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quinta-feira, 10 de julho de 2025

Clóvis Moura e a América Latina - Gabriel dos Santos Rocha (Blog da Boitempo)

Clóvis Moura e a América Latina

Por Gabriel dos Santos Rocha
Blog da Boitempo, 10/07/2027

.. A emancipação dos subalternos foi um interesse constante que perpassou toda a obra e o engajamento político de Clóvis Moura...

"O ano de 2025 marca o centenário de nascimento de Clóvis Moura (1925-2003). O crescente interesse por sua obra neste primeiro quarto do século XXI mostra a atualidade de seu pensamento. Isso se deve não apenas à genialidade do autor, mas também aos principais problemas por ele pautados, os quais continuam na ordem do dia, a exemplo da exploração da classe trabalhadora pelo capital e do racismo como ideologia de dominação no capitalismo."
Publicado em 10/07/2025


Clóvis Moura foi um intelectual polígrafo: jornalista, poeta, crítico literário, historiador e sociólogo. Sua produção nas ciências humanas é sobretudo ensaística, teórica e metodologicamente orientada pelo marxismo. Seus principais trabalhos estão nos campos da história e da sociologia. No entanto, o autor também dialogou bastante com a antropologia e a economia política. Embora tenha escrito sobre assuntos variados, Moura é conhecido por seus estudos sobre o negro na história do Brasil. Esse certamente foi o tema ao qual mais se dedicou. Ao longo de quase cinco décadas, produziu uma obra voltada amplamente para os períodos escravista e pós-abolição, conferindo centralidade às insurreições negras contra a escravidão no passado, à luta antirracista no presente, sem perder de vista a relação entre escravidão, capitalismo e racismo. Moura foi também um militante comunista e antirracista que tomou partido na busca por uma transformação radical da realidade brasileira. Sua obra aventava a revolução socialista.
Destacam-se na produção de Clóvis Moura os estudos sobre os quilombos, guerrilhas e insurreições negras no escravismo, tema central no conjunto de sua obra desde Rebeliões da Senzala, seu livro de estreia e com maior número de edições — atualmente seis, sendo quatro publicadas durante a vida do autor. Trata-se de um ensaio histórico que aborda as insurreições negras como um elemento sistêmico e dinâmico do escravismo colonial. Para Moura, tais lutas expressavam a contradição entre senhores (escravocratas) e escravizados, as “classes” fundamentais do Brasil escravista (Colônia e Império). Amparado em fontes primárias e na até então escassa bibliografia sobre o tema, Rebeliões da Senzala interpreta a luta de classes no Brasil a partir da dialética do senhor e do escravizado, perspectiva pouco explorada até os anos 1960, mesmo entre marxistas.
Apesar do relativo silêncio sobre sua obra por parte da academia, há um crescente interesse por Clóvis Moura nas duas últimas décadas, a exemplo de dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos acadêmicos, reedições de livros do autor — com destaque para o trabalho da editora Dandara – que vêm enfatizando outras de suas contribuições, a saber: o papel do racismo na estratificação social brasileira e a luta antirracista encabeçada pelo associativismo negro nas diferentes fases do Brasil República, além da crítica ao quietismo de setores da academia diante de problemas fundamentais da sociedade etc. Tais temas aparecem marcadamente na produção de Moura a partir dos anos 1970, período no qual passou a colaborar ativamente com o movimento negro, aprofundou conexões com intelectuais e instituições de outros países e teve alguma aproximação com a academia.
Um tema ainda pouco estudado, com raríssimas e louváveis exceções, é a relação do autor com a América Latina. Dentre as exceções, destacamos o livro Racismo e luta de classes na América Latina, de Cristiane Sabino de Souza, que, embora não seja um trabalho sobre Clóvis Moura, utiliza amplamente a produção do autor para analisar a relação entre o racismo e a superexploração da força de trabalho no capitalismo dependente, posição na qual se localizam o Brasil e os demais países latino-americanos no capitalismo mundial. Destacase também um artigo de Patrick Oliveira, de 2023, que revisita os escritos de Moura sobre a América Latina localizando as contribuições do autor para o pensamento marxista sobre a escravidão, além de refletir, também, sobre as lutas políticas dos trabalhadores em países de capitalismo dependente Embora tenhamos essas importantes contribuições, ainda há muito a ser estudado sobre o tema.
A América Latina é pouco presente nas publicações de Clóvis Moura. Mas isso não significa que o continente tenha sido ignorado ou desconsiderado por ele. Ao contrário, apesar de o próprio Moura ter escrito pouco sobre o assunto — no que tange ao conjunto de sua obra —, a América Latina foi um tema de seu interesse, estando presente também em suas referências políticas e literárias. Além disso, a correspondência com outros autores e instituições latino-americanas nos revela sua rede internacional de sociabilidade intelectual e política. É o que buscaremos demonstrar neste artigo.
Literatura e revolução
A relação de Moura com a América Latina se evidencia mais a partir dos anos 1970, quando a agenda intelectual do autor se tornou mais dinâmica com os convites de instituições acadêmicas e centros de pesquisa para ministrar cursos, palestras e participar de eventos, em âmbito nacional e internacional. A repercussão da segunda edição de Rebeliões da Senzala (1972) pode ter contribuído na dinamização dessa agenda, uma vez que, diferentemente da primeira, teve maior circulação e passou a ser citada por outros autores. Além de Nelson Werneck Sodré, José Honório Rodrigues, Luiz Luna e outros no Brasil, o livro foi referenciado pelo historiador estadunidense Eugene Genovese como uma valiosa contribuição em From Rebellion to Tevolution [Da rebelião à revolução]. Dentre os eventos internacionais que Moura participou na década de 1970, estão o Colóquio sobre a Negritude e América Latina (Senegal, 1974), o Encontro Anual da Latin American Studies Association (Estados Unidos, 1977), e os I e II Congresso de Cultura Negra das Américas que ocorreram, respectivamente, na Colômbia (1977) e no Panamá (1980).
No entanto, ainda que a América Latina tenha se tornado mais evidente na trajetória de Moura naquela década, o autor começou a se relacionar muito antes com produções intelectuais latino-americanas que fizeram parte de sua formação. Moura foi um intelectual formado na militância comunista, e atuou na política cultural do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A literatura, uma de suas áreas de atuação, foi um elo importante com a América Latina. Nesse campo, destaca- -se como referência o poeta e comunista chileno Pablo Neruda. Em 1949, em atividade no PCB na Bahia, por recomendação de seu amigo Darwin Brandão Moura tentou publicar um “Poema de solidariedade a Pablo Neruda” na revista Correio das Artes, editada por Edson Regis. Porém, naquele contexto de ilegalidade do partido e de perseguições aos comunistas, a publicação do poema foi negada.
A homenagem ao poeta chileno continha um teor político que incomodaria as autoridades. Assim como no Brasil de Dutra, o comunismo era perseguido no Chile de González Videla (1946-1952). Em 1948, um mandado de prisão chegou a ser emitido contra Neruda que, após passar meses escondido, teve que fugir para a Argentina. No referido poema, Moura escreveu:
[…] o teu perfil chileno entre índios sem terra
entre mães assassinadas,
himens partidos
massacre de grevistas
assombra a tirania
e afugenta a noite.
O poeta chileno voltaria a ser homenageado anos após sua morte em “Soneto Funeral a Neruda”, publicado em Manequins Corcundas, um dos livros de poesia de Moura.
Ainda atuando na política cultural pecebista, nos anos 1950 Moura se mudou para São Paulo e passou a colaborar com a Fundamentos: Revista de Cultura Moderna, editada entre 1948 e 1955. O periódico teve entre seus editores e colaboradores Afonso Schmidt, Artur Neves, Vilanova Artigas, Caio Prado Jr., Astrojildo Pereira, entre outros. Moura participou do Conselho de Redação da Fundamentos, além de publicar poemas e artigos. Dentre eles está um texto em homenagem ao centenário de José Martí, poeta, ensaísta e líder da independência cubana que se tornou símbolo de luta para os revolucionários latino-americanos. Em tal texto, Moura fez uma apreciação da obra poética de Martí, além de recuperar aspectos dos ensaios políticos do líder cubano, destacando elementos caros aos comunistas, como a luta anti-imperialista e anticolonial, a soberania e a autodeterminação dos povos, como vemos no excerto a seguir:
“O pensamento político de Martí, da forma como foi enunciado na época pelo seu autor, ainda é para todos nós, povos americanos, um grande manancial de experiências, não só pela sua profundeza teórica que muitas vezes chega a surpreender, como pela sua atualidade. Uma das facetas mais atuais do seu pensamento é, sem nenhuma sombra de dúvida aquela que se refere às ameaças frontais do imperialismo ianque à independência e segurança dos povos semicoloniais e dependentes. Sua posição, nesse particular, foi sempre incontestavelmente clara e os escritos que deixou sobre o assunto poderiam formar uma antologia atualíssima em muitos aspectos.”
No entanto, o texto não menciona o levante do Quartel Moncada ocorrido em 26 de julho de 1953 e liderado por Fidel Castro. Não era possível prever que em poucos anos aquele fato desencadearia uma revolução triunfante em 1959 e levaria Cuba ao socialismo. Contudo, anos depois Moura dedicaria algumas páginas a Cuba no seu livro de 1977 O negro: de bom escravo a mau cidadão? Em um capítulo intitulado “Dos palenques à independência”, o autor abordou o peso da escravidão na ilha e destacou a importância dos palenques (equivalentes aos quilombos no Brasil) e cimarrones (como eram chamados os escravizados rebeldes) no processo emancipatório de Cuba no fim do século XIX.
Moura considerou que, após a abolição da escravidão e a independência, o negro cubano foi lançado à marginalização e à miserabilidade em um “sistema de compressão social que objetivava satisfazer as expectativas de lucro máximo das grandes haciendas controladas pelos monopólios internacionais”. O autor também demonstrou esperança com a Revolução Cubana, afirmando que somente em 1959 abriram-se “perspectivas para a reintegração do negro na sociedade, em termos e nível de igualdade com as demais classes, camadas e segmentos sociais”. Moura via em Cuba o primeiro grande laboratório onde o modelo de uma “democracia racial” na América Latina estava sendo criado.
Intercâmbio intelectual
O interesse de Moura pela América Latina também pode ser notado no intercâmbio intelectual com autores e instituições de diferentes países latino-americanos a partir dos anos 1960, como nos revela sua correspondência. O escritor argentino Mario Marcilese escreveu uma carta a Moura no dia 1o de setembro de 1964 solicitando-lhe informações biográficas. Embora estivesse escrevendo a um brasileiro, o argentino afirmava que vinha se dedicando ao trabalho de conhecer e divulgar a vida e a obra de escritores hispano-americanos frente ao problema de “a América desconhecer sua literatura e seus autores”. Marcilese não mencionou como tinha obtido o contato de Moura, mas afirmou conhecer “tudo o que se dizia sobre sua pessoa e sua obra”, e disse que gostaria de saber o que o próprio Moura teria a dizer de si mesmo além de pedir-lhe para enviar livros de sua autoria.
Em linhas gerais, essa carta de Marcilese se refere à literatura, o que nos leva a inferir que ele tinha informações sobre as atividades literárias de Moura Em nenhum momento o remetente tocou em temas como história, sociologia e política. Em outras duas cartas que enviou a ele em 1965, uma de 24 de março e outra de 30 de agosto, Marcilese sinalizou que o autor pretendia publicar uma antologia literária latino-americana, e mostram que Moura lhe enviou as informações e os livros solicitados. Em 26 de agosto de 1970, contudo, o escritor argentino comunicou que a referida antologia estava em preparação, mas que a literatura brasileira ficaria de fora por ele próprio não dominar o idioma.
Além da literatura, temas relacionados à história, à sociologia e à política da América Latina também aparecem na correspondência de Moura. Em 1964, o autor solicitou à Unesco fontes e bibliografia de pesquisas sociológicas acerca da vida rural, urbanização, migrações e outros temas relacionados ao continente. A resposta da instituição veio em uma carta de 9 de setembro daquele mesmo ano, assinada por W. Thomas Shepard, do Departamento de Ciências Sociais, que indicava: 1) o envio de um folheto informando as publicações da Unesco acerca dos temas solicitados e as instruções para obtê-las; 2) um informe das principais atividades da Unesco no campo das ciências sociais sobre problemas contemporâneos da América Latina, com estatísticas e outras informações. Shepard também sugeriu que Moura procurasse o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, na Avenida Presidente Vargas, n. 62, 5º andar, no Rio de Janeiro, onde conseguiria mais informações sobre as atividades da Unesco.
Em 1o de setembro de 1964, Manuel Diégues Júnior, diretor do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, respondeu a uma carta de Moura do dia 27 de agosto daquele ano:
“Quanto aos diversos pontos abordados em sua carta, podemos informar:
a) o preço de assinatura da revista América Latina é de C$ 2.000,00 (dois mil cruzeiros) pagáveis mediante ordem de pagamento em nome do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, Av. Pasteur, 431; Rio de Janeiro – ZC-82, ou através [de] cheque nominativo pagável nesta Cidade;
b) a revista América Latina que era anteriormente intitulada Boletim do Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais começou a ser editada em 1958. A partir de 1962 passou a chamar-se América Latina, com nova apresentação gráfica. De 1958 a 1961, todos os números se acham esgotados. De 1962 até a presente data possuímos disponibilidades, e o preço para números atrasados é o mesmo do corrente ano, C$ 2.000,00 por ano (4 números por ano) […].”
Em outra carta de 14 de dezembro de 1964, Manuel Diégues Júnior confirmou o recebimento de C$ 3.900,00 (três mil e novecentos cruzeiros) e o envio, pelos correios, das publicações solicitadas por Moura. O remetente ainda lamentou o atraso no atendimento ao pedido de Moura em 4 de setembro daquele mesmo ano.
Outra carta em papel timbrado da Unesco assinada por A. Marin, datada em 16 de novembro de 1964, faz referência a livros solicitados por Moura. Eles seriam enviados para a Fundação Getulio Vargas, que seria o agente depositário daquela compra, e com quem Moura deveria liquidar a fatura do material adquirido. Os títulos das obras estão em espanhol, resumidos, e a carta não menciona os autores. Os exemplares enviados foram: Aspectos Sociales […] Vol. II; Aportaciones positivas de los inmigrantes; Migración Internacional y desarrollo económico; La Ciencia económica y la acción. Além desses, o remetente também menciona títulos solicitados por Moura que estavam esgotados, como Aspectos Sociales […] Vol. I; El Movimiento Ecuménico y la Cuestión Racial; Les Elites de Couleurs dans une ville Bresilienne e La Iglesia Católica y la Cuestión Racial. Por fim, o remetente indica o endereço de duas editoras para Moura adquir outros dois títulos solicitados: El Racismo ante la Ciencia Moderna (Ediciones Liber) e Sociedad y Educación en América Latina (Editorial Universitaria de Buenos Aires).
No dia 31 de julho de 1970, Graziella Corvalán, representante da Revista Paraguaya de Sociología do Centro Paraguayo de Estudios Sociologicos, respondeu a uma carta de Moura agradecendo o interesse do autor naquele periódico e informando o preço da assinatura anual a US$ 3.50. Corvalán também agradeceu o envio do livro Rebeliões da Senzala, porém, acusou não tê-lo recebido. Aliás, o não recebimento — ou o atraso no recebimento — de livros e periódicos enviados pelo correio aparece na correspondência de Moura com outros interlocutores — às vezes ele próprio recebia com atraso, às vezes não recebia materiais que lhe eram enviados.
Em 5 de agosto de 1970, Alfredo Poviña, do Departamento de Sociologia da Universidad Nacional de Cordoba, agradeceu os comentários de Moura a seu livro Historia de la Sociología Latinoamericana em uma carta na qual também lhe indicou a leitura de uma outra obra, Nueva História de la Sociología Latinoamericana, e afirmou que enviaria outros trabalhos de sua autoria na área de sociologia.
No dia 17 de setembro de 1970, José Trueba Davalos, do Instituto Mexicano de Estudios Sociales, agradeceu o envio de um livro de Moura (não mencionou o título), e afirmou estar enviando um folheto com informações sobre o instituto e uma lista de publicações.
O intercâmbio intelectual latino-americano também ocorria por meio de convites para Moura colaborar com publicações e participar de eventos. Em 8 de abril de 1970, um interlocutor do México que assina como Pablo se referiu a Moura como “estimado amigo”, além de mencionar Nicomedes, amigo em comum entre ambos que, naquele momento, tinha poemas traduzidos no Senegal. Pablo participava do conselho editorial de uma revista de sociologia da Universidade Central do Equador e propôs que Moura se tornasse um correspondente do periódico no Brasil, enviando informações sobre as ciências sociais no país, resenhas de livros, congressos, seminários, bem como estabelecendo intercâmbio com revistas brasileiras similares. O remetente também convidou Moura para colaborar em uma publicação coletiva que seria organizada no México com o tema “Autoritarismo e Estado na América Latina”. Não sabemos se esse trabalho chegou a se concretizar, mas sabemos que anos depois, em 1976, Moura teve um livro publicado pela editora mexicana Ediciones Siglo XXI, o Sociología de la Práxis, depois publicado no Brasil pela editora Ciências Humanas com o título A sociologia posta em questão (1978).
Produção sobre a América Latina
Como vimos, a correspondência com intelectuais, editores e instituições nos mostra o interesse de Moura em estudar a América Latina, além de revelar uma rede internacional de sociabilidade do autor. Cabe ressaltar que, em tal contexto, Moura produziu seu principal texto sobre o processo histórico-social latino-americano, “O negro na emancipação da América Latina”, originalmente concebido como uma comunicação no Colóquio sobre Negritude e América Latina ocorrido em Dakar entre os dias 7 e 12 de janeiro de 1974. O convite para esse evento veio do próprio presidente do Senegal, Leopold Sédar Senghor, e do reitor da Universidade de Dakar, Seydou Madani Sy, possivelmente intermediado por René Durand, professor daquela instituição com quem Moura vinha se correspondendo. No colóquio também estiveram outros intelectuais latino-americanos, como Nicomedes Santa Cruz (Peru) e Manuel Zapata Olivella (Colômbia), com os quais Moura manteria amizade e se corresponderia durante anos.
No evento, Moura versou sobre o protagonismo negro nas lutas contra a escravidão na América Latina e a participação negra nos processos emancipatórios de diferentes nações do continente onde houve escravização de africanos, a exemplo do Peru, Colômbia, Venezuela, Haiti, Cuba e outros. Embora o foco principal do texto seja o papel das lutas contra a escravidão nos processos de independência, Moura também considerou problemas contemporâneos comuns aos países latino-americanos:
“Procuraremos abordar uma série de fatos e processos que demonstraram como, ontem como hoje, de diversas formas e em níveis mais ou menos profundos, o negro atuou e continua atuando como força social dinâmica e muitas vezes radical na América Latina. Ontem visando modificar o sistema colonial escravista e atualmente procurando destruir os entraves, obstáculos e limitações da situação de dependência em que se encontram os seus respectivos países. Procura abrir o leque das alternativas no rumo da emancipação continental, única forma que vê para solucionar o seu problema que é cumulativo: como negro, que tem de lutar contra o preconceito de cor, e como pobre, que tem de lutar contra proletarização, a miséria e a marginalização.”
A partir das discussões no Colóquio em Dakar, Moura escreveu posteriormente o texto “Os dilemas da negritude”, no qual polemiza, junto do antropólogo brasileiro Renê Ribeiro e o espanhol German de Granda, participantes do evento que “estavam à direita da negritude”, confundindo o termo com um “possível estereótipo de que deveria ser elucidado e desmascarado”. Polemizou também o conceito de negritude que orientava o Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento nos anos 1950 e, segundo Moura, restringia-se a “uma intelectualidade negra pequeno burguesa”. Contudo, Moura não refutava aprioristicamente o conceito de negritude. Defendia-o como “generalização das contradições criadas em uma sociedade opressiva, e unidade entre teoria e prática no sentido de desalienar não apenas as populações negras, mas todos aqueles estratos populacionais que se sentem oprimidos ou marginalizados pelo sistema dominante em qualquer parte”.
Após o colóquio em Dakar, Moura manteve por longos anos extensa correspondência com o escritor afro-colombiano Manuel Zapata Olivella, que organizaria os I e II Congresso de Cultura Negra das Américas. O I Congresso ocorreu em Cali, Colômbia, em 1977. Moura, na ocasião à frente do Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas, ficou encarregado de coordenar a delegação brasileira para o evento. Assim, convidou alguns intelectuais para participar no evento, dentre os quais a historiadora Beatriz Nascimento, o sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira, a historiadora Marina Sena, a jornalista Mirna Grzich, entre outros. Entre os convidados também estava o fundador e diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (USP), Fernando A. Albuquerque Mourão.
Fernando Mourão era docente da USP e participou do monitoramento de atividades que a ditadura considerava “subversivas”, incluindo eventos organizados pelo movimento negro ou por intelectuais vinculados à luta antirracista. Suas atividades como informante da ditadura ocorreram principalmente no meio acadêmico. Mourão repassou as informações (inclusive a carta de Clóvis Moura) sobre o I Congresso de Cultura Negra das Américas à Assessoria de Segurança e Informação da USP – órgão que monitorava estudantes, docentes e funcionários da USP. A delação resultou no impedimento de Moura e quase toda a delegação brasileira de participar do evento.
Nesse período, havia no Brasil a cobrança de um depósito compulsório para viagens ao exterior. Poucos dias antes do evento, o MEC vetou a isenção do depósito. Além do próprio Clóvis Moura, quase toda a delegação brasileira perdeu o congresso. Só viajaram para Cali: a jornalista Mirna Grzich, financiada pela revista Visão, a historiadora Marina Sena, financiada pelo governo de Minas Gerais e Eduardo de Oliveira, que valeu-se de um empréstimo bancário pessoal e de uma bolsa da Fundação Ford.
O II Congresso de Cultura Negra das Américas ocorreu no Panamá, em 1980. No entanto, dessa vez, Moura conseguiu participar. Sua comunicação para o evento, “Escravismo, Colonialismo, Imperialismo e Racismo”, foi posteriormente publicada no livro Brasil: as raízes do protesto negroxxxiv. No mesmo livro, publicou também seu texto de comunicação no Encontro da Latin American Studies Association, ocorrido em Huston, nos Estados Unidos, em 1977, o qual se intitulava “Contribuição do negro às artes no Brasil”.
Conclusões
O ano de 2025 marca o centenário de nascimento de Clóvis Moura (1925-2003). O crescente interesse por sua obra neste primeiro quarto do século XXI mostra a atualidade de seu pensamento. Isso se deve não apenas à genialidade do autor, mas também aos principais problemas por ele pautados, os quais continuam na ordem do dia, a exemplo da exploração da classe trabalhadora pelo capital e do racismo como ideologia de dominação no capitalismo. O Brasil foi o principal objeto de estudos de Moura, bem como seu espaço de atuação política. Contudo, recuperar o intercâmbio do autor com a América Latina nos possibilita ver a dimensão internacionalista de sua formação e de sua trajetória intelectual e política. A relação entre racismo e capitalismo dependente — problema crucial nas análises do autor sobre o Brasil contemporâneo — também ocorre nos países latino-americanos marcados pelo passado colonialista e escravista do antigo regime, assim como nos países africanos e asiáticos subjugados pelo neocolonialismo nos séculos XIX e XX.
Como tentamos demonstrar neste artigo, a América Latina foi um tema de interesse de Moura, ainda que não tenha sido o foco principal de sua obra. O autor não apenas buscou referências e fontes de estudo, como também estabeleceu uma rede internacional de sociabilidade intelectual e militante no continente. Talvez possamos dizer o mesmo em relação à África, considerando que o autor não apenas participou do Colóquio sobre Negritude e América Latina no Senegal, como também se correspondeu com intelectuais e lideranças africanas.
Portanto, Moura estudou a realidade brasileira sem perder de vista a dimensão internacional do capitalismo, buscando compreender também a situação de outros países da periferia do sistema nos quais se situam majoritariamente povos racializados, e no qual também ocorre historicamente a relação entre racismo, dominação política e exploração da força de trabalho. O referido ensaio do autor, “O negro na emancipação da América Latina”, versa sobre a realidade de países nos quais a dependência econômica externa, a segregação social interna e a autocracia como técnica política das classes dominantes são elementos de longa duração, assim como também são as variadas formas de rebeldia dos subalternos, desde os quilombos e palenques do passado aos movimentos de trabalhadores do campo e das cidades no presente. Cabe ressaltar que tal ensaio foi apresentado por Moura em Dakar, em 1974, em um contexto de lutas sociais candentes no Terceiro Mundo: a independência das colônias portuguesas em África, o triunfo do Vietnã contra os Estados Unidos, as lutas contra as ditaduras em vários países da América Latina etc. A emancipação dos subalternos foi um interesse constante que perpassou toda a obra e o engajamento político de Clóvis Moura.
* Este artigo foi originalmente publicado na edição de número 44 da revista Margem Esquerda, publicação semestral da Boitempo.
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Gabriel dos Santos Rocha é doutorando em História Econômica, mestre em História Social e graduado em História pela Universidade de São Paulo.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

A batalha da Maria Antonia, Documentario - Matheus Cosmo (Blog da Boitempo)

Essa batalha precede meu ingresso no curso de Ciências Sociais da USP, que seria, teocricamente, na Maria Antonia, mas que, em função dessa destruição, em outubro de 1968, mudou para a Cidade Universitária. Em outubro, eu estava fazendo vestinular para o curso, que já foi na Cidade Universitária; lembro-me de ter sido entrevistado pela Professora Ruth Cardoso e pelo Professor Sedi Hirano. Fui da primeira turma dos "barracões" da Cidade Universitária, mas fiquei pouco tempo. Assim que ingressei no primeiro semestre, no começo de 1969, os principais professores foram aposentados compulsoriamente pelo AI-5: Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Octavio Ianni. Como eu já militava na resistência à ditadura, mas a "minha" universidade era invadida pelo "meu" quartel (sim, também fazia serviço militar na época), e a repressão aumentou, acabei saindo do Brasil em 1970, para passar quase sete anos na Europa: refiz toda a graduação em Ciências Sociais na Universidade Livre de Bruxelas (1971-74), fiz um mestrado em Economia do Desenvolvimento (1975-76) e me inscrevi para um doutoramento na ULB, mas acabei postergando para voltar ao Brasil, quando ingressei na carreira diplomática (no final de 1977). Só terminei o doutoramento em 1984, já no meu segundo posto diplomático. 

Paulo Roberto de Almeida (18/04/2025)


“A batalha da rua Maria Antônia” ou sobre tudo que um incêndio e uma ditadura são capazes de destruir

 

"Ora, se poesia e arte são também um direito conquistado, também contra ele voltou-se a ditadura, esse efetivo golpe à nossa inteligência e à capacidade de imaginar saídas, alternativas e outros horizontes."


Por Matheus Cosmo

Blog da Boitempo, 17/04/2025 


Vazia. A porta da faculdade toda chamuscada e depredada. Houvera um incêndio. […] Não foi um incêndio, apenas. Foi alguma coisa como o calor da obstinação, da fé, da esperança. Foi o sinônimo da minha geração e daquela rua. […] O país era uma extensão de cada um de nós, e aquela ditadura – aquela humilhação – doía mais que o puro martírio, porque significava nossa impotência.
— Consuelo de Castro

Maria Antônia é um daqueles espaços marcados pela condição do exílio, de um exílio que já se constitui na dor da partida.
— Irene Cardoso

Pode ser difícil de imaginar à primeira vista, mas na experiência humana o passado é aquilo que mais muda com o correr do tempo. A revisão e a elaboração ininterruptas do que foi e do que poderia ter sido parecem constituir um objeto de investigação constante da experiência individual e coletiva. Nesse sentido, viver parece mesmo ser um constante rasgar-se e remendar-se, a fim de encontrar, produzir e formular outros e novos significados a partir da experiência vivida e dos indesejáveis bloqueios estabelecidos.

Talvez esse seja um bom modo de iniciar um texto a respeito da experiência histórica concernente ao ano de 1968 — essa espécie de instante mágico no qual, segundo Décio de Almeida Prado, muito se fez e se desfez1. Enquanto boa parte do mundo parecia abrir-se a uma revolução sexual e a um abalo generalizado das estruturas de vida e pensamento, herdadas de um já conhecido paradigma moderno, o Brasil parecia enclausurar-se entre a ideia de um milagre econômico e a atrocidade da violência generalizada que, principalmente a partir daquele mesmo ano, com a edição do decreto do AI-5, haveria de produzir ainda mais torturas, mortes e desaparecimentos em massa. Por isso mesmo, motivos não faltam para que o Estado brasileiro de fato formalize um pedido de desculpas às famílias e vítimas de sua ditadura militar. Macaé Evaristo, atual ministra do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em cerimônia realizada em 24 de março deste ano, no Cemitério Dom Bosco, em Perus (o mesmo onde foram abertas valas clandestinas para o despejo das ossadas de vítimas do golpe), chegou a mencionar a necessidade de fazer enfim valer no Brasil o direito inalienável à verdade. E é na esteira dessa difícil busca por nos garantir a inauguração e manutenção do que não pode sequer ser negociado, além da produção de uma versão digna e coerente dos fatos históricos, levando em conta sua triste memória, suas manchas e contornos, que o espectador brasileiro ganhou um excelente registro nessa última semana: como um trabalho prático e bem-sucedido de rememoração e resistência, A batalha da rua Maria Antônia acaba de estrear em grande parte dos cinemas nacionais.

Dirigido por Vera Egito após 12 anos de constante idealização, entre escritas e reescritas do projeto, o longa-metragem a respeito do episódio homônimo ocorrido em São Paulo nos dias 2 e 3 de outubro de 1968 é formado por 21 quadros. Filmados em um intervalo de apenas duas semanas, produzem um inteligente e estruturado plano sequência, que tenta conduzir o olhar do espectador junto a um registro vivo que não cabe no enquadramento das cenas, transbordando-as enquanto matéria excedente de uma opressão que ainda não parece ter cessado em definitivo. A forma ininterrupta das cenas, sem cortes em cada um dos quadros, estabelece vínculos que são difíceis de descrever e mensurar, sendo interrompidos apenas pela ordem da necessidade de uma ruptura, de um corte que parece mesmo externo ao próprio funcionamento do material, levando o espectador a acompanhar uma contagem regressiva rumo a um estrago irreparável. O limite imposto ao país, que barrou sua inteligência e desenvolvimento do início da década de 1960, ganha agora formato estético, em película de 16mm, todo em preto e branco, firmando esteticamente a experiência de um país estrangulado pelos desmandos ditatoriais da violência policial.

 

Já de início, na própria configuração espacial do projeto cênico, o conflito fica inteiramente posto, marcado por apenas uma rua. A famigerada Maria Antônia, no centro de São Paulo, é segmentada em cada um dos lados das calçadas: à direita da tela, as letras na parede apontam que o CCC voltou; do outro lado, à esquerda, uma faixa assegura a tentativa de fundar e propagar um movimento revolucionário. Em outros termos, de um lado temos a Universidade Presbiterana Mackenzie e seu abrigo ao grupo paramilitar treinado para caçar comunistas. Traduzindo a fina flor da burguesia, com seus ternos, gravatas e seu sempre presente ódio a qualquer política de avanço dos trabalhadores e estudantes, o Mackenzie marcava a efetiva consolidação da revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em leis e etc., de acordo com a conhecida expressão de Roberto Schwarz2. Do outro lado da rua, os estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, tentando arrecadar fundos para a realização do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, pedindo contribuições nas esquinas. Após a Batalha, ocorrida naquele mês de outubro de 1968, a Faculdade (em boa medida desmembrada em suas disciplinas) seria realocada na Cidade Universitária, no bairro do Butantã, em um dito prédio provisório que permanece o oficial até a atualidade.

O estilo inusitado e irreverente das personagens da Faculdade de Filosofia dá o tom do que poderia ser uma revolução nos costumes da sociedade brasileira, com seus cigarros, jaquetas e botões abertos nas blusas, em oposição aos terninhos engomados que produzem toda a caretice do lado direito. Um olhar em retrospectiva poderia afirmar, contudo, que ao menos parcialmente, com o esvaziamento de suas pautas e demandas verdadeiras, um tanto desta tal revolução chegou mesmo a se solidificar, abrindo as portas do que pode ser considerado como um pós-modernismo à brasileira: a completa estetização da desgraça e da desordem, revelada a partir de seu esvaziamento e da pura apresentação como mercadoria. Desse processo, nem a arte, nem a arquitetura, nem a educação puderam fugir. Por esse motivo, também a diretora e a equipe de produção do filme tiveram de buscar outra locação para realizar suas gravações: é que, passados tantos anos, o lixo comercial que hoje inunda a rua Maria Antônia em São Paulo, com seus bares, academias e luzes de Led, nem sequer deixa entrever a história que reside em suas paredes e calçadas.

Ao longo de 85 minutos, os atravessamentos cênicos são diversos, de toda ordem, e apenas ganham outros e novos contornos a cada cena: o que termina com o incêndio de todo um prédio — ato que concretizava também o projeto de expulsão de uma forma de vida e pensamento do centro de São Paulo para os confins da Cidade Universitária, na Zona Oeste — parece iniciar-se também como uma preocupação aparentemente legítima de parte do corpo docente em relação aos estudantes: “A aula é a última coisa que importa para eles”, lamenta Leda, professora, interpretada por Gabriela Carneiro da Cunha, para quem “Aristóteles é Aristóteles: não importa muito o tempo em que a gente está”. A fala da docente, que será agredida nos minutos finais do longa-metragem, abre um difícil dilema que há tempos edifica a prática de trabalho de qualquer professor minimamente atento e engajado: de que modo conjugar os conteúdos objetivos, da aparente formação intelectual de um sujeito, com a urgência das lutas e demandas práticas da vida? Até que ponto a segunda já funciona como a maior de todas as matérias, garantindo um ensinamento e uma aplicabilidade que se constrói junto à vida de cada um? Ora, por acaso existe vida e pensamento fora de uma realidade social? Afinal, como se forma um filósofo em uma época de horizontes bloqueados? Por que — e para que — se estuda filosofia?

Quantas seriam as lições que ainda teríamos de aprender com Paulo Freire, esse ídolo e amálgama do ódio direitista, sempre excludente, altamente classista? Quantos sentidos e funções cabem na palavra estudante, chamados de vagabundos a céu aberto, no meio das ruas? Em sala de aula, quais e quantos são os sentidos que um estudo apurado acerca da definição de tragédia pode ainda assumir antes de revelar-se como pura farsa antidemocrática? “Nem sempre dá pra fugir da confusão”, exclama Ângela, personagem central da trama, interpretada por Isamara Castilho. Daí a necessidade da escolha: afinal, em 1968, deve-se preparar uma aula sobre Aristóteles, Pitágoras ou sobre a democracia? A resposta, para além das predileções individuais de cada docente, traduz o engajamento da própria universidade e o nível da responsabilidade intelectual que ela é capaz de abarcar para si mesma, no processo de formação de um novo sujeito político.

A composição imagética dos quadros cênicos possui forte potência também naquilo que não diz verbalmente, mas que se mostra e enuncia na leitura a partir do cruzamento entre as próprias imagens. O entrelaçar de informações que se dá entre uma professora explicando a definição aristotélica de tragédia, de acordo com a famosa Poética grega, e os cartazes colados nas paredes, em defesa do Congresso da UNE e da participação popular, de um movimento eficaz que unisse estudantes e trabalhadores, dá o tom da urgência de um momento em que a História se mostrava em seu real potencial de construção. Nos corredores, havia a percepção de que o prédio da Faculdade de Filosofia ficara pequeno demais para os sonhos e projetos de toda uma juventude revolucionária que, naquele momento, defendia sobretudo o direito às vagas excedentes, à ocupação do espaço público — projeto avesso a qualquer sistema ditatorial, de opressão. Quando o que predomina é a prática da violência e o ódio gratuito à liberdade, “é preciso preservar o nosso direito de escrever poesia”, exclama um docente, engajado em seu fazer cotidiano, o qual efetivamente só alcança seu verdadeiro sentido no enfrentamento entre a vivacidade e urgência das pautas e a prevista passividade das carteiras.

Ora, se poesia e arte são também um direito conquistado, também contra ele voltou-se a ditadura, esse efetivo golpe à nossa inteligência e à capacidade de imaginar saídas, alternativas e outros horizontes. Não à toa, em conversa dentro da sala que guarda a importante urna de votação da UNE, cuja sede fora igualmente incendiada já no ano de 1964, o conhecido episódio de espancamento dos atores e de depredação dos cenários da montagem de Roda Viva, de Chico Buarque, em julho daquele ano, no Teatro Ruth Escobar, aparece enquanto memória e lembrança, produzindo suas marcas. Certamente, o país que espanca seus intérpretes e que prende seus artistas outorga para si mesmo uma terrível identidade — identidade essa da qual ainda hoje recolhemos frutos, uma vez que também ela ainda está aqui.


Nesse interregno, não existe possibilidade alguma de isenção. “Quando a Sra. se envolver, vem falar comigo!”, diz à professora da unidade o então líder do movimento estudantil, interpretado pelo ator Caio Horowicz, que personifica um tanto da conhecida figura de José Dirceu. É a partir desta relação difusa e complementar entre professor e aluno que, no 16º dos quadros apresentados, uma imagem discreta tem força total: dois professores, Leda e Rubens, do alto do andar superior, murmuram entre si que, certamente, aquilo vai acabar mal. O olhar de cima para baixo, do alto da cátedra para o chão prático da luta, aponta para a distância que parte do corpo docente toma da batalha que se firma no avançar de cada quadro.

Em depoimento dado no ano de 1987, o professor e pesquisador Simão Mathias, presidente designado para organizar uma Comissão que se propusesse a averiguar as minúcias de todo o acontecimento em 1968, reconheceu que havia três grupos de professores em atividade naquele momento: “um grupo pequeno de professores reacionários, um grupo de professores de centro, que era moderado, e um grupo de professores que lutava pela verdadeira universidade”3 — porque não há universidade, verdadeira em seu propósito, sem o respectivo engajamento a favor da cidadania e da participação popular. Aqui, mesmo sabendo da distância e diferença de viver em outro país, como não se lembrar de um teórico como Adorno, por exemplo? Como não reverberar, na distância e no julgamento entre professores e alunos, algo similar aos gritos dos estudantes franceses exclamando que as estruturas não descem às ruas? O Brasil da Maria Antônia apresentava-se com toda a particularidade das disputas nacionais, mas certamente não constituía um caso de isolamento diante dos problemas basilares que se davam também em outros cantos do mundo. Seu desenvolvimento seria diverso mas não alheio ao dos outros países, para fazer valer uma expressão muito cara a toda a geração do Seminário de Marx, que também encontrou régua e compasso nos encontros, corredores e discussões de uma antiga Faculdade de Filosofia4.

Se a situação já não era passível de alguma angústia até aqui, mesclando todas as possibilidades que um horizonte de luta pode ou não abrir, na contagem regressiva da sequência dos quadros, é a partir do 15º deles que um nó na garganta toma conta dos espectadores. Como pode uma mesma e única câmera, em um incansável plano sequência, dar forma às atrocidades múltiplas do início de um incêndio? No primeiro dos muitos Molotovs lançados contra a USP, incendiando a parte superior do prédio, o espectador é forçado a fazer da lente da câmera seu próprio olhar, reconhecendo que muito lhe escapará, mas que também isso é parte da violência excedente de um regime que ultrapassou os limites de qualquer exercício de cidadania e dignidade. De certa forma, também o espectador é levado a vivenciar um tanto daquele ânimo que conduziu os estudantes em 1968 — aquele que, nas palavras de Consuelo de Castro, traduziu-se em um difícil questionamento: “O que fazer quando não há o que fazer?”5. A angústia que toma o espectador, em parte similar àquela que outrora fomentou a necessidade de engajamento na luta armada, na urgência por uma ação e resposta, como um ato desesperado que fosse também uma alternativa real às prisões, mortes e desaparecimentos vividos, parece agora embriagar-se com o licor da experiência da derrota que, como se sabe, deu o tom dos últimos anos. Naquele instante, em 1968, o mundo parecia estar em aberto, por vezes até sem a necessidade de mediações entre a urgência do ato e os processos desejados. A bandeira do Brasil, pendurada na entrada do prédio de Filosofia, parecia mesmo sinalizar um símbolo em disputa — e que era o equivalente a todo um país, no limite da análise. Todavia, quando o que existe de mais urgente é apagar o fogo e reparar o tamanho de um estrago que já teve início e que não parece cessar nem mesmo por um minuto — o ataque ao prédio de Filosofia durou cerca de 10 horas ininterruptas6 —, a formulação de novas alternativas, a instauração de um regime efetivamente democrático parece mesmo se tornar um exercício difícil de se pensar e constituir.

Em um depoimento de agosto de 1987, José Dirceu, então líder do Movimento Estudantil, reconhecia: “Maria Antônia foi uma realidade que só a força das armas conseguiu acabar”7. Talvez seja importante sinalizar que as armas usadas em 1968 já haviam sido parcialmente empregadas e prometidas em momentos anteriores da História, como quando em setembro daquele mesmo ano a intranquilidade reinou mais uma vez no prédio da Faculdade de Filosofia da USP diante da ameaça do lançamento de bombas, que não chegaram a ser encontradas. Ora, sem ter como negar ou fugir deste imbróglio, resta pensar: afinal, poderiam os estudantes lutar com as mesmas armas de seus oponentes? Com quais armas pode a educação lutar contra a polícia? Há algum parâmetro possível para se comparar as duas forças? Com quais armas podem — e devem, sempre — lutar os estudantes?

A câmera que foca no vidro quebrado do prédio de Filosofia marca os estilhaços de uma estrutura que não era apenas física, mas também de todo um projeto democrático, um dia marcado pelo MCP, pelo Teatro de Arena e pelo Cinema Novo, por exemplo. Um pouco de tudo isso se desfez com a destruição do prédio. Não se tratava apenas de destruir um prédio, mas de demolir todo um projeto civilizatório — que agora haveria de recuar para a emergência conservadora que edificou alguns caminhos até aqui. A contagem regressiva dos quadros em cena parece mesmo ser uma espécie de bomba relógio que, aos poucos, anuncia a progressão da ruína da inteligência nacional. Errado seria imaginar que o conflito apresentado se inicia com ovos pedras e se encerra no embate entre USP e Mackenzie. A verdade é que a Batalha da Maria Antônia foi um ataque pensado e estruturado para destruir a Faculdade de Filosofia, tal como já havia ocorrido com a sala do Grêmio do prédio em 1964 e 1967 (nas duas ocasiões, pichada com dizeres como “CCC voltou!”, “Fora o comunismo!” e afins).

“Ali [do lado da Mackenzie] não tem estudante, não”, lembra ao espectador uma das personagens, tentando explicar a gravidade dos acontecimentos e episódios a Lilian, que ganha corpo, voz e entendimento a partir da interpretação de Pamela Germano. Na contramão disso, a estudante que mora no prédio universitário, que o ocupa e o transforma em seu lar (a mesma que elucida os conflitos a Lilian), Maria Helena, interpretada por Julianna Gerais, dá indícios do que pode significar a universidade e a própria educação quando seu sentido é mesmo civilizatório e democrático, longe dos fantasmas e aberrações de grupos paramilitares. Talvez uma parte desse furor possa ter sido reencontrada em 2015, com a ocupação das escolas estaduais em São Paulo. Todavia, também nos anos mais recentes, a resposta do Estado ainda seguiu exatamente a mesma: à tentativa de integração e redação de um projeto civilizatório, a polícia logo responde com suas armas, escudos e cavalos — e, no caso da Batalha da Maria Antônia, posicionando-se ainda em defesa do Mackenzie e dos interesses privados, a despeito da coisa pública, atendendo exclusivamente ao chamado da então reitora Esther Figueiredo Ferraz. Ao que parece, não há modo mais transparente de o Estado dizer de que lado efetivamente está.


“Eu sou professora” é uma frase que nem sequer consegue ser terminada, dada a brutalidade da resposta, que vem na forma de um soco policial. À imagem, difícil de ver e de assistir, logo segue outra agressão, dessa vez a uma estudante, lançada contra a parede e arrastada pelos cabelos. Que tipo de país produzimos quando permitimos a agressão a estudantes e professores? Que projeto civilizatório pode existir quando o saber é substituído por balas que atravessam a cabeça de um estudante secundarista, morto na calçada em frente ao prédio nos minutos finais do longa-metragem, em memória de José Guimarães? E como não se lembrar também de Edson Luís e de tantos outros estudantes e professores — todos mortos, desaparecidos, torturados? Nada mais triste e desconfortante que ouvir a voz de uma estudante cantando “Roda viva” e perceber o som de seu timbre falhando em “A gente quer ter voz ativa”, enquanto a câmera percorre os corredores já cheios de feridas e de feridos.

A Maria Antônia seria, então, um retrato efetivo da potência de nossa manifestação e da cruel consequência proveniente desse ato? Como saber exatamente o que ali se encontrava em disputa diante da desproporcionalidade das ações? Como um ovo arremessado contra uma estudante pode gerar o incêndio de todo um prédio e a prisão de professores? Quantas muitas coisas perdemos nessa Batalha? Quantas outras também teriam desaparecido junto àquele Livro Branco sobre os acontecimentos da Rua Maria Antônia, relatório assinado por Antonio Candido, Carlos Alberto Barbosa Dantas, Carlos Lyra, Eunice Durhan e Ruth Cardoso, a responsável pelo registro da experiência destrutiva dos difíceis dias 2 e 3 de outubro de 1968, finalizado cerca de um mês após o ocorrido e abafado logo em seguida, sem a circulação imediata?

De todas as personagens da trama, talvez uma seja a mais emblemática: Vânia. Sempre ausente das cenas, desaparecida política da ditadura, membro do Movimento Estudantil, renegada pela própria família — que a tem como terrorista —, da personagem sobra apenas a circulação da mais importante mensagem, aprendida com nossos vizinhos: Hasta la victoria siempre!

Se na cena inicial um jovem ainda no Ensino Médio desejava conhecer mulheres mais livres e descoladas, o desenrolar das cenas permite que justamente essas tomem o centro de todo o filme. Seja no espancamento dos inimigos, seja na resistência em sala de aula ou ainda na mensagem deixada, que decerto faz ecoar, são as mulheres que executam as ações principais do filme, passando da resistência ao ato sexual, que agora também se mostra disforme, sem contornos, mesclando a satisfação e o desconforto, a preservação de si mesmo, princípio de uma pulsão sexual atuante, e a distorção da própria imagem. Se o amor fez uma revolução enquanto afeto em 1968, também a sua imagem sofreu distorções ao longo dos anos, cabendo também aqui às mulheres certo exemplo de luta e participação. Especialmente às mulheres negras, duas das atrizes principais, cujos contornos aparecem sempre relembrados nas menções, nas paredes e cartazes, aos Black Panthers.

Em um de seus depoimentos, o brilhante professor Paul Singer lembrou que a transferência da FFCL à Cidade Universitária encerrou um ciclo, cujo fim foi selado pela aposentadoria de Florestan Fernandes, José Arthur Giannotti, Octávio Ianni, Bento Prado Jr., dentre outros8. Com a aposentadoria compulsória de vários docentes, determinada em 1969, um ano após todo o conflito, decerto um modelo de trabalho e pensamento parecia encontrar seu limite, sem deixar entrever o que viria a partir daí, garantindo para muitos apenas o desemprego e o trabalho em outras profissões. Longe da ciência e da prática docente, distante dos debates e discussões efetivos acerca da realidade nacional9. Quantas outras coisas também se encerraram naquele curioso cruzamento com a Rua da Consolação ainda estão para ser analisadas, no desmonte frequente das universidades e nas condições precárias e insalubres do trabalho em sala de aula. Em respeito e em defesa de todas elas, A batalha da rua Maria Antônia, que já ganhou os prêmios de Melhor Filme na Première Brasil do Festival do Rio (2023), Melhor Longa-Metragem de Ficção (Escolha do Júri) no Festival de Atlanta (2024) e o Prêmio Especial do Júri no Panorama Coisas de Cinema (2024), move-se como um exercício de memória e resistência em um tempo de horizontes ainda bloqueados.


Notas

  1. PRADO, D. A. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1988. ↩︎
  2. SCHWARZ, R. “Cultura e política”. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 83. ↩︎
  3. MATHIAS, S. “Maria Antônia: um espírito para contagiar a universidade”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 41. ↩︎
  4. SADER, E.; MORAES, J. Q.; GIANNOTTI, J. A.; SCHWARZ, R. Nós que amávamos tanto O Capital: leituras de Marx no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2017. ↩︎
  5. CASTRO, C. “Réquiem para uma calça Lee”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 93. ↩︎
  6. CARDOSO, I. “Maria Antonia: o edifício de nº 294”. IN: Para uma crítica do presente. 2. ed. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH-USP, Editora 34, 2013, p. 101. ↩︎
  7. SILVA, J. D. O. “Maria Antônia: rebeldia, inconformismo e verdade”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 219. ↩︎
  8. SINGER, P. “Nos arredores da Maria Antônia”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 87. ↩︎
  9. GIANOTTI, J. A. “Maria Antonia: uma certa geração da Faculdade de Filosofia. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 47-8. ↩︎

LEITURAS PARA SE APROFUNDAR NO TEMA


Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (1958-2000), de Fabio Mascaro Querido
Resultado da tese de livre-docência do autor, defendida em dezembro de 2022 na Unicamp, a obra analisa os intelectuais ligados à Universidade de São Paulo dos anos 1960 à década de 1990, revelando como a vertente “marxista acadêmica” exerceu significativa influência nos debates sobre a abertura democrática dos anos 1980 e na vida política brasileira nas décadas seguintes.

O autor examina como alguns personagens representaram simultaneamente o auge e o declínio do pensamento sobre a modernidade no país. Durante os anos 1970, em plena ditadura civil-militar, surgiram análises sofisticadas sobre as particularidades da sociedade brasileira, desafiando o desenvolvimentismo até então hegemônico na esquerda. No entanto, na década seguinte, com raras exceções, como a de Roberto Schwarz, observou-se um distanciamento dessas ideias por parte dos acadêmicos e uma aproximação destes com formulações universalistas, quer seja a visão de mundo neoliberal, que encontrará expressão no PSDB, ou a perspectiva classista, elaborada a partir da experiência do PT. O autor demonstra, assim, como a corrente intelectual da época moldou o pensamento sobre a democracia brasileira após a ditadura, bem como as mudanças e as divisões que ocorreram. Analisa esse importante capítulo da política, capaz de reinterpretar o passado e projetar futuros para o país.



Nós que amávamos tanto O capital, de Emir Sader, João Quartim de Moraes, José Arthur Giannotti e Roberto Schwarz
Relatos marcantes dos pioneiros dos Seminários Marx, que revolucionaram a leitura de Karl Marx no Brasil, revelando como a prática de leitura coletiva moldou a academia e a política. Um documento essencial sobre a história das ideias no país.

Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil, organizado por Benjamin Abdala Jr. e Salete de Almeida Cara
Reunião de ensaios que buscam desvendar a formação do ideário nacional. Da simbologia jesuíta ao panorama contemporâneo, autores como Paulo Arantes, Antonio Candido, Roberto Schwarz, Francisco Alambert e Vinicius Dantas revelam as nuances da relação entre escrita e construção da identidade, questionando ilusões nacionalistas e expondo a complexidade cultural do Brasil.

Margem Esquerda #40 | Matéria brasileira
“A matéria nacional é nossa tarefa histórica.” Assim insiste nosso maior crítico literário marxista na entrevista que abre esta edição da Margem esquerda. Aos 84 anos, Roberto Schwarz é categórico: mesmo em um cenário de aguda desagregação social como o nosso – sepultados o desenvolvimentismo ingênuo e os sonhos de socialismo em um só país – a formação do Brasil segue sendo nosso problema fundamental, quase como uma “herança maldita”. Em conversa com Fabio Mascaro Querido, ele discute os rumos da tradição crítica brasileira na atualidade, e fala sobre aspectos pouco conhecidos de sua trajetória. O dossiê de capa aprofunda o mergulho nas contradições da “matéria brasileira” (para usar a expressão consagrada pelo crítico), em um conjunto de ensaios das novas gerações da teoria crítica. Reunido por Tiago Ferro, o quarteto investiga, retrabalha e testa alguns dos insights da obra schwarziana em confronto com a atualidade política do país.  


***
Matheus Cosmo é doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Mestre em Artes, também pela USP, possui pós-graduação acerca das relações entre psicanálise e cultura pelo Instituto ESPE. Atualmente, é professor da Rede SENAC em São Paulo.


"Ora, se poesia e arte são também um direito conquistado, também contra ele voltou-se a ditadura, esse efetivo golpe à nossa inteligência e à capacidade de imaginar saídas, alternativas e outros horizontes."

Publicado em 17/04/2025 



sábado, 12 de abril de 2025

Livro: Revolução tributária: desafiando as correntes da desigualdade e do patrimonialismo no Brasil - Mariella Pittari (Blog da Boitempo)

Mais uma matéria importante enviada por Mauricio David:

... Segundo o DIEESE, o salário mínimo necessário para fazer frente às pressões inflacionárias do país corresponde a um valor superior aos R$ 7.000,00 (sete mil reais)...

Revolução tributária: desafiando as correntes da desigualdade e do patrimonialismo no Brasil
Mariella Pittari
Blog da Boitempo, 11/04/2025
https://blogdaboitempo.com.br/

O Brasil possui uma tradição tributária regressiva, alguns tributos que a Constituição aspirava implementar jamais tornaram-se realidade, enquanto outros incidem de maneira draconiana sobre os que mais necessitam. Alguns elementos são de imprescindível observância para avaliar a justiça do Direito Tributário Brasileiro, e dentre eles está à atenção a ser dedicada ao princípio da capacidade contributiva.
Um sistema tributário justo perpassa pela distinção entre justiça corretiva e distributiva de Aristóteles. Enquanto a justiça corretiva apenas recoloca os indivíduos em sua posição original, a distributiva faz escolhas acerca daqueles que são merecedores de uma política decisória de alocação das riquezas na sociedade. No Estado Democrático de Direito, para além de exercer violência sobre a coletividade, inclusive para tributar, o Estado possui a missão de satisfazer aspirações constitucionais de gerar uma sociedade livre, justa e solidária. Assim, a recente emenda constitucional que introduziu o princípio constitucional da simplicidade,1 age no sentido de proporcionar que os objetivos constitucionais do país sejam alcançados. Tal busca está sempre a exigir um confronto de forças nem sempre pacífico.
Enquanto o mundo se insurge após a imposição de tarifas de importações de produtos provindos de todo o globo para os Estados Unidos, o Brasil desde sempre impôs impostos proibitivos à entrada de produtos estrangeiros no país. No entanto, jamais se cogitou iniciar uma rebelião do chá2 para impedir que tal coisa ocorresse. Os tributos diretos e indiretos sobre o consumo afetam em maior proporção os mais pobres, que em termos absolutos gastam o mesmo valor que aquelas que possuem renda superior em múltiplos, não fazendo distinção baseada no poder aquisitivo. Os tributos que melhor observam a capacidade contributiva são aqueles que incidem sobre a riqueza, seja de renda ou de patrimônio.
Na mesma linha, o Brasil tributa os ganhos da pessoa jurídica com uma tarifa amena e, à exceção de outros dois países no mundo, não tributa os lucros e dividendos distribuído. Tal cenário irá ser afetado, ainda que maneira suave, pela instituição de um novo imposto voltado à tributação de altas rendas. O projeto de lei criando hipótese de incidência vem acompanhado de uma justificativa baseada sobretudo na quantidade modesta de indivíduos que detêm substancial parcela da riqueza nacional. Apesar de afetar poucos, o novo tributo desagrada um contingente vocal e influente da sociedade que, pouco dispostos em alterar o balanço de forças e ceder diante da necessidade em destinar-se a arrecadação gerada para corrigir as disparidades da tributação de renda de pessoas que não possuem capacidade contributiva, utilizam seu elevado efeito de reverberação e resistência para evitarem ser atingidos. Os mecanismos utilizados para escaparem à mudança serão os mais variados, de reorganização societária por planejamento tributário a opor-se diretamente à aprovação da lei, a mobilização das elites já teve início. Para sustentar a opulência e riqueza, no Brasil, vale tudo!
O ponto de inflexão de tais forças surge quando o Executivo, de modo ainda sobremaneira tímido, propõe alterar o exercício de forças trazendo um tributo inédito no país ao tempo em que amplia a isenção entre os estratos menos providos da sociedade. A isenção do imposto de renda para indivíduos que possuem renda mensal de até R$ 5.000,00 (cinco mil reais) vem acompanhada do imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM. A escolha de redistribuir com base em tal critério atende regras de ouro do Direito Tributário e Financeiro de destinar uma contrapartida da redução de receita, individualizando uma injustiça tributária sem precedentes a nível global, qual seja, a ausência de incidência tributária sobre dividendos. Já não era sem tempo que a fuga de capitais do país não fosse acompanhada da tributação sobre a parcelas dos mais ricos, a prescindir se pessoas físicas ou jurídicas.
Nesse cenário, o PL 1.087/20253 objetiva isentar contribuintes com uma faixa de renda de até R$ 5.000,00 mensais. Apesar de necessária ante os efeitos corrosivos da inflação, a medida mostra-se insuficiente para a justiça tributária que se espera dos que mais recebem no Brasil. No intuito de mitigar tal injustiça, o projeto vem acompanhado da nova hipótese de incidência tributária do imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM.4
O presente texto pretende trazer à discussão o cerne dos problemas de justiça distributiva no Brasil, uma vez que reformas pontuais mantêm o país em posição de desigualdade, tributando sobremaneira o consumo sem, contudo, atacar os grandes detentores de renda. A transmissão de bens e renda de geração em geração aumenta o vácuo entre os mais ricos e os desprovidos. Tal realidade se faz evidente ao constatar que o patrimônio gerado pelos mais ricos se multiplica enquanto entre os mais pobres se dissipa. O abismo que pervade as classes sociais no Brasil impedem a mobilidade e ascensão social, perpetuando a desigualdade social.
Apenas a título ilustrativo, vale trazer a voracidade com que os entes federativos tributam o consumo quando deveriam tributar a propriedade e a renda, tributos cuja competência constitucional foi alocada aos estados federados e municípios, respectivamente. Tal característica define um país desigual que impõe idêntico sacrifício aos mais ricos e o os mais humildes, uma vez que para ter acesso a um bem de consumo irão despender o mesmo valor a despeito da proporção que tal produto custe a cada indivíduo. Alguns desses problemas estão na esfera constitucional e exigirão um rearranjo total da sociedade e da federação, outros necessitam da vontade popular e representativa em alterar a vocação tributária do país.
A origem do atraso: de colônia geográfica à colônia geopolítica
A herança colonial do país é sintetizada em algumas expressões idiomáticas como “vá para o quinto dos infernos”, que refletem a ojeriza que o brasileiro possui à tributação. O quinto que a Coroa exigia como tributo da mineração foi desde sempre percebido como a usurpação do soberano de parcela que deveria ser inteiramente direcionada à elite nacional. Aqueles que detinham um capital criado por monopólio real julgavam-se ungidos por atributos que os distanciavam do resto da população.
O progresso advindo da independência e da república pouco alteraram o patrimonialismo que marcava a economia nacional. O instituto da escravidão, que extraía o que viria a se tornar, no sistema capitalista, de produção a mais-valor, apropriava-se de toda a produção de riqueza sem qualquer contrapartida, normalizando a ideia de retirar do trabalhador tudo que poderia ser espoliado sem que com isso sobreviesse o resultado morte. Passaram-se séculos, porém o estigma que acompanha a exploração do trabalho permanece inalterado.
Um país fundado na longa dicotomia de extração do trabalho escravo sem qualquer contrapartida à dignidade humana, convivendo com a tentativa de obter ganhos máximos pelas elites coloniais que se encontravam no território pátrio,5 trouxe como resultado o desprezo pela remuneração justa e, por parte do Estado, um apetite desmedido em arrecadar de quem não poderia nem sequer contribuir. A noção de tributação como denominador comum de distribuição de serviços e melhoria das condições de vida sempre foram vistas com suspeição e desconfiança.
Segundo o DIEESE, o salário mínimo necessário para fazer frente às pressões inflacionárias do país corresponde a um valor superior aos R$ 7.000,00 (sete mil reais). Portanto, a proposta de isenção de contribuintes que ganham menos de R$ 5.000,0 (cinco mil reais) mensais visa a atender uma capacidade contributiva inexistente. Se considerado nos cálculos os impostos sobre consumo e serviços, além de todos os tributos indiretos, resta indubitável que a isenção é o mínimo de política pública que tem por destinatário contribuintes indiretos que oneram uma substancial parte da renda pagando tributos. Acrescente-se a tal cenário a constante privatização de serviços, do público ao privado, e obtém-se como resultado um salário esmagado pela redução do poder de compra acompanhada pela corrosão do valor dos ganhos pela inflação.
O trabalhador brasileiro encontra-se refém dos juros que achatam o orçamento, ao mesmo tempo em que se endivida para fazer frente às necessidades básicas6 diante da pressão de viver uma vida a crédito.7 Através de uma política pública fomentada pelo próprio Estado, o sistema aprofunda as desigualdades e lança milhões à pobreza. Contra isso, a reforma tributária consiste em um passo decisivo à emancipação das parcelas mais vulneráveis da classe trabalhadora. Contudo, sem que seja abandonado o ajuste fiscal e orçamentário de maneira abrangente, não será possível alcançar os resultados almejados com as mudanças legislativas que se aproximam.
Um dos pilares dos instrumentos monetários à disposição da autoridade do Banco Central consiste na política dos juros. O discurso comumente adotado pelo clássico da economia ortodoxa está em reduzir a oferta de dinheiro que circula na economia para conter os efeitos da inflação. Como efeito colateral, tem-se um aumento da taxa de desocupação e uma perda de acesso ao crédito por parte do trabalhador. O problema se põe quando a inflação afeta a população, não obstante as políticas de juros restritivos e uma política de austeridade que age em detrimento da classe trabalhadora.8
Apesar de positiva, a presente política de tributação não altera algumas premissas de índole neoliberal adotadas pelo governo. A reforma tributária vem desacompanhada de uma expansão do crédito. O argumento utilizado para alterar apenas o aspecto tributário, porém não o de macroeconomia monetária, está em insistir que a expansão da arrecadação e o corte de gastos públicos sejam a única via para estabilizar a economia do país. O que, porém, se evidencia a cada dia com maior nitidez é que metas de inflação irreais, acompanhadas de políticas monetárias e fiscais austeras, geram como efeito final um sistema que, não obstante todo o sacrifício imposto à classe trabalhadora, encontra-se sempre refém do capital especulativo financeiro. Enquanto a submissão desmedida a tais interesses não for harmonizada com um reajuste de forças que priorize a classe trabalhadora, todo o desgaste político em aprovar uma reforma tributária não altera a carência que a ausência de Estado gera.
Caso o governo não abandone a política de austeridade a qualquer custo, nem mesmo uma iniciativa legislativa tão positiva quanto tributar dividendos e os mais abastados será capaz de modificar a dinâmica de encolhimento de uma ideia de Estado Social. Os preços públicos ou preços que o Estado pode controlar, porque atua diretamente na prestação do serviço ou exerce poder decisivo de como os serviços serão prestados, são o melhor termômetro para controlar preços e mitigar os efeitos nefastos produzidos pela corrosão do poder de compra causado por períodos inflacionários.
Conclusão e excertos sobre uma necessária redução da desigualdade
A desigualdade do país remonta à mesma razão de sua existência, a de conferir privilégios à nobreza lusitana. Os privilegiados mudam, porém, resta inalterada a ideia mesma de brasilidade, acompanhada da usurpação, do patrimonialismo e da extração da riqueza tornando bens comuns em privados.9 O compromisso instituído através da Constituição de 1988 encontra-se justamente em abandonar o sistema tributário que remonta à ditadura e estabelecer um parâmetro que atenda a uma aspiração de bem-estar coletivo. Encontrando-se o Código Tributário Nacional ainda em vigor, a questão que fica é se a aliança oligopolizada ali formada não foi mantida, não obstante a Constituição.
Uma melhor compreensão do fenômeno tributário e da intercambialidade de prestações sociais e tributárias nos conduz ao entendimento de que o Estado do Bem-estar Social perpassa a tributação e uma correlação de forças que busque não apenas corrigir desigualdades, mas efetivamente realizar uma redistribuição. As prestações sociais distribuídas através do benefício básico de prestação continuada (BPC), dos serviços públicos distribuídos à população e do acesso ao crédito constituem parte do mesmo processo de elevação das condições de vida da classe trabalhadora. A discussão acerca da ampliação da isenção do Imposto de Renda e da tributação dos dividendos eram medidas imprescindíveis para iniciar o debate acerca da desigualdade que permeia a sociedade brasileira. Contudo, o discurso inaugura, sem que se encerre o enfrentamento de questões prementes tais como o de conter o apetite das elites financeiras e do capital internacional sobre a pilhagem de porção significativa do orçamento ao pagamento de interesses da dívida. Ampliar a isenção tributária sem mexer na austeridade mostrar-se-á placebo no futuro, pois apenas o deslocamento de serviços na esfera estatal poderá funcionar como instrumento eficaz no controle de preços e da inflação, permitindo que a classe trabalhadora ostente poder de compra do salário não obstante as oscilações que o mercado constantemente impõe.

Notas:
Emenda Constitucional nº 132/23.
REBELO, Aldo; PAULINO, Luis Antonio. Reforma tributária: atravessar o rio pisando nas pedras. Princípios Revista Teórica, Política e de Informação, São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2008, 94: 50-64.
O inteiro teor pode ser encontrado no Projeto de Lei nº 1.087/2025, apresentado pelo Executivo.
Art. 6º do PL 1.087/2025.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. L&PM Editores, 2010.
Veja-se o celetista consignado que atua na linha acima proposta.
BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Companhia das Letras, 2010. ↩︎
MATTEI, Clara. A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. Boitempo, 2023. ↩︎
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Companhia das Letras, 2021. ↩︎