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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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domingo, 13 de abril de 2025

Livro: Industrial Policy, National Securigty and the Perilous Plight of the WTO, by Petros C. Mavroidis - reviewd by Elizabeth Can Heuleven

 Global Trade and Geopolitics

ELIZABETH VAN HEUVELEN

March 2025

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https://www.imf.org/-/media/Files/Publications/Fandd/Article/2025/03/br-van-heuvelen.ashx


A history of the WTO’s predecessor sheds light on contemporary trade tensions


INDUSTRIAL POLICY, NATIONAL SECURITY, AND THE PERILOUS PLIGHT OF THE WTO
Petros C. Mavroidis
Oxford University Press
New York, NY, 2025, 355 pp., $160

 

Industrial policy in the name of national security is surging, and its stretching the world trading system to the breaking point, according to Petros Mavroidis, a professor at Columbia Law School. His latest book, Industrial Policy, National Security, and the Perilous Plight of the WTO, should be required reading for trade experts and others trying to make sense of trade policy today. It tells the history of the current system, offers deep knowledge of World Trade Organization (WTO) legal structures and case law, and presents a sweeping account of how global trade and geopolitics interact.

Mavroidis, who worked in the WTO legal affairs division from 1992 to 1995 and has been a legal advisor to the organization since 1996, uses the example of semiconductors to illustrate the rise of global value chains and the growing entanglement of industrial and national security policies. The semiconductor industry, with its dual-use military and civilian technologies, has benefited from substantial government intervention. Its where geopolitics and global value chains collide.

The book reminds us that many contemporary challenges are explained through the history of the 1947 General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), which preceded the launch of the WTO in 1995. Weak subsidy rules and the international systems inability to impose discipline are arguably at the core of some of the most contentious trade disputes today. The origins can be traced to the US view of the world at the time the agreement was drafted, Mavroidis argues.

US President Franklin Roosevelt, emboldened by New Deal policies and their accompanying subsidies, turned his attention to building a liberal international order that aimed to avoid dissonance between domestic planning and international obligations.” Like the United States, the 22 other founding members of the tariffs and trade agreement were reluctant to limit their use of subsidies. They were market economies, but they relied on considerable state intervention to rebuild their societies after World War II.

The GATTs framers failed to plan for a world that frequently invokes the national security exception. After all, the agreement was a relational contract among like-minded players,” Mavroidis explains, and use of the provision was sparing. Since its beginning, of course, the agreement has evolved into the 166-member WTO, which represents over 98 percent of international trade and a spectrum of geopolitical and strategic interests. In recent years, use of this provision has become more common, and its use and abuse have led to cosmic uncertainty” about the strength of the system.

The author argues, moreover, that the WTO was predicated on the misguided belief that we had already reached the end of history,” that liberal democracy was inevitable, and that China was on an irrevocable path toward becoming a market economy.” This had far-reaching implications for Chinas WTO accession and amounted to missed opportunities to impose more controls on subsidies and state-owned enterprises.

The challenges confronting the multilateral trading system are immense, and Mavroidis does not purport to solve all problems. Instead he argues that the WTO is worth saving and proposes reforms to improve cooperation at least to guarantee that there is a boat to navigate” when the environment is more conducive to change. This pragmatism is refreshing, but it is also a sobering reflection on where we are today.


ELIZABETH VAN HEUVELEN is a senior economist in the IMF’s Strategy, Policy, and Review Department.

 

Livro: A mente nova do imperador: Sobre computadores, mentes e as leis da física - Roger Penrose

 'A mente nova do imperador' 

Nobel de Física explora a relação entre a mecânica quântica e a consciência humana,
questionando os limites da inteligência artificial  


Os avanços tecnológicos têm levado a inteligência artificial a novos patamares, incluindo as artes visuais e a escrita criativa. Porém, Sir Roger Penrose tem uma visão diferente sobre o assunto. Ele acredita que as máquinas não podem reproduzir todas as funções da mente humana, contrariando essa tendência. Em A mente nova do imperador: Sobre computadores, mentes e as leis da física, best-seller que chega aos leitores brasileiros pelas mãos da Editora Unesp, o Nobel de Física apresenta sua fascinante linha de raciocínio sobre questões fundamentais, como o significado de pensar e sentir, o que é a consciência e se é possível explicar a mente humana por meio das leis da física. Ele usa princípios básicos da física, da cosmologia, da matemática e da filosofia para tentar responder essas perguntas.

“Muitos matemáticos e físicos de grande estatura acham complexo, se não impossível, escrever um livro que leigos possam entender”, anota, no prefácio, Martin Gardner. “Até este ano poderíamos supor que Roger Penrose, um dos físicos matemáticos com maior conhecimento e criatividade do mundo, pertencia a esse grupo. Aqueles de nós que havíamos lido seus artigos não técnicos e suas notas de aula sabíamos que não era esse o caso. Ainda assim, foi uma grata surpresa ver que Penrose havia dedicado um tempo em meio de seus afazeres para produzir um livro maravilhoso para o leitor leigo informado. É um livro que eu acredito que se tornará um clássico. Ainda que os capítulos escritos por Penrose percorram searas vastas, indo desde a teoria da relatividade à mecânica quântica e à cosmologia, suas preocupações centrais são com o que os filósofos chamam de ‘problema mente-corpo’.”

Ele explica conceitos complexos como máquinas de Turing, mecânica quântica, sistemas formais, espaços de fase, buracos negros, buracos brancos, radiação de Hawking, entre outros. Na obra, o autor defende que Albert Einstein estava certo em sua suspeita de que a mecânica quântica estava incompleta e que o mistério da consciência está no meio-termo entre a física quântica e a física clássica. E, apesar da complexidade dos temas, o autor constrói um arcabouço conceitual acessível e fornece o aparato necessário para que o leitor possa compreender o debate acerca dos limites entre o “pensar” natural e o artificial.

“O livro escrito por Penrose é a investida mais poderosa já escrita contra a IA forte. Objeções têm sido levantadas nos últimos séculos contra a afirmação reducionista de que a mente é uma máquina operada pelas leis conhecidas da física, mas a ofensiva de Penrose é mais persuasiva, pois ela bebe de fontes de informação que não estavam previamente disponíveis para os objetores. O livro revela que Penrose é mais que um físico matemático. Ele também é um filósofo de primeira linha, sem medo de tratar de problemas que os filósofos contemporâneos tendem a considerar sem significado”, resume Garnder. A mente nova do imperador é uma leitura obrigatória para aqueles que buscam respostas sobre o mistério da consciência e desejam participar desse importante debate.

 

Livro: 'A fábula das abelhas', de Bernard Mandeville

  'A fábula das abelhas', de Bernard Mandeville

Clássico de Bernard Mandeville


A seção Clássicos do Catálogo desta semana destaca a obra de Bernard Mandeville: A fábula das abelhas: ou ou vícios privados, benefícios públicos. A obra da sátira britânica do século XVIII desencadeou uma grande controvérsia social ao rejeitar uma visão positiva da natureza humana e argumentar pela necessidade do vício como fundamento de uma economia capitalista emergente.

O filósofo, médico, economista, político e satirista, Bernard de Mandeville nasceu em Rotterdam, Países Baixos, passou a maior parte de sua vida na Inglaterra e escreveu quase todos os seus trabalhos em inglês. Sua obra magna, A fábula das abelhas, causou forte impacto no século XVIII, suscitando ataques e elogios, e contribuiu fortemente para lançar as bases da chamada ciência da natureza humana. 

Com tradução de Bruno Costa Simões, o texto de Mandeville causou escândalo na época e recobre uma contribuição decisiva ao pensamento das Luzes, segundo Pedro Paulo Pimenta, que assina as orelhas da obra. Em um tom de fábula, o autor passeia pela questão dos defeitos e corrupções apontados em diversas profissões para, a seguir, examinar de que forma esses “vícios, de cada pessoa em particular, por uma hábil destreza, são postos a serviço da grandiosidade e da felicidade mundana de todos”.

“[O]s que examinam a natureza do homem, dispensando a arte e a educação, podem observar que aquilo que o torna um animal sociável consiste não no seu desejo de companhia, bondade, piedade, afabilidade e outras encantos de bela aparência, mas sim no fato de que as suas qualidades mais vis e odiosas são as aptidões mais necessárias para ajustá-lo nas maiores e, conforme anda o mundo, nas mais felizes e prósperas sociedades”, escreve Mandeville. 

Segundo Pedro Paulo Pimenta, a leitura de A fábula das abelhas, hoje mais pertinente do que nunca, pode servir, entre outras coisas, para atenuar nossa ingenuidade em relação a valores que a nossa época costuma tomar como definitivos, mas que, como todos os valores, são impostos por quem tem interesse e força para torná-los correntes.


Livro: Stefan Zweig no caleidoscópio do tempo; objeto de um simpósio na Biblioteca Nacional

 Um debate a que eu gostaria de assistir, por ter participado do livro que será objeto do encontro:


Stefan Zweig no caleidoscópio do tempo: Reflexões sobre o autor de Brasil, um país do futuro

Kristina Michahelles, Geovane Souza Melo Junior e Kenia Maria de Almeida Pereira (orgs.)

(Rio de Janeiro: Passaredo Edições, 2024).
Apresentação divulgada no blog Diplomatizzando (19/06/2024; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/06/stefan-zweig-e-o-pais-que-nao-chegou-ao.html).

Na postagem acima eu apresento o livro e transcrevo algumas passagens de minha colaboração, sob este título: “Stefan Zweig e o país que não chegou ao futuro”



sábado, 12 de abril de 2025

Livro: Revolução tributária: desafiando as correntes da desigualdade e do patrimonialismo no Brasil - Mariella Pittari (Blog da Boitempo)

Mais uma matéria importante enviada por Mauricio David:

... Segundo o DIEESE, o salário mínimo necessário para fazer frente às pressões inflacionárias do país corresponde a um valor superior aos R$ 7.000,00 (sete mil reais)...

Revolução tributária: desafiando as correntes da desigualdade e do patrimonialismo no Brasil
Mariella Pittari
Blog da Boitempo, 11/04/2025
https://blogdaboitempo.com.br/

O Brasil possui uma tradição tributária regressiva, alguns tributos que a Constituição aspirava implementar jamais tornaram-se realidade, enquanto outros incidem de maneira draconiana sobre os que mais necessitam. Alguns elementos são de imprescindível observância para avaliar a justiça do Direito Tributário Brasileiro, e dentre eles está à atenção a ser dedicada ao princípio da capacidade contributiva.
Um sistema tributário justo perpassa pela distinção entre justiça corretiva e distributiva de Aristóteles. Enquanto a justiça corretiva apenas recoloca os indivíduos em sua posição original, a distributiva faz escolhas acerca daqueles que são merecedores de uma política decisória de alocação das riquezas na sociedade. No Estado Democrático de Direito, para além de exercer violência sobre a coletividade, inclusive para tributar, o Estado possui a missão de satisfazer aspirações constitucionais de gerar uma sociedade livre, justa e solidária. Assim, a recente emenda constitucional que introduziu o princípio constitucional da simplicidade,1 age no sentido de proporcionar que os objetivos constitucionais do país sejam alcançados. Tal busca está sempre a exigir um confronto de forças nem sempre pacífico.
Enquanto o mundo se insurge após a imposição de tarifas de importações de produtos provindos de todo o globo para os Estados Unidos, o Brasil desde sempre impôs impostos proibitivos à entrada de produtos estrangeiros no país. No entanto, jamais se cogitou iniciar uma rebelião do chá2 para impedir que tal coisa ocorresse. Os tributos diretos e indiretos sobre o consumo afetam em maior proporção os mais pobres, que em termos absolutos gastam o mesmo valor que aquelas que possuem renda superior em múltiplos, não fazendo distinção baseada no poder aquisitivo. Os tributos que melhor observam a capacidade contributiva são aqueles que incidem sobre a riqueza, seja de renda ou de patrimônio.
Na mesma linha, o Brasil tributa os ganhos da pessoa jurídica com uma tarifa amena e, à exceção de outros dois países no mundo, não tributa os lucros e dividendos distribuído. Tal cenário irá ser afetado, ainda que maneira suave, pela instituição de um novo imposto voltado à tributação de altas rendas. O projeto de lei criando hipótese de incidência vem acompanhado de uma justificativa baseada sobretudo na quantidade modesta de indivíduos que detêm substancial parcela da riqueza nacional. Apesar de afetar poucos, o novo tributo desagrada um contingente vocal e influente da sociedade que, pouco dispostos em alterar o balanço de forças e ceder diante da necessidade em destinar-se a arrecadação gerada para corrigir as disparidades da tributação de renda de pessoas que não possuem capacidade contributiva, utilizam seu elevado efeito de reverberação e resistência para evitarem ser atingidos. Os mecanismos utilizados para escaparem à mudança serão os mais variados, de reorganização societária por planejamento tributário a opor-se diretamente à aprovação da lei, a mobilização das elites já teve início. Para sustentar a opulência e riqueza, no Brasil, vale tudo!
O ponto de inflexão de tais forças surge quando o Executivo, de modo ainda sobremaneira tímido, propõe alterar o exercício de forças trazendo um tributo inédito no país ao tempo em que amplia a isenção entre os estratos menos providos da sociedade. A isenção do imposto de renda para indivíduos que possuem renda mensal de até R$ 5.000,00 (cinco mil reais) vem acompanhada do imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM. A escolha de redistribuir com base em tal critério atende regras de ouro do Direito Tributário e Financeiro de destinar uma contrapartida da redução de receita, individualizando uma injustiça tributária sem precedentes a nível global, qual seja, a ausência de incidência tributária sobre dividendos. Já não era sem tempo que a fuga de capitais do país não fosse acompanhada da tributação sobre a parcelas dos mais ricos, a prescindir se pessoas físicas ou jurídicas.
Nesse cenário, o PL 1.087/20253 objetiva isentar contribuintes com uma faixa de renda de até R$ 5.000,00 mensais. Apesar de necessária ante os efeitos corrosivos da inflação, a medida mostra-se insuficiente para a justiça tributária que se espera dos que mais recebem no Brasil. No intuito de mitigar tal injustiça, o projeto vem acompanhado da nova hipótese de incidência tributária do imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM.4
O presente texto pretende trazer à discussão o cerne dos problemas de justiça distributiva no Brasil, uma vez que reformas pontuais mantêm o país em posição de desigualdade, tributando sobremaneira o consumo sem, contudo, atacar os grandes detentores de renda. A transmissão de bens e renda de geração em geração aumenta o vácuo entre os mais ricos e os desprovidos. Tal realidade se faz evidente ao constatar que o patrimônio gerado pelos mais ricos se multiplica enquanto entre os mais pobres se dissipa. O abismo que pervade as classes sociais no Brasil impedem a mobilidade e ascensão social, perpetuando a desigualdade social.
Apenas a título ilustrativo, vale trazer a voracidade com que os entes federativos tributam o consumo quando deveriam tributar a propriedade e a renda, tributos cuja competência constitucional foi alocada aos estados federados e municípios, respectivamente. Tal característica define um país desigual que impõe idêntico sacrifício aos mais ricos e o os mais humildes, uma vez que para ter acesso a um bem de consumo irão despender o mesmo valor a despeito da proporção que tal produto custe a cada indivíduo. Alguns desses problemas estão na esfera constitucional e exigirão um rearranjo total da sociedade e da federação, outros necessitam da vontade popular e representativa em alterar a vocação tributária do país.
A origem do atraso: de colônia geográfica à colônia geopolítica
A herança colonial do país é sintetizada em algumas expressões idiomáticas como “vá para o quinto dos infernos”, que refletem a ojeriza que o brasileiro possui à tributação. O quinto que a Coroa exigia como tributo da mineração foi desde sempre percebido como a usurpação do soberano de parcela que deveria ser inteiramente direcionada à elite nacional. Aqueles que detinham um capital criado por monopólio real julgavam-se ungidos por atributos que os distanciavam do resto da população.
O progresso advindo da independência e da república pouco alteraram o patrimonialismo que marcava a economia nacional. O instituto da escravidão, que extraía o que viria a se tornar, no sistema capitalista, de produção a mais-valor, apropriava-se de toda a produção de riqueza sem qualquer contrapartida, normalizando a ideia de retirar do trabalhador tudo que poderia ser espoliado sem que com isso sobreviesse o resultado morte. Passaram-se séculos, porém o estigma que acompanha a exploração do trabalho permanece inalterado.
Um país fundado na longa dicotomia de extração do trabalho escravo sem qualquer contrapartida à dignidade humana, convivendo com a tentativa de obter ganhos máximos pelas elites coloniais que se encontravam no território pátrio,5 trouxe como resultado o desprezo pela remuneração justa e, por parte do Estado, um apetite desmedido em arrecadar de quem não poderia nem sequer contribuir. A noção de tributação como denominador comum de distribuição de serviços e melhoria das condições de vida sempre foram vistas com suspeição e desconfiança.
Segundo o DIEESE, o salário mínimo necessário para fazer frente às pressões inflacionárias do país corresponde a um valor superior aos R$ 7.000,00 (sete mil reais). Portanto, a proposta de isenção de contribuintes que ganham menos de R$ 5.000,0 (cinco mil reais) mensais visa a atender uma capacidade contributiva inexistente. Se considerado nos cálculos os impostos sobre consumo e serviços, além de todos os tributos indiretos, resta indubitável que a isenção é o mínimo de política pública que tem por destinatário contribuintes indiretos que oneram uma substancial parte da renda pagando tributos. Acrescente-se a tal cenário a constante privatização de serviços, do público ao privado, e obtém-se como resultado um salário esmagado pela redução do poder de compra acompanhada pela corrosão do valor dos ganhos pela inflação.
O trabalhador brasileiro encontra-se refém dos juros que achatam o orçamento, ao mesmo tempo em que se endivida para fazer frente às necessidades básicas6 diante da pressão de viver uma vida a crédito.7 Através de uma política pública fomentada pelo próprio Estado, o sistema aprofunda as desigualdades e lança milhões à pobreza. Contra isso, a reforma tributária consiste em um passo decisivo à emancipação das parcelas mais vulneráveis da classe trabalhadora. Contudo, sem que seja abandonado o ajuste fiscal e orçamentário de maneira abrangente, não será possível alcançar os resultados almejados com as mudanças legislativas que se aproximam.
Um dos pilares dos instrumentos monetários à disposição da autoridade do Banco Central consiste na política dos juros. O discurso comumente adotado pelo clássico da economia ortodoxa está em reduzir a oferta de dinheiro que circula na economia para conter os efeitos da inflação. Como efeito colateral, tem-se um aumento da taxa de desocupação e uma perda de acesso ao crédito por parte do trabalhador. O problema se põe quando a inflação afeta a população, não obstante as políticas de juros restritivos e uma política de austeridade que age em detrimento da classe trabalhadora.8
Apesar de positiva, a presente política de tributação não altera algumas premissas de índole neoliberal adotadas pelo governo. A reforma tributária vem desacompanhada de uma expansão do crédito. O argumento utilizado para alterar apenas o aspecto tributário, porém não o de macroeconomia monetária, está em insistir que a expansão da arrecadação e o corte de gastos públicos sejam a única via para estabilizar a economia do país. O que, porém, se evidencia a cada dia com maior nitidez é que metas de inflação irreais, acompanhadas de políticas monetárias e fiscais austeras, geram como efeito final um sistema que, não obstante todo o sacrifício imposto à classe trabalhadora, encontra-se sempre refém do capital especulativo financeiro. Enquanto a submissão desmedida a tais interesses não for harmonizada com um reajuste de forças que priorize a classe trabalhadora, todo o desgaste político em aprovar uma reforma tributária não altera a carência que a ausência de Estado gera.
Caso o governo não abandone a política de austeridade a qualquer custo, nem mesmo uma iniciativa legislativa tão positiva quanto tributar dividendos e os mais abastados será capaz de modificar a dinâmica de encolhimento de uma ideia de Estado Social. Os preços públicos ou preços que o Estado pode controlar, porque atua diretamente na prestação do serviço ou exerce poder decisivo de como os serviços serão prestados, são o melhor termômetro para controlar preços e mitigar os efeitos nefastos produzidos pela corrosão do poder de compra causado por períodos inflacionários.
Conclusão e excertos sobre uma necessária redução da desigualdade
A desigualdade do país remonta à mesma razão de sua existência, a de conferir privilégios à nobreza lusitana. Os privilegiados mudam, porém, resta inalterada a ideia mesma de brasilidade, acompanhada da usurpação, do patrimonialismo e da extração da riqueza tornando bens comuns em privados.9 O compromisso instituído através da Constituição de 1988 encontra-se justamente em abandonar o sistema tributário que remonta à ditadura e estabelecer um parâmetro que atenda a uma aspiração de bem-estar coletivo. Encontrando-se o Código Tributário Nacional ainda em vigor, a questão que fica é se a aliança oligopolizada ali formada não foi mantida, não obstante a Constituição.
Uma melhor compreensão do fenômeno tributário e da intercambialidade de prestações sociais e tributárias nos conduz ao entendimento de que o Estado do Bem-estar Social perpassa a tributação e uma correlação de forças que busque não apenas corrigir desigualdades, mas efetivamente realizar uma redistribuição. As prestações sociais distribuídas através do benefício básico de prestação continuada (BPC), dos serviços públicos distribuídos à população e do acesso ao crédito constituem parte do mesmo processo de elevação das condições de vida da classe trabalhadora. A discussão acerca da ampliação da isenção do Imposto de Renda e da tributação dos dividendos eram medidas imprescindíveis para iniciar o debate acerca da desigualdade que permeia a sociedade brasileira. Contudo, o discurso inaugura, sem que se encerre o enfrentamento de questões prementes tais como o de conter o apetite das elites financeiras e do capital internacional sobre a pilhagem de porção significativa do orçamento ao pagamento de interesses da dívida. Ampliar a isenção tributária sem mexer na austeridade mostrar-se-á placebo no futuro, pois apenas o deslocamento de serviços na esfera estatal poderá funcionar como instrumento eficaz no controle de preços e da inflação, permitindo que a classe trabalhadora ostente poder de compra do salário não obstante as oscilações que o mercado constantemente impõe.

Notas:
Emenda Constitucional nº 132/23.
REBELO, Aldo; PAULINO, Luis Antonio. Reforma tributária: atravessar o rio pisando nas pedras. Princípios Revista Teórica, Política e de Informação, São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2008, 94: 50-64.
O inteiro teor pode ser encontrado no Projeto de Lei nº 1.087/2025, apresentado pelo Executivo.
Art. 6º do PL 1.087/2025.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. L&PM Editores, 2010.
Veja-se o celetista consignado que atua na linha acima proposta.
BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Companhia das Letras, 2010. ↩︎
MATTEI, Clara. A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. Boitempo, 2023. ↩︎
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Companhia das Letras, 2021. ↩︎

Livro: Delírios nervosos – o Rio de Janeiro de Orestes Barbosa, de Lucas Assis - Dilmar Miranda

Mais um envio primoroso do meu amigo Mauricio David, sobre um livro dos poetas, prosadores, cantores, compositores de outras época 

... . O poeta Manuel Bandeira considerava seu verso “tu pisavas os astros distraída” da valsa “Chão de estrelas” (1937), imortalizada na voz de Silvio Caldas, como o mais bonito da língua portuguesa, juízo reiterado por Rubem Braga, Sérgio Porto, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes, para citar alguns....

... mineiro sabe duas coisas bem, solfejo e latim”...

... Ainda jovem, Orestes Barbosa convive com a chamada “geração boêmia”, onde “despontam nomes como Olavo Bilac, Coelho Neto e os irmãos Arthur e Aloísio de Azevedo”. “Cada um de nós reproduzia a cidade… O Rio éramos nós’, escreve Martins Fontes nas suas ‘reminiscências da época de Bilac.” Outros nomes são agregados à geração anterior: Lima Barreto e João Paulo Barreto (João do Rio), que também alertam para a polarização “entre o encanto vertiginoso da modernização técnica e a visão trágica de seu avesso”...

 

Delírios nervosos – o Rio de Janeiro de Orestes Barbosa

 

Por DILMAR MIRANDA*

Comentário sobre o livro, recém-lançado, de Lucas Assis

1.

Confesso minha admiração pelo belo trabalho de Delírios nervosos – o Rio de Janeiro de Orestes Barbosa, devido aos inúmeros fatos abordados, à riqueza de informações e qualidade de suas análises, com belas ilustrações de artistas, como Palumbo, Kalixto, Di Cavalcante, Nássara, Millôr Fernandes e outros. Meu primeiro ímpeto foi pensar um texto que extrapolasse as linhas de uma resenha, talvez um ensaio, no limite, um pequeno livro. Matéria e vontade não faltavam. Contudo, uma vez aceito o desafio, vamos à resenha.

Comecemos pela sua personagem. Na memória e crônica da cidade do Rio das primeiras décadas do século XX, eis o talentoso Orestes Barbosa, “cronista, letrista, jornalista, romancista, panfletário, boêmio” (Lucas Assis), enfim, um completo artista das letras. O poeta Manuel Bandeira considerava seu verso “tu pisavas os astros distraída” da valsa “Chão de estrelas” (1937), imortalizada na voz de Silvio Caldas, como o mais bonito da língua portuguesa, juízo reiterado por Rubem Braga, Sérgio Porto, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes, para citar alguns.

A resenha exigiu um mergulho na história do Rio, desde o início do século XIX, com a vinda da corte lusa, época importante para a formação da nossa música popular, elemento imprescindível para a análise da vida e obra de Orestes. Como sabemos, a corte chega em março de 1808, após abandonar Lisboa às pressas em fins do ano anterior, fugindo das tropas de Napoleão já próximas de Portugal, em retaliação à política lusa de boas relações com a Inglaterra.

Mesmo considerando a rica vida musical do chamado “milagre mineiro” na época, cuja região das Gerais era dotada de uma obra vista como fantástica (“mineiro sabe duas coisas bem, solfejo e latim”, dizia-se então), não se pode desprezar o efeito provocado com a vinda da corte. Dá-se um episódio inédito na história dos países colonizadores.

A corte metropolitana, com seus altos funcionários, clero, preceptores, militares e toda criadagem, transfere-se para uma cidade da colônia, tornando-a a capital de todo o reino. Fez parte da bagagem real o piano, sendo fabricado a partir de 1834 aqui no país. Além disso traz novos hábitos e gêneros musicais como a ópera, a valsa e outras danças cortesãs, além de práticas musicais de salão como os minuetos e gavotas.

Para abrigar o séquito real, cerca de dez mil casas foram pintadas com as letras PR, de Príncipe Regente, o que o espírito carioca passou a interpretar a partir do seu real sentido: Ponha-se na Rua. Até então, o Rio era um burgo colonial. A população estimada entre 60 a 80 mil pessoas (dois terços negra, muitos escravizados e poucos libertos), recebe um imenso aparato administrativo. Calcula-se em torno de 10 a 15 mil pessoas do séquito inicial, chegando a 20 mil com os correr dos anos.

O Rio torna-se a nova capital do reino. O acanhado burgo transforma-se no esplendor da corte, com novas casas de negócios, salões de recepção, edificações refinadas, novos usos e costumes. A corte traz um grande problema para sua segurança, sendo logo criado o cargo de Intendente Geral da Polícia. Uma das suas primeiras ações foi proibir as rótulas, um biombo de lâminas de madeira trançadas, uso árabe muito difundido para proteger a mulher, no interior do lar, dos olhares invasivos masculinos desfechados das ruas. Sua descrição acha-se em Sobrados e mocambos de Gilberto Freyre. Temendo atentados contra o Príncipe Regente ou familiares, as janelas passam a ter vidros transparentes, cuja substituição maciça garante bons lucros à indústria inglesa de ferro e vidro.

Segundo Edinha Diniz, com essa proibição, a mulher chega à janela e logo ganha a rua. Chiquinha Gonzaga, nascida em 1847, portanto após a proibição das rótulas, expressa esse novo espírito da mulher carioca. A partir daí, esse ambiente será importante para a prática das serestas, inclusive com a presença feminina, o que será herdado pelas noites cariocas da época de Orestes Barbosa.

Outro fato relevante dessa mesma época é a iluminação a gás instalada em 1854 no Rio pela empresa de Irineu Evangelista de Souza (Barão de Mauá), oferecendo maior segurança ao lazer noturno. Antes, as ruas eram mal iluminadas por lampiões a óleo de baleia. Com a nova iluminação, prolonga-se a vida noturna, oferendo maior segurança à vida boêmia nos espaços públicos das ruas e praças, como as serestas, além do incremento das práticas musicais nos recintos privados dos salões.

2.

A nova cena urbana entretece um rico fluxo musical: o encontro de músicos de procedência afro-popular formados na prática dos espaços públicos, com os intérpretes da música luso-europeia aceitos nos salões, exímios intérpretes de gêneros como a polca, mazurca, gavota etc., passo crucial para a criação de novos gêneros.

Com esse rico encontro, partiam para as serenatas onde se destacavam três gêneros propícios para a vida boêmia noturna, herdados pela geração de Orestes: a modinha, o choro e a valsa.

A modinha terá grande importância para o novo cenário musical. Sua prática estende uma ponte entre dois mundos: o Brasil colonial arcaico, de evocação ainda rural, e o novo Brasil imperial semiurbano, que vinha se transformando desde a vinda da corte. O debate sobre a origem da modinha é polarizado por Mario de Andrade, defensor da “proveniência erudita [lusa] inconteste das Modinhas”, e José R. Tinhorão, defensor da sua origem brasileira, com o carioca Domingos Caldas Barbosa, introdutor do gênero na corte imperial em Lisboa, no século XVIII, onde faz sucesso, com sua forma “sestrosa” de versejar e tocar a viola de arame.

Em Portugal, os músicos passam a compô-las ao piano, elitizando sua forma. A modinha retorna ao Brasil, reconquistando praças e ruas, acompanhada agora ao violão. Sua maior contribuição está na liberdade rítmica do fraseado, no limite, ad libitum, termo que designa a interpretação mais livre, criando assim um padrão de performance das canções seresteiras. Na mesma época das serestas iluminadas pelo lampião a gás, as noites se prologam ao som do choro, um modo peculiar de grande virtuosismo, executado por músicos talentosos chamados de chorões, cujo repertório incluía as modinhas, polcas, mazurcas, gavotas, schottisches (xote), canções, lundus, valsas etc.

“No Rio da assomada do século não se compreende lua no céu sem serenata, sem violão e sem cantigas” citação de Luís Edmundo em O Rio de Janeiro do meu tempo. Nas décadas da virada do século XX, os artistas versejavam as modinhas, nem sempre falando de amor, “mas repercutiam também os problemas urbanos, comentavam os fatos e acontecimentos políticos ou homenageavam figuras da cidade”. O autor refere-se à “Guerra de Canudos” e à figura de Santos Dumont em “A conquista do ar”, modinha de Eduardo das Neves.

Ainda sobre a modinha, no capítulo Concerto moderno, dedicado às serestas, Lucas Assis cita João do Rio, parceiro nas letras e boemia de Orestes Barbosa, em “A Alma encantadora das ruas”. No mesmo capítulo, cita um trecho de Bambambã descrevendo o encontro de Orestes com Catulo da Paixão Cearense falando das antigas serestas com flautaviolão e cavaquinho e dos cantadores “que andavam emocionando pelas noites de luar”. Além de introduzir o violão nos salões, ele é citado como um dos mais importantes modinheiros da época.

A valsa foi um gênero de grande importância para o repertório cancionista de Orestes Barbosa. Oriunda do meio camponês europeu e depois aceita nas cortes como ritmo dançante de pares enlaçados, novidade para a época, aqui nos chega sofrendo uma alteração rítmica para se adequar ao ambiente noturno do sereno. A despeito do ternarismo rígido originário do metrônomo da valsa vienense (UM – dois – três, com o 1º tempo fortemente marcado na entrada do compasso 3/4), um traço típico da valsa brasileira foi liberar-se da ossatura rígida do compasso ternário, dando origem ao “compasso ternário seresteiro”.

Conforme vimos na modinha, a tendência do andamento era mais livre, tendendo à rítmica ad libitum, o que denominamos de “rítmica derramada”. Assim, nas noites do Rio, a valsa passa a ser interpretada, “temperada com uma pitada de malemolência e sotaque local, gerando inclusive a peculiar valsa-canção” (citação de um encarte), tornando-se uma das formas prediletas de nossos intérpretes. E assim chegamos ao “Chão de estrelas”, valsa-canção obrigatória do nosso cancioneiro popular seresteiro.

3.

Passemos à resenha dos capítulos do livro de Lucas Assis. Além da Introdução, a obra abarca seis capítulos – Miolos de ouro, veio de crônicas; Flagrantes da vida carioca; Concerto moderno; Palco iluminado; Cenários do nosso amor; O ouvido da cidade -, e o epílogo Astro desastrado. Já na Introdução, Lucas refere-se à grande intervenção que o Rio sofre em 1904: a operação O Rio civiliza-se para as elites, e operação Bota-abaixo para os segmentos populares, termos para designar o movimento reformista da gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906), com apoio do presidente Rodrigues Alves.

O tempo do progresso é voraz. Em menos de 9 meses são demolidos mais de 600 prédios e moradias populares da área central. Limpo o terreno, retificam-se ruas, rasgam-se largas avenidas como a Av. Central (depois avenida Rio Branco), onde constroem-se praças e edificam-se prédios suntuosos.

Filiada ao ideal positivista, tema que irá inspirar o samba Positivismo de Orestes Barbosa e Noel Rosa em 1933, objeto inclusive da admiração de João do Rio, a ideologia dominante persegue o ideal da civilização e do progresso, encontrando no engenheiro Pereira Passos, um Haussmann tropical.

Eis um trecho do samba:

O amor vem por princípio
A ordem por base
O progresso é que deve vir por fim
Desprezaste esta lei de Augusto Comte
E foste ser feliz longe de mim

Pereira Passos havia estudado na França (1857-60), e lá presencia a grande reforma de Paris, na gestão do prefeito G.E. Haussmann, que rompe com a arquitetura medieval de ruas estreitas e tortuosas, abrigo das classes dangereuses (classes perigosas), conforme denominação da época, o que não foi suficiente para impedir o ímpeto revolucionário de 1871, das barricadas da Comuna de Paris. O prefeito carioca mereceu um livro de autoria de Jaime L. Benchimol intitulado Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovação urbana da cidade do RJ no início do século XX.

Na época, para combater o que consideravam mau-gosto, as elites criam a Liga Contra o Feio, e a Liga da Defesa Estética. Eis a saudação de Bilac à operação O Rio civiliza-se: “Há poucos dias, as picaretas, entoando um hino jubiloso, iniciaram os trabalhos de construção da avenida Central, pondo abaixo as primeiras casas condenadas … No aluir das paredes, no ruir das pedras no esfarelar do barro, … um grande gemido. Era o gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso, do Opróbio. A cidade colonial imunda, retrógrada …estava soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais que desabavam. Mas o hino claro das picaretas [regeneradoras] abafava esse protesto impotente, no seu clamor incessante e rítmico, celebrando a vitória da higiene, do bom gosto e da arte!” (Revista Kosmos, março de 1904).

Por outro lado, mereceu também do modinheiro Madruga, citado por João do Rio, o título provocador de Nero tropical:

Venha quanto antes D. Elisa
Enquanto Passos não atiça
Fogo na cidade.

O escritor Pedro Nava também possuía uma visão crítica à gestão do prefeito Pereira Passos, conforme consta em suas Memórias, ao considerá-lo mais demolidor do que construtor.

4.

No abrir do novo século, inicia-se um Rio conflituoso, herdado por Orestes Barbosa, nascido na Aldeia Campista, subúrbio carioca, e atento aos seus efeitos. Não era “um observador de gabinete, já que vive nas esquinas, nas ruas e cafés, madrugada adentro”. Como vimos acima na citação da Kosmos, “muitos foram aqueles que escreveram sobre a cidade em que viviam, registrando as transformações urbanas, políticas e sociais, como refletindo sobre as implicações destes processos, por vezes projetando um ideal de ‘civilização’ e ‘progresso’ ou deles desconfiando”.

Ainda jovem, Orestes Barbosa convive com a chamada “geração boêmia”, onde “despontam nomes como Olavo Bilac, Coelho Neto e os irmãos Arthur e Aloísio de Azevedo”. “Cada um de nós reproduzia a cidade… O Rio éramos nós’, escreve Martins Fontes nas suas ‘reminiscências da época de Bilac.” Outros nomes são agregados à geração anterior: Lima Barreto e João Paulo Barreto (João do Rio), que também alertam para a polarização “entre o encanto vertiginoso da modernização técnica e a visão trágica de seu avesso”.

Com apenas 24 anos em 1917, Orestes Barbosa publica seu primeiro livro, Penumbra Sagrada, coletânea de poesiasSegue em 1921, a plaqueta Água Marinha. Passa a publicar seus poemas apenas em jornais ou revistas. Dedica-se nas crônicas aos seguintes temas: o lampião a gás, a eletricidade, o bonde, as ruas e avenidas, a multidão, as moradias modernas (os bangalôs). Na era do disco e do rádio, publica A Fêmea, cujo enredo lhe traz dissabores e um processo jurídico.

Duas obras merecem destaque: Bambambã! (1923) e Samba – sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores (1933), únicas obras reeditadas, a primeira em 1993, pela Prefeitura da cidade do RJ (Coleção da Biblioteca Carioca) e a segunda em 1978 pela FUNARTE, RJ. Bambambã! merece destaque pelo seu teor crítico voltado para as ações públicas do poder contra as práticas musicais populares. A primeira crítica é desfechada contra a operação Bota-abaixo, ao dar o golpe de misericórdia nas noites cariocas, com a demolição das pensões do centro. Assim lamenta o autor: “O governo Rodrigues Alves quis reformar tudo. Reformou a cidade com Frontin e Pereira Passos. … e acabou com a serenata. Esta parte coube ao chefe de polícia, Cardoso de Castro [da Guarda Civil do Distrito Federal]”.

Na 2ª citação, em Samba, critica a condenação do violão, contra o qual havia uma legislação específica por ser visto como instrumento degradante, citando uma ação repressiva, no tempo do chefe de polícia major Vidigal (séc. XIX). “O major Vidigal, ao remeter certa vez, a um juiz … desta cidade, um rapaz ‘acusado de serenata’, assim descreveu no ofício: ‘E se V. Ex. ainda tiver sombras de dúvidas quanto à conduta do réu, queira examinar-lhe as pontas dos dedos e verificará que ele toca violão”.

Multiplicam-se os relatos da época contra a polícia que não dava tréguas ao lazer popular. O delegado, ou o chefe de polícia, era figura onipresente nas falas dos compositores da época, como Donga e Pixinguinha, que depõem ao prof. Borges Pereira da USP. “A polícia, sem mais aquela, cercava a casa da gente onde o pessoal se divertia. Sambista era malvisto, violão também” (Donga). “Nessa história da polícia, o Donga tem razão. Quando eu era menino. ia assistir às batucadas dos negros no meio do mato, a polícia perseguia e a negrada ia batucar no mato, escondido” (Pixinguinha). Com o tempo, as coisas mudam.

Em crônica do Bambambã! Orestes Barbosa relata “o percurso do ‘dificílimo e belo’ instrumento até chegar aos salões elegantes, empunhado por homens vestidos de frackSeu ingresso nos salões, segundo o cronista, “tem sua personificação em Catulo da Paixão Cearense, que ‘com toda sua mudança para poeta expoente do sertanismo’, é conhecido [no Rio], e em todo o país, pelas ‘modinhas sonorosas’”.

5.

No seio das grandes mutações urbanas, o cronista nos convida “a conhecer e acompanhar os tipos do Morro da Conceição, dos bairros do Estácio, da Saúde, da Aldeia Campista, os notívagos do centro, os sambistas e a história do samba, os ‘vícios’ urbanos, os ‘astros’ das esquinas e das revistas, as vitrinas iluminadas e os recantos do ‘Rio criminoso’”. A partir dos anos 1920, o Orestes Barbosa atento às mutações das ruas, registra o sumiço dos “pianos ambulantes, realejos, gaitas, sanfonas, …, guitarras e bandolins” cujo desaparecimento era causado, segundo ele, pela ação de Pereira Passos. “Tempo que, sob o progresso urbano, marcava o fim do ‘tempo das serestas’”. Registra-se nessa época a retomada das intervenções do centro, com a derrubada do Morro do Castelo, visando as comemorações do Centenário da Independência, em 1922, com consequências na boemia da cidade. A memória das demolições do Bota-abaixo vem à tona.

Na vida boêmia carioca, como no Café Nice, nas redações dos jornais, espaços que muitas vezes se cruzavam, Orestes era respeitado e temido. Em Memórias do Café Nice: subterrâneo da música popular e da vida boêmia do Rio de Janeiro, o jornalista Nestor de Holanda dedica o capítulo final do livro ao “famoso letrista”. Chegando ao Rio, no início dos anos 1940, recorda que Orestes era visto como autor de belas canções, e também temido como jornalista.

Depoimento semelhante encontramos no livro Parceiros da Glória: meio século na MPB, memórias póstumas de David Nasser, onde um capítulo é dedicado a Orestes Barbosa. São várias as referências e homenagens que percorrem no nosso cancioneiro popular mais recente, chegando às portas da época presente. Em Figuras e coisas da música popular brasileira, João Ferreira Gomes (Jota Efegê), autor de Ameno Resedá, o rancho que virou escola Maxixe, a dança excomungada, reverencia Orestes, como “o cronista que toda a cidade conhece”, e o louva como precursor das crônicas de morro.

É relevante sublinhar as intenções de Lucas Assis ao escrever que seu trabalho, ao recorrer às reportagens, poemas e canções de Orestes, “trata de aspectos da crônica social como formulada desde o Rio de Janeiro, então capital da República”. A descrição urbana das crônicas e canções do compositor, bem como as dos colegas “é encarada a partir do seu topos” (do grego antigo τόπος, para designar lugar, sítio, terra), termo usado para designar o contexto que embasa um argumento. “O poeta e o jornalista, a crônica e a música popular, caminham juntos. A crônica da cidade, ou cidade da crônica (sic) não pode ser encarada numa visada apenas, … como também, não está desconectada de sua experiência, de sua vida social” (LA). Outras penas e vozes se juntam a Orestes, como José do Patrocínio Fº, Benjamim Costallat, Genolino Amado … e outros.

Em Cenários de nosso amor, Lucas Assis chama a atenção para a figura do Orestes flâneur. Assim como o filósofo Walter Benjamin, ao descrever Paris, capital do século XIX, convidando-nos à flânerie, a experiência de ver a cidade com olhos despreocupados, durante passeios ao léu e sem destino. “Na crônica como na canção”, Orestes Barbosa nos convida a acompanhá-lo, “página a página, verso a verso” como um flâneur do Rio de janeiro, capital do século XX.

E assim, com o livro aberto, “o leitor ouve o ronco dos motores, tropeça nos camelôs, esbarra nos jornaleiros, ouve repetidos os pregões. Na avenida, diz o cronista, ‘vê-se o mundo’”: “Estou na avenida ouvindo sambas. Em cada esquina há dedos tamborilando em caixas de fósforo”. A cidade é a moldura viva do flâneur. Com o impiedoso “progresso técnico”, parece que a cidade não mora mais aqui, ou seja, na alma do flâneur. Numa passagem nostálgica do livro Samba, um saudoso Orestes lamenta: “Que fim levou o homem dos sete instrumento? A carroça do caldo de cana, que tocava música também acabou”.

6.

Nos limites da resenha, passo a enfatizar o livro Samba – sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores, abordando o capítulo o Ouvido da cidade, pela relevância de seu teor e riqueza de análises de personagens e ambiente da época, para a gestação do gênero identificador de nossa moderna música popular urbana e seus principais criadores e intérpretes.

Num ano também rico na criação de canções, o livro vem a público em 1933, alguns anos após o samba ser consagrado no carnaval carioca, nos programas radiofônicos, bem como em discos gravados pelo sistema fonoelétrico, substituindo as gravações fonomecânicas, sofrendo disputas acirradas sobre suas origens, autorias e definições do gênero, como a célebre polêmica entre Donga e Ismael Silva, envolvendo, além do samba, o maxixe. Acrescente-se ainda à época, o processo de profissionalização artística nos meios radiofônicos e discográficos.

Como modelo do artista profissional Orestes Barbosa aponta o cantor Francisco Alves. Seu nome aparece como artista que usava seu prestígio para negociar parceria em sucessos da época, em troca de sua difusão no rádio e disco a exemplo do samba Se você jurar de N. Bastos e I. Silva. Quem participava desse recurso era tachado de com(pro)sitor, termo usado pelo próprio Orestes Barbosa.

Várias passagens de Orestes Barbosa citadas por Lucas Assis se dedicam a outra grande polêmica sobre a origem do samba. Vejamos algumas. Na página inicial do Samba, eis uma declaração de identidade e de princípios do gênero, portador de sensíveis afetos, proferindo a razão a que veio: “O samba é carioca. A emoção da cidade está musical e poeticamente definida no samba”.

Este é o estilo da escrita de Orestes Barbosa no livro Samba, qualificado de síntese telegráfica, sem perder a densidade de seus sentidos e intenso afeto à nossa música popular. Vejamos mais alguns exemplos: “O carioca, diverso em tudo, de todos os povos, criou a sua música original. Este livro, que é a história do samba, mostra este gênero musical em plena definição. Seus músicos, seus poetas e cantores, aqui aparecem, destacados de outros músicos, de outros poetas e de outros cantores do próprio Brasil”.

E: “O Rio, laboratório de emoções, criou a sua alma, e com ela o seu ritmo musical”. Mais adiante reitera: “É carioca. Eles têm que respeitar!”.

Numa surpreendente e certeira passagem, Orestes Barbosa menciona o filósofo Artur Schopenhauer que profere ser a música expressão do “em-si” do fenômeno. Ou, dito de outra forma: a palavra descreve o mundo, já a música é o próprio mundo.

Como estratégia editorial, Samba estava prometido para 1932, para aproveitar a recente institucionalização do carnaval, mas não consegue cumprir o prometido. Sai no início do segundo semestre de 1933, quando sai a público, meses antes, Na roda do samba de Francisco Guimarães, o Vagalume, ambos envolvendo uma candente discussão sobre o samba e o carnaval.

O estilo de Orestes Barbosa “enlaça ‘reminiscência’ (testemunha ocular) e ‘investigação’ (crônica histórica), ou, como pontua o autor, ‘reportagem’ e ‘reivindicação’, uma vez que ele contava uma história colhida ‘no meio dos sambistas da terra em que nasci’. O ‘mérito’ de Samba devia-se, então, à ‘autoridade’ do autor. Jornalista, compositor, notívago, dono das calçadas, escritor e personagem daquela história, Orestes não era um observador alheio. ‘Eu sou da rua. E esta autoridade ninguém me negará’… Pelas ruas da cidade, no Buraco Quente, na Praça Onze, ou sentado à mesa no Café Nice [espécie de quartel general da boemia carioca], Orestes Barbosa anota o ‘registro imprevisto das emoções’.

No livro, ao desfilar suas impressões, o cronista, em sobressaltos, como característico no seu estilo taquigráfico, [como um flâneur] convida o leitor a ‘passear’ com ele ‘nos morros, nos subúrbios, nos arrabaldes, nas rampas marítimas – em todas as claridades e em todos os desvãos soturnos onde vive a alma do povo singular da cidade mais linda que o mundo tem’” (LA).

Orestes elogia o carnaval da época, por julgar que, com a República, a festa tinha se livrado do entrudo luso e “mudado para melhor”.

“Já não há mais os foliões de graçola sem sal.
Hoje o carnaval é alegria.
E o samba.
O samba dominando.
Sai do Rio e invade os Estados.
O Rio influi”.

As escolas de samba, cuja organização pioneira, a “Deixa falar” do Estácio, saíra pela primeira vez em 1929, recebem elogio de Orestes ao afirmar que as “escolas de samba de hoje são organizações perfeitas”. Na página 28, duas menções fundamentais para o moderno samba urbano: o Estácio e o compositor Newton Bastos, coautor de Se você jurar. Na página seguinte os famosos versos que fazem a história da polêmica do que seria o primeiro samba, envolvendo Donga e Ismael Silva, visto na época como “encrenca feia”, disputa reacendida por Sérgio Cabral décadas mais tarde:

“Se você jurar,
que me tem amor,
eu não posso me regerar.
Mas se é para fingir, mulher,
a orgia assim não vou deixar”.

Desde essa época, nos fica certo qual incertos eram os parâmetros definidores do gênero, na discussão do “primeiro samba”: Jura, Pelo Telefone, Faceira? O diálogo promovido nos anos 1960 por Sérgio Cabral, décadas depois da famosa polêmica sobre o “primeiro samba”, entre Donga e I. Silva, vinda dos tempos heroicos dos inícios da profissionalização do artista popular, outro tema de Orestes, fica claro que a questão ainda persistia. À pergunta sobre o verdadeiro samba, eles respondem: Donga: Ué. Samba é isso, já muito tempo; [canta Pelo Telefone].

Ismael: Isso é maxixe.
Donga: Então o que é samba?  
Ismael canta: Se você jurar.
Donga: Isso não é samba. É marcha.

O próprio Donga, em entrevista para o MIS do RJ, afirma: “fiz [Pelo Telefone] não procurando me afastar muito do maxixe, música que estava bastante em voga”. A disputa entre os dois gêneros, além da questão musical de natureza rítmica, buscava razões práticas. Os sambas amaxixados, com o movimento dos braços e do corpo para as laterais, “eram bons para dançar” em recintos fechados, mas “ruins para dançar e caminhar”, conforme exigiam os novos tempos que começavam a favorecer sua prática em lugares públicos.

No diálogo, diz ainda Ismael: “a gente precisava de um samba para movimentar os braços para a frente e para trás durante o desfile”. Babau da Mangueira sintetiza a necessidade do novo gênero, um tipo de samba próprio para ser dançado e cantado ao mesmo tempo no cortejo: era samba de sambar. Surge a síncope do moderno samba urbano, tema que irá atrair a consideração e a pena de vários autores.

A personagem dessa época mais reverenciada por Orestes foi João Batista da Silva, Sinhô.

“Mulato disfarçado, esguio e boêmio, em um
Extraordinário valor.
O Jura foi uma consagração:
‘Jura, jura,
Pelo Senhor…’”

Orestes Barbosa cita ainda as canções Cansei Gosto que me enrosco de Sinhô.

Numa página de poucas frases, típica de seu estilo telegráfico, Orestes Barbosa cita o título da canção: Um sou eu, o outro não sei quem é, menção ao samba de Sinhô que se envolve em mais uma encrenca sobre a autoria. Sinhô teria auto atribuído o título “Rei do samba”, o que não agradou a outros autores. Na época, com as chances de se profissionalizar, cada um buscava demarcar seus territórios: o samba como gênero bem definido e a individualidade autoral de sua criação.

7.

A briga em torno de Pelo Telefone havia provocado o primeiro dissenso grave entre eles, apartados agora em dois grupos: a turma do Donga x a turma do Sinhô, inspirando composições com mútuos ataques. Sinhô, referindo aos frequentadores da casa da famosa baiana, Tia Ciata, na Pequena África, cujas festas costumavam se prolongar por mais de uma semana, lança no carnaval de 1918, Quem são eles? também conhecida como A Bahia é boa terra, logo seguida com a explícitaprovocação Ela lá e eu aqui, com clara intenção de retaliação.

Sinhô é revidado com Já te digo, de Pixinguinha e o irmão China, no carnaval seguinte, pegando pesado com ataque direto à “feiura” de Sinhô, visto como péssimo flautista.

“Um sou eu,
O outro eu sei quem é…
Ele alto, magro e feio …
Ele fala do mundo inteiro
E está avacalhado no Rio de Janeiro.
No tempo que tocava flauta,
Que desespero!
Hoje, ele anda janota,
Às custas dos trouxas do Rio de Janeiro.

A disputa mais célebre de autoria se dá com Sinhô e Heitor dos Prazeres por causa do Gosto que me enrosco,quando Sinhô diz a famosa frase “samba é que nem passarinho; quem pega é dono”. Sinhô, com o autoatribuído título Rei do samba, segundo seus desafetos, era o rei das apropriações de obras alheias. Contra isso, Prazeres reage com dois sambas: Olha ele Rei dos meus sambas, cujos versos desferem um ataque frontal a Sinhô.

“Eu lhe direi com franqueza…
Tenho razão de viver descontente
És conhecido por ‘bamba’,
Sendo “rei” dos meus sambas.
Assim é que se vê
A tua fama, Sinhô
Desta maneira é rei
Eu também sou!

Ainda sobre as suas origens, Lucas Assis cita a letra de um samba de Oswaldo Silva de 1932, cuja disputa entre cariocas e baianos continua acessa.

O samba
Para ser bem brasileiro
Tem que ser feito
No Rio de Janeiro (bis)
O carioca
Não tem medo de moamba
E na Bahia
Só se fala em vatapá
Caruru e mungunzá
E mingau de tapioca
O samba é a canção
Que anima o carioca
Substitui o maxixe
Qualquer dia vai à Europa.


O que é contestado com o samba lançado por Carmen Miranda, em 1935:

Foi na Bahia
Que o samba apareceu
E aqui no Rio
Ele um dia ingressou
Assim venceu
Depois de um desafio
O samba subiu o morro
Triunfou com harmonia.

“No debate que se travou na imprensa e na letra das canções, o motivo da origem identifica laços e filiações, situados desde a experiência e memória daqueles que há muito estão ‘dentro do samba’”. A disputa da origem parece interminável. Uma nova discussão se impõe definindo os limites das origens, não apenas entre Rio e Bahia, mas recuando ainda às origens primeiras no solo africano. Além da discussão sobre sua paternidade, surge outra: se desceu do morro ou floresceu no asfalto. Em meio a tais disputas sobre a origem, é sempre bom dizer origens e não origem para não cair na armadilha do mito de origem.

Lucas Assis toca um ponto crucial da discussão sobre o moderno samba urbano: o papel dos “bambas do Estácio”. “Com os irmãos Rubem e Alcebíades Barcelos, personificavam os tempos ‘áureos’ da turma do Estácio, período em que o samba começou a ser ‘compreendido’ na cidade”. Para sua integração no carnaval de rua e nos desfiles das Escolas de Samba, foi fundamental a introdução do surdo de marcação para se libertar de suas origens amaxixadas.

8.

Retornemos ao samba de sambar de Babau da Mangueira.

O novo samba seria responsável por uma mudança sutil na figuração de sua rítmica básica. Para adequá-lo ao movimento da rua, é propiciado um andamento mais leve e solto dos foliões. Para fazer avançar o samba, é introduzido o surdo de marcação, cuja pancada faz prevalecer o tempo forte do ritmo binário 2/4. Assim, a batida no 2° tempo do compasso, pela pancada do surdo, de som mais grave, contribuiu para anular o amaxixado do ritmo. A par disso, outros instrumentos de registro médio e agudo, como o tamborim, preenchem os claros entre os tempos fortes do surdo. Essa iniciativa teria partido dos irmãos Bide e Marçal, segundo depoimento de Heitor dos Prazeres Filho.

Outro efeito sutil no pulso foi gerado pela articulação da nova batida com a nota de antecipação. Recuada no final do compasso, esta passa a anunciar no compasso anterior, a nota idêntica situada no compasso seguinte, roubando seu valor, o que, por si só, já quebrava a previsibilidade rítmica do seu andamento. A flutuação provocada pelo balanço, entre o tempo fraco e o tempo forte, favorecia uma leve sensação de vazio espacial, exigindo seu preenchimento pelo movimento do corpo que, num só instante, dançava e caminhava, cujo ritmo articulava, no mesmo movimento, tempo e espaço.

Assim, nessa malha entretecida por tempos de intensidades e distintas durações explícitas, tal experiência passa a provocar uma sensação de tempo suspenso e vazio, atraindo o corpo a ocupá-lo. É a tal síncope do samba moderno. Ou seja, a síncope resultante dessa operação, como diz Muniz Sodré, incita as pessoas a preencherem o tempo vazio “com a marcação corporal – palmas, meneios, balanços, dança. É o corpo que também falta – no apelo da síncope. Sua força magnética, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço”.

Não é difícil fazer a experiência. Pela entrega efetiva à síncope do samba, pode-se sentir o apelo da dança através da sensação de leveza corporal. O efeito dinâmico, suavizado pelo ritmo samba no corpo dançarino, fica claro com essa citação de Raymond Williams, aplicável ao samba de sambar: “Parece claro que o ritmo é uma maneira de transmitir uma descrição de experiência, de tal modo que a experiência é recriada na pessoa que a recebe não simplesmente como uma ‘abstração’ ou emoção, mas como um efeito físico sobre o organismo – no sangue, na respiração, nos padrões físicos do cérebro”.

É a insustentável leveza do corpo negro dançante.

 

*Dilmar Miranda é professor do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará. Autor de Tempo da festa x tempo do trabalho: carnavalização na belle époque tropical (Dialética).

Referência



Lucas Assis. Delírios nervososo Rio de Janeiro de Orestes Barbosa. Fortaleza, Plebeu Gabinete de Leitura, 2025.


terça-feira, 1 de abril de 2025

Livro: Políticas Públicas no Brasil: Avanços e Desafios: Benjamin Miranda Tabak, Bernardo Oliveira Buta, Débora Cristina Soares Santos; Julio Cesar de Aguiar (eds) (2025)

Políticas Públicas no Brasil: Avanços e Desafios (2025)


O livro aborda a diversidade e a complexidade das políticas públicas brasileiras, oferecendo uma análise crítica dos desafios e avanços institucionais que moldam o desenvolvimento social e econômico do país. Com capítulos que tratam de temas como gênero, segurança, educação, inclusão social, tecnologia e saúde indígena, a obra combina métodos empíricos e documentais para oferecer uma visão abrangente. Destaques incluem a análise da perspectiva de gênero no sistema judicial, o uso de inteligência artificial no Judiciário, a política de busca por pessoas desaparecidas, câmeras corporais na segurança pública e a influência de organismos internacionais na educação básica. O livro também explora questões de financiamento de políticas infantojuvenis, renúncia de receitas tributárias, publicidade de alimentos ultraprocessados e a saúde indígena, entre outros. Resultado de uma colaboração entre pesquisadores de instituições renomadas como FGV, Fiocruz e USP, esta obra é essencial para acadêmicos, gestores públicos e interessados no campo das políticas públicas. Financiado pela CAPES e coordenado pelo Laboratório Experimental de Políticas Públicas da FGV, o livro oferece insights inovadores e práticos para fortalecer as ações governamentais no Brasil.

ORGANIZADORES: Benjamin Miranda Tabak; Bernardo Oliveira Buta; Débora Cristina Soares Santos; Julio Cesar de Aguiar

AUTORES: Ayla Christina Alves dos Santos; Benjamin Miranda Tabak; Camila Henning Salmoria; Débora Cristina Soares Santos; Diego Agostinho Calixto; Eric Rodrigues de Sales; Gabriel Belchior Navarro; Hadassah Laís de Sousa Santana; Ismael Deus Marques; Jacinta de Fatima Sena da Silva; James Frade Araujo; João Marcos Moreira Teixeira; Julio Cesar de Aguiar; Kettilly Ingrid de Queiroz; Layla Maria de Sousa Santos; Lizandro Lui; Marcus Vinícius Pereira Júnior; Roberta de Freitas Campos; Vander Mendes Lucas; Wandemberg Venceslau Rosendo dos Santos


  • Arraes Editores; 1ª edição (7 março 2025)
  • Idioma ‏ : ‎ Português
  • Capa comum ‏ : ‎ 273 páginas
  • ISBN-10 ‏ : ‎ 6559294897
  • ISBN-13 ‏ : ‎ 978-6559294893