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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

O Brasil na New York Review of Books, de 2002 (Kenneth Maxwell) a 2025 (Christopher de Bellaigue)

The New York Review of Books <newsletters@nybooks.com> 

Enviada por: Mauricio Dias David 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

 

Christopher de Bellaigue on Brazil’s Future ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌ ‌

The New York Review of Books

For our February 27 issue, Christopher de Bellaigue traveled to Brazil in order to document how, in a decade in which one president was impeached, another was imprisoned after leaving office, and a third fomented an attempted coup, “the politicization of the law and the sleaziness of public life have left Brazilians deeply skeptical of their institutions.”

Bellaigue crisscrosses the country—visiting, among other places, the Square of the Three Powers in Brasília; the world headquarters of the Pentecostal Church of Deus é Amor in São Paulo; the metalworkers’ union in Sao Bernardo do Campo where the current president, Luiz Inácio Lula da Silva, got his start; a cattle town in Mato Grosso; the soybean megafarms of Bahia; and, back in São Paulo, a fundraiser where he meets Jair Bolsonaro, “wearing a blue shirt and his biggest, most infantile smile”—and finds shrinking aquifers, the ashes of severe wildfires, powerful agribusiness and evangelical caucuses, a resurgent right wing, and no one in line to replace an aging leftist president.

Below, alongside Bellaigue’s essay, we have collected five articles from our archives about Brazil’s recent history.

 

Supporters of former president Jair Bolsonaro storming the presidential palace a week after the inauguration of President Luiz Inácio Lula da Silva

Christopher de Bellaigue
Brazil: The Threat from the Right

Former president Jair Bolsonaro and his allies have brought violence into Brazilian political discourse, with consequences that will endure.

 

 

 

Towels for sale featuring presidential candidates Luiz Inácio Lula da Silva and Jair Bolsonaro, São Paulo, Brazil, September 2022

Vanessa Barbara
Brazil at the Crossroads

Lula’s election comes as a relief to many Brazilians, but in this historically violent and unequal country, a void in the democratic field endures.

—February 23, 2023

 

Jair Bolsonaro, center, at a meeting with religious leaders in São Paulo, October 22, 2022

Vincent Bevins
Bigger than Bolsonaro

After four years in power, a movement created by elite campaigns has built a mass base.

—October 28, 2022

 

Jair Bolsonaro; drawing by Siegfried Woldhek

Larry Rohter
Brazil’s Brutal Messiah

“Bolsonaro, a truculent sixty-three-year-old congressional deputy from a small fringe party whom some have already taken to calling ‘the Trump of the Tropics,’ owed his ascent to a coalition that included the São Paulo financial elite, the rural landed interests that have devastated the Amazon over the past fifty years, and a growing population of evangelicals. But what put him over the top was the support of urban middle-class voters disgusted by rampant corruption, rising crime rates, and what at least some of them view as the coddling of the darker-skinned poor in recent years.”

—December 6, 2018

 

 

 

Cacareco, a Rhinoceros

Lilia M. Schwarcz
Politically Incorrect: Brazil’s Clown-Elect

“The unpredictable behavior of Brazilian voters can also lead to more baffling outcomes. In 1959, for example, Cacareco, a placid, middle-aged rhinoceros at the São Paulo zoo, was voted onto the city council, having won over 100,000 votes—and this is only the most famous case in Brazil’s long history of ‘protest votes.’ Cacerco has been succeeded by other non-existent candidates, along with candidates from outside the sphere of professional politics, such as soccer players, fashion designers, TV stars, brash pop singers, faded ex-models, and various C-list celebrities with zero knowledge or experience of political life.”

—October 14, 2010

Luiz Inácio Lula da Silva; drawing by David Levine

Kenneth Maxwell
Brazil: Lula’s Prospects

“To understand Lula it is essential to realize that he is at the core a union man, a tough labor negotiator, a deep believer in the power of listening to different sectors of opinion and conciliating divergent interests through debate, a formidable forger of consensus, and a leader with a charismatic ability thereafter to mobilize the crowds in the direction chosen.”

—December 5, 2002

 

 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Entenda como o Brasil e os outros Brics querem evitar o dólar nas transações - Camila Pati (Revista Veja)

Entenda como o Brasil e os outros Brics querem evitar o dólar nas transações

A ideia de criação de uma alternativa à moeda norte-americana enfureceu o presidente dos estados Unidos que, mais uma vez, ameaça impor barreiras tarifárias

Por Camila Pati

Veja, 2/02/2025

A ameaça do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de taxar 100% dos produtos dos Brics caso os países membros do bloco passem a utilizar uma moeda comum alternativa ao dólar para as transações reacendeu um debate que teve início em 2023.

Tradicionalmente o dólar é a moeda utilizada nas transações comerciais entre os países membros do Brics, o grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e que recebeu outros países nos últimos anos: Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e a Indonésia.

No mundo, 58% dos pagamentos internacionais, excluindo aqueles dentro da área do euro, utilizam o dólar, e 54% das faturas de comércio exterior são denominadas na moeda americana, segundo os dados do Brookings Institution de 2022.

No entanto, a ideia de criação de uma alternativa à moeda que tem dominado o comércio internacional desde o século passado, ganhou força em agosto de 2023 depois que a Rússia começou a propor mudanças nos pagamentos feitos a partir de transações comerciais entre os membros do bloco.

Isso porque os bancos russos foram excluídos do sistema SWIFT, que promove a comunicação entre bancos e outras instituições financeiras, como parte das sanções internacionais após a invasão da Ucrânia. O SWIFT permite que as transações internacionais sejam realizadas de forma segura, rápida e padronizada.

Uma das propostas dos russos é utilizar tokens. A Rússia propõe o uso de tecnologia de registro distribuído (DLT) ou uma plataforma multinacional para transações com tokens, destacando a eliminação do risco de crédito associado ao sistema bancário tradicional. Os argumentos são de que o uso dessa tecnologia agiliza e reduz custos, eliminando intermediários e verificações de conformidade. o que poderia gerar uma economia de até US$ 15 bilhões anuais para os países do Brics, caso metade das transações entre os membros do bloco fosse feita via DLT.

A ideia de substituir o dólar é apoiada pela China. Mas o país busca fortalecer a própria moeda e tem promovido o uso do yuan nas transações comerciais. Já o presidente Lula tem se posicionado em defesa de um sistema financeiro menos atrelado ao dólar. Em discurso por videoconferência durante reunião na cúpula dos Brics em Kazan, na Rússia, em outubro do ano passado, Lula defendeu novamente que o bloco avance nas discussões sobre o uso de uma moeda comum nas transações entre os países do bloco.

“Agora é chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações entre nossos países. Não se trata de substituir nossas moedas, mas é preciso trabalhar para que a ordem multipolar que almejamos se reflita no sistema financeiro internacional. Donald Trump reagiu logo após vencer as eleições ameaçando tarifas de 100% contra países que apoiarem uma nova moeda do Brics e reiterou a ameaça nesta semana. Na prática,atéagoraodólarsemantémforte,apesardosesforçosdoBrics para reduzir a dependência da moeda.


quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Brasil, um país sem futuro? Revisitando Stefan Zweig - Paulo Roberto de Almeida

Brasil, um país sem futuro? Revisitando Stefan Zweig

Paulo Roberto de Almeida

Brasil, país do futuro é um livro singular no conjunto da obra de Stefan Zweig. Pretendeu ser uma apresentação didática sobre o Brasil e ao mesmo tempo uma homenagem sincera ao país que o acolheu tão generosamente, em meio a uma guerra ainda mais catastrófica do que o conflito global precedente, que ele havia presenciado na Europa, mas que ele não quis tratar em profundidade em seu livro de memórias, O Mundo de Ontem, que se refere, na verdade aos anos que precederam à Grande Guerra. Zweig, um pacifista visceral e radical, acreditava ter encontrado no Brasil um país profundamente devotado à paz.
À diferença de suas outras obras, não tanto as novelas, que são textos de pura literatura, mas sobretudo as biografias de personagens famosos, ou angustiados, como ele, o livro que ele dedicou ao Brasil é um trabalho de circunstância, meio relato de viajante, meio interpretação pessoal de uma terra em tudo diferente do que ele havia vivido até então, na “sua” Europa da cultura clássica, dos grandes pensadores, da arte nas suas mais diversas expressões, mas também um continente dividido pelas paixões guerreiras, que tinha se dilacerado a si mesmo em incontáveis batalhas feudais, em conflitos entre as grandes potências da era moderna e contemporânea, em guerras civis e de religião de todas as épocas.
Stefan Zweig realmente gostava do Brasil, e não apenas por ser sua terra de exílio, mas por ser uma realidade que não existia em nenhuma outra parte do mundo, a mistura de cores, de etnias, de religiões, o sincretismo natural de seus habitantes, e aquela flexibilidade de costumes e de modos de vida que ele nunca tinha encontrado na rigidez social da Europa central e nas nítidas sobrevivências das estruturas estamentais do Antigo Regime, ainda bem visíveis na maior parte do velho continente. Por isso, ele lança um olhar simpático aos cenários, paisagens naturais e humanas, aos comportamentos que ele observava no Rio de Janeiro, em São Paulo, nas costas do Nordeste, em todos os lugares por onde andou, não apenas nas casas e prédios elegantes das capitais, mas também nas favelas, nos subúrbios, na pobreza do interior entre uma fazenda e outra de grandes proprietários. Ele assistiu a muitas festas e folguedos populares, e talvez tenha sido simbólica sua despedida do mundo em pleno Carnaval do Rio de Janeiro, mas em Petrópolis, seu último refúgio de uma vida bem vivida, entre os sucessos da produção literária e as homenagens que recebia, onde quer que fosse.
O livro não se pretendia apenas um retrato do presente, aquele que ele via, e um retorno ao passado, do que ele pode ler sobre nossa história e desenvolvimento, mas era também uma aposta sobre o futuro, daí o seu título ao mesmo tempo otimista e afirmativo. As traduções do título – Brasilien, Ein Land der Zukunft – em português hesitaram durante muito tempo entre o “país de futuro” ou o “país do futuro”, a primeira versão sendo uma promessa, a segunda uma quase certeza. Sim, ele previa um futuro otimista para o Brasil, o fim das favelas, a mescla de raças produzindo uma nação quase sem conflitos sociais, uma quase beleza na pobreza e até na miséria, a alegria dos carnavais escondendo as durezas da vida no resto do ano. Inevitável, ainda que não buscada diretamente, a comparação com os padrões civilizatórios europeus, e até com uma geografia menos castigada, ne velho mundo das vastas planícies, na confrontação com a vastidão de ermos desconhecidos no Brasil não atlântico.
Não é um guia de viagem, embora seja basicamente um livro de um viajante, mas é uma obra interpretativa da alma do Brasil, ou pelo menos aquele espírito que ele buscou ver, e acreditou ter encontrado, em todas as pessoas com as quais conversava, burgueses e fidalgos da terra, e até em homens e mulheres do povo, que ele buscou entender a partir de uma postura preventivamente simpática ao povo que o acolheu, no país que foi sua última morada, a fase mais angustiada de sua vida, esperança perdida de ver sua terra natal retornar aos tempos anteriores à Grande Guerra. Oitenta anos depois de ter sido escrito e publicado rapidamente, vale retornar ao Stefan Zweig do “país de/do futuro”, para ver que tipo de país emergiu de sua visão generosa para com nossas qualidades e defeitos.
Ao apresentar o seu livro ao público brasileiro, seis meses antes do suicídio de Zweig e de sua segunda mulher, Lotte, em Petrópolis, o prefaciador Afrânio Peixoto, membro da Academia Brasileira de Letras desde 1910, ocupando a vaga deixada por Euclides da Cunha, e reitor da Universidade do Distrito Federal desde 1935, descreveu o escritor austríaco como um “namorado de nossa terra e de nossa gente”. Deteve-se no que era bem conhecido: livros editados em seis e mais línguas, alguns em dezoito idiomas: “É o escritor mais impresso, mais adquirido e mais lido do mundo: ensaios, biografias romanceadas, ficção pura.” Enalteceu seu espírito ameno e cativante: “O autor é um encanto de convivência, de conversação, de simplicidade: ternura e poesia.”
Refere-se, sem mencionar o ano (1936), à sua passagem pelo Rio de Janeiro, a caminho da Argentina, para um congresso internacional do Pen Club:
...aqui esteve, sem ruído, no Brasil. Aqui não foi ao Catete, nem ao Itamaraty [Afrânio se engana; ele foi, sim, ao Itamaraty, convidado pelo chanceler Macedo Soares], nem às embaixadas, nem à Academia, nem ao DIP [Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Vargas], nem aos jornais, nem aos rádios, nem aos Hotéis-palaces... Andou, virou, passeou, viajou, viveu. Não quis nada, nem condecorações, nem festas, nem recepções, nem discursos... Não quis nada.
A Bahia desejou ser vista por ele e convidou-o. Ficou comovido, mas pôs condição: nem ajuda de custo, nem hospedagem oferecidas, nem recepção, conferência, nada. Gostava do Brasil, gostaria da Bahia, não queria mais. Queria ver, sentir, pensar, escrever, livremente...

Afrânio Peixoto interpreta que foi dessa primeira viagem que saiu o seu único livro dedicado a um país, publicado quando para cá se mudou definitivamente:
De tudo, este livro, este grande livro, livro de amor presente e esperança futura que sai em imensas edições, na América [do Norte], na Inglaterra, na Suécia, na Argentina, em francês e em alemão também – seis de uma vez, a menor, a brasileira...

O acadêmico sintetiza, então, o espírito da obra:
É o mais ‘favorecido’ dos retratos do Brasil. Nunca a propaganda interesseira, nacional ou estrangeira, disse tanto bem do nosso país, e o autor, por ele, não deseja nem um aperto de mão, nem um agradecimento... Amor sem retribuição. Amor de caboclo supercivilizado: a namorada vai saber agora e ficará confusa de tanto bem querer. Ele, porém, já partiu... Deixou apenas esta declaração. Declaração de envaidecer à formosura mais presumida. Os ‘pátriaamada’, os ‘ufanistas’ ficarão de cara à banda, pois ninguém até hoje escreveu livro igual sobre o Brasil... O amor faz desses milagres. Se ele fosse político, ou diplomata, ou economista, ficar-se-ia perplexo; a explicação é só esta, Stefan Zweig é poeta: é hoje o maior poeta do mundo, poeta com ou sem versos, mas com poesia, sentida, vivida, escrita pelo mais suave prosador do mundo...

Ao encerrar seu prefácio, em julho de 1941, Afrânio Peixoto provavelmente esperava levar Zweig para a uma conversa com seus pares escritores na Academia Brasileira de Letras, ele que já tinha sido presidente da Casa de Machado de Assis, em 1923. Não o conseguiu: Zweig refugiou-se em Petrópolis, na casa que é hoje o seu museu, uma casa de cultura, uma homenagem construída por um de seus biógrafos mais brilhantes, Alberto Dines, que dedicou uma obra excepcional ao grande escritor: Morte no Paraíso: a tragédia de Stefan Zweig (1981; várias edições posteriores). Dines era um garoto de oito anos em meio a dezenas de outros, numa foto feita na escola progressista Sholem Aleichem, da comunidade judaica do Rio de Janeiro, quando da visita de Zweig em setembro de 1940, quando o escritor estava justamente preparando o seu livro dedicado ao Brasil. Seu suicídio, um ano e meio depois, deve tê-lo abalado, antes da adolescência, a ponto de ter motivado Alberto Dines a escrever, mais tarde, uma das melhores biografias da vida, da obra e dos sentimentos de Stefan Zweig.
A dedicatória que ele me fez, da 3ª edição desse magnífico livro, em junho de 2006, depois de eu ter contribuído para um volume de estudos por ocasião da reedição da coleção completa do Correio Braziliense, empreendida por ele com a colaboração da historiadora Isabel Lustosa, me tocou profundamente:
Para Paulo Roberto, um outro Hipólito da Costa que se atrapalhou com a sua utopia. [assinado] Alberto Dines, São Paulo, agosto de 2004/junho de 2006

Nesse mesmo ano de 2006, Alberto Dines já havia organizado um debate, no quadro do Foro Nacional organizado anualmente pelo ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso no BNDES, dedicado justamente a uma discussão em torno da obra de Zweig dedicada ao Brasil, que foi logo em seguida objeto de uma publicação da José Olympio Editora, sob a coordenação do próprio Reis Velloso e de Roberto Cavalcanti de Albuquerque, Brasil, um país do futuro?, ao qual eu dediquei uma resenha simpática (mais pelos novos projetos apresentados pelos debatedores do que propriamente pelo texto de Zweig). Reproduzo aqui o que escrevi em janeiro de 2007, e que vale reproduzir, pois é dedicado ao livro em questão:
Stefan Zweig teria gostado de assistir ao seminário que lhe foi dedicado, em setembro de 2006, por ocasião do 125º aniversário de seu nascimento e dos 65 anos da publicação do seu livro tão famoso, quanto desconhecido (hoje), terminado poucos meses antes do suicídio do autor, no carnaval de 1942, em Petrópolis. Ele concordaria com o artigo indefinido e talvez até com o ponto de interrogação [Eu tinha intitulado a minha resenha “Futuro preterido? Zweig e um projeto para o Brasil”]. A primeira edição brasileira modificou o título original, agora restabelecido – Brasilien, ein land der Zukunft, não der land – e o colóquio agregou a condicionalidade, refletindo o ceticismo dos examinadores quanto à utopia não realizada. No essencial, Zweig provavelmente se alinharia aos argumentos dos seus revisores contemporâneos.
Alberto Dines, autor de uma biografia que pode considerar-se completa do escritor austríaco – Morte no Paraíso: a tragédia de Stefan Zweig (3ª ed.; Rocco, 2004) –, considera que Zweig, depois de assinar mais de quarenta biografias de personalidades mundiais, fez a biografia de uma nação, no “inferno do Estado Novo”. Como ele diz, essa obra “tornou-se a crônica mais conhecida e a menos discutida, a mais celebrada e mais negligenciada” do Brasil. Ela foi um dos primeiros lançamentos simultâneos da história editorial mundial: oito edições em seis línguas diferentes. Em vista dos percalços recentes no processo de crescimento, parece difícil concordar com Zweig em que, “quem conhece o Brasil de hoje, lançou um olhar sobre o futuro”.
Bolívar Lamounier e Regis Bonelli examinam, respectivamente, os avanços políticos e econômicos obtidos pelo Brasil desde que Zweig traçou seu diagnóstico sobre o Brasil do início dos anos 1940. Para Lamounier, o Brasil é um país de “muitos futuros”, mas ele critica as utopias institucionais que frequentemente pretendem revolucionar a participação e as formas de se fazer política no país: a romântico-participativa da democracia direta, a do parlamentarismo clássico que ressurge sempre em momentos de crise e a utopia barroca do presidencialismo plebiscitário. Já Bonelli opera uma “volta para o futuro” ao examinar os elementos de continuidade e de mudança na esfera econômica: o Brasil certamente mudou muito, nesse terreno, mas a propensão a esperar tudo do Estado permanece, assim como uma certa desconfiança dos mercados externos. Algumas mudanças foram na direção errada, como o aumento na tributação, outras permanências são irritantes, como a péssima distribuição de renda e as incertezas jurídicas. Finalmente, o “fantasma do estrangulamento externo” estaria, de fato, superado?
Boris e Sérgio Fausto acrescentam um ponto de interrogação ao título de Zweig, temperando o otimismo do autor com certa dose de pessimismo. Não se trata do niilismo da esquerda, que vê na “dominação imperialista” a razão do nosso atraso. O duplo nó górdio da carga tributária e do gasto público limita hoje as possibilidades de crescimento. João Luís Fragoso analisa a “equação” de Zweig para o Brasil: concentração de poder + tolerância. Três comentários finais tratam das promessas não cumpridas de um olhar estrangeiro, do futuro que já chegou sob a forma da votação eletrônica e das dificuldades para a retomada de taxas razoáveis e sustentáveis de crescimento. No conjunto, o livro oferece uma boa visita ao que se poderia chamar de “futuro do pretérito”.

Eu já tinha lido, desde a adolescência, alguma coisa de Stefan Zweig, mas voltado basicamente aos estudos de ciências sociais, pouco li de sua obra literária, a não ser uma ou outra das pequenas biografias que ele dedicou a personagens emblemáticos. A leitura, cativante e ininterrompida, da excepcional biografia de Dines me levou a retomar alguns dos livros de Zweig, sobretudo suas angustiantes biografias – Erasmo, Fernão de Magalhães, Fouché –, mas confesso que sempre dei uma atenção menor ao “livrinho” do “país do futuro”, provavelmente porque deduzia ser uma espécie de livro de encomenda em homenagem ao país que o acolheu, um representante da família dos “ufanistas”, justamente, uma peça menor na vastidão diversificada da sua produção intelectual. Eu me enganava, claro, mas, como anarco-contrarianista, sempre tive certa rejeição a livros ao estilo do Conde Afonso Celso, Por Que me Ufano de meu País (1900), por considerá-los meros panegíricos.
Por julgá-lo quase um panfleto de propaganda, talvez um ato de gratidão ao regime varguista, deixei-o de lado, mesmo quando empreendi, naquela época, uma série de “clássicos revisitados”, que incluíram uma versão do Manifesto de Marx e Engels para os tempos de globalização capitalista, uma releitura do Príncipe de Maquiavel, uma nova missão de Tocqueville às Américas, mas desta vez ao Brasil, além de algumas outras digressões modernizantes de Benjamin Constant – De la liberté des Anciens comparée à cellle des Modernes – e mesmo do Sun Tzu, adaptado para os diplomatas, além de vários outros que figuravam e ainda figuram no meu pipeline (mas não o de Zweig).
Dez anos depois, já ocupando o cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, tomei a iniciativa de organizar um evento em homenagem a Zweig, aos 80 anos de sua primeira visita ao Brasil, justamente quando foi publicado no Brasil seu breve relato de viagem: Pequena Viagem ao Brasil (Rio de Janeiro: Versal, 2016). Contatei a Casa Stefan Zweig, de Petrópolis, e sua diretora, a tradutora Kristina Michahelles, ofereceu-me um programa ainda melhor: o lançamento da primeira edição internacional – em diversas línguas – da conferência que Zweig havia feito no Rio de Janeiro em 1936, numa belíssima edição preparada por Israel Beloch e prefaciada por Celso Lafer: A Unidade Espiritual do Mundo, novamente traduzido a partir do manuscrito sobre a “unidade espiritual da Europa”, que Zweig tinha deixado com o chanceler Macedo Soares, na própria Escola Nacional de Música, onde havia sido feita sua memorável palestra (depois expandida em Buenos Aires em 1940). O texto, resgatado de um injusto esquecimento foi publicado em 2017 pela Casa Stefan Zweig e pela editora Memória Brasil, em cinco línguas (alemão, francês, espanhol, inglês e português), com colaborações de Alberto Dines, Klemens Renoldner e Jacques le Rider, e uma belíssima iconografia.
Preparei um dos meus melhores eventos para esse feliz lançamento, feito no Instituto Rio Branco em 21 de março de 2017, para cujo convite fiz questão de contatar a família do famoso cartunista da New York Review of Books, David Levine, já falecido, para poder reproduzir, sem custos, uma famosa caricatura de Stefan Zweig, que eu havia visto, muitos anos antes, nas páginas do famoso jornal literário da esquerda americana (como abaixo).

Celso Lafer fez uma palestra baseada em grande medida em seu texto constante do livro e a diretora Kristina Michahelles exibiu um excelente documentário sobre o personagem e sua Casa brasileira, transformada em museu graças ao grande jornalista que foi Alberto Dines. Eu mesmo preparei uma apresentação em 27 slides, “Stefan Zweig e o Brasil”, que não me lembro de ter podido expor por inteiro no evento, mas que transformei em notas em Word, para circulação mais ampla, divulgando-a na plataforma Academia.edu e, no formato original em Power Point, na plataforma Research Gate (links: http://www.academia.edu/31826161/Stefan_Zweig_e_o_Brasil e https://www.researchgate.net/publication/314720659_Stafan_Zweig_e_o_Brasil?ev=prf_pub ). O auditório estava repleto de diplomatas brasileiros e estrangeiros e, ao final, fui muito cumprimentado pelos austríacos ao lhes lembrar, ademais do próprio Zweig, da excepcional contribuição de Oto Maria Carpeaux à cultura brasileira (e também universal).
Na sequência, por sugestão de meu colega diplomata Antonio de Moraes Mesplé, providenciamos a concessão da condecoração póstuma, com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, ao grande escritor austríaco, feita mais adiante em cerimônia de entrega da comenda à embaixadora da Áustria no Brasil (18/12/2017), remetida mais tarde à Casa Stefan Zweig, de Petrópolis. Na ocasião, preparei um discurso a ser pronunciado pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Aloysio Nunes, na cerimônia de condecoração póstuma, que não sei se foi ou não pronunciado, mas que, por ser relativamente inédito, resolvi colocar à disposição de todos no meu blog Diplomatizzando (17/11/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/11/stefan-zweig-cerimonia-de-entrega.html).
Ainda assim, e com tudo isso, o “fatídico” livro sobre “país do futuro” permaneceu no limbo inexplicável de meus projetos inacabados durante vários anos mais, até que chegaram, finalmente, os 80 anos de sua publicação original, em 2021, e as vésperas dos mesmos 80 anos da infausta morte do grande escritor, no início de 2022, quase coincidentes com o centenário da Semana de Arte Moderna em São Paulo. Tendo concluído, no período recente, um outro volume sobre os projetos para a construção do Brasil, mas sintetizando unicamente as contribuições de intelectuais brasileiros, de Cairu a Merquior, considero que é mais do que chegada a hora de também oferecer uma análise, sob a forma de minha série dos “clássicos revisitados”, dessa obra muito falada, mas praticamente desconhecida do grande intelectual austríaco, falecido no Brasil.
Já não era sem tempo, e desculpo-me com o escritor por essa duplamente tardia homenagem a quem buscou, sinceramente, traçar um panorama simpático do país que lhe aparecia como uma espécie de síntese viva da diversidade racial, da mistura étnica, da conjunção de culturas, da tolerância religiosa e do pacifismo bem resolvido, características que ele não mais encontrava no seu continente de origem, certamente não naquele momento de desespero que ele não antevia senão destruição, mortes e de aniquilação do seu próprio povo sob as botas, fuzis e gases dos totalitários doentios. Deste canto do planeta, ainda em paz naqueles meses, ele certamente teria esperado muito mais do Brasil, nestes quatro quintos de século decorridos desde então, sobretudo em termos de eliminação da pobreza, de diminuição das desigualdades sociais e regionais, de virtual desaparecimento das favelas e de prosperidade ampliada. Não sei se é o caso de nos desculparmos, ainda que postumamente, por não termos realizado as esperanças do escritor, mas certamente é o caso de retomar o seu testemunho pessoal sob a forma de uma grande promessa feita em direção ao futuro, para examinar o que ficou no registro de um pensador humanista como projeto de construção de uma nação integrada, um país mais justo e, sobretudo, mais conforme ao seu ideal racional com respeito à unidade espiritual do mundo. Valeu Stefan, muito grato a você, por ter dedicado seu empenho intelectual na interpretação do seu derradeiro país de eleição.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4020: 17 novembro 2021

O Brasil e sua política externa e sua diplomacia (2020) - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil e sua política externa e sua diplomacia: um exercicio de planejamento diplomático feito em 2020

Paulo Roberto de Almeida

O texto abaixo foi escrito em 2020, sob o impacto das deformações introduzidas em nossa política externa pelo chamado “bolsolavismo diplomático” dos dois primeiros anos do desgoverno dos amadores e ignorantes que converteram o Brasil em “pária internacional”. Eu fiz então um exercicio de reconstrução e de planejamento diplomático.
Nota introdutória feita em janeiro de 2025, já sob o domínio do “lulopetismo diplomático”, que certamente introduziu outras “peculiaridades” em nossa política externa, afetando o trabalho da diplomacia profissional.

A política externa e a diplomacia são coetâneas à própria construção da nação, aliás desde antes mesmo que ela assumisse o formato político de um Estado independente, como brilhantemente demonstrado pela obra que já nasceu clássica do embaixador Rubens Ricupero: A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (2017). A primeira fase da existência da nação foi dedicada à construção do próprio Estado, em meio a grandes comoções políticas, guerra no Prata e rebeliões internas, que exigiram um constante sentido de unidade nacional da parte dos dirigentes políticos, seja no turbulento primeiro Reinado, seja na ainda mais desafiada década das regências. Infelizmente, esses dirigentes não atenderam aos conselhos de Bonifácio e Hipólito, no sentido de se lograr uma rápida extinção do tráfico escravo e a liberação progressiva do recurso à escravatura, o que gerou uma grave deformação na formação da nova nação, que prolongou seus efeitos pelo resto do século XIX, durante todo o século XX e que ainda hoje projeta seus efeitos nefastos sob a forma de iniquidades sociais pouco compatíveis com a relativa sofisticação do desenvolvimento material do país.
A lenta construção de uma sociedade inclusiva vem sendo, durante todo o período recente, dificultada por um sistema político extremamente fragmentado, por uma democracia de muito baixa qualidade – porque marcada pelo mau funcionamento do Estado e pelo grau elevado de corrupção política –, o que vinha sendo parcialmente compensado por uma diplomacia particularmente exitosa, de grande qualidade e muito ativa. Infelizmente, essa trajetória parece temporariamente interrompida [EM 2020] por uma grande ruptura com padrões aceitáveis de uma governança responsável, ao ser guindado no comando do país um político de tendências autocráticas, particularmente inepto em matéria de políticas públicas e excepcionalmente medíocre no tocante a uma política externa, já não se diga de qualidade, mas meramente aceitável, segundo alguns padrões a que se estava minimamente acostumado nas décadas anteriores. O resultado tem sido, nos dois anos e meio do presente mandato de Bolsonaro, uma governança caótica, improvisada, e uma diplomacia que logrou provocar o isolamento total do Brasil na região e na maior parte do mundo, sendo que o chanceler parece satisfeito com a condição de “pária internacional”.
O Brasil tem sido um fornecedor altamente competitivo de produtos que se inserem plenamente em suas vantagens ricardianas permanentes, ou seja, os bens derivados das atividades de exploração de seus recursos naturais abundantes, o que promete continuar pelo futuro indefinido. De fato, o Brasil é um grande ofertante de todos os produtos que correspondem à sua matriz secular de economia extrativa e de base agrícola, mas tem enormes dificuldades para se inserir nos mercados de produtos de maior valor agregado, como os da eletrônica avançada, os da química fina e, de forma geral, produtos intangíveis, ou da inteligência.
Vantagens comparativas, justamente, constituem a base sobre a qual se assentam os duplos fluxos, in e out, que todo país mantém com todos os demais, à base das assimetrias naturais que são as que sustentam as interações de todos os tipos. O Brasil tem inúmeras vantagens comparativas, absolutas e relativas, e uma análise prospectiva pode revelar em quais direções o país deve dirigir os seus esforços de investimento nos próximos anos, o que exige, obviamente, um governo que escape do jogo mesquinho da política corrente [isto é, em 2020] para visualizar os cenários futuros abertos ao engenho e à arte do povo brasileiro, dos seus agentes econômicos, dos seus artistas, músicos e esportistas. O mapa diplomático brasileiro é um dos mais extensos do mundo, o que deveria facilitar um esforço de identificação de tendências de consumo e de desenvolvimento em cada um dos países nos quais temos representação. Por uma vez, caberia, sem descurar nossas vantagens baseadas em recursos naturais dos últimos 500 anos, explorar as futuras vantagens, com base na projeção do que podemos fazer no quadro da economia do conhecimento e da sustentabilidade.
É certo que o Brasil se encontra, às vésperas do segundo centenário de sua independência, numa situação miserável, o resultado de erros monumentais da condução de sua política econômica nos 15 anos anteriores, da inércia governamental decorrente de uma corrupção política também mastodôntica, de uma incapacidade geral de suas elites políticas e econômicas em realizar um diagnóstico correto dos problemas existentes e, a partir daí, traçar um roteiro de reformas estruturais para superar a “estagnação secular” que nos atinge desde os anos 1980. É certo também que o governo atual [de Bolsonaro] se apresenta como um dos mais medíocres de toda a história do Brasil, não apenas por não conseguir estabelecer qualquer programa de governança racional, mas igualmente e sobretudo por ter elevado, de maneira extraordinária, a ignorância aos pináculos do poder. A olhar a história passada não se consegue identificar um governo que tenha consagrado o preconceito e o despreparo como credenciais para a ocupação de postos no governo, desde que identificados os candidatos com as “ideias” bizarras dos titulares do poder. O Itamaraty, infelizmente, não ficou imune a essa tendência.
Uma alternância no poder, que virá no momento oportuno, deveria encontrar um Itamaraty renovado, aliviado da depressão atual, com uma nova geração devotada justamente a um outro tipo de política externa e de diplomacia, adequada a um mundo sensivelmente diferente do que tivemos até aqui. Os mais jovens, que subirão a postos de mando nos próximos anos, terão de se organizar de forma autônoma, dado o virtual esgotamento de ideias, não exatamente entre os diplomatas, mas entre aqueles políticos que poderiam liderá-los na concepção e implementação de uma nova política externa, a partir, igualmente, de uma nova diplomacia.
Diplomacia, em qualquer tempo, em qualquer lugar do mundo, para todos os tipos de situações, inclusive em caso de guerras, significa, antes de tudo e principalmente, capital humano. Muito antigamente, a diplomacia era uma função episódica, reservada aos enviados dos soberanos, que para isso mesmo escolhiam os seus melhores assessores, ou nobres de fino trato, conhecimento de línguas e algumas posses, pois também era preciso exibir alguma pompa. Nas burocracias modernas, os diplomatas também se distinguem por sua educação refinada, domínio perfeito de outros idiomas e uma real vocação para a missão, que não é, justamente, simplesmente burocrática.
A primeira academia diplomática nasceu em Viena, entre os Habsburgos, e depois disso a maior parte das diplomacias modernas criou instâncias de formação e treinamento de seu pessoal diplomático e consular (ainda duas carreiras separadas em alguns serviços). A despeito de ser relativamente recente, criado em 1945, o Instituto Rio Branco ganhou bastante prestígio, talvez nem tanto pelo que se estuda ali, mas pela preparação prévia que os candidatos já precisam ter para serem selecionados para a carreira. Em todo caso, o IRBr e o IPRI deveriam servir para a formação constante, o treinamento e o aperfeiçoamento dos diplomatas, que já são excelentes, mas que podem ficar ainda melhores se constantemente levados a continuar nos estudos, dentro e fora da própria Casa. Muitos deles hoje exibem mestrados e doutorados, no Brasil e no exterior, mas nem sempre uma visão puramente acadêmica é o que se requer no trabalho ativo, e sim a própria experiência adquirida nas frentes negociadoras, e na observação atenta de como são, como funcionam (ou não) outros países, por vezes os mais exóticos.
O capital humano do Itamaraty já é bom, de ingresso, mas pode ficar ainda melhor, se adequadamente estimulado, incentivado, cobrado a incrementar seus estudos e experiências com base num programa integrado das unidades de ensino, pesquisa e debate da Casa, com publicações constantes, até em áreas da cultura e da literatura em geral, não diretamente funcionais para o trabalho burocrático modorrento.
Um planejamento estratégico para a diplomacia brasileira deveria partir de um diagnóstico dos desafios principais do país, para a partir daí começar a traçar as grandes linhas de ação da política externa e da atuação da Casa naquelas áreas e espaços nos quais se requer a ação da diplomacia para subsidiar os esforços de desenvolvimento nacional (sim, o Brasil ainda é um país subdesenvolvido, não tanto pelas insuficiências de sua indústria ou agricultura, mas pela pobreza do seu povo e pela desigualdade vergonhosa que caracteriza nosso perfil distributivo). Um exercício de planejamento estratégico, como em vários outros esforços de ganhos de produtividade, pode até fazer com que o Itamaraty continue fazendo muito do que já faz atualmente, ou o que sempre fez: informação, representação, negociação.
Mas ganho de produtividade significa fazer o mesmo com menos custos, ou fazer mais com os mesmos custos, o que me parece mais interessante. Isso depende basicamente do capital humano, que deve ser treinado a fazer algo mais do que simplesmente informar a Secretaria de Estado sobre o que se passa no seu posto e pedir instruções sobre como proceder para dar cumprimento à sua agenda de trabalho. Um planejamento estratégico para a diplomacia brasileira deveria partir de um diagnóstico dos desafios principais do país, para a partir daí começar a traçar as grandes linhas de ação da política externa e da atuação da Casa naquelas áreas e espaços nos quais se requer a ação da diplomacia para subsidiar os esforços de desenvolvimento nacional (sim, o Brasil ainda é um país subdesenvolvido, não tanto pelas insuficiências de sua indústria ou agricultura, mas pela pobreza do seu povo e pela desigualdade vergonhosa que caracteriza nosso perfil distributivo).
Um exercício de planejamento estratégico, como em vários outros esforços de ganhos de produtividade, pode até fazer com que o Itamaraty continue fazendo muito do que já faz atualmente, ou o que sempre fez: informação, representação, negociação. Mas ganho de produtividade significa fazer o mesmo com menos custos, ou fazer mais com os mesmos custos, o que me parece mais interessante. Isso depende basicamente do capital humano, que deve ser treinado a fazer algo mais do que simplesmente informar a Secretaria de Estado sobre o que se passa no seu posto e pedir instruções sobre como proceder para dar cumprimento à sua agenda de trabalho. O planejamento estratégico da diplomacia brasileira deveria oferecer aos diplomatas os grandes temas relevantes do seu trabalho. Este não necessariamente será sobre a agenda diplomática do país ou do órgão em questão, pois esse é o lugar comum e o pão diário de todo diplomata, mas poderá ser a vida interna do país, seus êxitos e fracassos no tratamento e encaminhamento dos seus principais problemas nas questões econômicas, sociais, culturais, educacionais, e questões conexas.
Digo isso porque quer me parecer que o Brasil não possui nenhum problema internacional digno de nota, em todo caso algum que derive de suas posturas diplomáticas, que sempre me pareceram bastante corretas (menos as atuais, que são horrorosas, mas essa é outra questão [isto é, 2020]). O que o Brasil exibe ao mundo, e que precisa ser corrigido urgentemente, são, precisamente, sua situação calamitosa no plano social, a ineficiência de seu Estado, com seus mandarins privilegiados, a falta de segurança pública, a pobreza andrajosa das ruas, o desempenho calamitoso de seus estabelecimentos de ensino de massa, a corrupção nas altas esferas públicas, a violência contra os mais humildes e minorias, a falta de um Estado de Direito, o que também tem a ver com o lado perdulário e pouco produtivo do Judiciário. O Brasil possui inúmeras “jabuticabas”, que não existem em outros países, e que não teriam por que subsistir aqui; uma boa observação a partir do exterior, com base naquilo que já se conhece do Brasil, pode permitir detectar tudo isso.
Ou seja, os diplomatas podem continuar fazendo aquilo que sempre fizeram, mas um outro olhar de fora do Brasil para dentro poderia ajudar bastante a corrigir nossas deformações mais gritantes. O Brasil será um país melhor para o mundo quando ele for melhor para si mesmo, para os seus filhos, em especial os mais humildes. Não sei se esse seria um bom exercício de planejamento diplomático, mas a mim parece suficientemente gratificante como para justificar algumas horas a mais a estudar o Brasil no Instituto Rio Branco e no IPRI, e algumas horas a mais, no exterior, a estudar o país em seus aspectos internos, e não apenas a sua diplomacia e suas posturas negociadoras. Tais são, parece-me, as bases para o estabelecimento de um verdadeiro e completo planejamento estratégico para o serviço diplomático brasileiro.

Paulo Roberto de Almeida
(2020)

O Brasil e sua participação em certos blocos, como o BRICS - Paulo Roberto de Almeida

 O Brasil e sua participação em certos blocos, como o BRICS

Paulo Roberto de Almeida

Existem blocos de todos os tipos, formatos, tamanhos, sabores e cores, para todos os fins e objetivos que possam decidir os países: alianças políticas ou militares, cooperação fronteiriça, cultural ou tecnológica, acordos de livre comércio (mais numerosos) ou de união aduaneira (em menor número), de unificação monetária (moeda única ou comum), ou até de confederação ou de união política (como um dia poderá ser a União Europeia).
No plano do Direito Internacional e do sistema multilateral criado após a Segunda Guerra Mundial – grosso modo a ONU e suas agências especializadas –, é preciso distinguir entre, de um lado, organizações intergovernamentais, ou órgãos multilaterais congregando Estados soberanos para as finalidades estabelecidas em seus acordos constitutivos, que são em princípio universais, ou seja, congregando todos os Estados que aceitem seus princípios, estatutos e regras de funcionamento, e de outro lado, entidades mundiais ou regionais de menor escopo substantivo, com adesão restrita unicamente aos países ou Estados que partilham de objetivos comuns, como pode ser uma aliança militar como a OTAN, um órgão de consulta e coordenação econômica, como é a OCDE, ou blocos regionais, como são a OEA, a União Africana, a ASEAN, e todos acordos comerciais, bilaterais, plurilaterais ou regionais, como são o TPP e o RCEP. Cabe uma observação especial ao esquema europeu de integração, uma vez que ele transcende o simples nível multilateral ou interestatal, ou seja, o âmbito do Direito Internacional, para alcançar um caráter supranacional, ou supraestatal, ou seja, se situa no âmbito do Direito Comunitário.
Todos os acordos internacionais, de cooperação ou de integração, representam uma espécie de renúncia, ou perda de soberania, uma vez que os Estados partícipes consentem em não atuar, em suas políticas e objetivos domésticos, contrariamente às obrigações que eles contraíram no quadro dos acordos internacionais que assinaram, que possuem objetivos universais – como a paz, a segurança e o desenvolvimento integral de todos os países, como no caso da ONU e suas agências – ou mais limitados: de cooperação e integração econômica, de defesa, de combate ao crime organizado, etc. Os países europeus, por sua vez, ao empreender os primeiros acordos de integração – CECA (Tratado de Paris, 1951), Tratados do mercado comum (Roma, 1957) – renunciaram expressamente à soberania nacional sobre a produção de carvão e do aço e depois a todos os demais produtos na concepção do mercado comum, adotando estruturas supranacionais, como foram a Alta Autoridade (na CECA) e depois a Comissão Europeia (no caso dos tratados de Roma), preservando, por outro lado, uma entidade intergovernamental, que é o Conselho Europeu (de chefes de Estado ou de governo, ou de ministros setoriais). A União Europeia representa graus ainda mais elevados de desnacionalização de políticas nacionais, envolvendo fronteiras, segurança e defesa, moeda comum e outros aspectos que podem compreender opções para determinados países membros (por exemplo, nem todos os membros da EU aderiram ao euro).
O Brasil sempre teve uma postura inclusiva na maior parte dos acordos de caráter universal (ONU) ou mundial (Gatt, depois OMC, etc.), mesmo não tendo grande poder decisório em determinados organismos (possui apenas uma pequena cota parte no FMI, por exemplo). Mas no plano regional sempre esteve disposto a aderir, ou mesmo sugerir acordos e uniões políticas e econômicas: Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR, 1947, modelo de defesa coletiva que seria utilizado no Tratado do Atlântico, que criou a OTAN, em 1949), depois a OEA (1948), o Tratado de Montevidéu de 1960 (Alalc), o de 1980 (Aladi), o Tratado de Integração Argentina-Brasil (1988) e depois o de Assunção (1991, com Paraguai e Uruguai). Não ingressou na OCDE (1960) porque não foi convidado, mas tampouco estava preparado para aceitar determinadas obrigações dos países membros (como a liberalização dos investimentos estrangeiros e dos movimentos de capitais, por exemplo), mas agora se dispõe a aceitar essas regras e solicitou formalmente adesão (ainda não consumada). Também ingressou em bancos de desenvolvimento (como o BID, 1960), no Clube de Paris (entidade de países credores, que existe desde os anos 1960, mas à qual o Brasil só foi aceito em 2017) e no BIS (Banco de Compensações Internacionais, ou Banco de Basileia, cooperação entre bancos centrais).
Em outros termos, o Brasil pode decidir fazer parte, ou se tornar membro de diferentes entidades interestatais internacionais ou regionais, com cujos princípios constitutivos, estatutos e objetivos ele esteja de acordo, como determinar o governo e decidir o Congresso (embora alguns acordos tenham sido feitos no Estado Novo, quando não havia Parlamento funcionando). Em alguns casos, ele mesmo pode determinar o surgimento de uma nova entidade – como no caso dos diferentes esquemas de integração regional –, ou propor, com alguns sócios escolhidos a dedo, um novo bloco para preencher objetivos específicos ou interesses nacionais bem definidos.
Este não é o caso, contudo, do BRIC (este era o formato original, em 2006-2009) ou do BRICS (como se tornou a partir de 2011), que reputo como sendo uma entidade totalmente artificial, disfuncional e pouco propensa a consolidar um processo autônomo de afirmação internacional, de acordo a objetivos de desenvolvimento nacional especificamente brasileiros. O fato de que o BRICS tenha constituído um Novo Banco de Desenvolvimento – fundado aliás no Brasil, em 2014 – não me parece representar nenhum objetivo maior no quadro de nossa interface externa, apenas mais burocracia e contribuições mandatórias que são sempre custosas. Não é por falta de financiamento que a infraestrutura brasileira interna e para as exportações ainda é de péssima qualidade, e sim pela ausência de um bom ambiente regulatório e de bons projetos para captar recursos de diversas fontes externas e até internas, privadas ou de fundos e bancos existentes. O BRIC-BRICS foi uma construção política, reunindo a princípio quatro países, depois cinco, atualmente mais de dez (e outros associados); isso denota apenas que o Brasil está aberto a novos arranjos internacionais, mas cabe ressaltar que esses países possuem poucos pontos em comum, em suas respectivas diplomacias e quase nenhuma convergência explícita nas estratégias de desenvolvimento.

Blocos e alianças estratégicas deveriam ser como esses remédios de tarja preta, que só podem ser receitados em condições especiais, depois de um bom exame do paciente, da avaliação de seus efeitos colaterais e com um bom seguimento regular por especialistas na questão. Tais agrupamentos têm sido sobre-estimados e sobretudo vendidos a um preço acima de seu valor de mercado. Ao longo da história, muitos desses grupos foram constituídos, geralmente com objetivos econômicos ou de defesa.
Os mais frequentes são os blocos de comércio, mas mesmo aqui as variedades são muitas, desde os analgésicos das áreas de preferências tarifárias (como os acordos da Aladi, e vários outros pelo mundo, sobretudo entre países em desenvolvimento), ao fortificante das zonas de livre comércio (são centenas e centenas já registradas na OMC, como a Efta, por exemplo, embora algumas fossem bem mais musculosas, como o antigo Nafta), à vitamina da união aduaneira (o próprio Mercosul é uma, mas parece uma colcha de retalhos, muito perfurada), à anfetamina do mercado comum (o que gostaria de ser o Mercosul, mas ainda não consegue, e que corresponde à Comunidade Europeia nos anos 1960), passando depois aos antibióticos das uniões econômicas e monetárias (só a União Europeia adentrou por essa via, não considerando os países que renunciaram a ter moeda própria), até chegar nos barbitúricos da união política (por vezes por incorporação voluntária ou consentida, em outras por absorção).
É possível que eles possuam virtudes estimulantes e fortificantes para os que deles fazem parte, mas também existem efeitos indesejados, como o fato de reduzirem os objetivos dos mais ambiciosos ao mínimo denominador comum; ou então levar os menos poderosos a agregar apoio às ambições dos mais fortes, que podem lograr, num caso ou noutro, alguma conquista que sozinhos não poderiam. A questão da confiança nesses blocos é fundamental, mas é difícil controlar a postura de cada um deles: existem os recalcitrantes até num bloco altamente institucionalizado, como o da União Europeia, ou manobras unilaterais que podem afastar parceiros formais do objetivo comum, como já tinha observado Tucídides, no caso da Liga Ateniense, que não impediu alguns membros de apoiarem Esparta na guerra do Peloponeso.
Quanto aos pontos positivos ou negativos, o leque de alternativas ou de interpretações contraditórias é muito amplo para ser tratado nos limites deste pequeno texto. Mas cabem as perguntas de praxe: o Mercosul ajuda ou prejudica o Brasil? – perguntam alguns; já escrevi muito sobre o Mercosul, e meus trabalhos podem ser encontrados em minhas plataformas de interação acadêmica. O Brics é uma boa coisa para o Brasil, ou para a África do Sul? E o Ibas, a primeira entidade da fábrica de experimentos externos da diplomacia lulopetista, trouxe resultados positivos? Se sim, por que não se reúne mais? A Unasul, o que trouxe de diferente que o Brasil não fazer por si mesmo, bilateralmente ou em acertos pragmáticos, para algum projeto ad hoc? Em resumo, todos esses blocos, grupos, foros entregam o que prometem e os seus benefícios superam os seus custos, políticos e financeiros? Pode ser, mas seria preciso uma avaliação independente dos governos para avaliar se é realmente bom para o país.
Por vezes, uma condução dos projetos nacionais em bases inteiramente autônomas, ou no plano estrito das relações bilaterais em caráter seletivo, pode oferecer um maior leque de opções ao país do que o pertencimento a um bloco arranjado de forma por vezes improvisada, no qual para conduzir qualquer nova iniciativa se deve sempre partir do mínimo denominador comum, uma vez que raramente projetos ambiciosos podem ser inteiramente compartilhados com três ou mais sócios do mesmo empreendimento. Creio que o Brasil é suficientemente instruído, sobretudo em sua diplomacia, para escolher ele mesmo suas melhores opções, tanto no plano formal – ou seja, em formato bilateral, regional ou plurilateral –, quanto no plano substantivo, ou seja, nos objetivos que pretende atingir em seu processo de desenvolvimento (se é que ele tem algum, realmente).

Paulo Roberto de Almeida

domingo, 12 de janeiro de 2025

Trump, o Brasil e o mundo pós-2025 Pedro Malan O Estado de S. Paulo

Trump, o Brasil e o mundo pós-2025

Pedro Malan

O Estado de S. Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2025

 

O futuro, que tem por ofício ser incerto, está a se tornar ainda mais incerto, imprevisível e perigoso. São momentosas as razões para que seja assim. A relação cada vez mais conflituosa entre os EUA e a China nas áreas econômica, tecnológica e militar; o agravamento dos conflitos no Oriente Médio; a belicosidade da Rússia em relação à Europa; o desenvolvimento vertiginoso da inteligência artificial e seu potencial de uso no desenvolvimento de armas mais letais como também em campanhas de propaganda política e desinformação. Tudo sob o dramático pano de fundo da mudança climática, do risco de aumento de endemias e de grandes fluxos migratórios que com grande frequência causam virulentas reações.

A avassaladora vitória eleitoral de Donald Trump deve a seus olhos constituir um claro mandato para intensificar seu peculiar modus operandi e sua visão sobre o que significa fazer a América “great again”. Anos atrás, a revista The Economist sugeriu que as ações de Trump seguiam um roteiro padrão, composto de três atos: fazer ameaças, alcançar acordos (propiciados pelas ameaças) e declarar vitória sempre (“make threats, strike deals, always declare victory”).

A julgar por suas declarações e postagens neste momento que antecede sua posse no próximo dia 20, esse script vem sendo seguido à risca por Trump, em várias frentes. Ameaçou impor tarifas (“a palavra mais bonita do dicionário”) de até 60% sobre produtos chineses, e de 25% sobre seus dois parceiros do acordo Nafta, Canadá e México. E também a produtos importados da Dinamarca, caso esta não concorde com seu “projeto” para a Groenlândia, “questão vital para a segurança nacional norteamericana”. Noticiou o propósito de assumir o controle do Canal do Panamá e de mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América. Exibiu um mapa coberto com a bandeira norte-americana que alcança todo o território do Canadá, ao qual já se referiu como o 51.º Estado norte-americano. E voltou a pressionar os países europeus para que elevem, agora para 5% do Produto Interno Bruto (PIB), seus gastos em defesa.

E o Brasil, nesse complexo contexto? Nosso país terá neste ano de 2025 a dupla e grande responsabilidade, na área internacional, de presidir a COP-30 e a reunião anual do grupo Brics, agora ampliado para dez países integrantes. Ambas a serem realizadas no Brasil, ambas a exigir exaustivas negociações diplomáticas para que possam vir a ser consideradas exitosas. Não será tarefa fácil, dado o conturbado contexto doméstico, o quadro regional de grande instabilidade e uma situação global que inspira grande apreensão dos pontos de vista econômico e geopolítico.

O protagonismo do Brasil, sua voz, seu prestígio, sua influência na cena internacional são em larga medida afetados pela percepção que tenha o resto do mundo sobre nossa influência e gravitas em nossa própria região. E, ainda mais importante, sobre como estamos equacionando nossos inúmeros problemas domésticos nas áreas econômica, social e político-institucional.

A propósito, será proximamente lançado livro, organizado por Ana Carla Abrão Costa, Ana Paula Vescovi e por mim, em homenagem ao extraordinário Eduardo Guardia, que tão cedo nos deixou. O artigo que escrevemos Ana Carla e eu, intitulado Desafios fiscais crescentes para 2026 e muito além, abre com a seguinte epígrafe de Eduardo Guardia: “Estamos num momento muito delicado no Brasil. Somos um país que tem oportunidades enormes. Vejo isso hoje no mercado de capitais: novas tecnologias, novos setores. Mas vamos olhar o País como um todo e enxergar os problemas que ou simplesmente não estamos conseguindo resolver ou estamos empurrando para debaixo do tapete. Essa é a grande obrigação de todos nós. Temos que ter uma compreensão dos desafios, temos de exigir que o País caminhe na direção correta, porque estamos acumulando uma quantidade imensa de problemas que vão tornando as soluções mais custosas, mais difíceis”.

Essas palavras, proferidas em 2021, retêm relevância e urgência para o debate que deveria ter lugar no caminho que nos levará às eleições de outubro 2026 – e muito além. Democracias de grandes massas urbanas (o Brasil é a terceira maior do mundo) não são propensas a adotar ações que gerem no curto prazo custos para interesses específicos muito vocais, e benefícios difusos e de longo prazo para a maioria. Que por vezes o façam, é consequência de uma liderança incomumente corajosa ou de um eleitorado que compreende os custos de adiar escolhas difíceis. Liderança corajosa e competente é coisa rara, mas também é raro um eleitorado informado e comprometido.

O que exige educação para a liberdade. A qual, segundo Aldous Huxley, “deve começar com a apresentação de fatos e enunciação de valores e deve prosseguir, desenvolvendo técnicas adequadas para realizar esses valores e combater aqueles que, por qualquer razão, optam por ignorar os fatos ou negar os valores”. E no mesmo Admirável Novo Mundo Revisitado: “A sobrevivência da democracia depende da capacidade de um grande número de pessoas de fazer escolhas realistas à luz de informações adequadas”. É preciso que nos empenhemos para que seja esse o nosso caso.

Parabéns ao Estadão pelos 150 anos. Que venham os próximos! •


O Brasil não é mais neutro no grande jogo da geopolítica mundial - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil não é mais neutro no grande jogo da geopolítica mundial

Paulo Roberto de Almeida

        Durante a maior parte da nossa existência enquanto Estado nacional independente, os dirigentes políticos, eventualmente estadistas de grande tirocínio e visão do mundo, os diplomatas responsáveis pelas nossas relações exteriores, os chefes militares encarregados da defesa do território e da soberania nacional, os principais membros das elites dominantes e dirigentes, essa comunidade algo difusa que representa o Brasil no mundo e que representa o Estado e a nação para si própria, frente aos súditos do Império e aos cidadãos da República, tentou ser coerente vis-à-vis os grandes interesses nacionais de desenvolvimento econômico e social, de estabilidade politica, de funcionamento das instituições do Estado, de preservação de um regime de liberdades — chamemo-lo de democracia, com todas as imperfeições dessa que temos — e tentou, na frente externa, ser basicamente neutra e amplamente autônoma, no plano decisório nacional, em face das disputas externas entre grandes potências, vis-à-vis as contradições do cenário internacional, no qual momentos de conflitos parciais ou globais interromperam períodos de relativa estabilidade, paz e segurança, num mundo sempre confrontado com divergências ou conflitos entre atores poderosos, belicamente capazes, o que nunca foi o nosso caso no terreno da necessária preparação militar (inclusive porque sempre tivemos um ambiente externo relativamente pacífico).

        Nas poucas vezes nas quais tivemos desafios significativos na defesa da soberania e da dignidade nacionais empreendemos com certo sacrifício dos meios disponíveis um esforço correspondente à magnitude dos perigos revelados: foram talvez apenas em número de três esses desafios, um no plno regional, no século XIX, e dois na primeira metade do século XX, no plano global. A guerra da Tríplice Aliança, contra o ditador do Paraguai que violou nossa soberania e invadiu nosso território, nos custou quase cinco longos anos de um esforço hercúleo no terreno puramente militar e a grandes despesas para a nação no terreno econômico, com um final bem sucedido nos anos e décadas seguintes, graças à capacidade da diplomacia imperial em lidar com os resultados do conflito numa conjuntura de ascensão de um aparente competidor na esfera regional do Cone Sul, uma problemática também encaminhada de modo favorável pelo grande diplomata que foi o Barão do Rio Branco.

        No século XX, os desafios não se exerceram diretamente sobre o território nacional, mas atingiram nossa soberania e dignidade nos transportes internacionais e até no funcionamento de nossas instituições e interesses nacionais. O esforço dispendido na Grande Guerra não representou um custo exagerado para os cofres da nação, mas as lições aprendidas e as doutrinas formuladas em termos de protagonismo diplomático internacional foram significativas, em grande medida graças ao tirocínio de um jurista, Rui Barbosa, aliás desde 1907, concebendo posturas que depois foram incorporadas ao eixo central do multilateralismo contemporâneo, como é a defesa intransigente do princípio da igualdade soberana dos Estados. Sua lição exemplar, feita em 1916, sobre os “deveres dos neutros”, um dos componentes do Direito Internacional, também contribuiu para o fortalecimento do patrimônio jurídico de nossa diplomacia, e que também serviu de base política para o excepcional trabalhos de construção de uma estratégia de defesa dos interesses nacionais por Oswaldo Aranha, quando novos desafios vindos de potências militaristas e expansionistas se abateram sobre o país nos anos 1930-40.

        O Brasil esteve presente na criação da nova ordem mundial do segundo pós-guerra, defendendo aqueles princípios quando a ocasião se apresentou, em San Francisco, por exemplo, protestando contra o privilégio abusivo concedido aos “mais iguais entre os iguais”, os vencedores do maior conflito global da história, na preservação elusiva da paz e da segurança internacionais. Na Guerra Fria que se seguiu entre as duas maiores potências mundiais continuamos a ser fiéis aos valores e princípios que fundamentam a ação interna e externa do Estado nacional, mas no plano diplomático nos mantivemos basicamente neutros e autônomos em face da grande disputa estratégica mantida entre os dois super poderes nucleares. A diplomacia nacional continuou a ser guiada pelo interesse maior do desenvolvimento econômico e social do país, em consonância com escolhas próprias no tocante às ferramentas para alcançar a prosperidade da nação. Assim o proclamamos ao mundo, cada vez que, desde 1946, abríamos os debates na Assembleia Geral da ONU, paralelamente à discussão dos grandes temas da agenda mundial a cada momento.

        Continuamos a assim proceder durante a maior parte do restante do século XX e até o início do presente século, o que aliás granjeou para a nossa diplomacia uma aura de prestígio e de respeitabilidade, sobretudo no plano regional, que muito fez para conquistar credibilidade e confiança nas relações mantidas com todos os parceiros da comunidade internacional, resultando em ganhos econômicos consideráveis, tendo em vista o equilíbrio e a independência de nossas posições no plano internacional. A partir do início do presente século, o primeiro governo lulopetista introduziu novos elementos de política externa que não figuravam entre os fundamentos de nossa doutrina diplomática, quais sejam, considerações partidárias, de natureza ideológica, em especial quanto aos parceiros preferenciais com os quais o Brasil deveria manter “parcerias estratégicas”. Insinuou-se então uma nítida escolha por alianças políticas e diplomáticas supostamente fora do eixo global das “grandes potências hegemônicas”, tendentes a uma agregação de esforços no âmbito de um alegado Sul Global, com o objetivo de mudar as “relações de força no mundo, favorecendo potências emergentes e os países em desenvolvimento do Sul. O primeiro exemplo dessa postura foi a conformação do IBAS (com Índia e África do Sul), no próprio ano de 2003, logo adiante seguido pela criação, em 2006 (em nível ministerial) e em 2009 (em nível de cúpula), do BRIC, o primeiro foro, com Rússia, Índia e China, inspirado por uma sugestão não propriamente interna, de natureza diplomática, mas por uma ideia externa à diplomacia dos quatro primeiros engajados, qual seja, uma plataforma econômica para investimentos de cunho financeiro a partir de fundos institucionais.

        Essa segunda instância encontrou bom acolhimento midiático e significativo sucesso na esfera internacional e foi logo ampliada, em 2011, com a incorporação da África do Sul, por injunção da China, de longe o maior e mais importante membro do novo foro. Ela passou a fazer parte, mais até do que o IBAS, do "patrimônio diplomático" dos governos lulopetistas. Por ocasião de uma interrupção de alguns anos, entre 2016 e 2022,  no ciclo dos governos lulopetistas, ocorreu certa descontinuidade de algumas iniciativas do lulopetismo diplomático nos planos regional (Unasul) e plurilateral (reuniões dos chefes de Estado da América Latina e seus contrapartes africanos e do mundo árabe, por exemplo), as reuniões anuais do grupo Brics se mantiveram regularmente nos anos intermediários, e mesmo durante os quatro anos mais bizarros jamais enfrentados pela diplomacia nacional, quando princípios e valores da diplomacia tradicional foram afastados em favor de um antiglobalismo demencial e de um antimultilateralismo irracional no plano da principal metodologia operativa no campo das relações internacionais. 

        Já no terceiro governo do lulopetismo tinha ocorrido uma nítida postura em desacordo com a inquestionável adesão da diplomacia brasileira ao princípio da intangibilidade das fronteiras estatais oficiais, de estrito respeito à Carta da ONU e às mais elementares regras do Direito Internacional. Quando da invasão e anexação ilegais da península ucraniana da Crimeia pela Rússia de Putin, o governo de Dilma Rousseff permaneceu rigorosamente em silêncio, chegando mesmo a chefe de Estado a proclamar que o assunto era "uma questão interna da Ucrânia". Apenas para registro da consistência histórica da doutrina jurídico-diplomática do Brasil, nem o Estado Novo ousou inverter a posição tradicional de não reconhecer usurpação de territórios estatais pela força, sobretudo com países com os quais mantínhamos relações diplomáticas; foi assim com a Polônia, invadida militarmente em 1939 pela Alemanha nazista e pela União Soviética, e com os três países bálticos, incorporados à força por Stalin, atos unilaterais de agressão que nunca reconhecemos.

        A dissociação mais evidente da diplomacia brasileira, e do Estado brasileiro, com relação a princípios básicos das relações internacionais, aliás constitucionalizados, ocorreu a partir da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia em fevereiro de 2022, quando, a despeito de aderir, formalmente, a uma resolução da Assembleia Geral – em vista da paralisia, por veto da Rússia, do CSNU – condenando a Rússia pela invasão, claramente violadora dos primeiros artigos da Carta da ONU, o governo de Bolsonaro, seguido de forma ainda mais enfática pelo de Lula, não adotou qualquer postura mais resolutiva, deixando de se referir de forma nítida, em sua declaração de voto, ao agressor unilateral, apenas conclamando de forma genérica à “solução pacífica da controvérsia entre as partes”, como se ambas fossem equivalentes. Não apenas isso: o governo Bolsonaro, por razões basicamente eleitoreiras, continou e até incrementou as importações brasileiras de fertilizantes e de combustíveis russos, beneficiando objetivamente a potência agressora, depois do próprio chefe de Estado ter proclamado, em visita bilateral uma semana antes da invasão, sua “solidariedade à Rússia”. Permanecemos indiferentes ao artigo da Carta da ONU que conclama todos os Estados membros a prestar assistência à parte ilegalmente atacada, como o fizeram quase todos os países ocidentais, sendo que os principais passaram a suprir de imediato meios de defesa, em conformidade com o espírito e a letra da Carta.

        O governo Lula recrudesceu no apoio deliberado, aliás voluntário, à guerra de agressão da Rússia, parceiro original no Brics, declarando, ainda antes das eleições, que a Ucrânia era igualmente responsável pela guerra, o que obviamente chocou a totalidade dos paises membros do G7, quando o presidente compareceu, a convite, na reunião do grupo em Hiroshima, em 2023. As importações da Rússia cresceram mais do que exponencialmente sob o presente Governo Lula, que chegou inclusive a vetar a exportação de material humanitário brasileiro para a Ucrânia, mesmo com o assentimento da diplomacia e das FFAA. Lula chegou inclusive a contestar a adesão do Brasil ao TPI, que pediu a detenção de Putin por crimes contra a humanidade, assim como tentou subtrair o Brasil das obrigações decorrentes do Estatuto de Roma, na tentativa de fazer com que Putin comparecesse à cúpula do G20, realizada no Rio de Janeiro em novembro de 2024.

        De modo muito claro, e não apenas com relação à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, o governo Lula abandonou completamente a postura da diplomacia profissional e do próprio Brasil, de respeito ao Direito Internacional e de observância da Carta da ONU, ao ter abandonado a neutralidade e a imparcialidade em face de conflitos que colocam justamente em cheque os princípios consagrados nas cláusulas constitucionais pelas quais se rege o país em suas relações internacionais. Em mais de uma ocasião, sua diplomacia presidencial personalista confirmou sua adesão ao projeto russo-chinês de uma “nova ordem global multilateral”, jamais definida ou explicitada de forma clara pelos seus proponentes, e sem que o tema tenha sido exaustiva e expressamente debatido em nivel de governo, com o Parlamento ou com a sociedade de uma forma geral. 

            Ao se posicionar verbalmente do lado da China e da Rússia numa alegada confrontação com a “ordem ocidental” identificada com a dominação ocidental sobre o resto do mundo, em especial um diáfano Sul Global, a postura diplomática de Lula não confronta exatamente a ordem internacional, apenas por desejar uma "nova ordem global multipolar", mas mais precisamente por escolher o seu campo e se posicionar do lado dos países que estão adotando uma postura agressiva e confrontacionista, aumentando as tensões que podem ameaçar ainda mais a paz e a segurança internacionais. A diplomacia presidencialista personalista aderiu a um dos lados da contenda potencial, rompendo, portanto, com a postura histórica e tradicional da diplomacia brasileira de absoluta neutralidade nos conflitos de natureza geopolítica, envolvendo interesses e objetivos nacionais de grandes potências que não são aqueles normalmente perseguidos pelo Brasil, aspirando a um ambiente de cooperação propício ao desenvolvimento do país.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 12 de janeiro de 2025