólito José da Costa a Gustavo Franco. Este último continua um batalhador incansável pelas reformas necessárias, e o único “sobrevivente” (com perdão pela palavra) nesta nossa seleção: a ele cabe manter a tocha das reformas, em primeiro lugar como publicista, eventualmente, e novamente, como reformador.
No momento em que o Brasil enfrenta a mais grave crise de sua história – certamente na esfera econômica, mas também, e sobretudo, no plano moral – é útil refletir sobre todas essas oportunidades perdidas, sobre a ação, em grande medida frustrada, de todos esses “derrotados” na prática. Do meu ponto de vista, eles são vitoriosos morais, gigantes intelectuais da modernização e do progresso brasileiro, que, por um conjunto variado de circunstâncias, não puderam conduzir suas propostas a bom termo, ou que não tiveram a oportunidade, em virtude de um ambiente particularmente negativo para os reformistas de qualquer quilate, de vê-las implementadas pelos tomadores de decisões de cada momento. A “agenda conjunta” de reformas modernizadoras – e corretoras de nossos grandes defeitos sociais –, que todos eles preconizavam, permanece inconclusa: na verdade, ela só existe no papel, num exercício como este de levantamento das nossas lacunas e omissões, uma vez que não pudemos contar, ainda, com estadistas que as implementassem verdadeiramente, com base num consenso necessário e no respeito das liberdades democráticas.
A pergunta final é inevitável: quando vamos contar com personalidades que se apoiem nas propostas desses gigantes intelectuais para arregaçar as mangas e “civilizar o Brasil”, na linguagem dos próceres da independência? Não sabemos ainda. Mas seria útil retomar cada uma das propostas desses pioneiros, para ver o que ainda falta fazer no Brasil. Mãos à obra, pesquisadores e ativistas: a agenda já existe. Cabe agora debater os meios de implementá-la, para passarmos da condição de “derrotados” à de vencedores.
Que tal começar pelo levantamento do que falta fazer?

**Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas. Foi ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington (1999-2003). Trabalhou entre 2003 e 2007 como Assessor Especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

[Texto PRA:  Brasília 7 fevereiro 2016, 14 p.]

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Brasil: seria possivel reformar? Duvido! - Paulo Roberto de Almeida


Minha contribuição para a reforma geral da casa brasileira...

(Provavelmente utópico, nas condições atuais, mas não menos necessário)
Paulo Roberto de Almeida 

1) Redução à metade dos parlamentares da Câmara federal e dos seus equivalentes nas assembléias estaduais e nas câmaras de vereadores, com redução correspondente de todas as verbas disponíveis para custeio de toda essa malta. Isto como primeiro passo, pois a intenção também seria cortar as verbas de gabinetes na origem, o número de assessores livremente contratados e outras despesas prebendalísticas que são propriamente escandalosas. 

2) Redução de um terço no Senado, com apenas dois representantes por estado, eleitos alternadamente para turnos de seis anos, tão somente.

3) Aumento do mandato presidencial para cinco anos, proibida a reeleição subseqüente. Governadores teriam mandato de quatro anos, sem reeleição, como prefeitos aliás. Redução drástica do número de municípios, fundindo dois ou mais daqueles que não souberem se sustentar por meios próprios.

4) Redução drástica do número de ministérios, com eliminação dos ministérios criados para fins exclusivamente políticos, bem como das secretarias com status próprio, acoplando-as, se for o caso, a algum ministério penduricalho (mas o melhor mesmo seria cortar de vez).

5) Privatização de todos os monstrengos públicos que ainda sugam o nosso dinheiro e se prestam à extorsão financeira por parte dos políticos. Redução drástica, a algumas poucas centenas de casos, dos cargos em comissão e dos assessores de confiança.

6) Eliminação de quase todos os impostos federais, e sua substituição por um imposto único, de natureza financeira. Seriam feitas simulações quanto ao mínimo indispensavel de alíquota para garantir, no começo, uma "mesada" ao Estado central, sujeita a redução gradual e paulatina, até que a carga fiscal seja novamente reduzida a 28 por cento do PIB. Seriam preservados apenas dois impostos sobre os vícios (tabaco e álcool) e um sobre os combustíveis, para evitar abusos e induzir ao transporte coletivo.

7) Mensalão fixo para as universidades federais, que teriam total autonomia para gerir suas contas e pagar o quanto quisessem a professores e funcionários (exclusivamente por mérito) e remuneração diferenciada por desempenho. As universidades entrariam rapidamente em decadência e crise terminal, o que poderia ser útil, pois obrigaria os professores a, pela primeira vez, corrigir um sistema viciado, inclusive cobrando mensalidade de quem pode pagar. Elas emergeriam muito mais saudáveis dessa crise, sem mais depender do mensalão federal...

8) Fim das estabilidade no serviço público, com algumas poucas exceções ligadas a carreiras de Estado.

9) O Banco Central deixa de fixar os juros: eles passam a ser estabelecidos pelo mercado.

10) O governo renuncia a fixar qualquer padrão para a TV digital e deixa que as empresas, em livre concorrência, e o público escolham, eles mesmos, o que for melhor para a maioria.

11) Fim dos cartéis telefônicos: o governo simplesmente decreta a abertura em todos os níveis, e as companhias telefônicas serão livres para oferecer o serviço que elas desejarem, pelo preco que quiserem, sem existência de nenhuma barreira à entrada de novos concorrentes.

12) Como norma geral, tudo o que não for expressamente proibido à livre iniciativa, fica expressamente permitido, sem maiores regulamentos intrusivos ao exercício das competências individuais. 
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Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de março de 2006.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O Estado brasileiro: debate e agenda (3) - Paulo Kramer


A nova mania brasileira: a autoajuda financeira

Paulo Kramer
Congresso em Foco, 28/12/2011
Na última mesa, discutiu-se a nova moda de buscar conselhos para aplicações e negócios no modelo dos livros de autoajuda
A terceira e última mesa, presidida pelo professor Paulo Calmon, do Ipol e do Centro de Estudos Avançados de Governo e Administração Pública (Ceag/UnB), contou com estes expositores: Elaine da Silveira Leite,  doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Escreveu o capítulo 14: “Financialization, crisis, and a new mania in Brazil”); José Roberto Ferreira Savoia, administrador de empresas e docente da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP. Capítulo 9: “Pension reform in Brazil: addressing a social pact”); e Fernando Sotelino, banqueiro de investimentos e professor da School of International and Public Affairs da Universidade de Columbia (capítulo 12: “The financial services industry”). Debatedor: Marcos Köhler, economista e consultor legislativo do  Senado Federal, atualmente dirigindo a Secretaria de Finanças (Safin) daquela Casa.
A palestra de Elaine Silveira Leite – “Financeirização, Estado e crise: uma nova mania no Brasil” –  versou sobre o mundo dos gurus de autoajuda financeira e a recente popularização do mercado de ações entre os brasileiros de classe média. Segundo ela, o caminho para esse processo foi aberto nas duas últimas décadas, com os governos FHC (‘venda’ à sociedade de um novo modelo de administração pública, mais “gerencial’, modelado conforme histórias de sucesso de empresas privadas, em contraposição ao velho modelo “burocrático”), Lula (familiarização da opinião pública com  uma aristocracia sindical hoje no comando de grandes fundos de pensão estatais) e com as campanhas publicitárias e de relações públicas da Bolsa Mercantil & de Futuros/Bolsa de Valores de São Paulo (BMF/Bovespa), comparando, por exemplo, o jogador Pelé a um lote de ações cuja cotação jamais parou de subir desde a Copa do Mundo de 58.
A expositora propôs o que eu chamaria de  uma sociologia do conhecimento da crescente curiosidade e  do novo interesse  de brasileiros – sem  nenhum contato anterior com esse mercado –  pelo universo abstrato e volátil das operações em bolsa. Descobriu uma indústria editorial-promocional que movimenta muito dinheiro tendo por referências conselheiros como Gustavo Cerbasi, autor, entre outros títulos, do bestseller Casais inteligentes enriquecem juntos (em colaboração com sua mulher, Adriana) e eventos como a Expomoney, que, a cada mês, monta sua tenda em uma capital brasileira para levar os leitores e leitoras de Cerbasi e outros a entrar em contato direto com seus ídolos. Deparou, também, com o culto do sucesso financeiro – e das virtudes que conduzem a ele, como disciplina, temperança, autocontrole e poupança – fomentado por denominações evangélicas pentecostais e neopentecostais, como a Assembleia de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus. E constatou que até mesmo o governo federal começa a estimular a inserção de conteúdos de educação financeira em seus programas assistenciais (Bolsa Família) e de microcrédito popular.
Posso estar enganado, mas percebi no tom de fala da jovem socióloga uma atitude de condescendente reprovação ante a propagação do que ela considera uma mania financeira, decerto alienada e alienante. Fazer o  quê? É o enfoque-padrão de uma intelectualidade acadêmica e midiática que, no Brasil,  ignora o quanto a sua ojeriza à ganância capitalista e à ‘vulgaridade’ do motivo do lucro é legatária da tradição católica contrarreformista que aqui se instalou desde os primórdios da colonização portuguesa.
Talvez involuntariamente, sei lá, a apresentação de Elaine da Silveira Leite reafirmou o vigor e a atualidade do fecundo e mais que centenário insight weberiano sobre o impacto extrarreligioso da ética protestante: o capitalismo apresenta, entre os seus elementos constitutivos centrais, uma forte dimensão moral.
(Bem provável que a palestrante não concordaria com a minha dica, mas, mesmo assim, aproveito para recomendar aos leitores  dois pensadores americanos cujas  obras, a um tempo, esclarecem e enaltecem o legado  da imaginação moral do capitalismo liberal, contrastando-o com as catástrofes sociais engendradas no Ocidente, desde os anos 60, alvorada da presente era de ativismo demente e relativismo niilista  pelos apóstolos do Estato-babá e de uma visão de ‘justiça social’ baseada unicamente em  uma infinidade de direitos e nenhum dever: a historiadora das ideias Gertrude Himmelfarb [Victorian minds: a study of intellectuals in  crisis and ideologies in transitionPoverty and compassion: the moral imagination of the late VictoriansThe de-moralization of society: from Victorian virtues to modern valuesOn looking into the abyss: untimely thoughts on culture and society e The moral imagination: from Edmund Burke to Lionel Trilling]; e o sociólogo e criminologista James Q. Wilson – pai da teoria das janelas quebradas, que, nos anos 80 e 90, fundamentou a vitoriosa estratégia  de  segurança pública da tolerância zero, do ex-prefeito republicano de Nova York Rudolph Giuliani. O caminho mais acessível para conhecer o pensamento de Wilson sobre criminalidade, moralidade e política pública consiste em logar www.nationalaffairs.com e baixar, inteiramente grátis, os seus artigos na extinta revista The Public Interest – berço intelectual do neoconservadorismo do seu editor-em-chefe Irving Kristol [marido, recentemente falecido, de Himmelfarb]), e de seus editores-adjuntos [pensadores de primeira como os sociólogos Nathan Glazer e Daniel Bell, entre muitos e muitos outros].   Trata-se de periódico tremendamente influente no debate político e cultural dos Estados Unidos não só durante os 40 anos em  que foi publicado [1965/2005], mas até hoje, por intermédio da segunda geração de neoconservadores discípulos de Kristol e seu grupo, como David Brooks, colunista do New York Times.)
Na sua apresentação – “Reforma previdenciária no Brasil: construindo um pacto social” –, o professor Savoia reiterou um diagnóstico já bem conhecido, mas (ao  menos no meu leigo entender) inovou ao avançar uma perspectiva otimista sobre a factibilidade dessa reforma.
Começando por sublinhar o abismo entre os privilégios previdenciários de uma minoria de servidores públicos e os minguados benefícios da esmagadora maioria de aposentados pelo chamado Regime Geral do INSS, o palestrante recordou que, até a década de 40 do século passado, o Brasil gastava mais com educação do que com previdência; depois da Segunda Guerra Mundial, porém, isso se inverteu, e os gastos com aposentadorias e pensões dispararam. Hoje, o país gasta com cidadãos e cidadãs acima dos 60 anos 12% do seu PIB (tanto quanto a Bélgica, que tem o dobro de idosos).
A grande questão é: como compatibilizar as despesas previdenciárias e o ajuste das contas públicas com a necessidade e o potencial de crescimento da economia brasileira? Melhor que a resposta chegue bem antes de 2030, quando, advertiu Savoia, os estacionamentos terão de criar o dobro das vagas atualmente reservadas aos idosos, e as isenções de pagamento do   IPTU concedidas pelas prefeituras aos contribuintes nessa faixa tenderam a provocar um colapso das finanças municipais.
À primeira vista, o problema parece insolúvel, pois os lobbies dos sindicatos e, sobretudo, das categorias mais influentes do setor público (juízes, procuradores, policiais federais, funcionários de empresas estatais, entre outras corporações profissionais) formam poderoso ‘grupo de veto’ contra qualquer proposta mais abrangente de reforma, obrigando o Estado a gastar muito com idosos e pouco com crianças e jovens.
Neste ponto, o expositor indicou o que lhe parece uma nova janela de oportunidade reformista: o crescente aperto financeiro dos governos estaduais e municipais terminaria por levar esses atores, sempre com grande peso no sistema político brasileiro, a buscar uma colaboração, um novo “pacto” com a União, de maneira a criar regras previdenciárias menos onerosas para os cofres públicos.
Fernando Sotelino alertou para uma  especificidade do sistema financeiro brasileiro. Em comparação com o México, onde praticamente 90% dos bancos são privados, e com China e Índia (predomínio esmagador dos bancos estatais), no Brasil existe um equilíbrio entre uns e outros  e também entre a banca privada nacional e a estrangeira (só para ilustrar: Banco do Brasil, Bradesco e Itaú, Santander e HSBC).
Desde o início do Real (1994) e a adoção do Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, no ano seguinte), o setor passou por três etapas de mudança: de 95 a 98 (“consolidação assistida pelo governo”, com a eliminação de numerosos bancos estaduais  tremendamente deficitários); de 99 a 2007 (“a festa” de fusões e incorporações sob a égide do tripé virtuoso, formado pelas metas de inflação, o câmbio flutuante e a responsabilidade fiscal); de 2008 até agora (crise, forçando uma onda de “redimensionamentos”: Itaú incorpora o Unibanco, Banco do Brasil compra o Banco Votorantim etc).
Sotelino apontou uma incômoda contradição: apesar da sofisticação dos seus profissionais e dos seus instrumentos e instituições no setor financeiro e a despeito da  governança  corporativa dos bancos brasileiros, internacionalmente reconhecida como robusta, e da sua alavancagem – proporção entre capital e empréstimos  bancários – sob controle, o Brasil, “depois de 17 anos de Real e de Proer, ainda não consegue emitir títulos de 10 anos a 9% fixos de rendimento no mercado internacional”. E este, enfatizou Sotelino, é “um termômetro importante” da  capacidade de crescimento sustentado. Enquanto isso, “China, Índia e México lançam títulos de 10 anos a 7%, e o mercado compra.”
Trocando em miúdos: “Ainda não conquistamos credibilidade a longo prazo”. E a classe média brasileira “paga 100% ao ano no cartão de crédito e 35% também ao ano no financiamento do automóvel – e ainda acha bom…”
Sem fazer uma referência direta ao rebote do dirigismo nos últimos anos do governo Lula (“Tiramos o olho da bola, essa a percepção do mercado internacional”), abordada por outros palestrantes, Sotelino sugeriu que a imagem financeira do Brasil lá fora não tem grande probabilidade de se dissolver tão cedo.
O debatedor Köhler abriu sua fala com uma frase do economista austríaco Joseph Schumpeter (“O empresário inovador é o único líder que não gosta de ser seguido”) para deixar claro que o Brasil não deve esperar que alguém lhe dê de presente “a  receita do enriquecimento”. Aludindo aos problemas previdenciários apontados por Savoia, disparou: “Nós, brasileiros, somos exímios fabricantes de pretextos para defender o nosso corporativismo.”
Segundo Marcos Köhler, mesmo com todos os avanços das políticas para a  macroeconomia,   o país ainda padece de um “vácuo  de regulação microeconômica”. Deu como exemplo o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), com sua missão de ‘xerife da concorrência’: “No episódio da fusão da Nestlé-Garoto [gigantes da indústria de chocolate], o órgão se comportou como um leão desdentado, se curvou diante do fato consumado”, ao invés de condicionar seu sinal verde para a  operação a uma profunda análise de suas repercussões concorrenciais no mercado brasileiro. Com efeito, acrescentou que a passividade da regulação estatal é o outro lado do chamado custo Brasil: “Não é só a carga tributária; a oligopolização também encarece boa parte do que os brasileiros compram”. Nessa conexão, lembrou que uma forte razão por que, nos shoppings de Brasília, os preços das roupas masculinas  são absurdamente altos – não apenas em comparação com os outlets de Miami, mas com São Paulo, Rio e outras capitais – é o fato de que as três ou quatro lojas principais pertencem ao mesmo dono.
A história, prosseguiu Köhler, se repete no setor financeiro, com o alto grau de concentração no mercado bancário: “O sistema, sem dúvida, é eficiente, ‘prudencial’, mas, sob certo aspecto, é mal regulado. Daí os spreads [diferença entre os juros que o banco paga ao depositante e cobra do tomador de empréstimo] serem tão brutais. O segmento dos cartões de crédito também é muito oligopolizado” – completou.
Pois é, assim caminha o Estado brasileiro, administrando, com prejuízo para a sociedade, uma enorme soma de corporativismos, favoritismos e oligopólios. Dá vontade de parafrasear os publicistas do passado que clamavam contra “muita saúva” e “pouca saúde”: corporativismo e oligopólio, as duas pragas do Brasil são!
(Final)