O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 20 de agosto de 2022

Kasparov, resistente democrático, tem seu livro resumido por Carlos Pozzobon

 Carlos U. Pozzobon

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Fragmentos 42

"Retirado en la paz de estos desiertos,
com pocos, pero doctos, libros juntos,
vivo en conversación com los difuntos
y escucho com mis ojos a los muertos"
Quevedo 


Winter is Coming — Garry Kasparov

Kasparov era conhecido pelo destaque obtido na imprensa com os campeonatos mundiais de xadrez em que venceu sucessivos torneios. Nascido em Baku, de origem armênia e judia, criou-se na cultura russa e desde a infância se apaixonou pelo tabuleiro que haveria de celebrizá-lo enquanto jogador e, mais tarde, como militante pela causa democrática na queda do Império Soviético. Em Winter Is Coming (O Inverno Está Chegando) narra sua luta contra a autocracia russa comandada por Putin, fazendo tábula rasa de todo o discurso conciliador e sobretudo favorável a que Putin prosseguisse com sua recriação da URSS através da invasão brutal dos países vizinhos, complementada pela guerra da Ucrânia iniciada em 2014. O livro é de 2015 e nele Kasparov descreve fatos que pertencem a uma assustadora previsão dos acontecimentos atuais (2022), como se fosse um prestidigitador do futuro. Enfatizando que o xadrez é sobretudo um método para se pensar a realidade quando o aficcionado dispõe das ferramentas críticas, adverte para os erros do Ocidente, citando os principais mandatários e seus equívocos frente a uma personalidade tantálica de um psicopata capaz de assassinar todos e quaisquer adversários que se anteponham ao seus mandos. Descreve a década democrática dos anos 90 na Rússia sabotada com a ascensão de Putin em 2000 e as sucessivas manipulações legais para a concentração do poder e eliminação de adversários, até a repressa brutal que transformou a Rússia atual em uma ditadura com centenas de milhares de dissidentes espalhados pelo mundo, inclusive o autor e sua família. Livro indispensável para entender o que se passa no mundo hoje, especialmente devido a ameaça potencial de uma guerra nuclear se Putin não for detido. 

Introdução

1) Parafraseando a definição de apaziguamento de Winston Churchill, estamos alimentando os crocodilos, esperando que eles nos comam por último.

2) Em vez de nos apoiarmos nos princípios do bem e do mal, do certo e do errado, e nos valores universais dos direitos humanos e da vida humana, o que temos é engajamento, reajustes e equivalência moral. Ou seja, apaziguamento com outros nomes. O mundo precisa de uma nova aliança baseada em uma Carta Magna global, uma declaração de direitos fundamentais que todos os membros devem reconhecer.

3) O objetivo não deve ser construir novos muros para isolar os milhões de pessoas que vivem sob regimes autoritários, mas dar-lhes esperança e perspectiva de um futuro melhor. A maioria de nós que vivia atrás da Cortina de Ferro sabia muito bem que havia pessoas no mundo livre que se importavam e que lutavam por nós, não contra nós. E saber isso importava. Hoje, os chamados líderes do mundo livre falam em promover a democracia enquanto tratam os líderes dos regimes mais repressivos do mundo como iguais. As políticas de engajamento com ditadores falharam em todos os níveis, e já passou da hora de reconhecer esse fracasso.

4) Em 2005, me aposentei depois de vinte anos no topo do mundo do xadrez profissional para me juntar ao incipiente movimento pró-democracia russo. Tornei-me campeão mundial em 1985, aos 22 anos, e consegui tudo o que queria no tabuleiro de xadrez. Eu sempre quis fazer a diferença no mundo e senti que meu tempo no xadrez profissional havia acabado. Eu queria que meus filhos pudessem crescer em uma Rússia livre.

5) Havia a sensação de que o país poderia cair no caos sem uma mão mais forte no leme. A insegurança física e social sempre foi alvo fácil em democracias frágeis, e a maioria dos ditadores chega ao poder com apoio público inicial. Ao longo da história, ciclos intermináveis de autocratas e juntas militares foram fortalecidos pelo apelo popular à ordem e "la mano dura" para conter os excessos de um regime civil instável. De alguma forma, as pessoas sempre esquecem que é muito mais fácil instalar um ditador do que removê-lo.

6) A ideia ingênua era que o mundo livre usaria os laços econômicos e sociais para liberalizar gradualmente os estados autoritários. Na prática, os estados autoritários abusaram desse acesso e interdependência econômica para espalhar sua corrupção e alimentar a repressão em casa.

7) Estados não livres exploram a abertura do mundo livre contratando lobistas, espalhando propaganda na mídia e contribuindo fortemente para políticos, partidos políticos e organizações não governamentais (ONGs).

8) Assim, enquanto nosso movimento de oposição em constante evolução fez algum progresso em chamar a atenção para a realidade antidemocrática da Rússia de Putin, estávamos em uma posição perdedora desde o início. A dominação dos meios de comunicação de massa pelo Kremlin e a perseguição implacável de toda a oposição na sociedade civil tornaram impossível construir qualquer impulso duradouro. Nossa missão também foi sabotada por líderes democráticos que abraçaram Putin no cenário mundial, fornecendo-lhe as credenciais de liderança de que tanto precisava na ausência de eleições válidas na Rússia. É difícil promover a reforma democrática quando todos os canais de televisão e todos os jornais mostram imagem após imagem dos líderes das democracias mais poderosas do mundo aceitando um ditador como parte de sua família. Passa a mensagem de que ou ele não é realmente um ditador ou que a democracia e a liberdade individual nada mais são do que as moedas de barganha que Putin e sua turma sempre dizem que são.

9) Durante anos, à medida que a situação dos direitos humanos na Rússia se deteriorava constantemente, políticos e especialistas ocidentais como Condoleezza Rice e Henry Kissinger defenderam a fraqueza ocidental em confrontar Putin dizendo que os russos estavam em melhor situação do que nos dias da União Soviética.

10) Os Estados Unidos e a União Européia impuseram sanções contra autoridades e indústrias russas, ainda que muito pouco e tarde demais. E, no entanto, eles ainda se recusam a admitir a necessidade de condenar e isolar a Rússia como o perigoso estado desonesto em que Putin a transformou. Esta geração de líderes ocidentais se recusa a admitir que o mal ainda existe neste mundo e que deve ser combatido em termos absolutos, não negociados. Está claro no momento que as democracias do século XXI não estão prontas para essa luta. Ainda é uma questão em aberto se eles podem ou não se preparar.

11) É muito perigoso acreditar que a queda de um símbolo é o mesmo que o fim do que aquele símbolo representou, mas a tentação de fazê-lo é quase irresistível. [O fim do regime militar e as Diretas Já criaram a ilusão de que uma nova constituinte recolocaria o Brasil no eixo. O engano foi generalizado.]

12) Escrevi sobre o que chamo de “a gravidade do sucesso passado” no xadrez. Cada vitória puxa o vencedor ligeiramente para baixo e torna mais difícil colocar o máximo esforço para melhorar ainda mais. Enquanto isso, o perdedor sabe que cometeu um erro, que algo deu errado, e ele vai trabalhar duro para melhorar na próxima vez. O feliz vencedor geralmente assume que ganhou simplesmente porque é ótimo. Normalmente, no entanto, o vencedor é apenas o jogador que cometeu o penúltimo erro. É preciso uma tremenda disciplina para superar essa tendência e aprender lições de uma vitória.

[Argumento notável sobre o entorpecimento do sucesso e a fatalidade do decaimento.]

13) Mas o mal não morre, assim como a história não acaba. Como uma erva daninha, o mal pode ser cortado, mas nunca totalmente desarraigado. Ele espera sua chance de se espalhar pelas frestas de nossa vigilância. Pode criar raízes no solo fértil de nossa complacência, ou mesmo nos escombros pedregosos da queda do Muro de Berlim.

14) Além de sua capacidade militar, a URSS era uma ameaça porque propunha agressivamente uma ideologia tóxica, o comunismo, capaz de se espalhar muito além de suas fronteiras. Até recentemente, Putin se sentia capaz de saquear a Rússia e consolidar o poder sem recorrer a nada parecido com ideologia. “Vamos roubar juntos” tem sido o único lema de sua elite governante, usando o poder do governo para mover dinheiro para os bolsos daqueles que exercem esse poder. Mas à medida que a situação econômica na Rússia se deteriorou, Putin foi obrigado a recorrer aos últimos capítulos do manual do ditador para encontrar novas maneiras de justificar seu papel como líder supremo.

15) Quando o presidente fantoche de Putin na Ucrânia, Viktor Yanukovych, fugiu do país após os protestos “Euromaidan” exigindo maior integração europeia, Putin aproveitou a chance. Citando a necessidade de proteger os russos na Ucrânia, ele primeiro ocupou e anexou a Crimeia e depois começou a incitar a violência por meio de “rebeldes” apoiados pelos russos no leste da Ucrânia. Logo depois, apesar das alegações cada vez mais absurdas do Kremlin em contrário, tropas russas e armas pesadas transformaram o conflito em uma invasão real.

16) Uma guerra por qualquer motivo é terrível, mas a perigosa virada de Putin para o imperialismo de base étnica não pode ser ignorada. Aqueles que dizem que o conflito na Ucrânia está longe e que provavelmente não levará à instabilidade global ignoram a clara advertência que Putin nos deu. Não há uma razão para acreditar que sua visão propalada de uma “Grande Rússia” terminará com o leste da Ucrânia, mas muitas razões para acreditar que não. Os ditadores só param quando são parados, e apaziguar Putin com a Ucrânia só vai alimentar seu apetite por mais conquistas. A Ucrânia é apenas uma batalha que o mundo livre gostaria de ignorar em uma guerra maior que se recusa a reconhecer que existe. Mas fingir que você não tem inimigos não torna isso verdade. O Muro de Berlim e a União Soviética se foram, mas os inimigos da liberdade que os construíram não. A história não termina; ela funciona em ciclos. O fracasso em defender a Ucrânia hoje é o fracasso dos Aliados em defender a Tchecoslováquia em 1938. O mundo deve agir agora para que a Polônia em 2015 não seja chamada a desempenhar o papel da Polônia em 1939.

17) Preocupar-se apenas com o que pode acontecer quando a situação atual já é catastrófica é uma tentativa patética de adiar decisões difíceis.

18) Putin, como todo ditador conhecido antes dele, cresce em confiança e apoio quando não é desafiado. Cada passo que ele pode anunciar como um sucesso para o povo russo torna mais difícil removê-lo e é mais provável que ele se sinta corajoso o suficiente para dar passos ainda mais agressivos.

19) É verdade que se a América, a Europa e o resto das democracias do mundo finalmente perceberem que a era do engajamento acabou e atacarem Putin e os outros bandidos cortando-os em pedaços e fornecendo apoio avassalador aos seus alvos, os conflitos podem piorar antes que eles possam ser extintos. Essa visão – a disposição de aceitar sacrifícios de curto prazo para o bem de longo prazo – requer o tipo de liderança que o mundo livre tem muito pouco hoje. Requer pensar além da próxima pesquisa de opinião, do próximo relatório trimestral e da próxima eleição. As políticas da Guerra Fria mantiveram-se notavelmente firmes por décadas, em todas as administrações, e eventualmente terminaram em uma grande vitória para o lado da liberdade. Desde então, um presidente após o outro, um primeiro-ministro após o outro, passou a responsabilidade dos direitos humanos na Rússia até que Putin teve impulso suficiente para lançar uma guerra real em solo europeu. Um argumento popular sem fundamento consiste em sugerir que a intervenção contra a agressão pode levar à Terceira Guerra Mundial ou mesmo a um holocausto nuclear. Pelo contrário, a única maneira de a crise atual continuar a aumentar é se Putin não for confrontado com uma ameaça esmagadora ao seu poder, que é a única coisa com que ele se importa. Se Putin puder ir de vitória em vitória, eliminando qualquer oposição em casa enquanto ganha território e influência no exterior, o risco de uma guerra total aumenta dramaticamente.

20) Se, no entanto, os líderes do mundo livre voltarem a si a tempo e apresentarem uma forte frente unida contra Putin - com sanções econômicas, substituição da energia russa, isolamento diplomático e apoio econômico e militar para seus alvos - isso fornecerá uma base para uma nova aliança das democracias do mundo.

21) A ascensão e queda da democracia russa daria um livro dolorosamente curto. Demorou apenas oito anos para a Rússia passar de uma multidão jubilosa celebrando o colapso da União Soviética em 1992 para a ascensão do ex-agente da KGB Vladimir Putin à presidência. Depois, Putin levou mais oito anos para corromper ou desmantelar quase todos os elementos democráticos do país – equilíbrio nos ramos do governo, eleições justas, judiciário independente, mídia livre e uma sociedade civil que pudesse trabalhar com o governo em vez de viver com medo dele. Oligarcas não cooperativos foram presos ou exilados e a imprensa rapidamente soube o que podia e o que não podia ser dito. Putin também consolidou a economia russa, reprimindo reformas de livre mercado e enfatizando a criação de “campeões nacionais” nos setores de energia e bancário. Um potencial ponto de virada veio em 2008, quando o limite constitucional de Putin de dois mandatos de quatro anos estava terminando. Poucos esperavam que ele se aposentasse garbosamente, ou coisa do gênero, mas exatamente como ele manteria o controle enquanto mantinha as aparências era um tema quente de debate. Putin canalizou o poder não apenas para seu partido ou seu cargo, mas para si mesmo pessoalmente. Sua partida teria sido como arrancar a espinha do estado mafioso da KGB que ele e seus aliados passaram oito anos construindo. Ele poderia alterar a constituição russa para concorrer novamente, mas na época Putin ainda era sensível em manter as aparências democráticas. Por um lado, teria sido estranho para seus colegas líderes do G8 recebê-lo após qualquer tomada primitiva de poder, e permanecer nas boas graças dos líderes dos Estados Unidos, Japão e Europa Ocidental foi muito útil para Putin em casa. Como ele poderia ser chamado de antidemocrático, muito menos de déspota, se foi abraçado com tanto entusiasmo por pessoas como George W. Bush, Silvio Berlusconi e Nicolas Sarkozy?

22) Havia alguns solavancos na estrada, no entanto. Apenas três meses antes da eleição presidencial de 4 de março, os maiores protestos políticos da era pós-soviética eclodiram espontaneamente depois que as eleições parlamentares foram tão descaradamente manipuladas que foi demais para muitos suportarem. Nos meses seguintes, centenas de milhares de russos foram às ruas, muitos gritando “Fora Putin!” e “Rússia sem Putin!”

23) Mas o ímpeto não pôde ser mantido. Novas leis draconianas contra a liberdade de reunião foram rapidamente aprovadas, permitindo multas enormes e criminalizando protestos não violentos. Muitos líderes e membros da oposição foram perseguidos, presos e interrogados sobre seus papéis na organização dos protestos. O Kremlin empenhou recursos maciços contra os protestos; a última manifestação em massa, em 6 de maio de 2013, foi brutalmente dispersa e levou ao chamado caso da Praça Bolotnaya, que os registros mostram que envolveu mais de treze mil entrevistas com testemunhas e que levou dezenas de manifestantes a serem condenados a anos de prisão.

24) Os presidentes dos EUA, em particular, sempre depositaram muita fé em indivíduos na Rússia, em vez de apoiar as reformas estruturais e institucionais que poderiam ter garantido a sobrevivência da democracia.

25) No início de 1991, Gorbachev estava perdendo o controle de seu tímido programa de reformas à medida que os ventos da mudança sopravam com força da Europa Oriental. Bush fez o seu melhor para apoiar os esforços de Gorbachev para manter a URSS unida, proferindo seu infame discurso “Frango à Kyiv” em 1º de agosto de 1991, quando ele enfureceu muitos ucranianos, advertindo-os contra pressionar demais pela independência da URSS.

26) Apesar da tentativa de rebatizar o método como “engajamento”, o cheiro de apaziguamento é impossível de mascarar. A lição fundamental de Chamberlain e Daladier indo ver Hitler em Munique em 1938 é válida hoje: dar a um ditador o que ele quer nunca o impede de querer mais; isso o convence de que você não é forte o suficiente para impedi-lo de fazer o que quer.

27) Os sinais de alerta sobre a natureza e a intenção de Putin eram abundantes. Sua ascensão ao poder foi auxiliada por sua resposta brutal aos bombardeios de apartamentos em 1999, aos atos terroristas que muitos ainda suspeitam ter sido uma provocação ao estilo do Reichstag. (Mas, ao contrário do Reichstag, houve derramamento de sangue de verdade.) Bombardeios de arrasar tudo e tortura de civis em toda a Chechênia foram apresentados como parte da guerra global contra o terror, que era uma invenção completa. Mais tarde, o desprezo de Putin pelo valor da vida humana foi confirmado em duas situações de reféns, a primeira em 2002, quando tropas federais usando um gás ainda não especificado mataram dezenas de reféns no confronto do teatro Nord-Ost em Moscou. A segunda veio em 2004, quando as forças de segurança usando armas militares demoliram uma escola cheia de crianças reféns em Beslan, resultando na morte de centenas.

28) Os meios de comunicação foram tomados por forças amigas de Putin e seus associados mais próximos. O proprietário da NTV, Vladimir Gusinsky, passou três dias na prisão em junho de 2000 e foi forçado a desistir de sua empresa. De fato, no que se tornaria um típico “método de negociação” da época, ele foi forçado a assinar o repasse de sua empresa antes de ser autorizado a sair da prisão. Ele fugiu para Israel enquanto seu canal era apropriado e absorvido pelo portfólio do Kremlin em abril de 2001, e hoje, ironicamente, a NTV é provavelmente a mais suja das estações oficiais de propaganda contra uma concorrência muito dura nesse campo. Essa “censura branda” foi acompanhada pelo tipo mais convencional, com suas listas de nomes non grata e tópicos proibidos. O poder midiático foi centralizado da mesma forma que o poder político, e com o mesmo propósito: saquear o país sem causar uma revolta popular.

29) Putin conseguiu retratar a Rússia como um aliado dos EUA – no Afeganistão em particular – enquanto trabalhava ativamente contra os interesses americanos e europeus em outros lugares.

30) Quando o governo dos EUA finalmente tomou medidas limitadas para responder aos muitos abusos do regime de Putin, isso aconteceu somente depois que Putin alcançou o poder total na Rússia e uma sensação de completa impunidade. E a mudança nem veio de dentro da administração. A legislação da Lei Magnitsky, que impôs sanções sobre bens e viagens a alguns funcionários russos por abusos de direitos humanos, foi defendida pelo investidor americano-britânico Bill Browder. Um dos advogados de seu grupo de investimentos russo, Sergei Magnitsky, foi preso em 2008 pelos mesmos policiais corruptos cuja fraude maciça ele havia exposto. Um ano depois, morreu em prisão preventiva depois de ser espancado sem ter recebido atenção médica adequada.

[ Esta introdução basta por si só para um conhecimento geral do livro de Kasparov. No entanto, resumi todo o livro. O leitor poderá solicitar por comentário abaixo mencionando seu email (que não será publicado) as 35 páginas restantes que compõem os 119 itens totais que selecionei da edição em inglês].

Índice do livro:

1: O FIM DA GUERRA FRIA E A QUEDA DA URSS
2: A DÉCADA PERDIDA
3: AS GUERRAS INVISÍVEIS
4: NASCIDO NO SANGUE
5: PRESIDENTE VITALÍCIO
6: EM BUSCA DA ALMA DE PUTIN
7: FORA DO TABULEIRO, NO FOGO CRUZADO
8: OPERAÇÃO MEDVEDEV
9: A AUDÁCIA DA FALSA ESPERANÇA
10: GUERRA E PACIFICAÇÃO
CONCLUSÃO


Foreign Affairs: articles, book reviews, book recommendations

 

Sobre Impérios e sobre um Grande Império - Paulo Roberto de Almeida

 Sobre Impérios e sobre um Grande Império:

Grandes Impérios são ambivalentes: produzem ordem e segurança em vastos territórios para permitir o avanço das trocas comerciais e da interdependência global, mas nas interfaces com Impérios vizinhos podem provocar rupturas e conflitos de grandes proporções. São mais resilientes do que os Estados nacionais, ainda que possamos concordar com Duroselle em que “tout empire perira”. 

De fato, todos os Impérios históricos pereceram, alguns depois de centenas de anos. 

O da China renasceu, mas sob uma forma totalmente diferente do antigo Império do Meio, fragmentado em duas dúzias de dinastias, tendo atravessado um longo período de declínio, de meados do século XVIII à segunda metade do século XX. Sua resiliência se explica pelo fato de que ele nunca foi apenas uma dominação política sobre povos e culturas muito diferentes entre si. Ele sempre foi um arco civilizatório dotado de uma forte cultura própria e de uma escrita basicamente permanente, o que permitiu poderosos fatores de agregação societária. Talvez seja o único na história do mundo com tais caracteristicas, hoje moldadas por um partido leninista-confuciano-weberiano, se ouso arriscar.

Paulo Roberto de Almeida

A política externa nos programas de Bolsonaro e Lula - Duda Teixeira (Crusoé)

 Na Crusoé desta terceira semana de setembro de 2022:

A política externa nos programas de Bolsonaro e Lula

Bolsonaro e Lula adaptaram seus programas de governo ao longo dos anos, mas enquanto a campanha do presidente alivia a carga ideológica, os petistas repetem os mesmos erros

Revista Crusoé, 19/08/2022 

DUDA TEIXEIRA


Disponíveis no site do Tribunal Superior Eleitoral, TSE, os programas de governo costumam ser ignorados pela população e, não raro, até pelos próprios candidatos. Alguns nem sequer sabem o que está escrito lá. Mas, por esses textos serem elaborados por assessores graduados, eles permitem vislumbrar os debates que ocorrem dentro dos gabinetes e antever o que seus candidatos podem vir a fazer, em caso de vitória. Na área de política externa, o programa de governo de Jair Bolsonaro traz uma importante melhora em relação ao que foi apresentado em 2018. No documento petista, antigos chavões que nunca apresentaram bons resultados continuam presentes, ainda que tomando cuidados para não suscitar reações indignadas.

Quando Bolsonaro tentou pela primeira vez a Presidência, há quatro anos, seu programa colocava a diplomacia a serviço de valores próprios. “Deixaremos de louvar ditaduras assassinas e desprezar ou mesmo atacar democracias importantes como EUA, Israel e Itália. Não mais faremos acordos comerciais espúrios ou entregaremos o patrimônio do povo brasileiro para ditadores internacionais”, dizia o texto. Bolsonaro perfilava-se, então, como um representante dos brasileiros que sentiam repulsa pelos empréstimos do BNDES para obras nas ditaduras de Venezuela e Cuba e pela escravidão no programa Mais Médicos. Estados Unidos e Israel eram citados porque seus líderes, Donald Trump e Benjamin Netanyahu, tinham afinidade com Bolsonaro. Na Itália, Matteo Salvini, de extrema-direita, simpático ao brasileiro, era vice-primeiro ministro. O programa ainda prometia uma “ênfase nas relações e acordos bilaterais”, sem dar atenção para as organizações multilaterais.

O atual programa está mais circunspecto. Fala-se em promover uma interação com países “que se encaixem no ambiente democrático”, mas sem ataques diretos a ditaduras. Em vez de relações bilaterais, o programa valoriza acordos e organizações internacionais. “O país se destaca como defensor histórico de uma ordem global multipolar, alicerçada no direito internacional e centrada na Carta das Nações Unidas”, diz o texto.

Uma das explicações para essa atenuação do discurso está na saída, em março do ano passado, de Ernesto Araújo do Ministério de Relações Exteriores, de onde ele atacava o “comunavírus” e o “globalismo”. O diplomata Carlos França, que o substituiu, passou a comandar uma diplomacia mais pacata e mais ao estilo do Centrão. “Este programa marca uma ruptura com o anterior, porque a ideologia deixou de ordenar a política externa”, diz o especialista em relações internacionais Heitor Erthal, pesquisador do Observatório de Regionalismos, que faz análises dos programas de governo. “O Carlos França trouxe de volta alguns princípios tradicionais do Itamaraty, como o da não intervenção em questões externas e a resolução pacífica dos conflitos. Isso deu um ar maior de normalidade.”

Também contribuiu o fato de que Estados Unidos, Israel e Itália tiveram trocas de governo e Bolsonaro não tem o mesmo entrosamento com o americano Joe Biden, os israelenses Yair Lapid e Naftali Benett e os governantes italianos que vieram depois, como Mario Draghi. Assim, aquilo que eram relações pessoais ou entre governos, e não entre estados, desmoronou. Por fim, o atual presidente viajou para Rússia, Hungria, Bahrein, Emirados Árabes e Catar, o que inviabilizou as críticas a ditaduras.

O programa da coligação que apoia Lula traz em negrito a ideia de recuperar uma “política externa ativa e altiva”, que “nos alçou à condição de protagonista global”. A expressão foi cunhada e propalada por Celso Amorim, que foi chanceler de Lula entre 2003 e 2010. Uma de suas principais marcas foi a negociação com a teocracia iraniana, que resultou em um acordo com a Turquia sobre o destino do urânio enriquecido — uma parte dele seria entregue a Ancara, para evitar que Teerã quantidade suficiente para fabricar bombas atômicas. Festejado pelos petistas como um grande feito, o tal acordo foi ignorado por todas as grandes potências. Como chanceler, Amorim também fortaleceu os laços com os ditadores cubanos Fidel e Raúl Castro, com o venezuelano Hugo Chávez e com o cocaleiro boliviano Evo Morales. Nesse trabalho, embora no comando do Itamaraty, ele precisou se submeter ao assessor da presidência para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, um velho quadro do PT que faleceu em 2017. Nenhum desses países latino-americanos é citado no programa do PT, mas a intenção de retomar as conversas com eles transparece. O PT propõe reconstruir “a cooperação internacional Sul-Sul com América Latina e África” e “fortalecer novamente o Mercosul, a Unasul, a Celac e os Brics”. Em entrevistas, Amorim também defende a retomada de relações diplomáticas com a ditadura do venezuelano Nicolás Maduro.

A Unasul é uma das principais incógnitas. Esse grupo foi criado em 2008 pelo venezuelano Chávez basicamente para projetar influência em países governados pela esquerda na região. Sem mostrar utilidade, afundada em dívidas e atacada por sua cumplicidade com autocracias, a Unasul foi abandonada por diversos países, incluindo o Brasil, em 2019. Sua sede em Quito, no Equador, foi desativada. Estaria o PT querendo ressuscitar esse bloco que teve uma função majoritariamente ideológica aproveitando-se da vitória de partidos de esquerda na América Latina? Pois é exatamente isso. Celso Amorim disse no ano passado que a Unasul vai reviver: “A volta de governos progressistas na América do Sul propicia, obviamente, o retorno da Unasul”.

Amorim está, portanto, na contramão de Bolsonaro, que esvaziou a diplomacia ideológica. Outro ponto do programa petista fala em retomar políticas “como o Mais Médicos”. Cuba abandonou o projeto no final de 2018, porque Bolsonaro denunciava o confisco dos salários dos profissionais cubanos. Apesar disso, a assistência médica em áreas remotas e de periferia foi mantida com médicos brasileiros e estrangeiros recebendo salário integral. Cuba, curiosamente, não aparece nas perguntas que jornalistas fazem ao ex-chanceler, que só fala com blogueiros aliados. Numa possível vitória de Lula, se Amorim não se tornar ministro, ele deve sair-se como assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, no mesmo modelo do cargo que ocupou Marco Aurélio Garcia. Enquanto a diplomacia bolsonarista aprendeu algo depois de provar as turbulências da Presidência, a petista sempre volta ao mesmo lugar errado.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

China Is Winning the Economic Race with the US - Judith Bergman (Harvard Belfer Center)

 China Is Winning the Economic Race with the US – The Consequences Will Be Profound

by Judith Bergman

Harvard Belfer Center, August 17, 2022 

 

   The [Harvard Belfer Center] report, "The Great Economic Rivalry: China Vs. the US," predicts that at the current rate China will overtake the US economically within a decade.

 

   When it comes to trade, China has now displaced the US. "When this century began, China was knocking on the door of the WTO and the U.S. was the leading trading partner of most major economies. Today, China has overtaken the U.S. to become the largest trading partner for nearly every major nation... by 2018, 130 countries traded more with China than they did with the U.S....." — The Belfer Report.

 

   China's trade policies are not a matter of simply creating more wealth for China, but as with most things that China does, a way to increase China's power and other countries' dependency on it.

 

   Today, the U.S. is the world's largest debtor; China is the largest creditor.

 

   When it comes to manufacturing, China already displaced the US a decade ago.

 

   "China is now the world's largest manufacturer and exporter of scores of essential goods, including 90% of refined rare earth minerals, 80% of solar panels, 50% of computers, and 45% of electric vehicles." — The Belfer Report.

 

   Crucially, China is severely challenging the US when it comes to innovation.... In 2013, the US was the number one top innovating country, according to the Bloomberg Innovation Index, but by 2020, it was not even in the top 10, having fallen to number 11.... China's laser-like focus on frontier technologies has positioned it to dominate races like 5G and AI in the future.

 

   China is determined to see this development to its goal of becoming the dominant power in the world by 2049.

 

   What this new world economic order means for the future is probably difficult to imagine for the many who have grown up with the US as the leading world powerband the accompanying celebrated values of freedom, democracy, and capitalism, taken for granted by so many.

 

   China's economic rise and the US response -- or lack of such -- will determine the predominant values of the 21st century -- will it be China's authoritarianism and disregard for freedom, democracy, and human rights or those of the US and the West?

 

Today, the U.S. is the world's largest debtor; China is the largest creditor. When it comes to manufacturing, China already displaced the US a decade ago. China's trade policies are not a matter of simply creating more wealth for China, but as with most things that China does, a way to increase China's power and other countries' dependency on it. (Image source: iStock)

 

China has closed the gap with the U.S. "in most economic races, even overtaking it in some," according to a recent report from Harvard's Belfer Center for Science and International Affairs. The report, "The Great Economic Rivalry: China Vs. the US," predicts that at the current rate, China will overtake the US economically within a decade.

 

Measured by purchasing power parity (PPP) -- which compares national economies in terms of how much each nation can buy with its own currency at the prices items sell for in its market -- China has already surpassed the US to become the world's largest economy.

 

"When measured by PPP, in 2000, China's economy was36% the size of the United States,'" the report noted.

 

   "In 2020, the IMF found it was 115% the size of the U.S. economy, or one-seventh larger. While Presidents Obama, Trump, and now Biden have talked about a historic 'pivot' to Asia, the seesaw has shifted to the point that both of America’s feet are dangling entirely off the ground."

 

When it comes to trade, China has now displaced the US, according to the report:

 

   "When this century began, China was knocking on the door of the WTO and the U.S. was the leading trading partner of most major economies. Today, China has overtaken the U.S. to become the largest trading partner for nearly every major nation... by 2018, 130 countries traded more with China than they did with the U.S., and more than two-thirds of those countries traded more than twice as much with China. With the launch of the Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) in January, China has also now surpassed the U.S. as the leader of the world's largest free trade block."

 

The RCEP consists of China, Japan, South Korea, Australia, New Zealand, and the 10 members of ASEAN and is expected to add $500 billion to world trade by 2030.

 

China's trade policies are not a matter of simply creating more wealth for China, but as with most things that China does, a way to increase China's power and other countries' dependency on it:

 

   "As Xi Jinping explained last April, China's strategy in thickening trading relationships is not just to spur its own economic growth. It is to increase other nations' reliance on China," the Belfer center concluded. "China's goal – in Xi's words – is to tighten 'international production chains' dependence on China... Xi's strategy is working—not only with others but with the U.S. In 2021, purchases of products from China accounted for nearly half of America’s $1 trillion trade deficit. Today, the U.S. is the world’s largest debtor; China is the largest creditor. "

 

When it comes to manufacturing, China already displaced the US a decade ago:

 

   "China has created a manufacturing ecosystem that allows it to dominate the production of almost everything," the report found. "Initially a low-cost producer of inexpensive consumer goods, China became the world's largest manufacturer in 2010 and accounted for 29% of global manufacturing value added in 2019 – a 20-point increase over 2000."

 

China accounts for one-third of global manufacturing today, while the US manufactures less than one-fifth. While the US was the primary trading partner for most countries in 2001, today China holds that position. As such, China has become the crucial link in the world’s critical global supply chains:

 

   "Despite the rhetoric about decoupling, foreign economies have become more dependent on China during the coronavirus pandemic, not less," the report noted. "China's trade surplus with the world hit a record $675 billion in 2021, a 60% increase from pre-pandemic levels in 2019... China is now the world's largest manufacturer and exporter of scores of essential goods, including 90% of refined rare earth minerals, 80% of solar panels, 50% of computers, and 45% of electric vehicles."

 

China has even replaced the US as the driver of world economic growth.

 

   "Perhaps the most surprising fact for Americans who have not kept track of recent developments is that China has displaced the U.S. to become the primary engine of global growth. Since the Great Recession of 2008, approximately one-third of all growth in the world's GDP has occurred in just one country: China. Thus, when nations around the world assess their prospective growth in the year ahead, the first economy they think about is China. In sum, in the past two decades, China has joined the U.S. and the EU as the third backbone of the global economy."

 

Furthermore, in 2020, for the first time, China, not the US, was home to the largest number of the most valuable global companies on Fortune's Global 500.

 

"For the first time since the magazine began listing its Global 500 rankings, China topped the list with 124 companies—ahead of the U.S.'s 121. Twenty years ago, this list included only ten Chinese companies," the Belfer report noted.

 

Crucially, China is severely challenging the US when it comes to innovation:

 

   "The U.S. and China have been neck and neck in R&D spending since 2017, together accounting for nearly half of global R&D expenditure," the Belfer center concluded. "Measured by PPP in 2010 dollars, between 2000 and2019, U.S R&D expenditure almost doubled, growing from $360 billion to $610 billion. Chinese R&D investments, meanwhile, grew by a factor of 13, from $40 billion to $515 billion."

 

In 2013, the US was the number one top innovating country, according to the Bloomberg Innovation Index, but by 2020, it was not even in the top 10, having fallen to number 11. China still lagged behind at number 16, but, according to the report:

 

   "It is catching up. As our earlier report on the 'Great Tech Rivalry' noted, China's laser-like focus on frontier technologies has positioned it to dominate races like 5G and AI in the future. Moreover, in former Deputy Secretary of Defense Robert Work's apt summary, 'A lot of people still believe that all China does is steal technology and copy it. They still do that, and they're quite good at it. But also, their technological ecosystem and their innovation ecosystem is really, really good. And it’s getting better all the time."

 

While the report points out that China has not yet overtaken the US and that the dollar remains the world’s dominant reserve currency, accounting for 60% of foreign exchange reserves, in addition to a few other areas, it seems increasingly difficult to see how the US could possibly turn things around with the current trajectory. Especially because China is determined to see this development to its goal of becoming the dominant power in the world by 2049.

 

   "What this means for global geopolitics is profound. At the end of World War II and for the decade that followed, the U.S. accounted for roughly half of global GDP. From this position of dominance, the U.S. took the lead in... what became the global economic order. When establishing alliances like NATO... the U.S. could cover the costs without thinking about burden-sharing. But by the end of the Cold War in 1991, America's share of global GDP had shrunk to one-fifth. Today it stands at one-sixth.... China’s rise has created a new world economic order."

 

What this new world economic order means for the future is probably difficult to imagine for the many who have grown up with the US as the leading world power and the accompanying celebrated values of freedom, democracy, and capitalism, taken for granted by so many.

 

China's economic rise and the US response -- or lack of such -- will determine the predominant values of the 21st century – will it be China's authoritarianism and disregard for freedom, democracy, and human rights or those of the US and the West?

 

   Judith Bergman, a columnist, lawyer and political analyst, is a Distinguished Senior Fellow at Gatestone Institute.