Essa conversa de atores hegemônicos é slogan velhaco de quem não tem melhor argumento a esgrimir em defesa de posições claramente insustentáveis.
Apesar deste blogueiro ser sociólogo, pronuncio-me claramente, neste momento, CONTRA a inclusão das ditas ciências sociais e humanas no programa CsF.
Como os recursos da sociedade são por definição limitados, melhor investir nas carências brasileiras, que não são as de sociólogos, psicólogos, cientistas políticos, historiadores e afins, e sim de engenheiros e cientistas.
As simple as that.
Creio ter deixado bastante clara minha posição.
Pensei que talvez uma pequeniníssima parte das bolsas, como 2%, pudesse ser destinada a nata da nata dos nossos cientistas "humanos". Concordo que os recursos financeiros sao limitados, e por isso que o governo acertou em priorizar o que temos de extrema carencia.
Você ao longos dos seus vários posts diz isso.
Veja por exemplo as "saúvas" freirianas do MEC que você tanto critica, assim como os acadêmicos "marquissistas".
Nunca pensei que as Ciências Sociais no Brasil se apresentassem de forma positiva, ou seja, que elas "estão bem". Ao contrário, acho que estamos muito mal, pésimos, mesmo, de CS, e isso tem a ver com a dominância do marxismo vulgar. Nos tempos da brilhantina, isto é, no meu tempo, os marxistas liam Marx; hoje, os marquissistas só lêem uma vulgata mal informada, simplista, incompleta, da contribuição importante que Marx deu para as ciências sociais, mas que foi reduzida por eles a um conjunto de slogans contra o capitalismo e o neoliberalismo que eles sequer estudaram como Marx. Por isso mesmo me oponho a qualquer bolsa para o pessoal da tribo, que escreve como o cidadão ai abaixo, cheio de slogans e poucos argumentos.
Como
um veículo idealizado por cientistas sociais, e, mais importante, feito
a partir dos conhecimentos aprendidos nas Ciências Sociais, a
Carta Potiguar
não poderia deixar de se manifestar a propósito da suspensão da liminar
que determinava a inclusão dos cursos da área de Ciências Humanas no
programa
Ciência Sem Fronteiras do Ministério da Educação (MEC). A decisão do Tribunal Federal da 5ª Região e o entendimento do MEC sobre a natureza do
Programa
devem ser não apenas lamentadas e repudiadas, mas, como convém a
postura das Humanidades, analisadas e discutidas. Muito embora,
bastasse para verificar o déficit em Humanidades no Brasil confrontar a
realidade social do país e as percepções enviesadas e estreitas sobre
esta, e, assim, constatar, com certa melancolia, os enormes desafios e
incompreensões que existem acerca de nossos problemas.
A indignação gerada não pode, porém, embotar a reflexividade exigida
para produzir, de uma só vez, um entendimento claro do que está em
disputa no CsF e, sobretudo, uma crítica aos pressupostos tácitos que o
presidem. Afinal de contas, as Ciências Humanas notabilizam-se
precisamente por constituírem um tipo de trabalho intelectual cujo cerne
consiste em sua capacidade ímpar de elaborar autorreflexão crítica, a
partir da qual a sociedade pode dispor das ferramentas para pensar a si
mesma como problema e fenômeno humano, aberto e contingente, e, desse
modo, entender por meio de que processos sociais e históricos as coisas
se tornaram de uma forma e não de outra.
A posição do MEC e a interpretação da Justiça não são simplesmente
neutras e técnicas. São seletivas e prescritivas na medida em que
expressam, por um lado, interesses sociais, políticos e econômicos, e,
por outro, concepções e valores acerca das classificações das ciências e
o papel destas no interior de um projeto determinado de sociedade e de
desenvolvimento. São essas fronteiras materiais e simbólicas que a
análise crítica deve enfrentar e desmistificar.
A disputa a propósito de quem está ou não autorizado a participar do
Ciências sem Fronteiras ou
que áreas devem ser priorizadas no financiamento de bolsas,
intercâmbios e estágios no exterior são reveladoras a respeito da visão
de desenvolvimento que o Governo do PT e outros setores abraçam e
cultivam. Priorizar as Ciências Naturais e Exatas significa privilegiar
uma determinada concepção de desenvolvimento, que é certamente a
concepção de certos grupos de interesse. O que está jogo em toda essa
polêmica resume-se a questão de definir os parâmetros pelos quais a
sociedade deve ser organizada e estruturada para atingir os tão
almejados fins do desenvolvimento. Quer dizer, que caminhos o país e a
vida das pessoas devem trilhar para alcançar um estágio elevado de
bem-estar humano, segurança, conforto e liberdade.
Mas que ideia de desenvolvimento é esta adotada no
Ciências Sem Fronteiras?
Ora, uma ideia redutora e estreita de “desenvolvimento” que o
identifica prioritariamente com crescimento econômico e progresso
tecnológico puro e simples. Nesse sentido, desenvolvimento ou sociedade
desenvolvida é sinônimo da elevação do PIB, da capacidade produtiva e
criativa de indústrias e empresas, aumento da renda
per capita e
da disponibilidade de recursos humanos hiperqualificados do ponto de
vista técnico, etc.. Sem satisfazer esses indicadores e critérios uma
sociedade não pode considerar-se desenvolvida, tal qual entende esta
concepção tecnicista de progresso.
É no interior dessa visão de desenvolvimento, que a Ciência e suas
divisões adquirem um lugar e um papel determinados. Dentro desse
paradigma, as Ciências Naturais e Exatas são consideradas as mais aptas
para fomentar as condições de desenvolvimento. Elas são indutoras de
progresso porque seus resultados e inventos podem ser diretamente
aplicados e apropriados pelo Estado e pelas empresas, segundo,
obviamente, os interesses estratégicos de dominação política, militar,
social e econômica. Por isso, a elas reservam-se as melhores
oportunidades de recursos e investimentos.
O maior investimento na formação e qualificação de recursos humanos
no campo das ditas “ciências duras” ganha prioridade sobre todos os
demais por conta do comprometimento do Governo do PT e das instituições
de apoio e fomento com uma determinada visão de progresso, assim como
pela força dos interesses estratégicos que o Governo, seguindo o modelo
técnico-desenvolvimentista e sua política de coalizão, assume para
manter sua governabilidade – esse comprometimento pode ser observada no
conjunto de outras disputas em que o Governo está envolvido, como por
exemplo a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.
As Ciências Humanas são, desse modo, escamoteadas porque seu saber e
formação não se coadunam tão intimamente com esta concepção de
desenvolvimento e com os interesses dos atores hegemônicos (Estado e
Mercado) neste processo. Elas seriam “ciências moles”, imprecisas e
teóricas, e o progresso necessita de “ciências duras”, fálicas e
masculinas, as únicas que, como diz o qualificativo, são capazes de
serem suficientemente viris e ativas para fecundar o desenvolvimento
numa sociedade. Como se pode deduzir, a analogia com o machismo e
androcentrismo na ideia de “ciências duras e moles” não é nada gratuita e
acidental – o que reforça o argumento de a ciência existe num contexto
de valores, representações e repertórios culturais.
A dificuldade e os preconceitos que as Ciências Humanas sofrem para
obter o devido reconhecimento de seu estatuto e valor científico é bem
mais o resultado de avaliações políticas e culturais cristalizadas e
compartilhadas em instituições de poder dominantes (Estado e Mercado) do
que o produto de avaliações científicas e epistemológicas sérias. O
valor e as classificações das ciências ganham o seu sentido particular e
hierarquizante em razão das representações sociais que se tem acerca da
potencialidade delas no interior de concepções culturais específicas
sobre progresso, desenvolvimento e bem-estar humano, assim como pelo
papel que elas cumprem numa divisão de trabalho mais ampla sob a
finalidade de atingir os objetivos produtivistas e quantitativos do
crescimento econômico – PIB, renda
per capita, etc..
Restringir o programa CsF aos estudantes oriundos da área tecnológica
e biomédica é uma decisão política, no sentido de que o Governo, o
mercado e as instituições de fomento enxergam nessas áreas os subsídios
técnicos e humanos capazes e necessários de alavancar o desenvolvimento
econômico de uma sociedade a partir da criação de tecnologia e da
formação de quadros hiperqualificados para o mercado e suas
necessidades.
O problema, portanto, não reside na questão de medir qual ciência é
superior ou mais relevante do que a outra, o problema está na concepção
de desenvolvimento abraçada e partilhada pelo MEC, e flagrantemente
expressa no
Ciência Sem Fronteiras. A exclusão das Ciências
Humanas do CsF é resultado de um modo tecnocrático e desenvolvimentista
de conceber o progresso de uma sociedade. Nesta concepção de
desenvolvimento, o sucesso de uma sociedade é medido pela elevação das
riquezas que um país produz mais do que a forma e o grau com que ele a
distribui; mais pela quantidade e exploração de recursos que ela capaz
de realizar do que pela qualidade dos serviços públicos básicos que
oferece; mais pela industrialização do que pelo impacto que ela causa
nas condições ambientais e de existência das pessoas; mais pelo
progresso tecnológico e quadros qualificados que possui do que pelo grau
de participação política e social das pessoas na vida pública.
O que temos de criticar veementemente é esta visão que privilegia
unilateralmente indicadores quantitativos e economicistas em detrimento
de outros indicadores de caráter mais qualitativos e sociais. Estes
últimos podem ser reunidos naquilo em que o economista Amartya Sen
chamou de expansão das “liberdades substantivas” e das capacitações para
o agir autônomo das pessoas – o que envolve, segundo Sen, desde as
liberdades políticas e econômicas básicas ao desenvolvimento de
condições para evitar subnutrição e a mortalidade precoce e capacidades
de promoção da autonomia e participação ativa das pessoas na vida
política da sociedade (educação, liberdade de expressão, etc.).
Se pensarmos como economista indiano e ganhador do Nobel de economia,
defendendo que o desenvolvimento é essencialmente um processo de
expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam, então as
Ciências Humanas possuem um papel central e pertinente como “indutoras”
das condições de desenvolvimento. Os obstáculos na expansão das
liberdades reais e na efetivação das capacidades humanas são resultados,
em larga medida, de fenômenos humanos, isto é, de processos,
instituições e estruturas sociais que modelam o destino das pessoas,
suas chances de vida e oportunidades.
Ora, se não podemos falar em sociedade desenvolvida se nela vigoram,
de maneira persistente e seletiva, dominações, desigualdades e
restrições que impactam enormemente o exercício dos direitos e o
desenvolvimento das capacidades pessoais, então, a contribuição das
Ciências Humanas é indispensável e inestimável para reverter tal quadro.
O entendimento, com clareza e profundidade, de fenômenos humanos, como a
reprodução da pobreza, da violência, da ineficiência institucional, os
conflitos entre grupos, a exploração e injustiça econômica, os dramas
interpessoais, a desigualdade e marginalização social, a privação de
direitos em razão de estigmas e preconceitos, entre tantos outros,
somente é possível mediante um consistente conhecimento e pesquisas
pertencentes ao campo das Ciências Humanas. Esses conhecimentos podem
ser convertidos em políticas públicas e reformas políticas. No entanto, a
contribuição das Ciências Humanas não se esgota em oferecer informações
úteis que servirão de matéria para políticas sociais.
As Ciências Humanas proporcionam um exercício intelectual formidável
de desvelamento e questionamento das suposições tácitas e ponto de
vistas morais em que se fundamentam determinadas visões de mundo – como a
noção de desenvolvimento aqui criticada. Revelar as opacidades
subjetivas e causais do comportamento e pensamento humanos, situando-os
histórica e socioculturalmente, é o seu principal mérito. O
esclarecimento que as Ciências Humanas proporcionam é um esclarecimento
não tanto da ordem da previsão e do controle dos fenômenos mas da
reflexividade dos sujeitos sobre si mesmos, suas vidas, crenças e ações –
o que pode servir tanto numa escala individual quanto, também, numa
escala coletiva para governos comprometidos com reformas e movimentos
sociais engajados na luta por transformações sociais.
Portanto, por mais enervante que seja a exclusão das Ciências Humanas
do CsF, em vez do ressentimento, a crítica deve alimentar-se do
comprometimento público que as Ciências Humanas possuem com o avanço e
fortalecimento da emancipação humana em todos os seus sentidos. Este
comprometimento obedece uma convicção intelectual e ética iniludível
acerca do papel do conhecimento das Humanidades em geral e das CH em
particular para esclarecer, de um lado, os mecanismos e estruturas
sociais responsáveis que dificultam alcançar uma situação de maior
emancipação, liberdade e dignidade compartilhadas e, de outro, revelar
os pressupostos tácitos que governam as tentativas políticas de
superação e solução desses mesmos mecanismos e estruturas.
Além da função crítica, as pesquisas e conhecimentos em Ciências
Humanas podem contribuir para alargar o escopo do que entendemos por
desenvolvimento e progresso, contemplando temas, indicadores e metas
costumeiramente negligenciados e invisibilizados pela pujança e feitiço
dos números e taxas econômicas. Um bom exemplo de desenvolvimento –
entendido num sentido mais civilizatório do que economicista –
propiciado pelas Ciências Humanas pode ser observado no debate acerca
dos Direitos Humanos, igualdade, direito à diferença, políticas
afirmativas e outros tantos temas que avançaram em nossa sociedade
graças a ação de movimentos sociais e de trabalhos e teorias produzidos
nas Humanidades. Em matéria de reconhecimento social obtivemos, nas
últimas décadas, um inegável ganho civilizatório, alavancado, em certo
medida, por trabalhos em Ciências Humanas. Foram esses trabalhos e seus
resultados conceituais e práticos que permitiram o desenvolvimento de
uma atitude de maior sensibilidade e compreensão diante da alteridade e
das formas sociais de opressão e inferiorização de grupos específicos –
mulheres, negros, pobres, imigrantes, homossexuais, índios, etc..
De uma maneira decisiva, podemos afirmar que as Ciências Humanas
contribuem com o desenvolvimento de uma sociedade na medida em que elas
podem fornecer, a um só tempo, um conhecimento aplicável e reflexivo
sobre os fenômenos e questões que esta sociedade busca resolver e,
também, acerca das implicações dos valores, compreensões e aspirações em
nome dos quais esta sociedade ou grupos dela pensam e agem. O
investimento em conhecimentos orientados para a explicação dos fatos
humanos e para o esclarecimento dos valores que as pessoas e grupos
assumem e praticam em suas percepções e aspirações é um fator
indispensável para qualquer sociedade que se pretenda desenvolvida num
sentido mais pleno da palavra. Engenharias e tecnologias ajudam a
construir e fazer crescer um país, mas não produzem por si mesmas
compreensões capazes de impulsionar um processo de autoentendimento
sobre o país, seus dilemas e ambições.
A exclusão reiterada das Ciências Humanas no programa
Ciências sem Fronteiras
abre mais um flanco para reflexão e crítica a propósito dos rumos que o
Governo tem adotado como diretrizes do projeto nacional de
desenvolvimento. Apostar numa concepção de desenvolvimento que abre mão
de “pensar e entender o Brasil” para além das categorias econômicas mais
redutoras e autoreferenciadas é bem mais do que um equívoco
ultrapassado, é antes e fundamentalmente um equívoco bastante perigoso e
ameaçador.