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domingo, 17 de outubro de 2021

As provas contra Lula: 3 mil evidências, 13 casos e R$ 80 milhões em propina - Diego Escosteguy (Revista Época)

As provas são robustas e contundentes. Será um escárnio se o chefão mafioso for eleito novamente para presidente do Brasil.

Paulo Roberto de Almeida


POLÍTICA

As provas contra Lula: 3 mil evidências, 13 casos e R$ 80 milhões em propina

As investigações apontam pagamentos em dinheiro, depósitos bancários e imóveis – para o ex-presidente e para parentes

 DIEGO ESCOSTEGUY

Revista Época, 05/05/2017

No fim da tarde de uma segunda-feira recente, o ex-­presidente Luiz Inácio Lula da Silva subiu ao palco de um evento organizado pelo PT em Brasília. Empunhou sua melhor arma: o microfone. Aos profissionais da imprensa que cobriam o evento, um seminário para discutir os rumos da economia brasileira, o ex-presidente dispensou uma ironia: “Essa imprensa tão democrática, que me trata maravilhosamente bem e, por isso, eu os amo, de coração”. Lula estava a fim de debochar. Não demorou para começar a troça sobre os cinco processos criminais a que responde na Justiça. Disse que há três anos ouve acusações sem o direito de se defender, como se não tivesse advogados. “Eu acho que está chegando a hora de parar com o falatório e mostrar prova. Eu acho que está chegando a hora em que a prova tem de aparecer em cima do papel”, disse, alterado. Lula repetia, mais uma vez, sua tática diante dos casos em que é réu: sempre negar e nunca se explicar. E prosseguiu: “Eu quero que eles mostrem R$ 1 numa conta minha fora desse país ou indevida. Não precisa falar que me deu 100 milhão, 500 milhão, 800 milhão... Prove um. Não estou pedindo dois. Um desvio de conduta quando eu era presidente ou depois da Presidência”. Encerrou o discurso aplaudido, aos gritos de “Brasil urgente, Lula presidente!”.

A alma mais honesta do Brasil, como o ex-presidente já se definiu, sem vestígio de fina ironia, talvez precise consultar seus advogados – ou seus processos. Há, sim, provas abundantes contra Lula, espalhadas em investigações que correm em Brasília e em Curitiba. Estão em processos no Supremo Tribunal Federal, em duas Varas da Justiça Federal em Brasília e na 13ª  Vara Federal em Curitiba, aos cuidados do juiz Sergio Moro. Envolvem uma ampla e formidável gama de crimes: corrupção, lavagem de dinheiro, organização criminosa, crime contra a Administração Pública, fraude em licitações, cartel, tráfico de influência e obstrução da Justiça. O Ministério Público Federal, a Polícia Federal, além de órgãos como a Receita e o Tribunal de Contas da União, com a ajuda prestimosa de investigadores suíços e americanos, produziram, desde o começo da Lava Jato, terabytes de evidências que implicam direta e indiretamente Lula no cometimento de crimes graves. Não é fortuito que, mesmo antes da delação da Odebrecht, Lula já fosse réu em cinco processos – três em Brasília e dois em Curitiba. Também não é fortuito que os procuradores da força-tarefa da Lava Jato, após anos de investigação, acusem Lula de ser o “comandante máximo” da propinocracia que definiu os mandatos presidenciais do petista, desfalcando os cofres públicos em bilhões de reais e arruinando estatais, em especial a Petrobras.

A estratégia de Lula é clara e simples. Transformar processos jurídicos em campanhas políticas – e transformar procuradores, policiais e juízes em atores políticos desejosos de abater o maior líder popular do país. Lula não discute as provas, os fatos ou as questões jurídicas dos crimes que lhe são imputados. Discute narrativas e movimentos políticos. Nesta quarta-feira, dia 10, quando estiver diante de Moro pela primeira vez, depondo no processo em que é réu por corrupção e lavagem de dinheiro, acusado de receber propina da OAS por meio do tríplex em Guarujá, Lula tentará converter um ato processual (um depoimento) num ato político (um comício).

Se não conseguir desviar a atenção, saindo pela tangente política, Lula terá imensa dificuldade para lidar com as provas – sim, com elas. Nesses processos e em algumas investigações ainda iniciais, todos robustecidos pela recente delação da Odebrecht, existem, por baixo, cerca de 3 mil evidências contra Lula. Elas foram analisadas por ÉPOCA. Algumas provas são fracas – palavrórios, diria Lula. Mas a vasta maioria corrobora ou comprova os crimes imputados ao petista pelos procuradores. Dito de outro modo: existe “prova em cima de papel” à beça. Há, como o leitor pode imaginar, toda sorte de evidência: extratos bancários, documentos fiscais, comprovantes de pagamento no Brasil e no exterior, contratos fajutos, notas fiscais frias, e-mails, trocas de mensagens, planilhas, vídeos, fotos, registros de encontros clandestinos, depoimentos incriminadores da maioria dos empresários que pagavam Lula. E isso até o momento. As investigações prosseguem em variadas direções. Aguardem-se, apesar de alguns percalços, delações de homens próximos a Lula, como Antonio Palocci e Léo Pinheiro, da OAS. Renato Duque, ex-executivo da Petrobras, deu um depoimento na sexta-­feira, dia 5, em que afirma que Lula demonstrava conhecer profundamente os esquemas do petrolão. Existem outras colaborações decisivas em estágio inicial de negociação. Envolvem crimes no BNDES, na Sete Brasil e nos fundos de pensão. Haja prova em cima de papel.

Trata-se até agora de um conjunto probatório, como gostam de dizer os investigadores, para lá de formidável. Individualmente e isoladas, as provas podem – apenas – impressionar. Coletivamente, organizadas em função do que pretendem provar, são destruidoras; em alguns casos, aparentemente irrefutáveis. Nesses, podem ser suficientes para afastar qualquer dúvida razoável e, portanto, convencer juízes a condenar Lula por crimes cometidos, sempre se respeitando o direito ao contraditório e à ampla defesa – e ao direito a recorrer de possíveis condenações, como qualquer brasileiro. Não é possível saber o desfecho de nenhum desses processos.

Ainda assim, os milhares de fatos presentes neles, na forma de provas judiciais, revelam um Lula bem diferente daquele que encanta ao microfone. As provas jogam nova luz sobre a trajetória de Lula desde que assumiu o Planalto. Assoma um político que conheceu três momentos distintos. O primeiro momento deu-se como um presidente da República que decidiu testar os limites do fisiologismo e clientelismo da política brasileira. A partir de 2003, e com mais força em 2004, Lula começou a agir para beneficiar, em atos sucessivos, empreiteiras e grandes grupos empresariais, por meio de homens de confiança em postos-­chave no governo. Era, naquele momento, um político cujas campanhas e base aliada eram financiadas, comprovadamente, com dinheiro de propina desses mesmos empresários – entre outros. Era um político que caíra nas graças do cartel de empreiteiras que rapinava a Petrobras e comprava leis no Congresso.

O segundo momento sobreveio entre 2009 e 2010, conforme o tempo dele no poder se aproximava do fim – e, com Dilma Rousseff como sucessora, todos, em tese, continuariam a prosperar. Nesse ponto, assomou um político que, pelo que as provas e depoimentos indicam, passaria a viver às custas das propinas geradas pelo cartel que ajudara a criar. Entre 2009 e 2010, o cartel, em especial Odebrecht e OAS, passou a se movimentar para assegurar que Lula e sua família tivessem uma vida confortável. Faziam isso porque, como já explicaram, deviam propina ao ex-presidente e, não menos importante, pela expectativa de que ele usasse sua influência junto a Dilma Rousseff para manter o dinheiro do governo entrando nas empresas – como fez, de fato, em algumas ocasiões.

Nesse período de final de mandato, houve uma série de operações fraudulentas e clandestinas, comandadas pelo cartel, que resultaram na multiplicação do patrimônio de Lula. Usaram-se laranjas e intrincadas transações financeiras para esconder a origem do dinheiro dos novos bens do ex-presidente. Mas, hoje, esses estratagemas foram descobertos, com fartura de provas, pelos investigadores. Da Odebrecht, Lula ganhou o prédio para abrigar seu instituto, um apartamento em São Bernardo do Campo, onde mora até hoje, e a reforma de um sítio em Atibaia que, todas as provas demonstram, pertence ao petista, e não é somente “frequentado” por ele. Da OAS, ganhou o famoso tríplex em Guarujá, assim como as reformas pedidas por ele – o apartamento só ficou pronto após a Lava Jato, de modo que não houve tempo para que Lula e família se mudassem para lá. A mesma OAS passou a bancar o armazenamento do acervo presidencial do petista. Todas essas operações – todas – foram feitas clandestinamente, para ocultar o vínculo entre Lula e as empreiteiras. Todas foram debitadas do caixa de propinas que Lula mantinha junto às empreiteiras.

Além de dar moradia a Lula, as empreiteiras passaram a bancar o ex-presidente e sua família, além de pessoas próximas. Havia, segundo as provas disponíveis, pagamentos de propina da Odebrecht a um dos filhos do presidente, a um irmão dele, a um sobrinho e a Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula e um dos assessores mais próximos de Lula. Havia pagamentos em dinheiro vivo e, em alguns, casos, por meio de empresas – como a de um filho e a de um sobrinho. Havia, ainda, os pagamentos à empresa de palestras de Lula e ao próprio Instituto Lula. Na maioria dos casos, segundo as evidências, não se tratava de doação ou contratação para palestras, embora essas tenham acontecido em alguns casos. Trata-se de propina disfarçada de doação.  Até que a Lava Jato mudasse tudo, Lula e seus familiares receberam, de acordo com as evidências disponíveis e se obedecendo a um cálculo conservador, cerca de R$ 82 milhões em vantagens indevidas – bens ou pagamentos ilegais.

O terceiro momento de Lula, aquele que as provas revelam com mais nitidez,  precipita-se em março de 2014, quando irrompe a Lava Jato. O petista, que sabia o que fizera e intuía o potencial da operação, preocupou-se. É esse Lula preocupado – quiçá desesperado – que aparece nos processos de obstrução da Justiça. Que, segundo depoimentos e documentos, tenta destruir provas. Tenta, em verdade, destruir a Lava Jato, para por ela não ser destruído. Há semanas, dias antes do discurso de Lula em Brasília, a voz rouca de Léo Pinheiro sacudira Curitiba. Diante do juiz Sergio Moro, Léo Pinheiro expunha segredos guardados por anos. “Eu tive um encontro com o presidente, em junho... bom, isso tem anotado na minha agenda, foram vários encontros.” Era 20 de abril e Léo falava de um encontro mantido há quase três anos, em maio de 2014, quando a Lava Jato começava a preocupar. “O presidente, textualmente, me fez a seguinte pergunta: ‘Léo’, e eu notei até que ele estava um pouco irritado, ‘você fez algum pagamento a João Vaccari no exterior?’. Eu disse: ‘Não, presidente, nunca fiz nenhum pagamento dessas contas que nós temos com Vaccari no exterior’. ‘Como é que você está procedendo os pagamentos para o PT?’. ‘Através do João Vaccari. Estou pagando, estamos fazendo os pagamentos através de orientação do Vaccari, caixa dois e doações diversas que nós fizemos a diretórios e tal’. ‘Você tem algum registro de algum encontro, de conta, de alguma coisa feita com o João Vaccari com você? Se tiver, destrua. Ponto. Acho que quanto a isso não tem dúvida’.”

Lula, como Renato Duque confirmou em depoimento a Moro na sexta-feira, estava se mexendo para descobrir quanto estava sob risco. No depoimento, Duque, que fora indicado pelo PT e pelo próprio Lula à Diretoria de Serviços da Petrobras, destruiu o antigo chefe. Disse, como Léo Pinheiro, que Lula “tinha o pleno conhecimento de tudo, tinha o comando”. Referia-se ao petrolão. Nas últimas semanas, Duque e o ex-ministro Palocci disputavam quem fecharia antes um acordo de delação premiada, em busca de pena menor. Ambos pretendiam entregar informações sobre Lula, pois suas defesas detectaram que a Lava Jato queria mais elementos para cravar que o então presidente não só sabia da existência, como comandava o esquema de corrupção na Petrobras. Palocci recuou duas ou três casas em sua negociação, após a libertação do ex-ministro José Dirceu. Duque aproveitou para avançar. Disse que encontrou Lula pessoalmente três vezes. “Nessas três vezes ficou claro, muito claro para mim, que ele tinha pleno conhecimento de tudo, tinha o comando”, disse Duque. No último encontro, em 2014, segundo Duque, Lula perguntou se ele tinha recebido dinheiro na Suíça da holandesa SBM, fornecedora da Petrobras. Duque diz que negou. Lula, então, perguntou: “Olha, e das sondas? Tem alguma coisa?”. Lula se referia a negócios da Sete Brasil, a estatal criada para turbinar o petrolão. Duque afirma que mentiu a Lula ao dizer que não tinha. Ouviu do então presidente, de saída do cargo: “Olha, presta atenção no que vou te dizer. Se tiver alguma coisa, não pode ter, entendeu? Não pode ter nada no teu nome, entendeu?”.

No ano seguinte, Lula prosseguiu em sua tentativa desesperada de sabotar a Lava Jato. Em maio de 2015, o então senador Delcídio do Amaral foi à sede do Instituto Lula, em São Paulo. Àquela altura, líder do governo no Senado, Delcídio era um interlocutor frequente de Lula sobre a situação precária do governo Dilma no Congresso, mas, principalmente, sobre o avanço da Lava Jato em direção ao coração petista. Na conversa, Lula se disse preocupado com a possibilidade de seu amigo, o pecuarista José Carlos Bumlai, ser engolfado pela operação. Delcídio percebeu que fora convocado para discutir o assunto. Avisou que Bumlai poderia ser preso devido às delações do lobista Fernando Baiano e do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró. Delcídio também tinha medo disso, pois recebera propina junto com Cerveró. Então, contou a Lula que, quatro meses antes, recebera um pedido de ajuda financeira de Bernardo, filho de Cerveró. Delcídio afirma que Lula determinou que era preciso ajudar Bumlai.

Assim, Delcídio passou a trabalhar. Dias depois, encontrou-se com Maurício, filho de Bumlai, e “transmitiu o recado e as preocupações de Lula”. Maurício topou a empreitada: era preciso bancar as despesas com advogado e sustentar a família para “segurar” a delação de Cerveró e, assim, tentar salvar o pai de Maurício. Nos meses seguintes, Maurício Bumlai entregou R$ 250 mil em espécie a um assessor de Delcídio, em encontros em São Paulo. O dinheiro era levado depois à família Cerveró. Quando, em setembro, ÉPOCA publicou que Cerveró fechara um acordo de delação, Maurício interrompeu os pagamentos. Em novembro de 2015, Delcídio foi preso, por ordem do Supremo, por tentar obstruir a Lava Jato.

Por meio de nota, o Instituto Lula afirma que “não há nenhum” ato ilegal nas delações dos executivos da Odebrecht e que as delações não são provas, mas “informações prestadas por réus confessos que apenas podem dar origem a uma investigação. Por enquanto, o que existe são depoimentos feitos aos procuradores, a acusação, divulgados de forma espetacular”. Sobre a “conta Amigo”, a nota afirma ser “a mais absurda de todas as ilações no depoimento de Marcelo Odebrecht”. “Se for verdadeiro o depoimento, Marcelo Odebrecht teria feito, na verdade, um aprovisionamento em sua contabilidade para eventuais e futuras transferências ou pagamentos. A ser verdadeira, trata-se, como está claro, de uma decisão interna da empresa. Uma ‘conta’ meramente virtual, que nunca se materializou em benefícios diretos ou indiretos para Lula.” Sobre a ajuda da Odebrecht a Luís Cláudio, um dos filhos de Lula, o Instituto Lula afirma que “mesmo considerando real o relato de delatores que precisam de provas, Emílio Odebrecht e Alexandrino Alencar relatam que a ajuda para o filho de Lula iniciar um campeonato de futebol americano foi voluntária e após diversas conversas e análises do projeto”. Sobre a mesada de R$ 5 mil que a Odebrecht pagou por anos a Frei Chico, irmão do ex-presidente, a nota afirma que “não só Lula não pediu, como não foi dito que Lula teria pedido”. Afirma que o principal assessor de Lula, Paulo Okamotto, “negou ter recebido qualquer ‘mesada’ de Alexandrino Alencar”. O Instituto diz que a Odebrecht não inventou Lula como palestrante e que “as palestras eram lícitas e legítimas”.



quinta-feira, 6 de maio de 2021

Quem é Antonio Paim, o filósofo baiano - Guilherme Evelin (Revista Época, 2019)

Quem é Antonio Paim, o filósofo baiano que fez a cabeça do ministro da Educação

Paim é visto como um mestre pelos liberais-conservadores que passaram a orbitar em torno da Esplanada dos Ministérios
https://epoca.globo.com/quem-antonio-paim-filosofo-baiano-que-fez-cabeca-do-ministro-da-educacao-23361323
O professor Antonio Paim, guru do ministro da Educação, Ricardo Veléz Rodríguez Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
O professor Antonio Paim, guru do ministro da Educação, Ricardo Veléz Rodríguez Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Em seu discurso de posse no dia 2 de janeiro, em meio a críticas ao globalismo, ao pensamento gramsciano, ao marxismo cultural e à ideologia de gênero — o quarteto eleito como alvo preferencial dos ataques da ala ideológica do governo Jair Bolsonaro —, o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, explicou que a “inspiração liberal-conservadora” de suas propostas educacionais, que pregam a recuperação dos valores culturais tradicionais e religiosos, vinha de “dois grandes educadores”: Antonio Paim e Olavo de Carvalho.

A ascendência do “guru da Virginia” — como Olavo de Carvalho passou a ser chamado pelos bolsonaristas — sobre o novo governo instalado em Brasília se tornou bem conhecida. Além de opinar a favor da escolha de Vélez Rodríguez para o Ministério da Educação, Carvalho também atuou pela nomeação do embaixador Ernesto Araújo para o Itamaraty. Menos alardeada, a influência das ideias de Paim é igualmente importante em setores do novo governo, e a figura do filósofo baiano é tão ou mais reverenciada que a de Carvalho.

Autor de obras como "Histórias das ideias filosóficas no Brasil" e "Evolução histórica do liberalismo", Paim é também tratado como um mestre pelos liberais-conservadores que passaram a orbitar em torno da Esplanada dos Ministérios. “Paim mostrou que a luta pelo sistema democrático-representativo e pluralista produz resultados humanamente mais aceitáveis que os sistemas cooptativos do antigo Leste Europeu, de Cuba, da Venezuela bolivariana e da China comunista”, disse o cientista político Paulo Kramer, que fez parte da equipe de transição do governo Bolsonaro e foi coautor de um livro com Paim e Vélez Rodríguez sobre o “novo patrimonialismo brasileiro”, publicado em 2015.

Para o cientista político Christian Lynch, professor da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro, “Paim é autor de uma obra ciclópica e muito respeitável sobre a história das ideias filosóficas no Brasil, que é um clássico da área”. “A preocupação central em seus textos sobre o pensamento político brasileiro tem sido compreender as raízes do iliberalismo no Brasil, que ele acredita radicar numa incompreensão da questão da representação política”, acrescentou Lynch. “Nos últimos 20 anos, o prestígio do socialismo ou da social-democracia foi relegando alguns intelectuais a um lugar marginal na academia e na mídia, como se fossem dinossauros em extinção. Com o retorno do conservadorismo, depois de 30 anos, esses autores voltaram à voga.”

Prestes a completar 92 anos, Paim, nascido em Jacobina, no interior da Bahia, vive hoje numa casa de repouso particular para idosos, repleta de jardins e com um lago, no Jardim Bonfiglioli, bairro de São Paulo, às margens da Rodovia Raposo Tavares. ÉPOCA o encontrou lá em dois domingos, dia que ele reserva para ouvir música clássica, num quarto em que mantém uma TV, um computador e uma estante com seus livros e fotos de suas duas filhas. Paim precisa recorrer a um andador para se locomover, mas, em meio a alguns resmungos contra a velhice (uma m..., resume), ele se mantém bem-humorado, com uma conversa afiada e atualizado sobre tudo que ocorre com o governo Bolsonaro. 

O ministro da Educação Ricardo Vélez Rodriguez, na posse de seu cargo, cumprimenta seu antecessor Rossieli Soares Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil
O ministro da Educação Ricardo Vélez Rodriguez, na posse de seu cargo, cumprimenta seu antecessor Rossieli Soares Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil

Sua ligação mais direta com o novo governo é, claro, com Vélez Rodríguez, com quem falou, por telefone, para desejar sucesso no governo. O ministro da Educação foi seu aluno quando chegou ao Brasil na década de 70, com uma bolsa da Organização dos Estados Americanos (OEA) para estudar pensamento brasileiro num curso ministrado por Paim na Pontifícia Universidade Católica (PUC) no Rio de Janeiro. Paim rememora, com prazer, como conheceu Vélez Rodríguez, colombiano de nascimento, depois naturalizado brasileiro. “No primeiro dia de aula, ele falou em América Latina. Eu disse a ele: Você ganhou uma bolsa para estudar pensamento brasileiro. Não me venha com conversa de América Latina, que isso não existe aqui’. Ele, ainda um garoto, não respondeu nada e ficou em pânico”, contou Paim, aos risos.

O mestre disse que depois o “discípulo” se mostrou de grande valor e fez uma pesquisa primorosa sobre o caudilho gaúcho Júlio Prates de Castilhos (1860-1903), prócer do começo da República brasileira. Castilhos ajudou na difusão do positivismo, doutrina filosófica importada da França com grande penetração entre os militares brasileiros e inspiração do lema “Ordem e Progresso”, inscrito na bandeira nacional. A pesquisa redundou depois no livro Castilhismo, uma filosofia da República, de Vélez Rodríguez. A obra bebe no pensamento de Paim. Para o filósofo, “o positivismo era um troço primitivo”, a República foi instalada no Brasil por meio de “um golpe de Estado” articulado por uma minoria e a derrubada da monarquia em 1889 foi “um retrocesso brutal que abortou a construção no país de instituições representativas democráticas” no modelo liberal inglês — para Paim, o ápice da civilização política.

Paim e Vélez Rodriguez também comungam a mesma ojeriza às ideias socialistas e ao que eles chamam de doutrinação marxista nas universidades brasileiras. Para o filósofo baiano, o “Brasil é o único país do mundo, além da França, onde o comunismo parece que não acabou”. Ele diz ainda que “um marxismo vagabundo” prolifera nos campi nacionais. “A USP é hostil ao pensamento brasileiro. A Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão do Ministério da Educação responsável pela supervisão dos cursos de pós-graduação) está na mão dos comunas, dos marxistas. O MEC só dá passagem e bolsa para quem está na chave gramsciana. Se você não estudar Gramsci, você perde o emprego. É exatamente isso”, afirmou Paim, que considera Gramsci um “totalitário”. Ele manifesta a esperança de que o novo ministro “vai liquidar isso”. “Não tem cabimento dar ao Estado o poder de dar pontuação às instituições culturais”, afirmou Paim, referindo-se ao método usado pela Capes para avaliar a pós-graduação.

Mestre e discípulo têm uma velha pinimba com a Capes. Em 2009, Vélez Rodríguez publicou um artigo na imprensa em que acusou os “burocratas da Capes no setor de filosofia” de agir de forma persecutória, entre 1979 e 1999, para extinguir os cursos de graduação e pós-graduação em filosofia brasileira, um nicho de atuação de filósofos conservadores, considerados minoritários na academia brasileira.

Segundo Vélez Rodríguez, “uma guilhotina ideológica” ceifou esses cursos por eles serem considerados de direita. A ação teria sido comandada por antigos ativistas marxista-leninistas, seguidores do filósofo e padre jesuíta Henrique Claudio de Lima Vaz. Vaz era mentor, na década de 60, da Juventude Universitária Católica (JUC) e da Ação Popular (AP), uma corrente política de esquerda em que militaram, no passado, José Serra e Herbert de Souza, o Betinho, entre outros. Quase uma década depois de sua publicação, o artigo de Vélez Rodríguez continua a reverberar no mundinho acadêmico. Após sua nomeação para o Ministério da Educação, circulou um manifesto de professores de filosofia, assinado inclusive por Marilena Chauí, que rebate “as insídias” contra o padre Vaz.

A rixa de Paim e Vélez Rodríguez com os seguidores do padre Vaz dura décadas. Paim diz que foi “boicotado” por antigos militantes da AP, quando eles assumiram o Departamento de Filosofia da PUC do Rio de Janeiro no final da década de 70. Uma reforma foi feita na pós-graduação, e o curso de filosofia brasileira, de Paim, foi retirado do currículo. Quando textos do jurista e filósofo Miguel Reale — mestre de Paim e pai do ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff — foram retirados de uma antologia distribuída aos alunos, Paim publicou uma “denúncia” em forma de artigo no Jornal do Brasil.

A polêmica gerou meses de controvérsia na imprensa nacional e depois virou o livro "Liberdade acadêmica e opção totalitária". “Excluíram o Miguel Reale porque ele tinha sido integralista, o que é um absurdo. Eu tinha arrumado bolsas para os marxistas, em pleno governo militar, porque achava um absurdo a discriminação a eles, mas a convivência é difícil. Você não deve dar cargo de poder a eles, porque eles vão liquidar os outros. É da alma deles”, disse Paim.

Raul Landim, ex-diretor do Departamento de Filosofia da PUC, tem uma versão diferente. Disse que a exclusão do curso de filosofia brasileira estava relacionada a uma modernização do departamento para adequá-lo à realidade de outros cursos de filosofia no mundo. Da mesma forma, a antologia de textos distribuída aos alunos passou a incluir apenas filósofos considerados clássicos.

“Fui da AP, mas não sou marxista, como também não era o padre Vaz. Estávamos preocupados em melhorar a competência dos alunos, mas o Paim transformou tudo em questão ideológica”, disse a ÉPOCA Landim, hoje professor aposentado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na última terça-feira 8. A querela não terminou bem para ele. Seis meses depois, Landim e outros professores perderam seu emprego na PUC. Ele acha que a polêmica teve um efeito indireto em sua saída.

Apesar desse passado, Paim avalia que Vélez Rodríguez deve agir com prudência em sua faxina ideológica no Ministério da Educação. “Não pode generalizar. O Ministério da Educação tem muito funcionário decente. Não pode achar que tudo é marxista, tudo não presta, como os procuradores fizeram com a classe política. Não é bem assim”, afirmou. Perguntado sobre o Escola sem Partido, Paim disse que os professores devem adotar a mesma postura que ele tinha na sala de aula.

“Em meu tempo de professor, eu dava um curso sobre Kant (Immanuel Kant, filósofo alemão do final do século XVIII, considerado um dos pilares da filosofia moderna). Eu transmitia a eles como ler "A crítica da razão pura", mas não fazia doutrinação. Se eu fizesse isso, dizia a eles que podiam me criticar e me botar para fora”, afirmou. Paim disse que o curso de filosofia serve para ter conhecimento de todos os principais pensadores, inclusive Marx. Mas ressalva que Marx deve ser lido à luz da “complexidade do idealismo alemão”. Fora desse contexto, alertou, “marxismo vira bestialógico”.

Antes de virar um conservador e um anticomunista ferrenho, como ele próprio admite, Paim fez um caminho sinuoso. Foi ele próprio um comunista de carteirinha. Na juventude dos seus 20 e poucos anos, estudante no Rio de Janeiro, entrou no Partido Comunista do Brasil, o Partidão, entusiasmado com a União Soviética depois da Segunda Guerra Mundial. Achava que os soviéticos encarnavam a liberdade, que não existia na ditadura de Getulio Vargas.

Virou secretário de redação da Tribuna Popular, o jornal do partido, em que militava, entre outros, o poeta Carlos Drummond de Andrade. Durante o governo de Gaspar Dutra (1946-1951), num enfrentamento de jornalistas e gráficos que resistiram a bala a uma ação da polícia para fechar o jornal, levou um tiro que o deixou com um buraco na cabeça e foi condenado a sete anos de prisão. Foi enviado para uma casa de detenção, onde, segundo Paim, o diretor queria matá-lo. Paim contou que numa ocasião em que o diretor tentou pegá-lo com as mãos pelas grades da cadeia, reagiu e quase quebrou o braço do agente. Como punição, foi mandado para um cubículo numa solitária, onde ficou em condições degradantes. “O anticomunismo brasileiro era de um primarismo brutal. Uma pessoa com um mínimo de caráter ou enfrenta aquele negócio, ou se avacalha. Aí, eu virei comuna mesmo”, afirmou.

Depois de uma inspeção feita por uma Comissão da Câmara dos Deputados, Paim foi reconhecido como preso político e enviado para uma penitenciária onde, em condições melhores, cumpriu pena de dois anos e dois meses de prisão. Solto, virou dirigente do Partido Comunista. Em 1953, foi enviado para a União Soviética para estudar teoria leninista, na Universidade Lomonosov, em Moscou. Aprendeu a ler O capital, de Marx, em russo para traduzi-lo para o português. Paim disse que transformou-se em um “bolchevique sem alma, sem amigo, sem família, sem p... nenhuma, integrante de uma casta devotada à causa”.

Na Universidade Lomonosov, Paim, porém, apaixonou-se pela russa Margarita Anatolia Rodanov — que fazia a tradução simultânea para os brasileiros. Seus colegas comunistas não gostaram daquele namoro, porque achavam que atrapalhava as relações do Partido Comunista brasileiro com o soviético. Terminado o curso, Paim voltou para o Brasil, mas ficou poucos meses aqui antes de resolver voltar para a União Soviética para casar com Margarita.

“O amor foi um processo de humanização para mim”, declarou numa ocasião Paim, que disse ter sido salvo do comunismo pela paixão. Ele foi gradualmente afrouxando os laços com o partido. A ruptura final veio com a divulgação dos crimes de Stálin com o relatório Kruschev, de 1956, quando Paim ainda morava na União Soviética. “Fui eu que lutei para distribuir o relatório para o Partido Comunista brasileiro. Não dava para ficar no partido depois daquilo. Da minha geração, ninguém ficou”, contou Paim. O processo de desencanto daquela geração com o stalinismo é contado no livro "O retrato", de outro ex-comunista baiano, Osvaldo Peralva, que foi jornalista da Folha de S. Paulo. A reedição de 2015 de "O retrato" tem prefácio assinado por Paim. “A leitura de 'O retrato' pode contribuir para que pessoas de bom senso revejam esse tipo de opção”, escreveu o filósofo na apresentação. 

Depois de conseguir a autorização do regime soviético para que Margarita saísse da Rússia, Paim voltou para o Brasil com a mulher. Instalaram-se em Copacabana, no Rio de Janeiro, tiveram uma filha. Mas o casamento com Margarita, que traduziu Machado de Assis e fez um dicionário russo-português, durou pouco. Por volta de 1962, quando o Brasil já vivia o acirramento dos ânimos anticomunistas que culminaria no golpe militar contra o governo João Goulart em 1964, a russa resolveu voltar, com a filha, para a União Soviética, onde a mãe era uma dignitária do regime. Paim confessou ter ficado “desarvorado”. “Eu era muito agarrado a minha filha. Era um potocozinho”, disse Paim, que nunca mais a viu. Não é o único momento que usa da suavidade baiana para se referir a suas ligações com antigos camaradas e a Rússia soviética. “O povo russo é uma gente muito simpática, bonita, alegre. Sinto saudades deles, do período em vivi lá”, contou. Recentemente, disse ter descoberto a existência de duas netas na Rússia. Uma delas, volta e meia, lhe escreve e-mails em português — e torna a desaparecer.

O processo de saída do marxismo, disse Paim, foi igualmente penoso. “Uma coisa é sair do Partido Comunista, outra é sair do marxismo”, explicou. Ele fez a opção deliberada de “passar anos estudando para aprender” e conseguir o rompimento com a antiga ideologia. “O Fernando Henrique não fez isso e continuou se arrastando”, disse. Passou a estudar Kant com um engenheiro alemão, especialista na obra do filósofo. Com ele, disse Paim, fez “terapia kantiana” para se libertar do marxismo. A transição para o liberalismo conservador, brincou, foi igualmente “gradual, lenta e segura”. Por um tempo, flertou com a social-democracia. Contou que só virou liberal mesmo em meados da década de 70, depois de ter estudado como o liberalismo inglês se reformou, ao longo do século XIX, para tornar suas instituições políticas mais representativas.

Paim se disse animado com a perspectiva de dar maior consistência programática às várias propostas liberais que ganharam força nos últimos anos no Brasil. Disse ter o lido o programa do PSL, o partido de Bolsonaro, e o achou “muito bom”. Considera que o novo presidente “tem uma proposta liberal, sem dúvidas”, e que ele pode liquidar o PT, outro porta-voz do que ele chama de “marxismo vagabundo”. Mas mantém um certo ceticismo em relação aos resultados que podem ser alcançados pelo novo governo. “O Brasil elegeu um governo militar-liberal. Tem mais milico lá do que no tempo do Castello Branco. É um arranjo complicado. Você não pode dizer isso a priori, mas pode não dar certo. Depende muito da relação com o Congresso”, disse.

Em relação ao Brasil, Paim disse ter menos ilusões ainda. “Se não houver um cataclismo que mude sua base social, o Brasil jamais será um país desenvolvido”, afirmou. Adepto de uma filosofia que faz uma leitura culturalista das sociedades, ele acha que o obstáculo está relacionado a valores morais desenvolvidos nos tempos do período colonial, quando a Inquisição impediu que o país acompanhasse a Revolução Industrial. “No Nordeste, havia um dito: ‘Não herdou, não roubou, emerdou’. Isso mostra que o ódio ao lucro e à riqueza é um troço arraigado, profundo, no Brasil. A moral social é muito ruim. O grande obstáculo que impede a sociedade liberal no Brasil é a Igreja Católica. A Igreja Católica é hoje uma espécie de Partido Comunista”, disse Paim. Segundo ele, o máximo que o Brasil poderá aspirar em termos de participação da riqueza mundial será como país agroexportador, graças ao sucesso do agronegócio. “E PT Saudações”, completa ele, peremptório.


quinta-feira, 4 de junho de 2020

Um apelo para que NÃO se façam manifestações neste fim de semana - Luiz Eduardo Soares

LUIZ EDUARDO SOARES APELA QUE MOVIMENTOS SOCIAIS NÃO PROTESTEM NESTE MOMENTO: ‘É O QUE BOLSONARO ESPERA’

Sociólogo afirmou que há risco de infiltrados promoverem quebra-quebra
Um texto publicado nesta tarde pelo sociólogo Luiz Eduardo Soares no Facebook está correndo feito rastilho de pólvora entre a esquerda. Nele, Soares apela para que os movimentos sociais não vão às ruas neste momento, diante do risco de que infiltrados promovam quebra-quebra, com o objetivo de causar uma situação de caos social que crie o ambiente para Bolsonaro propor uma ruptura institucional.
Soares lembra da justificativa do uso das Forças Armadas para conter uma situação de caos social e desenha o cenário em que Bolsonaro usaria isso para, em nome da lei e da ordem, decretar o estado de sítio.
Eis o texto:
"Faço um apelo a todas e todos que sabem o que significaria um golpe policial-militar, sob liderança fascista. Os sinais são assustadores, ostensivos e crescentes. Hoje, o vice-presidente publicou um artigo absurdo e ameaçador no Estadão. Aras, embora tenha se corrigido depois, disse ao Bial que as Forças Armadas poderiam, sim, intervir se um poder invadisse a seara do outro, numa clara alusão crítica ao Supremo. Ives Gandra está a postos para escrever a justificativa "constitucional" do golpe. Nunca faltaram juristas aos generais; não faltarão ao capitão. Eduardo Bolsonaro confirmou: a ruptura está decidida, espera-se apenas a oportunidade. O presidente sobrevoou manifestação contra o Supremo e o Congresso ao lado do ministro da Defesa. Precisa desenhar?
Enquanto isso, do lado de cá, uns e outros estão melindrados com manifestos conclamando à união pela democracia. Questionam suas intenções e origens. Não querem ser usados por adversários que buscam se redimir de erros passados. Ou seja, perderam conexão com a realidade. O fogo já começou a lamber seus pés. Despertem, cacete!
Nessa conjuntura, movimentos sociais planejam manifestações para domingo. Pois aqui vai meu apelo. Companheiras e companheiros, vocês não percebem que Bolsonaro está armando uma armadilha? Vocês acham que terão condições de impedir que infiltrados promovam quebra-quebra? Não terão. Não subestimem os fascistas. A P2 fez isso outras vezes, por que não faria agora? Agitadores fascistas são profissionais da destruição. Sabem como gerar o que os bolsonaristas e a mídia chamarão "caos", sabem como reencenar o que a mídia gosta de denominar "vandalismo".
Se vocês forem às ruas, por mais organizados que estejam, não conseguirão impedir que provocadores façam o que Bolsonaro espera desde a posse. Se vocês forem às ruas, e eu adoraria que fossem e eu estaria junto com vocês, em condições normais, não só vão ajudar a propagar o vírus em nossos grupos, como vão oferecer a oportunidade que os fascistas aguardam, ansiosamente, e que têm sistematicamente estimulado.
Se isso ocorrer no próximo domingo, à noite, em rede de TV e rádio, Bolsonaro dirá que, em defesa da lei e da ordem, e "da democracia", enviará na manhã seguinte solicitação ao congresso para a decretação do estado de sítio. Se não houver apoio, o "poder moderador" das Forças Armadas se imporá, porque, afinal de contas, "Brasil acima de todos, Deus acima de tudo". Interventores, com apoio das polícias estaduais, tomarão o poder nos estados. Em lugar do Supremo, uma corte de exceção será nomeada.
Nessa noite tão tenebrosa quanto previsível, as lideranças sociais e políticas não alinhadas ao fascismo serão alvo de diferentes tipos de ação. Prefiro não descrevê-las. E só então quem, à esquerda, costuma desdenhar da "democracia formal" e de uma "Constituição que nunca chegou às classes subalternas ou aos territórios vulneráveis" vai entender que faz diferença, sim, o regime político, a tal democracia, por mais limitada e precária que seja, no Brasil.
Vocês acham que eu exagero? Estou paranoico? A quarentena me fez mal? Tomara que estejam certos. Entretanto, creio ser, hoje, um dever de todos e todas, especialmente das lideranças, alertar e explicar com detalhes o que está em jogo e quais são os riscos de realizar manifestações nesse momento. Só faz sentido ir para o confronto se a correlação de forças permitir, ou poderemos sofrer uma derrota histórica, um banho de sangue e um golpe. A menos que nossos companheiros tenham certeza de que conseguirão bloquear os sabotadores e provocadores a serviço do fascismo. Mas quem poderia ter essa certeza? Que líder responsável poderia ter essa certeza?"

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Nestor Forster, o homem de Bolsonaro em Washington - Henrique Gomes Batista (Epoca)

Nestor Forster, o homem de Bolsonaro em Washington 

Diplomata ligado a Olavo de Carvalho é indicado como embaixador nos Estados Unidos — e promete muito mais que uma agenda conservadora 
Henrique Gomes Batista
REvista Época, 14/02/2020 - 03:00 
O gaúcho Nestor Forster não tinha nenhuma experiência como embaixador antes de chegar a Washington. Foto: Arte sobre reprodução

O gaúcho Nestor Forster não tinha nenhuma experiência como embaixador antes de chegar a Washington. Foto: Arte sobre reprodução 

A Comissão de Relações Exteriores do Senado aprovou, por 12 votos a 0, o nome de Nestor Forster como embaixador brasileiro em Washington na quinta-feira 13, cargo que ele já exercia interinamente desde setembro. A confirmação só depende de aprovação do plenário da casa. A escolha descartou — pelo menos, por ora — o plano do presidente Jair Bolsonaro de colocar nesse posto seu terceiro filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), com pouca experiência no exterior para além do tempo em que trabalhou numa lanchonete no estado do Maine.
Já Forster, de 56 anos, é o que se poderia chamar de um “diplomata das Américas”. Durante toda a sua carreira no Itamaraty, teve três passagens pelos Estados Unidos em diferentes cargos, além de temporadas no Canadá e Costa Rica. É verdade que sua chegada ao cargo de embaixador em Washington é um caso de quebra de tradição. Pela lógica do Itamaraty, um recém-promovido a embaixador — sua promoção foi em junho — teria de passar por vários países antes de chegar ao comando da embaixada mais importante. Mas Forster não é o primeiro a pegar um atalho para Washington. Antonio Patriota fez o mesmo em 2007.
Se, por um lado, Forster peca por não ter no currículo nenhuma experiência como titular de embaixada, por outro, esbanja proximidade com Olavo de Carvalho, o ideólogo de extrema-direita que faz o papel de guru da família Bolsonaro. Muito antes da eleição presidencial de 2018, Forster fazia visitas à área rural de Richmond, capital do estado da Virgínia, onde Carvalho mora. Inclusive, foi o diplomata quem apresentou o hoje chanceler Ernesto Araújo ao pensador do bolsonarismo. Embora Forster rejeite o título de “olavista”, os dois são amigos há cerca de 20 anos. Segundo pessoas próximas, a definição é considerada por Forster uma simplificação com cheiro de preconceito.
O embaixador pode não gostar do adjetivo, mas, no dia 31 de agosto rasgou ao amigo elogios dignos de um fiel seguidor. Na sede da embaixada em Washington, Forster entregou a Carvalho a medalha da Ordem do Rio Branco, concedida por Bolsonaro. “Não se trata de uma homenagem do presidente da República, do chanceler, de todo o Itamaraty ou de seus milhares de alunos no Brasil e no exterior. Mas é uma homenagem de todos os brasileiros de bem que, cansados de ver a pátria ser aviltada e assaltada por criminosos, saíram às ruas em protesto com cartazes onde se proclamava: ‘Olavo tem razão’”, afirmou Forster. “E Olavo certamente tem razão no diagnóstico da patológica decadência cultural de nosso país”, sentenciou, chamando-o de sábio, generoso e bondoso.
Forster está no grupo que tenta comungar de duas fontes incompatíveis. Bate palmas para Carvalho, que se destaca por suas ideias extremadas e pela intransigência, e diz ser admirador do pensador irlandês Edmund Burke, um liberal clássico que viveu no século XVIII e se opunha politicamente a qualquer radicalismo, de esquerda ou direita. “Não é possível seguir a Olavo e Burke ao mesmo tempo. Burke é conservador e Olavo é reacionário. O conservador é um liberal que quer combinar inovação com tradição, e o reacionário é um visionário que odeia a modernidade e acredita poder restaurar os valores perdidos da Idade Média”, disse Christian Edward Cyril Lynch, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e um dos maiores especialistas no Brasil em Burke. Forster pensa diferente. Uma semana depois de homenagear Carvalho, o diplomata fez um discurso, no dia 7 de Setembro, na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA), em que constava uma longa citação de Burke sobre a pátria.
Assim como o chanceler Araújo, Forster é gaúcho e torcedor do Internacional. Católico fervoroso, tem duas filhas, uma delas freira, irmã dominicana, nos EUA. Aos amigos, costuma dizer ser fã do romancista carioca José Geraldo Vieira, morto em 1977, e do poeta Bruno Tolentino, outra coincidência com Carvalho. Forster se diz um apaixonado por música, uma herança do avô, trompetista de orquestra louco por Louis Armstrong, que o ensinou a gostar de Bach. Além de música clássica, Forster escuta o gaúcho Renato Borghetti e o violonista paulista Marco Pereira. Na juventude, em Porto Alegre, nos anos 1980, chegou a tocar chorinho com os futuros integrantes da banda Engenheiros do Hawaii.
Mesmo pessoas que torcem o nariz para a agenda conservadora do novo embaixador o descrevem como um habilidoso negociador. Quem trabalhou próximo a ele tem a mesma opinião. “Você não vai ver, em nenhuma ocasião, Forster sendo a voz da insensatez. Ele sempre busca o razoável, o acordo, a composição”, disse o engenheiro Rubens Sakay, que dividiu com Forster a transição entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. “A capacidade dele de análise é excepcional”, completou.
Desde setembro até a sabatina, Forster mostrou algumas de suas qualidades mesmo na condição de embaixador interino. Apesar de todo o barulho da família Bolsonaro em favor de Donald Trump, o diplomata optou pela prudência e tentou ampliar, o máximo possível, contatos com políticos americanos de ambos os campos. Durante a interinidade, Forster obteve algumas vitórias: a classificação do Brasil como “aliado preferencial extra-Otan” pela Casa Branca e também a decisão americana de apoiar o Brasil em sua tentativa de conseguir uma vaga na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma espécie de clube formado majoritariamente por países desenvolvidos. Se essa busca por resultados acima das ideologias for mantida, o Brasil tende a ganhar. Caso a ideologia fale mais alto, os riscos aumentam, principalmente na área do meio ambiente. Nesse tema, o discurso bolsonarista em favor da exploração da floresta cria atritos com ambientalistas e pode acabar em boicotes contra o agronegócio brasileiro.
Forster se orgulha de ter deixado uma marca em todos os postos por onde passou. Um dos exemplos comumente citados por ele é a elaboração do Manual da Presidência da República, feito em parceria com Gilmar Mendes, quando o atual ministro do Supremo Tribunal Federal era consultor jurídico da Secretaria-Geral da Presidência. “Nestor é um dos profissionais mais qualificados, um dos melhores quadros da administração pública brasileira”, afirmou Mendes quando perguntado por ÉPOCA. Entre 2000 e 2002, Forster foi chefe de gabinete do ministro na Advocacia-Geral da União (AGU). Um ano depois, estava no gabinete de transição entre os governos FHC e Lula.
Na cadeira de embaixador, o diplomata não esconde que pretende aproveitar a proximidade ideológica entre Trump e Bolsonaro. Em seus planos está iniciar uma grande negociação comercial entre os dois países e avançar na agenda de defesa e espaço. Se conseguir um novo acordo para a troca de bens entre os dois países, fará história. Depois do entusiasmo mostrado durante período eleitoral em 2018, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, tem evitado falar em abertura da economia brasileira. Nos Estados Unidos, o livre-comércio também virou palavrão em alguns círculos.
Para atingir seus objetivos, o gaúcho terá de abrir a agenda que acumulou ao longo da carreira. A inspiração é o tempo em que Paulo Tarso Flecha de Lima era embaixador em Washington. Forster estava na capital americana nos anos 1990, quando Lúcia, mulher do embaixador, era próxima de Lady Di. Naquela época, a Villa McCormick, suntuoso prédio de 1931 que serve como residência oficial do representante brasileiro nos Estados Unidos, passou a atrair diplomatas de todas as partes interessados na então princesa de Gales. Para Forster, ficou a lição que bons contatos são quase tudo na diplomacia. E, em Washington, o novo embaixador conhece muita gente.
No ano passado, ao bater na porta de deputados republicanos e democratas para tentar diminuir a pressão do Congresso americano sobre as queimadas da Amazônia, Forster se lembrou dos encontros que tinha com o pai de um congressista e, entre sorrisos, acredita ter amainado um eventual crítico do governo Bolsonaro. Conhecer os caminhos também o levaram a defender a gestão do presidente em diversos veículos americanos, inclusive na “esquerdista” NPR.
Como um mantra, diplomatas brasileiros em postos de comando em Washington muitas vezes falam da “relação especial” entre Brasil e Estados Unidos. Citam a geografia, a composição da população e o tamanho. Mas, ao longo das décadas, muito pouco dessa suposta proximidade tem se traduzido em um diferencial para o Brasil. Forster não foge à regra. Fala em aproximação com os Estados Unidos, mas não há, pelo menos, por enquanto, nada que indique que vá melhorar a relação com os americanos. “O Brasil sumiu, não está no radar de Washington e não voltará tão cedo, a despeito de declarações de apoio incondicional do governo brasileiro às políticas americanas”, afirmou Paulo Sotero, presidente do Brazil Institute do think tank Wilson Center, na capital americana.
Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, lembra que Forster, apesar de próximo do chanceler e do próprio Eduardo Bolsonaro, terá um desafio extra. Com sua ascensão meteórica, enfrentará uma certa resistência dentro da estrutura do Itamaraty. “Ele não pode ser considerado um diplomata normal. Seu crescimento se deu por seus posicionamentos, em um momento em que muitos diplomatas experientes estão sendo escanteados também por questões ideológicas”, lembrou Stuenkel.
Além de tentar despertar o interesse americano pelo Brasil, Forster corre contra o relógio. Com as eleições presidenciais americanas em novembro, a janela de oportunidades para novas grandes decisões se estreita no Congresso. Conhecedores apontam para abril, ou mais tardar maio, como o prazo para iniciar novas grandes frentes na relação bilateral.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Senado deveria corrigir os rumos da diplomacia brasileira - Hussein Kalout

A perigosa inércia do Senado nos rumos da política externa brasileira

Cabe aos senadores a tarefa de coibir excessos ou distorções no exercício da atividade pública internacional pelo Poder Executivo

O que esperar da “política externa” em 2020? Como projetar os interesses reais e estratégicos do Brasil na frente externa? Como defender o país de riscos que podem obliterar a sua capacidade de atuar em múltiplos tabuleiros no futuro? Como corrigir os rumos da atuação do Brasil na contramão do direito internacional?
Nos debates sobre a atual “política externa”, o Senado Federal tem sido até o momento o grande ausente. Os Senadores da República se tornaram, ao que parece, apenas observadores da realidade em vez de importantes baluartes na redefinição das linhas da política exterior do país. Tomados provavelmente pela perplexidade que a atual diplomacia provoca, nossos Senadores não conseguiram articular propostas, demandar explicações ou exigir cobranças ao Executivo.
A diplomacia regressiva hoje vigente não encontrou no Senado seu contraponto e uma fonte de moderação. Diferentemente do que se poderia imaginar em certos círculos, o papel dos Senadores não deveria ser, a priori, a de meros carimbadores de sabatinas para as representações diplomáticas do Brasil no exterior. Não foi para este fim que a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) foi criada.
Na verdade, a função primordial da Comissão consiste em zelar pelo legítimo exercício do controle constitucional sobre as atividades da política externa, identificando riscos à segurança nacional do Estado brasileiro e atuando para corrigir as distorções nos rumos das relações do Brasil com o mundo.
Vale lembrar que, em matéria de política externa, o Senado da República é a única instituição capaz de impor legalmente o respeito ao regime de freios e contrapesos, quando houver excessos ou distorções no exercício da atividade pública internacional pelo poder executivo.
Nos círculos diplomático, empresarial, político, acadêmico e militar é praticamente uníssona a convicção de que a política externa brasileira não vai bem. A tese de que o Brasil está depauperando o capital reputacional de sua diplomacia está mais do que cristalizada. E o que os Senadores da República irão fazer? A inércia pode ser interpretada como sinal de condescendência ou de desinteresse. Para evitar isso, é mister que a CRE assuma plenamente suas prerrogativas, inclusive para evitar novos danos aos interesses do país.
Logo na reinstalação do ano legislativo, o Senado poderia demandar do Ministério das Relações Exteriores um relatório pormenorizado sobre as propostas para o ano de 2020; os custos econômicos que serão destinados em cada ação; os responsáveis envolvidos em cada iniciativa; os resultados esperados para o país; e uma análise de risco quanto aos projetos propostos. Isso se chama, em linguagem técnica, um planejamento estratégico, algo que tenha começo, meio e fim, que traduza objetivos e metas em resultados, com indicadores claros para que o Senado e o público em geral possam monitorar o bom uso dos recursos públicos.
A CRE, poderia solicitar a apresentação de dados mais concretos sobre os logros recentemente anunciados pelo chefe do Itamaraty. Um relatório técnico acerca de tais resultados deveria conter informações estratificada por projeto, área, tema e região. Isso ajudaria o Senado a compreender e a prestar contas aos seus constituintes – o povo brasileiro – para que pudessem compreender os benefícios de cada ação para a sociedade.
Na mesma toada, seria importante o Senado ter acesso a cópia do acordo assinado entre o Mercosul e a União Europeia e, se possível, destrinchando as concessões feitas pelo Brasil aos membros da Comissão. Assim, o Congresso Nacional tomará conhecimento sobre o que de fato consta no documento – já que cedo ou tarde terá de ratificá-lo.
Igualmente, seria oportuno se os Senadores pudessem conhecer em detalhe o escopo do acordo comercial Mercosul-EFTA. Isso poderia ajudar a elucidar qual é o grau de importância desse tratado para o Brasil. A soma das exportações brasileiras aos países que compõem o EFTA – Liechtenstein, Islândia, Noruega e Suíça – gira em torno de 0,01% da pauta comercial brasileira.
Outro importante feito anunciado pelo Chanceler, diz respeito ao volumoso grau de novos investimentos estrangeiros aplicado no país. Seria muito útil ao Senado saber quem investiu, quanto se investiu e onde se investiu – e quanto será investido, nos próximos anos, em cada setor. É importante que o Senado cobre a distinção entre anúncios e o efetivo desembolso de investimentos.
Assumindo a premissa de que a proposta de combater o globalismo, o marxismo cultural, a agenda 2030 da ONU, negar o aquecimento global, refutar o desmatamento na Amazônia é, de fato, assertiva e atende aos interesses gerais na nação, a chancelaria poderia fornecer ao Senado informações sobre: quais foram efetivamente os avanços na execução dessas propostas; em que estágio está cada vetor; como as representações brasileiras no exterior se mobilizaram para cumprir instruções; em que estágio se encontra essa estratégia; e quantos recursos públicos foram investidos em sua implementação.
O Senado deveria ter acesso, também, ao “projeto reformador” do chanceler para a implementação de sua estratégia regional. Seria vital saber como a chancelaria pretende promover a democracia, as liberdades e combater o socialismo na Venezuela, Argentina, Bolívia, Suriname, Nicarágua, Cuba e México. Afinal, isso daria maior legitimidade às ações propostas pelo Itamaraty e, possivelmente, até com o endosso institucional do Senado. É fundamental, ainda, que sejam esclarecidas a CRE a real orientação da política exterior para o Oriente Médio. Nessa matéria, o nível de contradição é substancial. Igualmente, o envio de um relatório pormenorizado sobre a missão do chanceler a África seria útil para o Senado avaliar a concretude dos resultados.  
Nesse sentido, também, é importante esclarecer para o Senado por que 187 países votaram na ONU contra o embargo unilateral a Cuba e apenas 3 países a favor. Assim, as dúvidas que pairam sobre o posicionamento brasileiro podem vir a ser dissipadas. Afinal, o voto não teve contornos ideológicos, não é certo?
Como guardiões da ordem constitucional na frente externa, o Senado precisa estar antenado e informado até para não ser injustamente responsabilizado. Pois, até o momento, a presidência da Câmara é quem tem feito esse contraste e clamado por maior racionalidade e responsabilidade na execução dos temas de política externa. E isso sem mencionar que meses atrás o próprio STF teve de atuar para mitigar problemas nessa área. Os Senadores fariam bem em demandar um plano estratégico com objetivos, metas e indicadores. Assim, em 2021, veremos se os resultados serão concretos, reais, tangíveis ou cascatas para ludibriar o povo brasileiro.
Enfim, parece que está na hora do Senado assumir a sua missão como o poder contra majoritário para tornar a política externa respeitosa com a constituição e com os interesses vitais do Estado brasileiro – se vivos estivessem, seria essa a mensagem de homens como Barão de Rio Branco, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, San Tiago Dantas, entre tantos outros, aos nobres Senadores da República!

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Diplomacia bolsonarista: o Brasil completamente isolado, no mundo e na região - Hussein Kalout

Coluna | O retrato da indigência diplomática do Brasil na América do Sul

A política externa bolsonarista, que é radical no atacado mundial, consegue ser ainda mais extremada no varejo regional

Se a intenção da nossa atual diplomacia era quebrar paradigmas e destruir um legado secular da nossa presença diplomática na região, então é preciso reconhecer que o trabalho está surtindo efeito. Devemos exclamar: “chapeau”! De fato estamos inovando, mas não no bom sentido, longe disso. A política externa bolsonarista, que é radical no atacado mundial, consegue ser ainda mais extremada no varejo regional.
Basta ver a quantidade de vexames que a diplomacia brasileira vem colhendo em série na América do Sul. O resultado? Um isolamento auto-imposto que ameaça deixar o Brasil falando sozinho. Estamos virando aquele elefante destrambelhado numa loja de cristais. Só que o que estamos deixando em cacos não são copos, taças ou jarras, mas um patrimônio diplomático que chegou a ser invejável e amplamente respeitado. Estamos destroçando nossa influência e relevância, espezinhando nossos próprios interesses e gerando uma fatura salgada que será paga pela população.
A lista de embaraços é quase interminável. As referências pouco lisonjeiras ao pai da ex-Presidente Bachelet, do Chile, que foi morto sob torturas, obrigou o presidente Piñera a dissociar-se do “amigo” Bolsonaro. Como se não bastasse, as hostes bolsonaristas das redes sociais têm criticado o presidente chileno por fazer concessões às pressões da esquerda, que estaria por trás dos protestos massivos que vive aquele país. Querem, aparentemente, que o presidente chileno não ceda. Só que quem manda no Chile são os chilenos. E Piñera é um líder de direita com compromisso com a democracia.
O princípio da não-interferência em assuntos internos dos outros Estados, ao contrário do que talvez pensem os responsáveis pela nossa política externa, não é mais um conceito marxista imposto pelo fantasma do globalismo. Ele deriva do direito internacional e de uma tradição diplomática que sempre cultuamos, em benefício de nossos interesses e da preservação da paz na região. Esse princípio encerra uma sabedoria que sempre foi a nossa: podemos ter amigos e desafetos, mas o mais importante é manter as boas relações entre os Estados, em nome do interesse nacional, com o objetivo de avançar na integração econômica e da busca de soluções conjuntas para desafios comuns.
Ao que tudo indica, essa lição não foi aprendida pelo nosso chanceler nos bancos do Instituto Rio Branco. Ou por alguma razão desconhecida foi desaprendida, talvez como forma de agradar os fiéis de sua desequilibrada balança diplomática no âmbito do olavismo. De fato, ao dobrar a aposta do presidente na reação à eleição de Alberto Fernández como presidente da Argentina, o chanceler disse que “as forças do mal” celebravam o resultado – na contramão, hilariantemente, o Departamento de Estado americano mandou mensagem celebrando a festa da democracia argentina e saudando o novo presidente. A postura brasileira contribui para fechar canal importante que poderia ser utilizado para auscultar as intenções do novo governo e preservar nossos interesses bilaterais. Vale sempre lembrar que a Argentina é nosso terceiro parceiro comercial, segundo comprador de nossos manufaturados e destino de importantes investimentos brasileiros. Só lembrando...
A besteira está feita. Os títeres da diplomacia nacional não pisarão tão cedo por Buenos Aires – e isso se é que já não foram declarados personas non gratas por ali. A carta dirigida pelo chanceler argentino, Jorge Faurie, à embaixada brasileira foi um gesto categórico de protesto e de condenação. Resta saber quem será o herói que irá à Argentina para tentar minimizar o estrago feito pelos bufões dessa diplomacia indigente.
No Uruguai, o vexame não foi menor, com o candidato preferido do governo Bolsonaro afirmando que não cabia a líderes estrangeiros se meter na eleição uruguaia. Como bem lembrou Lacalle Pou, de maneira elegante, cabe exclusivamente aos uruguaios escolher suas lideranças. O passa fora é apenas uma manifestação de bom senso, o chamado óbvio ululante. Que o candidato uruguaio tenha sido obrigado a dizer isso publicamente diz muito do amadorismo de nossa política externa ideológica. E o nosso embaixador em Montevidéu, não é para menos, foi convocado para tomar um pito de dar inveja em países de quinta categoria. Qualquer político sul-americano minimamente experiente sabe que precisa lidar com o vizinho, independentemente de quem seja o presidente, sua coloração partidária ou sua fé religiosa. O respeito aos processos políticos democráticos nos vizinhos era uma regra de ouro que infelizmente acabamos de quebrar na Argentina e no Uruguai.
Esses exemplos mais recentes se somam à propensão do atual governo de abrir mão de nossa capacidade de influenciar também na Venezuela. O Brasil se tornou o mais radical dos membros do Grupo de Lima, tendo de ser contido por elementos mais moderados. Com isso, virou uma espécie de menino de recados de outros países, flertando com medidas de força que talvez não tenham prosperado porque há setores racionais no governo (nesse caso, sobretudo, os militares) e membros do Grupo que não querem apostar em via que comporta altíssimo risco.
É pena que lições básicas de diplomacia estejam sendo deixadas de lado em nome de uma fé cega na ideologia extrema. O chanceler, em vez de moderar os ímpetos de seu chefe, parece adicionar mais gasolina à fogueira. Dessa forma, a lógica amigo-inimigo, que serve para pautar a estratégia do governo na política doméstica, foi transplantada para as relações exteriores, com consequências danosas para o país.
A América do Sul é esfera inseparável da segurança nacional do Estado brasileiro. Ações desmedidas, gestos descalibrados e diplomacia da tijolada minam gravemente a nossa liderança e credibilidade. Esse isolamento auto-infligido poderá levar décadas para ser superado. Afinal, quem confiaria em abrir sua loja de cristais novamente a um paquiderme desastrado?

Hussein Kalout é cientista político, professor de relações internacionais, pesquisador da Universidade Harvard e integra o Advisory Board da Harvard International Review. Foi Senior Fellow do Center for Strategic and International Studies (CSIS) em Washington DC e Consultor da ONU e do Banco Mundial. Serviu como secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018). Cofundador do Movimento Agora!, foi membro do Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex) e presidente da Comissão Nacional de Populações e Desenvolvimento (CNPD).

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Embaixada em Washington: Rubens Ricupero e Roberto Abdenur (Época)

Não é para qualquer um

    DOIS EX-EMBAIXADORES BRASILEIROS NOS ESTADOS UNIDOS EXPLICAM POR QUE ACHAM QUE EDUARDO BOLSONARO NÃO DEVE SE MUDAR PARA WASHINGTON
    por Ruan de Sousa Gabriel
    Revista Época, 15/08/2019

    Na quinta-feira 8 de agosto, o Itamaraty foi informado de que o governo americano aprovou a indicação do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), terceiro filho do presidente Jair Bolsonaro, para ser o embaixador brasileiro em Washington. Antes disso, o presidente americano, Donald Trump, já havia elogiado a nomeação de Eduardo para a embaixada. "Eu acho o filho dele (de Jair Bolsonaro) excelente. Ele é um jovem brilhante, maravilhoso. Estou muito feliz com a indicação", disse Trump. Em defesa da indicação do filho, o presidente Bolsonaro tem reforçado que a interlocução de Eduardo com os americanos è um ponto a seu favor - além do fato de ter morado nos Estados Unidos e de ser o presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara.
    O sinal verde dos Estados Unidos, no entanto, não quer dizer que Eduardo já pode Começar a arrumar as malas e preparar a mudança para a elegante residência que aparece nesta foto. Ele ainda precisa passar por algumas etapas de aprovação no Senado. Primeiro uma sabatina e depois duas votações: uma na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CRE) c outra no plenária Se aprovado, Eduardo poderá assumir a embaixada - caso não seja impedido pela Justiça. Na segunda feira 12, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com um pedido de liminar - decisão provisória - para barrar a nomeação O MPF considera o filho do presidente desqualificado para o cargo e defende que os indicadas a embaixadas precisam de, no mínimo, três anos de experiência diplomática no currículo Na sexta-feira 9, o partido Cidadania entrou com um mandado de segurança coletivo preventivo no Supremo Tribunal Federal (STF) solicitando uma limitar que impeça a indicação, por considerá-la nepotismo.
    ÉPOCA conversou com dois ex-embaixadores brasileiros em Washington sobre a nomeação de Eduardo: Rubens Ricupero, que serviu entre 1991 e 1993, e Roberto Abdenur. que chefiou a embaixada entre 2004 e 2007. Ricupero chegou a Washington depois de uma longa carreira diplomática. De volta ao Brasil, ele foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal no governo Itamar Franco e ministro da Fazenda durante a implantação do Plano Real. Abdenur foi embaixador no Equador, na China, na Alemanha e na Áustria antes de seguir para os Estados Unidos. Tanto Ricupero quanto Abdenur consideram equivocada a nomeação de Eduardo. Confira a seguir as principais razões apresentadas.
    Falta de qualificação
    RUBENS RICUPERO Falta a Eduardo qualificação, experiência, maturidade, peso intelectual e cultural. O posto de embaixador em Washington é, para quase todos os países, o mais importante de tipo bilateral. Todas as nações de peso diplomático, praticamente sem exceção, têm diplomatas de carreira em Washington. É verdade que, em circunstâncias excepcionais, uma pessoa que não é da carreira pode ser um excelente embaixador. O Brasil teve Oswaldo Aranha, que era uma grande figura no Brasil, um homem de grande estatura e que havia sido ministro da Fazenda. Era uma figura impar, respeitada pela sociedade. O outro exemplo foi Walther Moreira Salles, que esteve à frente da embaixada numa época em que o Brasil passava por grandes problemas cm termos de dívida, de balanço de pagamentos. Ele era, na época, o banqueiro brasileiro que gozava de melhores conexões com os bancos internacionais. Eduardo, por sua vez, é uma pessoa de um nível muito modesta
    ROBERTO ABDENUR Eduardo não tem quase nenhuma experiência internacional. Não tem nenhuma experiência em negociação bilateral ou multilateral. Jamais participou de uma conferência internacional. A tradição, a regra não escrita, é que sejam nomeados embaixadores em estado adiantado da carreira, com larga experiência, que já tenham chefiado dois, três, quatro postos antes. Washington foi meu quinto posto. Fui antes embaixador no Equador, na China, na Alemanha e na Áustria, além de ter sido secretário-geral do Itamaraty. A embaixada em Washington é a única que tem um alcance universal do ponto de vista do itamaraty e do governo brasileiro, porque os Estados Unidos estão presentes e atuantes em praticamente todas as questões internacionais. Então, é preciso ser capaz de acompanhar a evolução, no plano internacional, de múltiplos acontecimentos políticos, econômicos, de segurança e ambientais. A embaixada em Washington .abastece as demais embaixadas brasileiras com análises das políticas externa interna americanas. O embaixador em Washington tem multiplicidade de tarefas.
    Incapacidade de diálogo
    RR Eduardo é o representante na América Latina do movimento fundado pelo americano Steve Bannon, que é da extremíssima-direita. Portanto, Eduardo está no ponto mais extremo do espectro das opiniões de direita. Ele tem opiniões muito extremadas na política internacional, mais favoráveis a soluções bélicas. Normalmente, um embaixador precisa ter uma posição muito equilibrada, porque é representante do pais, não de um partido ou um governo. Ele é a própria encarnação do pais que representa. Para isso, é preciso alguém que não seja um extremista de esquerda ou de direita. É preciso que seja alguém que esteja dentro dc um mínimo denominador comum das opiniões.
    RA Esse rapaz se fez fotografar com um boné escrito "Trump 2020". Isso deve ter pegado muito mal junto aos democratas, que hoje têm poder político efetivo porque controlam a Câmara dos Deputados e estão investindo contra Trump. Se esse rapaz for embaixador, poderá ser um vínculo útil com a administração Trump, mas não terá interlocução com o conjunto do sistema político americano. O Congresso americano tem uma imensa importância na definição das questões de comércio exterior, por exemplo. Já existe entre os democratas uma visão negativa do Brasil de Jair Bolsonaro por causa das políticas regressivas que o presidente está aplicando neste momento, negacionistas em relação às mudanças climáticas, às questões indígenas, aos direitos humanos e por aí vai. Isso só fará piorar se esse rapaz for embaixador.
    Adesão aos EUA
    RR Uma vez, dando uma entrevista à televisão americana, Eduardo qualificou os imigrantes brasileiros irregulares como vagabundos, indivíduos que não mereciam ser acolhidos. Ele disse que muitos deles eram até criminosos. Um dos deveres do embaixador do Brasil é proteger seus cidadãos. Eu, quando fui embaixador lá, lidei com inúmeros casos de brasileiros maltratados pela policia da Imigração. Tomei uma iniciativa pioneira: organizei a primeira reunião dc todas os cônsules do Brasil no país com a polícia da Imigração, o Departamento de Justiça e o Departamento de Estado para ver se poderíamos ter um protocolo de atitudes para que nossos nacionais não fossem maltratados. Isso é uma coisa sagrada. A atitude de Eduardo revela uma coisa muito grave. Ele, talvez por ser jovem, por ler morado lá, por ter esse entusiasmo pelos Estados Unidos, identifica-se muito com os americanos. Eduardo quer ser simpático aos americanos e. ao dar uma entrevista, acha que uma das maneiras de obter o aplauso americano é condenar seus compatriotas que estão lá procurando uma vida melhor. Isso na diplomacia é gravíssimo. O maior defeito que um diplomata pode ter é se identificar mais com o país no qual ele está do que com o seu.
    RA O embaixador precisa conhecer extensamente as grandes questões internacionais, preparar relatórios - os chamados telegramas - com análises sofisticadas dos principais fatos e tendências que ocorrem no mundo. não apenas nos listados Unidos. O Brasil está e vai continuar sofrendo duras pressões americanas para esfriar suas relações com a China. E será extremamente danoso ao Brasil se cedermos 1 milímetro nisso
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    Para ser oficializado como embaixador nos Estados Unidos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro ainda precisa ser aprovado pelos senadores.