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sexta-feira, 18 de abril de 2025

A batalha da Maria Antonia, Documentario - Matheus Cosmo (Blog da Boitempo)

Essa batalha precede meu ingresso no curso de Ciências Sociais da USP, que seria, teocricamente, na Maria Antonia, mas que, em função dessa destruição, em outubro de 1968, mudou para a Cidade Universitária. Em outubro, eu estava fazendo vestinular para o curso, que já foi na Cidade Universitária; lembro-me de ter sido entrevistado pela Professora Ruth Cardoso e pelo Professor Sedi Hirano. Fui da primeira turma dos "barracões" da Cidade Universitária, mas fiquei pouco tempo. Assim que ingressei no primeiro semestre, no começo de 1969, os principais professores foram aposentados compulsoriamente pelo AI-5: Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Octavio Ianni. Como eu já militava na resistência à ditadura, mas a "minha" universidade era invadida pelo "meu" quartel (sim, também fazia serviço militar na época), e a repressão aumentou, acabei saindo do Brasil em 1970, para passar quase sete anos na Europa: refiz toda a graduação em Ciências Sociais na Universidade Livre de Bruxelas (1971-74), fiz um mestrado em Economia do Desenvolvimento (1975-76) e me inscrevi para um doutoramento na ULB, mas acabei postergando para voltar ao Brasil, quando ingressei na carreira diplomática (no final de 1977). Só terminei o doutoramento em 1984, já no meu segundo posto diplomático. 

Paulo Roberto de Almeida (18/04/2025)


“A batalha da rua Maria Antônia” ou sobre tudo que um incêndio e uma ditadura são capazes de destruir

 

"Ora, se poesia e arte são também um direito conquistado, também contra ele voltou-se a ditadura, esse efetivo golpe à nossa inteligência e à capacidade de imaginar saídas, alternativas e outros horizontes."


Por Matheus Cosmo

Blog da Boitempo, 17/04/2025 


Vazia. A porta da faculdade toda chamuscada e depredada. Houvera um incêndio. […] Não foi um incêndio, apenas. Foi alguma coisa como o calor da obstinação, da fé, da esperança. Foi o sinônimo da minha geração e daquela rua. […] O país era uma extensão de cada um de nós, e aquela ditadura – aquela humilhação – doía mais que o puro martírio, porque significava nossa impotência.
— Consuelo de Castro

Maria Antônia é um daqueles espaços marcados pela condição do exílio, de um exílio que já se constitui na dor da partida.
— Irene Cardoso

Pode ser difícil de imaginar à primeira vista, mas na experiência humana o passado é aquilo que mais muda com o correr do tempo. A revisão e a elaboração ininterruptas do que foi e do que poderia ter sido parecem constituir um objeto de investigação constante da experiência individual e coletiva. Nesse sentido, viver parece mesmo ser um constante rasgar-se e remendar-se, a fim de encontrar, produzir e formular outros e novos significados a partir da experiência vivida e dos indesejáveis bloqueios estabelecidos.

Talvez esse seja um bom modo de iniciar um texto a respeito da experiência histórica concernente ao ano de 1968 — essa espécie de instante mágico no qual, segundo Décio de Almeida Prado, muito se fez e se desfez1. Enquanto boa parte do mundo parecia abrir-se a uma revolução sexual e a um abalo generalizado das estruturas de vida e pensamento, herdadas de um já conhecido paradigma moderno, o Brasil parecia enclausurar-se entre a ideia de um milagre econômico e a atrocidade da violência generalizada que, principalmente a partir daquele mesmo ano, com a edição do decreto do AI-5, haveria de produzir ainda mais torturas, mortes e desaparecimentos em massa. Por isso mesmo, motivos não faltam para que o Estado brasileiro de fato formalize um pedido de desculpas às famílias e vítimas de sua ditadura militar. Macaé Evaristo, atual ministra do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em cerimônia realizada em 24 de março deste ano, no Cemitério Dom Bosco, em Perus (o mesmo onde foram abertas valas clandestinas para o despejo das ossadas de vítimas do golpe), chegou a mencionar a necessidade de fazer enfim valer no Brasil o direito inalienável à verdade. E é na esteira dessa difícil busca por nos garantir a inauguração e manutenção do que não pode sequer ser negociado, além da produção de uma versão digna e coerente dos fatos históricos, levando em conta sua triste memória, suas manchas e contornos, que o espectador brasileiro ganhou um excelente registro nessa última semana: como um trabalho prático e bem-sucedido de rememoração e resistência, A batalha da rua Maria Antônia acaba de estrear em grande parte dos cinemas nacionais.

Dirigido por Vera Egito após 12 anos de constante idealização, entre escritas e reescritas do projeto, o longa-metragem a respeito do episódio homônimo ocorrido em São Paulo nos dias 2 e 3 de outubro de 1968 é formado por 21 quadros. Filmados em um intervalo de apenas duas semanas, produzem um inteligente e estruturado plano sequência, que tenta conduzir o olhar do espectador junto a um registro vivo que não cabe no enquadramento das cenas, transbordando-as enquanto matéria excedente de uma opressão que ainda não parece ter cessado em definitivo. A forma ininterrupta das cenas, sem cortes em cada um dos quadros, estabelece vínculos que são difíceis de descrever e mensurar, sendo interrompidos apenas pela ordem da necessidade de uma ruptura, de um corte que parece mesmo externo ao próprio funcionamento do material, levando o espectador a acompanhar uma contagem regressiva rumo a um estrago irreparável. O limite imposto ao país, que barrou sua inteligência e desenvolvimento do início da década de 1960, ganha agora formato estético, em película de 16mm, todo em preto e branco, firmando esteticamente a experiência de um país estrangulado pelos desmandos ditatoriais da violência policial.

 

Já de início, na própria configuração espacial do projeto cênico, o conflito fica inteiramente posto, marcado por apenas uma rua. A famigerada Maria Antônia, no centro de São Paulo, é segmentada em cada um dos lados das calçadas: à direita da tela, as letras na parede apontam que o CCC voltou; do outro lado, à esquerda, uma faixa assegura a tentativa de fundar e propagar um movimento revolucionário. Em outros termos, de um lado temos a Universidade Presbiterana Mackenzie e seu abrigo ao grupo paramilitar treinado para caçar comunistas. Traduzindo a fina flor da burguesia, com seus ternos, gravatas e seu sempre presente ódio a qualquer política de avanço dos trabalhadores e estudantes, o Mackenzie marcava a efetiva consolidação da revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em leis e etc., de acordo com a conhecida expressão de Roberto Schwarz2. Do outro lado da rua, os estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, tentando arrecadar fundos para a realização do XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, pedindo contribuições nas esquinas. Após a Batalha, ocorrida naquele mês de outubro de 1968, a Faculdade (em boa medida desmembrada em suas disciplinas) seria realocada na Cidade Universitária, no bairro do Butantã, em um dito prédio provisório que permanece o oficial até a atualidade.

O estilo inusitado e irreverente das personagens da Faculdade de Filosofia dá o tom do que poderia ser uma revolução nos costumes da sociedade brasileira, com seus cigarros, jaquetas e botões abertos nas blusas, em oposição aos terninhos engomados que produzem toda a caretice do lado direito. Um olhar em retrospectiva poderia afirmar, contudo, que ao menos parcialmente, com o esvaziamento de suas pautas e demandas verdadeiras, um tanto desta tal revolução chegou mesmo a se solidificar, abrindo as portas do que pode ser considerado como um pós-modernismo à brasileira: a completa estetização da desgraça e da desordem, revelada a partir de seu esvaziamento e da pura apresentação como mercadoria. Desse processo, nem a arte, nem a arquitetura, nem a educação puderam fugir. Por esse motivo, também a diretora e a equipe de produção do filme tiveram de buscar outra locação para realizar suas gravações: é que, passados tantos anos, o lixo comercial que hoje inunda a rua Maria Antônia em São Paulo, com seus bares, academias e luzes de Led, nem sequer deixa entrever a história que reside em suas paredes e calçadas.

Ao longo de 85 minutos, os atravessamentos cênicos são diversos, de toda ordem, e apenas ganham outros e novos contornos a cada cena: o que termina com o incêndio de todo um prédio — ato que concretizava também o projeto de expulsão de uma forma de vida e pensamento do centro de São Paulo para os confins da Cidade Universitária, na Zona Oeste — parece iniciar-se também como uma preocupação aparentemente legítima de parte do corpo docente em relação aos estudantes: “A aula é a última coisa que importa para eles”, lamenta Leda, professora, interpretada por Gabriela Carneiro da Cunha, para quem “Aristóteles é Aristóteles: não importa muito o tempo em que a gente está”. A fala da docente, que será agredida nos minutos finais do longa-metragem, abre um difícil dilema que há tempos edifica a prática de trabalho de qualquer professor minimamente atento e engajado: de que modo conjugar os conteúdos objetivos, da aparente formação intelectual de um sujeito, com a urgência das lutas e demandas práticas da vida? Até que ponto a segunda já funciona como a maior de todas as matérias, garantindo um ensinamento e uma aplicabilidade que se constrói junto à vida de cada um? Ora, por acaso existe vida e pensamento fora de uma realidade social? Afinal, como se forma um filósofo em uma época de horizontes bloqueados? Por que — e para que — se estuda filosofia?

Quantas seriam as lições que ainda teríamos de aprender com Paulo Freire, esse ídolo e amálgama do ódio direitista, sempre excludente, altamente classista? Quantos sentidos e funções cabem na palavra estudante, chamados de vagabundos a céu aberto, no meio das ruas? Em sala de aula, quais e quantos são os sentidos que um estudo apurado acerca da definição de tragédia pode ainda assumir antes de revelar-se como pura farsa antidemocrática? “Nem sempre dá pra fugir da confusão”, exclama Ângela, personagem central da trama, interpretada por Isamara Castilho. Daí a necessidade da escolha: afinal, em 1968, deve-se preparar uma aula sobre Aristóteles, Pitágoras ou sobre a democracia? A resposta, para além das predileções individuais de cada docente, traduz o engajamento da própria universidade e o nível da responsabilidade intelectual que ela é capaz de abarcar para si mesma, no processo de formação de um novo sujeito político.

A composição imagética dos quadros cênicos possui forte potência também naquilo que não diz verbalmente, mas que se mostra e enuncia na leitura a partir do cruzamento entre as próprias imagens. O entrelaçar de informações que se dá entre uma professora explicando a definição aristotélica de tragédia, de acordo com a famosa Poética grega, e os cartazes colados nas paredes, em defesa do Congresso da UNE e da participação popular, de um movimento eficaz que unisse estudantes e trabalhadores, dá o tom da urgência de um momento em que a História se mostrava em seu real potencial de construção. Nos corredores, havia a percepção de que o prédio da Faculdade de Filosofia ficara pequeno demais para os sonhos e projetos de toda uma juventude revolucionária que, naquele momento, defendia sobretudo o direito às vagas excedentes, à ocupação do espaço público — projeto avesso a qualquer sistema ditatorial, de opressão. Quando o que predomina é a prática da violência e o ódio gratuito à liberdade, “é preciso preservar o nosso direito de escrever poesia”, exclama um docente, engajado em seu fazer cotidiano, o qual efetivamente só alcança seu verdadeiro sentido no enfrentamento entre a vivacidade e urgência das pautas e a prevista passividade das carteiras.

Ora, se poesia e arte são também um direito conquistado, também contra ele voltou-se a ditadura, esse efetivo golpe à nossa inteligência e à capacidade de imaginar saídas, alternativas e outros horizontes. Não à toa, em conversa dentro da sala que guarda a importante urna de votação da UNE, cuja sede fora igualmente incendiada já no ano de 1964, o conhecido episódio de espancamento dos atores e de depredação dos cenários da montagem de Roda Viva, de Chico Buarque, em julho daquele ano, no Teatro Ruth Escobar, aparece enquanto memória e lembrança, produzindo suas marcas. Certamente, o país que espanca seus intérpretes e que prende seus artistas outorga para si mesmo uma terrível identidade — identidade essa da qual ainda hoje recolhemos frutos, uma vez que também ela ainda está aqui.


Nesse interregno, não existe possibilidade alguma de isenção. “Quando a Sra. se envolver, vem falar comigo!”, diz à professora da unidade o então líder do movimento estudantil, interpretado pelo ator Caio Horowicz, que personifica um tanto da conhecida figura de José Dirceu. É a partir desta relação difusa e complementar entre professor e aluno que, no 16º dos quadros apresentados, uma imagem discreta tem força total: dois professores, Leda e Rubens, do alto do andar superior, murmuram entre si que, certamente, aquilo vai acabar mal. O olhar de cima para baixo, do alto da cátedra para o chão prático da luta, aponta para a distância que parte do corpo docente toma da batalha que se firma no avançar de cada quadro.

Em depoimento dado no ano de 1987, o professor e pesquisador Simão Mathias, presidente designado para organizar uma Comissão que se propusesse a averiguar as minúcias de todo o acontecimento em 1968, reconheceu que havia três grupos de professores em atividade naquele momento: “um grupo pequeno de professores reacionários, um grupo de professores de centro, que era moderado, e um grupo de professores que lutava pela verdadeira universidade”3 — porque não há universidade, verdadeira em seu propósito, sem o respectivo engajamento a favor da cidadania e da participação popular. Aqui, mesmo sabendo da distância e diferença de viver em outro país, como não se lembrar de um teórico como Adorno, por exemplo? Como não reverberar, na distância e no julgamento entre professores e alunos, algo similar aos gritos dos estudantes franceses exclamando que as estruturas não descem às ruas? O Brasil da Maria Antônia apresentava-se com toda a particularidade das disputas nacionais, mas certamente não constituía um caso de isolamento diante dos problemas basilares que se davam também em outros cantos do mundo. Seu desenvolvimento seria diverso mas não alheio ao dos outros países, para fazer valer uma expressão muito cara a toda a geração do Seminário de Marx, que também encontrou régua e compasso nos encontros, corredores e discussões de uma antiga Faculdade de Filosofia4.

Se a situação já não era passível de alguma angústia até aqui, mesclando todas as possibilidades que um horizonte de luta pode ou não abrir, na contagem regressiva da sequência dos quadros, é a partir do 15º deles que um nó na garganta toma conta dos espectadores. Como pode uma mesma e única câmera, em um incansável plano sequência, dar forma às atrocidades múltiplas do início de um incêndio? No primeiro dos muitos Molotovs lançados contra a USP, incendiando a parte superior do prédio, o espectador é forçado a fazer da lente da câmera seu próprio olhar, reconhecendo que muito lhe escapará, mas que também isso é parte da violência excedente de um regime que ultrapassou os limites de qualquer exercício de cidadania e dignidade. De certa forma, também o espectador é levado a vivenciar um tanto daquele ânimo que conduziu os estudantes em 1968 — aquele que, nas palavras de Consuelo de Castro, traduziu-se em um difícil questionamento: “O que fazer quando não há o que fazer?”5. A angústia que toma o espectador, em parte similar àquela que outrora fomentou a necessidade de engajamento na luta armada, na urgência por uma ação e resposta, como um ato desesperado que fosse também uma alternativa real às prisões, mortes e desaparecimentos vividos, parece agora embriagar-se com o licor da experiência da derrota que, como se sabe, deu o tom dos últimos anos. Naquele instante, em 1968, o mundo parecia estar em aberto, por vezes até sem a necessidade de mediações entre a urgência do ato e os processos desejados. A bandeira do Brasil, pendurada na entrada do prédio de Filosofia, parecia mesmo sinalizar um símbolo em disputa — e que era o equivalente a todo um país, no limite da análise. Todavia, quando o que existe de mais urgente é apagar o fogo e reparar o tamanho de um estrago que já teve início e que não parece cessar nem mesmo por um minuto — o ataque ao prédio de Filosofia durou cerca de 10 horas ininterruptas6 —, a formulação de novas alternativas, a instauração de um regime efetivamente democrático parece mesmo se tornar um exercício difícil de se pensar e constituir.

Em um depoimento de agosto de 1987, José Dirceu, então líder do Movimento Estudantil, reconhecia: “Maria Antônia foi uma realidade que só a força das armas conseguiu acabar”7. Talvez seja importante sinalizar que as armas usadas em 1968 já haviam sido parcialmente empregadas e prometidas em momentos anteriores da História, como quando em setembro daquele mesmo ano a intranquilidade reinou mais uma vez no prédio da Faculdade de Filosofia da USP diante da ameaça do lançamento de bombas, que não chegaram a ser encontradas. Ora, sem ter como negar ou fugir deste imbróglio, resta pensar: afinal, poderiam os estudantes lutar com as mesmas armas de seus oponentes? Com quais armas pode a educação lutar contra a polícia? Há algum parâmetro possível para se comparar as duas forças? Com quais armas podem — e devem, sempre — lutar os estudantes?

A câmera que foca no vidro quebrado do prédio de Filosofia marca os estilhaços de uma estrutura que não era apenas física, mas também de todo um projeto democrático, um dia marcado pelo MCP, pelo Teatro de Arena e pelo Cinema Novo, por exemplo. Um pouco de tudo isso se desfez com a destruição do prédio. Não se tratava apenas de destruir um prédio, mas de demolir todo um projeto civilizatório — que agora haveria de recuar para a emergência conservadora que edificou alguns caminhos até aqui. A contagem regressiva dos quadros em cena parece mesmo ser uma espécie de bomba relógio que, aos poucos, anuncia a progressão da ruína da inteligência nacional. Errado seria imaginar que o conflito apresentado se inicia com ovos pedras e se encerra no embate entre USP e Mackenzie. A verdade é que a Batalha da Maria Antônia foi um ataque pensado e estruturado para destruir a Faculdade de Filosofia, tal como já havia ocorrido com a sala do Grêmio do prédio em 1964 e 1967 (nas duas ocasiões, pichada com dizeres como “CCC voltou!”, “Fora o comunismo!” e afins).

“Ali [do lado da Mackenzie] não tem estudante, não”, lembra ao espectador uma das personagens, tentando explicar a gravidade dos acontecimentos e episódios a Lilian, que ganha corpo, voz e entendimento a partir da interpretação de Pamela Germano. Na contramão disso, a estudante que mora no prédio universitário, que o ocupa e o transforma em seu lar (a mesma que elucida os conflitos a Lilian), Maria Helena, interpretada por Julianna Gerais, dá indícios do que pode significar a universidade e a própria educação quando seu sentido é mesmo civilizatório e democrático, longe dos fantasmas e aberrações de grupos paramilitares. Talvez uma parte desse furor possa ter sido reencontrada em 2015, com a ocupação das escolas estaduais em São Paulo. Todavia, também nos anos mais recentes, a resposta do Estado ainda seguiu exatamente a mesma: à tentativa de integração e redação de um projeto civilizatório, a polícia logo responde com suas armas, escudos e cavalos — e, no caso da Batalha da Maria Antônia, posicionando-se ainda em defesa do Mackenzie e dos interesses privados, a despeito da coisa pública, atendendo exclusivamente ao chamado da então reitora Esther Figueiredo Ferraz. Ao que parece, não há modo mais transparente de o Estado dizer de que lado efetivamente está.


“Eu sou professora” é uma frase que nem sequer consegue ser terminada, dada a brutalidade da resposta, que vem na forma de um soco policial. À imagem, difícil de ver e de assistir, logo segue outra agressão, dessa vez a uma estudante, lançada contra a parede e arrastada pelos cabelos. Que tipo de país produzimos quando permitimos a agressão a estudantes e professores? Que projeto civilizatório pode existir quando o saber é substituído por balas que atravessam a cabeça de um estudante secundarista, morto na calçada em frente ao prédio nos minutos finais do longa-metragem, em memória de José Guimarães? E como não se lembrar também de Edson Luís e de tantos outros estudantes e professores — todos mortos, desaparecidos, torturados? Nada mais triste e desconfortante que ouvir a voz de uma estudante cantando “Roda viva” e perceber o som de seu timbre falhando em “A gente quer ter voz ativa”, enquanto a câmera percorre os corredores já cheios de feridas e de feridos.

A Maria Antônia seria, então, um retrato efetivo da potência de nossa manifestação e da cruel consequência proveniente desse ato? Como saber exatamente o que ali se encontrava em disputa diante da desproporcionalidade das ações? Como um ovo arremessado contra uma estudante pode gerar o incêndio de todo um prédio e a prisão de professores? Quantas muitas coisas perdemos nessa Batalha? Quantas outras também teriam desaparecido junto àquele Livro Branco sobre os acontecimentos da Rua Maria Antônia, relatório assinado por Antonio Candido, Carlos Alberto Barbosa Dantas, Carlos Lyra, Eunice Durhan e Ruth Cardoso, a responsável pelo registro da experiência destrutiva dos difíceis dias 2 e 3 de outubro de 1968, finalizado cerca de um mês após o ocorrido e abafado logo em seguida, sem a circulação imediata?

De todas as personagens da trama, talvez uma seja a mais emblemática: Vânia. Sempre ausente das cenas, desaparecida política da ditadura, membro do Movimento Estudantil, renegada pela própria família — que a tem como terrorista —, da personagem sobra apenas a circulação da mais importante mensagem, aprendida com nossos vizinhos: Hasta la victoria siempre!

Se na cena inicial um jovem ainda no Ensino Médio desejava conhecer mulheres mais livres e descoladas, o desenrolar das cenas permite que justamente essas tomem o centro de todo o filme. Seja no espancamento dos inimigos, seja na resistência em sala de aula ou ainda na mensagem deixada, que decerto faz ecoar, são as mulheres que executam as ações principais do filme, passando da resistência ao ato sexual, que agora também se mostra disforme, sem contornos, mesclando a satisfação e o desconforto, a preservação de si mesmo, princípio de uma pulsão sexual atuante, e a distorção da própria imagem. Se o amor fez uma revolução enquanto afeto em 1968, também a sua imagem sofreu distorções ao longo dos anos, cabendo também aqui às mulheres certo exemplo de luta e participação. Especialmente às mulheres negras, duas das atrizes principais, cujos contornos aparecem sempre relembrados nas menções, nas paredes e cartazes, aos Black Panthers.

Em um de seus depoimentos, o brilhante professor Paul Singer lembrou que a transferência da FFCL à Cidade Universitária encerrou um ciclo, cujo fim foi selado pela aposentadoria de Florestan Fernandes, José Arthur Giannotti, Octávio Ianni, Bento Prado Jr., dentre outros8. Com a aposentadoria compulsória de vários docentes, determinada em 1969, um ano após todo o conflito, decerto um modelo de trabalho e pensamento parecia encontrar seu limite, sem deixar entrever o que viria a partir daí, garantindo para muitos apenas o desemprego e o trabalho em outras profissões. Longe da ciência e da prática docente, distante dos debates e discussões efetivos acerca da realidade nacional9. Quantas outras coisas também se encerraram naquele curioso cruzamento com a Rua da Consolação ainda estão para ser analisadas, no desmonte frequente das universidades e nas condições precárias e insalubres do trabalho em sala de aula. Em respeito e em defesa de todas elas, A batalha da rua Maria Antônia, que já ganhou os prêmios de Melhor Filme na Première Brasil do Festival do Rio (2023), Melhor Longa-Metragem de Ficção (Escolha do Júri) no Festival de Atlanta (2024) e o Prêmio Especial do Júri no Panorama Coisas de Cinema (2024), move-se como um exercício de memória e resistência em um tempo de horizontes ainda bloqueados.


Notas

  1. PRADO, D. A. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1988. ↩︎
  2. SCHWARZ, R. “Cultura e política”. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 83. ↩︎
  3. MATHIAS, S. “Maria Antônia: um espírito para contagiar a universidade”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 41. ↩︎
  4. SADER, E.; MORAES, J. Q.; GIANNOTTI, J. A.; SCHWARZ, R. Nós que amávamos tanto O Capital: leituras de Marx no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2017. ↩︎
  5. CASTRO, C. “Réquiem para uma calça Lee”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 93. ↩︎
  6. CARDOSO, I. “Maria Antonia: o edifício de nº 294”. IN: Para uma crítica do presente. 2. ed. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH-USP, Editora 34, 2013, p. 101. ↩︎
  7. SILVA, J. D. O. “Maria Antônia: rebeldia, inconformismo e verdade”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 219. ↩︎
  8. SINGER, P. “Nos arredores da Maria Antônia”. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 87. ↩︎
  9. GIANOTTI, J. A. “Maria Antonia: uma certa geração da Faculdade de Filosofia. IN: SANTOS, M. C. L. Maria Antônia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 47-8. ↩︎

LEITURAS PARA SE APROFUNDAR NO TEMA


Lugar periférico, ideias modernas: aos intelectuais paulistas as batatas (1958-2000), de Fabio Mascaro Querido
Resultado da tese de livre-docência do autor, defendida em dezembro de 2022 na Unicamp, a obra analisa os intelectuais ligados à Universidade de São Paulo dos anos 1960 à década de 1990, revelando como a vertente “marxista acadêmica” exerceu significativa influência nos debates sobre a abertura democrática dos anos 1980 e na vida política brasileira nas décadas seguintes.

O autor examina como alguns personagens representaram simultaneamente o auge e o declínio do pensamento sobre a modernidade no país. Durante os anos 1970, em plena ditadura civil-militar, surgiram análises sofisticadas sobre as particularidades da sociedade brasileira, desafiando o desenvolvimentismo até então hegemônico na esquerda. No entanto, na década seguinte, com raras exceções, como a de Roberto Schwarz, observou-se um distanciamento dessas ideias por parte dos acadêmicos e uma aproximação destes com formulações universalistas, quer seja a visão de mundo neoliberal, que encontrará expressão no PSDB, ou a perspectiva classista, elaborada a partir da experiência do PT. O autor demonstra, assim, como a corrente intelectual da época moldou o pensamento sobre a democracia brasileira após a ditadura, bem como as mudanças e as divisões que ocorreram. Analisa esse importante capítulo da política, capaz de reinterpretar o passado e projetar futuros para o país.



Nós que amávamos tanto O capital, de Emir Sader, João Quartim de Moraes, José Arthur Giannotti e Roberto Schwarz
Relatos marcantes dos pioneiros dos Seminários Marx, que revolucionaram a leitura de Karl Marx no Brasil, revelando como a prática de leitura coletiva moldou a academia e a política. Um documento essencial sobre a história das ideias no país.

Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil, organizado por Benjamin Abdala Jr. e Salete de Almeida Cara
Reunião de ensaios que buscam desvendar a formação do ideário nacional. Da simbologia jesuíta ao panorama contemporâneo, autores como Paulo Arantes, Antonio Candido, Roberto Schwarz, Francisco Alambert e Vinicius Dantas revelam as nuances da relação entre escrita e construção da identidade, questionando ilusões nacionalistas e expondo a complexidade cultural do Brasil.

Margem Esquerda #40 | Matéria brasileira
“A matéria nacional é nossa tarefa histórica.” Assim insiste nosso maior crítico literário marxista na entrevista que abre esta edição da Margem esquerda. Aos 84 anos, Roberto Schwarz é categórico: mesmo em um cenário de aguda desagregação social como o nosso – sepultados o desenvolvimentismo ingênuo e os sonhos de socialismo em um só país – a formação do Brasil segue sendo nosso problema fundamental, quase como uma “herança maldita”. Em conversa com Fabio Mascaro Querido, ele discute os rumos da tradição crítica brasileira na atualidade, e fala sobre aspectos pouco conhecidos de sua trajetória. O dossiê de capa aprofunda o mergulho nas contradições da “matéria brasileira” (para usar a expressão consagrada pelo crítico), em um conjunto de ensaios das novas gerações da teoria crítica. Reunido por Tiago Ferro, o quarteto investiga, retrabalha e testa alguns dos insights da obra schwarziana em confronto com a atualidade política do país.  


***
Matheus Cosmo é doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Mestre em Artes, também pela USP, possui pós-graduação acerca das relações entre psicanálise e cultura pelo Instituto ESPE. Atualmente, é professor da Rede SENAC em São Paulo.


"Ora, se poesia e arte são também um direito conquistado, também contra ele voltou-se a ditadura, esse efetivo golpe à nossa inteligência e à capacidade de imaginar saídas, alternativas e outros horizontes."

Publicado em 17/04/2025 



sábado, 12 de abril de 2025

Livro: Revolução tributária: desafiando as correntes da desigualdade e do patrimonialismo no Brasil - Mariella Pittari (Blog da Boitempo)

Mais uma matéria importante enviada por Mauricio David:

... Segundo o DIEESE, o salário mínimo necessário para fazer frente às pressões inflacionárias do país corresponde a um valor superior aos R$ 7.000,00 (sete mil reais)...

Revolução tributária: desafiando as correntes da desigualdade e do patrimonialismo no Brasil
Mariella Pittari
Blog da Boitempo, 11/04/2025
https://blogdaboitempo.com.br/

O Brasil possui uma tradição tributária regressiva, alguns tributos que a Constituição aspirava implementar jamais tornaram-se realidade, enquanto outros incidem de maneira draconiana sobre os que mais necessitam. Alguns elementos são de imprescindível observância para avaliar a justiça do Direito Tributário Brasileiro, e dentre eles está à atenção a ser dedicada ao princípio da capacidade contributiva.
Um sistema tributário justo perpassa pela distinção entre justiça corretiva e distributiva de Aristóteles. Enquanto a justiça corretiva apenas recoloca os indivíduos em sua posição original, a distributiva faz escolhas acerca daqueles que são merecedores de uma política decisória de alocação das riquezas na sociedade. No Estado Democrático de Direito, para além de exercer violência sobre a coletividade, inclusive para tributar, o Estado possui a missão de satisfazer aspirações constitucionais de gerar uma sociedade livre, justa e solidária. Assim, a recente emenda constitucional que introduziu o princípio constitucional da simplicidade,1 age no sentido de proporcionar que os objetivos constitucionais do país sejam alcançados. Tal busca está sempre a exigir um confronto de forças nem sempre pacífico.
Enquanto o mundo se insurge após a imposição de tarifas de importações de produtos provindos de todo o globo para os Estados Unidos, o Brasil desde sempre impôs impostos proibitivos à entrada de produtos estrangeiros no país. No entanto, jamais se cogitou iniciar uma rebelião do chá2 para impedir que tal coisa ocorresse. Os tributos diretos e indiretos sobre o consumo afetam em maior proporção os mais pobres, que em termos absolutos gastam o mesmo valor que aquelas que possuem renda superior em múltiplos, não fazendo distinção baseada no poder aquisitivo. Os tributos que melhor observam a capacidade contributiva são aqueles que incidem sobre a riqueza, seja de renda ou de patrimônio.
Na mesma linha, o Brasil tributa os ganhos da pessoa jurídica com uma tarifa amena e, à exceção de outros dois países no mundo, não tributa os lucros e dividendos distribuído. Tal cenário irá ser afetado, ainda que maneira suave, pela instituição de um novo imposto voltado à tributação de altas rendas. O projeto de lei criando hipótese de incidência vem acompanhado de uma justificativa baseada sobretudo na quantidade modesta de indivíduos que detêm substancial parcela da riqueza nacional. Apesar de afetar poucos, o novo tributo desagrada um contingente vocal e influente da sociedade que, pouco dispostos em alterar o balanço de forças e ceder diante da necessidade em destinar-se a arrecadação gerada para corrigir as disparidades da tributação de renda de pessoas que não possuem capacidade contributiva, utilizam seu elevado efeito de reverberação e resistência para evitarem ser atingidos. Os mecanismos utilizados para escaparem à mudança serão os mais variados, de reorganização societária por planejamento tributário a opor-se diretamente à aprovação da lei, a mobilização das elites já teve início. Para sustentar a opulência e riqueza, no Brasil, vale tudo!
O ponto de inflexão de tais forças surge quando o Executivo, de modo ainda sobremaneira tímido, propõe alterar o exercício de forças trazendo um tributo inédito no país ao tempo em que amplia a isenção entre os estratos menos providos da sociedade. A isenção do imposto de renda para indivíduos que possuem renda mensal de até R$ 5.000,00 (cinco mil reais) vem acompanhada do imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM. A escolha de redistribuir com base em tal critério atende regras de ouro do Direito Tributário e Financeiro de destinar uma contrapartida da redução de receita, individualizando uma injustiça tributária sem precedentes a nível global, qual seja, a ausência de incidência tributária sobre dividendos. Já não era sem tempo que a fuga de capitais do país não fosse acompanhada da tributação sobre a parcelas dos mais ricos, a prescindir se pessoas físicas ou jurídicas.
Nesse cenário, o PL 1.087/20253 objetiva isentar contribuintes com uma faixa de renda de até R$ 5.000,00 mensais. Apesar de necessária ante os efeitos corrosivos da inflação, a medida mostra-se insuficiente para a justiça tributária que se espera dos que mais recebem no Brasil. No intuito de mitigar tal injustiça, o projeto vem acompanhado da nova hipótese de incidência tributária do imposto sobre a renda das pessoas físicas mínimo – IRPFM.4
O presente texto pretende trazer à discussão o cerne dos problemas de justiça distributiva no Brasil, uma vez que reformas pontuais mantêm o país em posição de desigualdade, tributando sobremaneira o consumo sem, contudo, atacar os grandes detentores de renda. A transmissão de bens e renda de geração em geração aumenta o vácuo entre os mais ricos e os desprovidos. Tal realidade se faz evidente ao constatar que o patrimônio gerado pelos mais ricos se multiplica enquanto entre os mais pobres se dissipa. O abismo que pervade as classes sociais no Brasil impedem a mobilidade e ascensão social, perpetuando a desigualdade social.
Apenas a título ilustrativo, vale trazer a voracidade com que os entes federativos tributam o consumo quando deveriam tributar a propriedade e a renda, tributos cuja competência constitucional foi alocada aos estados federados e municípios, respectivamente. Tal característica define um país desigual que impõe idêntico sacrifício aos mais ricos e o os mais humildes, uma vez que para ter acesso a um bem de consumo irão despender o mesmo valor a despeito da proporção que tal produto custe a cada indivíduo. Alguns desses problemas estão na esfera constitucional e exigirão um rearranjo total da sociedade e da federação, outros necessitam da vontade popular e representativa em alterar a vocação tributária do país.
A origem do atraso: de colônia geográfica à colônia geopolítica
A herança colonial do país é sintetizada em algumas expressões idiomáticas como “vá para o quinto dos infernos”, que refletem a ojeriza que o brasileiro possui à tributação. O quinto que a Coroa exigia como tributo da mineração foi desde sempre percebido como a usurpação do soberano de parcela que deveria ser inteiramente direcionada à elite nacional. Aqueles que detinham um capital criado por monopólio real julgavam-se ungidos por atributos que os distanciavam do resto da população.
O progresso advindo da independência e da república pouco alteraram o patrimonialismo que marcava a economia nacional. O instituto da escravidão, que extraía o que viria a se tornar, no sistema capitalista, de produção a mais-valor, apropriava-se de toda a produção de riqueza sem qualquer contrapartida, normalizando a ideia de retirar do trabalhador tudo que poderia ser espoliado sem que com isso sobreviesse o resultado morte. Passaram-se séculos, porém o estigma que acompanha a exploração do trabalho permanece inalterado.
Um país fundado na longa dicotomia de extração do trabalho escravo sem qualquer contrapartida à dignidade humana, convivendo com a tentativa de obter ganhos máximos pelas elites coloniais que se encontravam no território pátrio,5 trouxe como resultado o desprezo pela remuneração justa e, por parte do Estado, um apetite desmedido em arrecadar de quem não poderia nem sequer contribuir. A noção de tributação como denominador comum de distribuição de serviços e melhoria das condições de vida sempre foram vistas com suspeição e desconfiança.
Segundo o DIEESE, o salário mínimo necessário para fazer frente às pressões inflacionárias do país corresponde a um valor superior aos R$ 7.000,00 (sete mil reais). Portanto, a proposta de isenção de contribuintes que ganham menos de R$ 5.000,0 (cinco mil reais) mensais visa a atender uma capacidade contributiva inexistente. Se considerado nos cálculos os impostos sobre consumo e serviços, além de todos os tributos indiretos, resta indubitável que a isenção é o mínimo de política pública que tem por destinatário contribuintes indiretos que oneram uma substancial parte da renda pagando tributos. Acrescente-se a tal cenário a constante privatização de serviços, do público ao privado, e obtém-se como resultado um salário esmagado pela redução do poder de compra acompanhada pela corrosão do valor dos ganhos pela inflação.
O trabalhador brasileiro encontra-se refém dos juros que achatam o orçamento, ao mesmo tempo em que se endivida para fazer frente às necessidades básicas6 diante da pressão de viver uma vida a crédito.7 Através de uma política pública fomentada pelo próprio Estado, o sistema aprofunda as desigualdades e lança milhões à pobreza. Contra isso, a reforma tributária consiste em um passo decisivo à emancipação das parcelas mais vulneráveis da classe trabalhadora. Contudo, sem que seja abandonado o ajuste fiscal e orçamentário de maneira abrangente, não será possível alcançar os resultados almejados com as mudanças legislativas que se aproximam.
Um dos pilares dos instrumentos monetários à disposição da autoridade do Banco Central consiste na política dos juros. O discurso comumente adotado pelo clássico da economia ortodoxa está em reduzir a oferta de dinheiro que circula na economia para conter os efeitos da inflação. Como efeito colateral, tem-se um aumento da taxa de desocupação e uma perda de acesso ao crédito por parte do trabalhador. O problema se põe quando a inflação afeta a população, não obstante as políticas de juros restritivos e uma política de austeridade que age em detrimento da classe trabalhadora.8
Apesar de positiva, a presente política de tributação não altera algumas premissas de índole neoliberal adotadas pelo governo. A reforma tributária vem desacompanhada de uma expansão do crédito. O argumento utilizado para alterar apenas o aspecto tributário, porém não o de macroeconomia monetária, está em insistir que a expansão da arrecadação e o corte de gastos públicos sejam a única via para estabilizar a economia do país. O que, porém, se evidencia a cada dia com maior nitidez é que metas de inflação irreais, acompanhadas de políticas monetárias e fiscais austeras, geram como efeito final um sistema que, não obstante todo o sacrifício imposto à classe trabalhadora, encontra-se sempre refém do capital especulativo financeiro. Enquanto a submissão desmedida a tais interesses não for harmonizada com um reajuste de forças que priorize a classe trabalhadora, todo o desgaste político em aprovar uma reforma tributária não altera a carência que a ausência de Estado gera.
Caso o governo não abandone a política de austeridade a qualquer custo, nem mesmo uma iniciativa legislativa tão positiva quanto tributar dividendos e os mais abastados será capaz de modificar a dinâmica de encolhimento de uma ideia de Estado Social. Os preços públicos ou preços que o Estado pode controlar, porque atua diretamente na prestação do serviço ou exerce poder decisivo de como os serviços serão prestados, são o melhor termômetro para controlar preços e mitigar os efeitos nefastos produzidos pela corrosão do poder de compra causado por períodos inflacionários.
Conclusão e excertos sobre uma necessária redução da desigualdade
A desigualdade do país remonta à mesma razão de sua existência, a de conferir privilégios à nobreza lusitana. Os privilegiados mudam, porém, resta inalterada a ideia mesma de brasilidade, acompanhada da usurpação, do patrimonialismo e da extração da riqueza tornando bens comuns em privados.9 O compromisso instituído através da Constituição de 1988 encontra-se justamente em abandonar o sistema tributário que remonta à ditadura e estabelecer um parâmetro que atenda a uma aspiração de bem-estar coletivo. Encontrando-se o Código Tributário Nacional ainda em vigor, a questão que fica é se a aliança oligopolizada ali formada não foi mantida, não obstante a Constituição.
Uma melhor compreensão do fenômeno tributário e da intercambialidade de prestações sociais e tributárias nos conduz ao entendimento de que o Estado do Bem-estar Social perpassa a tributação e uma correlação de forças que busque não apenas corrigir desigualdades, mas efetivamente realizar uma redistribuição. As prestações sociais distribuídas através do benefício básico de prestação continuada (BPC), dos serviços públicos distribuídos à população e do acesso ao crédito constituem parte do mesmo processo de elevação das condições de vida da classe trabalhadora. A discussão acerca da ampliação da isenção do Imposto de Renda e da tributação dos dividendos eram medidas imprescindíveis para iniciar o debate acerca da desigualdade que permeia a sociedade brasileira. Contudo, o discurso inaugura, sem que se encerre o enfrentamento de questões prementes tais como o de conter o apetite das elites financeiras e do capital internacional sobre a pilhagem de porção significativa do orçamento ao pagamento de interesses da dívida. Ampliar a isenção tributária sem mexer na austeridade mostrar-se-á placebo no futuro, pois apenas o deslocamento de serviços na esfera estatal poderá funcionar como instrumento eficaz no controle de preços e da inflação, permitindo que a classe trabalhadora ostente poder de compra do salário não obstante as oscilações que o mercado constantemente impõe.

Notas:
Emenda Constitucional nº 132/23.
REBELO, Aldo; PAULINO, Luis Antonio. Reforma tributária: atravessar o rio pisando nas pedras. Princípios Revista Teórica, Política e de Informação, São Paulo: Editora Anita Garibaldi, 2008, 94: 50-64.
O inteiro teor pode ser encontrado no Projeto de Lei nº 1.087/2025, apresentado pelo Executivo.
Art. 6º do PL 1.087/2025.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. L&PM Editores, 2010.
Veja-se o celetista consignado que atua na linha acima proposta.
BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-Madrazo. Companhia das Letras, 2010. ↩︎
MATTEI, Clara. A ordem do capital: como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo. Boitempo, 2023. ↩︎
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Companhia das Letras, 2021. ↩︎