Mais um conjunto de respostas a um questionário, de 2005, que jamais foi divulgado, a não ser, talvez, algumas frases ou trechos desse texto tenham se integrado a tese de colega de carreira, que me formulou as questões abaixo.
Mercosul-União
Europeia Brasília, 21 jun. 2005
A Moeda Única europeia e a experiência
do Mercosul
QUESTIONÁRIO
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22 de junho de 2005
1) Pergunta: até que ponto o euro poderá, de fato, representar um
fator efetivo de estímulo ao crescimento, modernização e competitividade da
economia européia? em que medida a ausência de progressos nas reformas
pendentes em diversos pontos (harmonização do mercado financeiro e de capitais,
liberalização do setor de energia, flexibilização da rígida legislação
trabalhista, reforma dos generosos sistemas de previdência do setor público)
poderá dificultar ou até mesmo obstaculizar aquela pretensão? o euro poderá vir
a desempenhar o papel de catalisador da modernização da economia européia, de
forma a possibilitar o cumprimento das ambiciosas metas traçadas durante a
Cúpula de Lisboa, no ano 2000 (fazer da UE a região economicamente mais
dinâmica do mundo até 2010)?;
PRA: Numa fórmula sintética, se poderia dizer que o “rabo
monetário” não pode abanar o “cachorro do desenvolvimento”. A moeda única é o
complemento natural de um mercado único, mas ela não pode, por si só, criar as
condições estruturais e institucionais para que a economia européia adquira, ou
mantenha, condições de competitividade que só são dadas pela manutenção daquilo
que os economistas chamam de “good fundamentals”. Ou seja, a Europa continua a
não cumprir outras condições necessárias à dinamização de sua economia
notoriamente debilitada e letárgica, notadamente no que se refere à
flexibilização do mercado de trabalho. A moeda é, em princípio, neutra em
relação às demais medidas de política econômica que devem ser adotadas para
manter um ritmo adequado, e sustentável, de crescimento econômico. Uma “boa”
moeda pode ser uma condição necessária para sustentar um processo desse tipo, e
o euro parece constituir uma “boa” moeda, mas mesmo nessa condição ela não
configura condição suficiente para impulsionar, por si só, esse processo.
2) Perguntas:
i-) até que ponto o euro poderá, de fato, vir a constituir uma ameaça à
supemacia internacional do dólar?
PRA: Não creio que o termo “ameaça” represente adequadamente uma
situação de “competição” entre moedas concorrentes. A situação atual do dólar,
que de certa forma já dura cinco ou mais décadas, é o resultado de um processo
histórico que retirou a Europa das alavancas da política mundial, posição que
ela tinha assumido no século XVII ou XVIII e que manteve até as primeiras
décadas do século XX. Por incompetência própria e outros desastres
auto-infligidos, a Europa conseguiu se diminuir a si mesma, ao ponto de
tornar-se uma anã política e estratégica, ademais de uma potência secundária no
plano da economia mundial. Isso foi ainda mais verdadeiro no capítulo
monetário, em virtude de processos inflacionários corrosivos que minaram a
credibilidade da maior parte das moedas nacionais dos países europeus.
O euro vem, de certa forma, recuperar um
pouco dessa importância diminuída da Europa até a época do padrão ouro. Sendo
de boa qualidade, ele poderá competir com o dólar, como elemento de troca, de
reserva e instrumento financeiro internacional, mas isso depende inteiramente
da confiança dos agentes econômicos em seu poder de manter essas qualidades,
que de certa forma são também dependentes da presença econômica, das interfaces
relacionais e da participação dos países detentores do euro nos grandes fluxos
comerciais e financeiros da intedependência global.
O euro não é uma “ameaça” ao dólar, que
ocupa um papel exagerado no sistema financeiro e monetário internacional, pelo
simples fato de que ele tem, sim, de ocupar o seu próprio espaço, que
corresponderia à fração da economia mundial que possui interface com os países
detentores do euro, acrescida da parte de reservas internacionais que terceiros
países estejam dispostos a manter nessa moeda, em função da manutenção
percebida de seu poder de compra em períodos mais longos. O euro, de certa
forma, está subrepresentado, mas ele ainda precisa provar que possui
características de flexibilidade, estabilidade e liquidez que o dólar ostentou
(por ausência de concorrentes sérios) no último meio século ou mais.
ii-) a trajetória futura do euro poderá dar razão aos críticos que apontam
o paradoxo de uma “moeda sem Estado”, ressaltam o descompasso entre a política
monetária (supranacional: BCE) e a fiscal (autonomia dos Estados nacionais) e
assinalam inconsistências na “arquitetura institucional” da moeda única?
PRA: De certa forma sim, pois essa inconsistência fiscal e
monetária traz custos adicionais do ponto de vista das políticas setoriais
nacionais e não resolve o problema da confiança fundamental dos agentes
econômicos na manutenção dos “good fundamentals”.
iii-) a rejeição do referendo sobre o Tratado Constitucional da União
Européia na França e na Holanda poderia pôr em xeque as perspectivas de avanços
efetivos rumo a uma “união política” na UE e, em última instância, vir a
ameaçar até mesmo a sobrevivência do euro?
PRA: Não creio. A rejeição tem a ver também com elementos de
política interna e com outras ameaças percebidas ou reais ao “modo de vida”
europeu, confortado por anos de crescimento sob o welfare state, e hoje
confrontado aos riscos da globalização e da crise fiscal derivada de regimes
sociais muito generosos. De toda forma, a união política é muito difícil e
também tem custos econômicos, que os europeus não parecem ter medido
adequadamente. Eles tem um regulacionismo excessivo, num momento em que a
globalização pede mais flexibilidade, mas não querem conceder nesse ponto, pois
isso significa passar a trabalhar mais por menos.
3) Pergunta: quais os efeitos esperados da ampliação da UE sobre a
gestão da moeda única? aumentariam os riscos de ocorrência de choques
assimétricos no interior da UEM?
PRA: Provavelmente, mas não devemos exagerar esses efeitos
políticos e econômicos sobre a moeda única. Os países que entram têm um peso
econômico diminuto em relação aos que já integram a zona euro e seu impacto
será limitado. O euro pode servir a 30 ou mais países sem problemas, desde que
esses países não minem a credibilidade da moeda engajando práticas nocivas do
ponto de vista dos principais indicadores macroeconômicos. A moeda é um
instrumento, ela não cria ela mesma as condições para os choques, que só podem
ocorrer se sua manipulação desafiar de modo exagerado as “leis de gravidade” do
campo econômico “natural”, que são as regras de mercado (ou seja, de compra e
venda de moedas e de ativos financeiros).
4) Pergunta: a seu ver, o Pacto de Estabilidade e Crescimento
representa uma insuportável “camisa de força” para as economias européias ou um
instrumento eficaz para assegurar a convergência e a sincronização dos
principais indicadores macroeconômicos regionais? Algo semelhante deveria ser
adotado no Mercosul? Que organismo seria responsável pelo enforcement das regras de um Pacto com essas características no
Mercosul?
PRA: Pode ser, de fato, uma “camisa de força”, mas apenas na medida
em que a nova moeda precisa “provar” sua credibilidade, e ela só pode fazê-lo
em condições mínimas de ortodoxia econômica. Como toda regra rígida, ela não é
adequada em momentos de desequilíbrio sistêmico ou conjuntural, quando os
governos precisam tangenciar certos riscos para acomodar pressões momentâneas.
Difícil, da mesma forma, falar em “convergência e sincronização dos principais
indicadores macroeconômicos regionais”, quando as dinâmicas nacionais respondem
a impulsos setoriais (por vezes em grandes economias) que colocam o equilíbrio
em países vizinhos sob stress. Essa “instabilidade” é inerente aos mercados em
geral, e aos mercados capitalistas em particular e os países e o BCE têm de
aprender a conviver com ela. Não há nada de dramático nos descompassos setoriais
ou intra-regionais, desde que a mobilidade de fatores seja plenamente
assegurada, o que parece ainda não ser o caso na Europa.
Não creio que o Mercosul
reuna condições para sequer começar a discutir um projeto de moeda única.
Quando ele se constituir em mercado verdadeiramente unificado, e estamos longe
disso, pode-se pensar em começar a discutir a unificação monetária, passando
porém por vários anos de coordenação de políticas macroeconômicas. Um pacto
similar, mas não semelhante, no Mercosul, valeria em seu mérito próprio e não
como indutor ou estimulado de uma moeda comum, que não está em causa na
presente conjuntura nem estará nos próximos anos.
5) Prgunta: como visualiza a estrutura e as regras de funcionamento
de um eventual Banco Central supranacional no Mercosul? A “independência
absoluta” do BCE poderia ser um precedente válido? Não haveria resistências
políticas consideráveis por parte do estamento político no Brasil, que tantas
dificuldades encontra para aceitar a idéia de uma “autonomia operacional” do BC
nos moldes do sistema adotado pelo Banco da Inglaterra?
PRA: Essa questão não figura e não figurará na agenda do Mercosul
antes de muito tempo. Os bancos centrais nacionais precisam adquirir
independência e funcionar nesse regime durante muitos anos, antes de sequer se
pensar em fazer um “instituto” de coordenação das políticas macroeconômicas
nacionais, tarefas que de resto podem ser cumpridas por órgãos
intergovernamentais, como ocorre agora. A questão portanto não está na agenda, mas
a da independência nacional dos BCs sim, é urgente, necessária e indispensável,
a despeito de qualquer outro desenvolvimento no Mercosul, com mercado unificado
ou sem ele.
6) Pergunta: não lhe parece aconselhável caminhar com prudência no
processo de conformação de uma moeda única no MERCOSUL, mantendo o tema como
meta de longo prazo no discurso oficial de Brasil e Argentina mas
privilegiando, na prática, a obtenção de resultados concretos em relação a
questões vistas como requisitos fundamentais para o êxito de qualquer
iniciativa de unificação monetária? (convergência dos principais indicadores
macroeconômicos, consolidação da União Aduaneira e da TEC, avanços concretos em
relação à constituição de um autêntico mercado comum, introdução de mecanismos
ou bandas cambiais para a flutuação administrada das respectivas moedas);
PRA: Certamente. Essa disposição de caminhar em direção da moeda
comum pelo motivo de que as políticas macroeconômicas nacionais não são boas é
um argumento falho e capcioso, ainda que se possa conceber essa “camisa de
força” soi-disant “supra-nacional” para impedir mais instabilidade no plano
interno, algo como ter um vigilante do peso ou de bebidas alcoólicas em
festinhas de obsesos ou de adolescentes. Os “vigilantes” podem até contribuir
para evitar maiores desastres, mas eles não podem impedir os indivíduos de
continuar sendo pecadores em suas próprias casas. Quando, e se, eles tiverem
uma casa comum, sua eficácia será certamente maior. Creio que foi nesse
espírito que foi concebida a proposta Giambiagi- Barenboim: impedir os dois
grandes de continuarem se “emborrochando” de maneira irresponsável. Mas,
certamente, a moeda é um instrumento inadquado para isso, sobretudo se se leva
em conta que o Brasil não usaria essa moeda para parte substancial de suas
transações externas, que continuariam atreladas ao dólar (e ao euro) durante
bastante tempo ainda.
7) Pergunta: Quais as principais lições deixadas pela unificação monetária européia, no
contexto da projetada adoção de uma moeda única entre Brasil e Argentina (ou no
Mercosul, ou ainda no chamado “Mercosul ampliado”?)
PRA: Primeira lição: libere de fato os fluxos de todo tipo e
garanta a mobilidade de fatores. Segunda lição: garanta a estabilidade das
moedas nacionais in any circumstances.
Terceira lição: coloque os “banqueiros centrais” e os tecnocratas monetários e
fazendários em contato entre si durante bastante tempo, mesmo que seja para
jogar poker e não fazer nada. A convivência vai aumentar a confiança entre
eles. Quarta lição: libere os movimentos de capitais assim que for possível e
garanta a conversibilidade das moedas. Quinta e última lição: faça sempre o
dever de casa bem feito, que os resultados aparecerão.
Mas isso tudo é apenas
pré-condição, não os fundamentos da moeda comum. Trata-se de pré-requisitos,
indispensáveis. Numa segunda etapa, se for o caso, e se as circunstâncias
econômicas o justificarem, pode-se pensar em estabelecer um regime monetário
comum (que só pode ser o da flutuação administrada), talvez fazer um sistema
monetário correlacionado (isto é, com banda interna dotada de variação mínima)
e pensar em adotar metas monetárias e fiscais comuns. Mas, para isso se precisa
ter a casa em ordem e possuir muitas reservas, bem mais do que os países
dispõem hoje. Tendo em vista as dimensões relativamente reduzidas da integração
na formação do PIB de cada país, não tenho certeza de que todo esse sacrifício
valha a pena...
8) Pergunta: Está de acordo com a idéia de uma moeda única para o
Mercosul (ou Brasil-Argentina)? Por quê? Em caso afirmativo, delineie um
roteiro temporal aproximativo para a conformação de uma união monetária no
subcontinente (prazos, etapas,
instituições)
PRA: Em princípio não, mas não sou dogmático. Pode ser que no
futuro ela seja justificada, isso é, se os territórios econômicos dos dois
países forem verdadeiramente unificados e se as administrações econômicas
funcionarem de modo concordante. Acho isso possível, mas nem por isso uma moeda
comum se justifica. Ela representa uma tremenda renúncia de soberania e não
creio que circunstâncias políticas, históricas, geográficas ou mesmo econômicas
justifiquem esse abandono de soberania nacional. Não temos nenhum objetivo
nacional, regional ou internacional (como ocorreu na experiência européia) que
recomende essa via para alguma recuperação de poder e prestígio interno e
externo. Não precisamos da moeda compartilhada, podemos sobreviver com a nossa
pelo futuro previsível. O próprio fato
de se falar desde já em moeda comum me parece uma renúncia antecipada de
soberania, que considero inaceitável nas presentes circunstâncias.
Paulo Roberto
de Almeida
(pralmeida@mac.com;
www.pralmeida.org)
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Perguntas
Originais:
1-) A moeda única européia: a
dimensão econômica: A rationale
imediata por trás da iniciativa do euro diz respeito aos benefícios econômicos
a serem auferidos pelos países que decidam aderir à União Econômica e
Monetária. Costumam ser ressaltados, nesse sentido, quatro pontos:
a-) a tese segundo a qual a moeda única seria o corolário natural de um
mercado comum pleno para bens, serviços, capitais e mão-de-obra (“one market, one money”);
b-) as vantagens decorrentes da adesão a uma união monetária, tais como
preconizadas pelos formuladores da teoria das “optimum currency areas”: eliminação do risco cambial, diminuição
dos custos de transação, redução da taxa de juros, sincronização dos ciclos
econômicos, etc;
c-) a possível expansão adicional dos fluxos de comércio no interior do
espaço monetário unificado, tese defendida em diversos trabalhos de Andrew
Rose;
d-) a virtual eliminação do recurso às “desvalorizações competitivas” no
interior da UEM, o que faria do euro um fator de estabilização no sistema
monetário internacional.
Pergunta: até que ponto o euro poderá, de fato, representar um fator
efetivo de estímulo ao crescimento, modernização e competitividade da economia
européia? em que medida a ausência de progressos nas reformas pendentes em
diversos pontos (harmonização do mercado financeiro e de capitais,
liberalização do setor de energia, flexibilização da rígida legislação
trabalhista, reforma dos generosos sistemas de previdência do setor público)
poderá dificultar ou até mesmo obstaculizar aquela pretensão? o euro poderá vir
a desempenhar o papel de catalisador da modernização da economia européia, de
forma a possibilitar o cumprimento das ambiciosas metas traçadas durante a
Cúpula de Lisboa, no ano 2000 (fazer da UE a região economicamente mais
dinâmica do mundo até 2010)?;
PRA: Numa fórmula sintética, se poderia dizer que o “rabo
monetário” não pode abanar o “cachorro do desenvolvimento”. A moeda única é o
complemento natural de um mercado único, mas ela não pode, por si só, criar as
condições estruturais e institucionais para que a economia européia adquira, ou
mantenha, condições de competitividade que só são dadas pela manutenção daquilo
que os economistas chamam de “good fundamentals”. Ou seja, a Europa continua a
não cumprir outras condições necessárias à dinamização de sua economia
notoriamente debilitada e letárgica, notadamente no que se refere à
flexibilização do mercado de trabalho. A moeda é, em princípio, neutra em
relação às demais medidas de política econômica que devem ser adotadas para
manter um ritmo adequado, e sustentável, de crescimento econômico. Uma “boa”
moeda pode ser uma condição necessária para sustentar um processo desse tipo, e
o euro parece constituir uma “boa” moeda, mas mesmo nessa condição ela não
configura condição suficiente para impulsionar, por si só, esse processo.
2-) A dimensão política do euro
: Além de seus objetivos econômicos, o lançamento da moeda única européia
visava, claramente, à consecução dos seguintes objetivos de cunho estratégico
ou geopolítico:
a-) dar um impulso renovado ao processo de integração europeu, mediante uma
iniciativa que, além de virtualmente irreversível, deveria, idealmente,
favorecer o aprofundamento da “ever
closer union” dos países-membros da UE em outras áreas, entre as quais a
coordenação de políticas fiscais (no limite, a instituição de um “governo
econômico da UE”), a política externa e de segurança e a reforma do arcabouço
institucional comunitário;
b-) representar, em uma perspectiva de médio e longo prazo, um desafio
concreto à indiscutível hegemonia do dólar no sistema monetário internacional.
Perguntas:
i-) até que ponto o euro poderá, de fato, vir a constituir uma ameaça à
supemacia internacional do dólar?
PRA: Não creio que o termo “ameaça” represente adequadamente uma
situação de “competição” entre moedas concorrentes. A situação atual do dólar,
que de certa forma já dura cinco ou mais décadas, é o resultado de um processo
histórico que retirou a Europa das alavancas da política mundial, posição que
ela tinha assumido no século XVII ou XVIII e que manteve até as primeiras
décadas do século XX. Por incompetência própria e outros desastres
auto-infligidos, a Europa conseguiu se diminuir a si mesma, ao ponto de
tornar-se uma anã política e estratégica, ademais de uma potência secundária no
plano da economia mundial. Isso foi ainda mais verdadeiro no capítulo
monetário, em virtude de processos inflacionários corrosivos que minaram a
credibilidade da maior parte das moedas nacionais dos países europeus.
O euro vem, de certa forma, recuperar um
pouco dessa importância diminuída da Europa até a época do padrão ouro. Sendo
de boa qualidade, ele poderá competir com o dólar, como elemento de troca, de
reserva e instrumento financeiro internacional, mas isso depende inteiramente
da confiança dos agentes econômicos em seu poder de manter essas qualidades,
que de certa forma são também dependentes da presença econômica, das interfaces
relacionais e da participação dos países detentores do euro nos grandes fluxos
comerciais e financeiros da intedependência global.
O euro não é uma “ameaça” ao dólar, que
ocupa um papel exagerado no sistema financeiro e monetário internacional, pelo
simples fato de que ele tem, sim, de ocupar o seu próprio espaço, que
corresponderia à fração da economia mundial que possui interface com os países
detentores do euro, acrescida da parte de reservas internacionais que terceiros
países estejam dispostos a manter nessa moeda, em função da manutenção
percebida de seu poder de compra em períodos mais longos. O euro, de certa
forma, está subrepresentado, mas ele ainda precisa provar que possui
características de flexibilidade, estabilidade e liquidez que o dólar ostentou
(por ausência de concorrentes sérios) no último meio século ou mais.
ii-) a trajetória futura do euro poderá dar razão aos críticos que apontam
o paradoxo de uma “moeda sem Estado”, ressaltam o descompasso entre a política
monetária (supranacional: BCE) e a fiscal (autonomia dos Estados nacionais) e
assinalam inconsistências na “arquitetura institucional” da moeda única?
PRA: De certa forma sim, pois essa inconsistência fiscal e
monetária traz custos adicionais do ponto de vista das políticas setoriais
nacionais e não resolve o problema da confiança fundamental dos agentes
econômicos na manutenção dos “good fundamentals”.
iii-) a rejeição do referendo sobre o Tratado Constitucional da União
Européia na França e na Holanda poderia pôr em xeque as perspectivas de avanços
efetivos rumo a uma “união política” na UE e, em última instância, vir a
ameaçar até mesmo a sobrevivência do euro?
PRA: Não creio. A rejeição tem a ver também com elementos de
política interna e com outras ameaças percebidas ou reais ao “modo de vida”
europeu, confortado por anos de crescimento sob o welfare state, e hoje
confrontado aos riscos da globalização e da crise fiscal derivada de regimes
sociais muito generosos. De toda forma, a união política é muito difícil e
também tem custos econômicos, que os europeus não parecem ter medido
adequadamente. Eles tem um regulacionismo excessivo, num momento em que a
globalização pede mais flexibilidade, mas não querem conceder nesse ponto, pois
isso significa passar a trabalhar mais por menos.
3-) Os desafios da ampliação
(“enlargement”) da UE: Em maio de 2004, a UE passou a contar com 25
membros. Em 2007, deverão ingressar no bloco a Romênia e a Bulgária e,
possivelmente alguns anos depois, a Turquia. Há, ainda, diversos outros países
europeus que deverão, em algum momento, formalizar pedido de abertura de
negociações para uma eventual adesão à UE, entre os quais os Estados que
integravam a ex-Iugoslávia (a Eslovênia já foi incluída na “first wave” da ampliação).
Pergunta: quais os efeitos esperados da ampliação da UE sobre a gestão da
moeda única? aumentariam os riscos de ocorrência de choques assimétricos no
interior da UEM?
PRA: Provavelmente, mas não devemos exagerar esses efeitos
políticos e econômicos sobre a moeda única. Os países que entram têm um peso
econômico diminuto em relação aos que já integram a zona euro e seu impacto
será limitado. O euro pode servir a 30 ou mais países sem problemas, desde que
esses países não minem a credibilidade da moeda engajando práticas nocivas do
ponto de vista dos principais indicadores macroeconômicos. A moeda é um
instrumento, ela não cria ela mesma as condições para os choques, que só podem
ocorrer se sua manipulação desafiar de modo exagerado as “leis de gravidade” do
campo econômico “natural”, que são as regras de mercado (ou seja, de compra e
venda de moedas e de ativos financeiros).
4-) Pontos polêmicos no atual
arcabouço institucional do euro:
Gostaria de receber seus comentários sobre algumas questões atinentes à
arquitetura institucional da moeda única européia que têm gerado forte
polêmica, incluindo sua visão a respeito da eventual conveniência de introduzir
mecanismos análogos para a implementação da projetada moeda comum do Mercosul:
a-) Pacto de Estabilidade e
Crescimento : Introduzido basicamente por iniciativa da Alemanha, que
visava a conter a “prodigalidade fiscal” dos países mediterrâneos,
especialmente da Itália, e assegurar, em bases permanentes, o cumprimento dos
parâmetros de Maastricht depois do lançamento da moeda única, o chamado Pacto
de Estabilidade e Crescimento tem recebido, nos últimos meses, uma verdadeira
saraivada de críticas. O Pacto é acusado de “engessar” a economia dos países
europeus, “amarrando as mãos” das autoridades para adotar medidas fiscais
anticíclicas destinadas a atenuar os efeitos da sensível redução da taxa de
crescimento verificada no último biênio. O próprio ex-Presidente da Comissão
Européia, Romano Prodi, chegou a declarar que a rigidez inerente ao cumprimento
de suas regras fazia do Pacto um instrumento “estúpido”. Diversas propostas de
reforma do Pacto têm sido apresentadas, incluindo sugestões para deixar maior
margem de manobra em matéria fiscal para os países que obedecem aos parâmetros
de Maastricht no tocante à relação dívida pública/PIB e para a utilização da
chamada “golden rule” (diferenciação
das despesas correntes dos gastos com investimento no cômputo da ratio déficit público/PIB).
Pergunta: a seu ver, o Pacto de Estabilidade e Crescimento representa uma
insuportável “camisa de força” para as economias européias ou um instrumento
eficaz para assegurar a convergência e a sincronização dos principais
indicadores macroeconômicos regionais? Algo semelhante deveria ser adotado no
Mercosul? Que organismo seria responsável pelo enforcement das regras de um Pacto com essas características no
Mercosul?
PRA: Pode ser, de fato, uma “camisa de força”, mas apenas na medida
em que a nova moeda precisa “provar” sua credibilidade, e ela só pode fazê-lo
em condições mínimas de ortodoxia econômica. Como toda regra rígida, ela não é
adequada em momentos de desequilíbrio sistêmico ou conjuntural, quando os
governos precisam tangenciar certos riscos para acomodar pressões momentâneas.
Difícil, da mesma forma, falar em “convergência e sincronização dos principais
indicadores macroeconômicos regionais”, quando as dinâmicas nacionais respondem
a impulsos setoriais (por vezes em grandes economias) que colocam o equilíbrio
em países vizinhos sob stress. Essa “instabilidade” é inerente aos mercados em
geral, e aos mercados capitalistas em particular e os países e o BCE têm de
aprender a conviver com ela. Não há nada de dramático nos descompassos
setoriais ou intra-regionais, desde que a mobilidade de fatores seja plenamente
assegurada, o que parece ainda não ser o caso na Europa.
Não creio que o Mercosul
reuna condições para sequer começar a discutir um projeto de moeda única.
Quando ele se constituir em mercado verdadeiramente unificado, e estamos longe
disso, pode-se pensar em começar a discutir a unificação monetária, passando
porém por vários anos de coordenação de políticas macroeconômicas. Um pacto
similar, mas não semelhante, no Mercosul, valeria em seu mérito próprio e não
como indutor ou estimulado de uma moeda comum, que não está em causa na
presente conjuntura nem estará nos próximos anos.
b-) Banco Central Europeu: critica-se o BCE, fundamentalmente, pelos
seguintes motivos:
b.1-) falta de suficiente transparência de seus procedimentos (as atas das
reuniões do Comitê Governativo não são divulgadas; não se sabe, portanto, como
votam os Conselheiros do BCE) e a carência de maior accountability de sua cúpula, a qual, embora deva ser aprovada pelo
Parlamento Europeu, não pode ser destituída por moção direta do PE (não está
sujeita a moção de confiança);
b.2-) ênfase, por muitos considerada excessiva, na manutenção da
estabilidade do nível geral de preços, objetivo consagrado como prioridade
absoluta no Estatuto do BCE. Contrasta-se essa situação com o caso do Federal Reserve System, nos EUA, cujos
Estatutos conciliam a busca simultânea do controle da inflação com a manutenção
e crescimento do nível geral das atividades econômicas. Critica-se, ainda, o
patamar de inflação anual utilizado como referência pelo BCE (“below but close to 2%”) como
maximalista. f
Pergunta: como visualiza a estrutura e as regras de funcionamento de um
eventual Banco Central supranacional no Mercosul? A “independência absoluta” do
BCE poderia ser um precedente válido? Não haveria resistências políticas
consideráveis por parte do estamento político no Brasil, que tantas
dificuldades encontra para aceitar a idéia de uma “autonomia operacional” do BC
nos moldes do sistema adotado pelo Banco da Inglaterra?
PRA: Essa questão não figura e não figurará na agenda do Mercosul
antes de muito tempo. Os bancos centrais nacionais precisam adquirir
independência e funcionar nesse regime durante muitos anos, antes de sequer se
pensar em fazer um “instituto” de coordenação das políticas macroeconômicas
nacionais, tarefas que de resto podem ser cumpridas por órgãos
intergovernamentais, como ocorre agora. A questão portanto não está na agenda,
mas a da independência nacional dos BCs sim, é urgente, necessária e
indispensável, a despeito de qualquer outro desenvolvimento no Mercosul, com
mercado unificado ou sem ele.
5-) O “timing” adequado para a
adoção de uma moeda comum no Mercosul:
Em ensaio de Fabio Giambiagi e Igor Barenboim sobre as lições do processo
de unificação monetária na Alemanha, sugere-se que o cronograma para a eventual
adoção de uma moeda única no MERCOSUL poderia ser abreviado, em função, entre
outros aspectos, da “vontade política” reiteradamente manifestada pelas máximas
autoridades no Brasil e na Argentina, das similaridades encontradas na
estrutura produtiva dos dois países e do abandono do sistema de “currency board” no país platino
Pergunta: não lhe parece aconselhável caminhar com prudência no processo de
conformação de uma moeda única no MERCOSUL, mantendo o tema como meta de longo
prazo no discurso oficial de Brasil e Argentina mas privilegiando, na prática,
a obtenção de resultados concretos em relação a questões vistas como requisitos
fundamentais para o êxito de qualquer iniciativa de unificação monetária?
(convergência dos principais indicadores macroeconômicos, consolidação da União
Aduaneira e da TEC, avanços concretos em relação à constituição de um autêntico
mercado comum, introdução de mecanismos ou bandas cambiais para a flutuação
administrada das respectivas moedas);
PRA: Certamente. Essa disposição de caminhar em direção da moeda
comum pelo motivo de que as políticas macroeconômicas nacionais não são boas é
um argumento falho e capcioso, ainda que se possa conceber essa “camisa de
força” soi-disant “supra-nacional” para impedir mais instabilidade no plano
interno, algo como ter um vigilante do peso ou de bebidas alcoólicas em
festinhas de obsesos ou de adolescentes. Os “vigilantes” podem até contribuir
para evitar maiores desastres, mas eles não podem impedir os indivíduos de
continuar sendo pecadores em suas próprias casas. Quando, e se, eles tiverem
uma casa comum, sua eficácia será certamente maior. Creio que foi nesse
espírito que foi concebida a proposta Giambiagi- Barenboim: impedir os dois
grandes de continuarem se “emborrochando” de maneira irresponsável. Mas,
certamente, a moeda é um instrumento inadquado para isso, sobretudo se se leva
em conta que o Brasil não usaria essa moeda para parte substancial de suas transações
externas, que continuariam atreladas ao dólar (e ao euro) durante bastante
tempo ainda.
6-) Quais as principais lições deixadas pela unificação monetária européia,
no contexto da projetada adoção de uma moeda única entre Brasil e Argentina (ou
no Mercosul, ou ainda no chamado “Mercosul ampliado”?)
PRA: Primeira lição: libere de fato os fluxos de todo tipo e
garanta a mobilidade de fatores. Segunda lição: garanta a estabilidade das
moedas nacionais in any circumstances.
Terceira lição: coloque os “banqueiros centrais” e os tecnocratas monetários e
fazendários em contato entre si durante bastante tempo, mesmo que seja para
jogar poker e não fazer nada. A convivência vai aumentar a confiança entre
eles. Quarta lição: libere os movimentos de capitais assim que for possível e
garanta a conversibilidade das moedas. Quinta e última lição: faça sempre o
dever de casa bem feito, que os resultados aparecerão.
Mas isso tudo é apenas
pré-condição, não os fundamentos da moeda comum. Trata-se de pré-requisitos,
indispensáveis. Numa segunda etapa, se for o caso, e se as circunstâncias
econômicas o justificarem, pode-se pensar em estabelecer um regime monetário
comum (que só pode ser o da flutuação administrada), talvez fazer um sistema
monetário correlacionado (isto é, com banda interna dotada de variação mínima)
e pensar em adotar metas monetárias e fiscais comuns. Mas, para isso se precisa
ter a casa em ordem e possuir muitas reservas, bem mais do que os países
dispõem hoje. Tendo em vista as dimensões relativamente reduzidas da integração
na formação do PIB de cada país, não tenho certeza de que todo esse sacrifício
valha a pena...
7-) Está de acordo com a idéia de uma moeda única para o Mercosul (ou
Brasil-Argentina)? Por quê? Em caso afirmativo, delineie um roteiro temporal
aproximativo para a conformação de uma união monetária no subcontinente (prazos, etapas, instituições)
PRA: Em princípio não, mas não sou dogmático. Pode ser que no
futuro ela seja justificada, isso é, se os territórios econômicos dos dois
países forem verdadeiramente unificados e se as administrações econômicas
funcionarem de modo concordante. Acho isso possível, mas nem por isso uma moeda
comum se justifica. Ela representa uma tremenda renúncia de soberania e não
creio que circunstâncias políticas, históricas, geográficas ou mesmo econômicas
justifiquem esse abandono de soberania nacional. Não temos nenhum objetivo
nacional, regional ou internacional (como ocorreu na experiência européia) que
recomende essa via para alguma recuperação de poder e prestígio interno e
externo. Não precisamos da moeda compartilhada, podemos sobreviver com a nossa
pelo futuro previsível. O próprio fato
de se falar desde já em moeda comum me parece uma renúncia antecipada de
soberania, que considero inaceitável nas presentes circunstâncias.
Paulo Roberto
de Almeida
Brasília, 22
de junho de 2005
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